Family, de Masahisa Fukase. Cortesia de Image Masahisa Fukase archives e MACK.

O livro O Capital Está Morto, da australiana McKenzie Wark, faz mais do que esmiuçar o estado atual do capitalismo: com lucidez categórica, a obra escancara uma transformação radical que altera a própria essência da ordem econômica. Para Wark, o que chamamos de capitalismo na verdade já se desfez em pedaços para se tornar algo mais invasivo e controlador do que imaginamos — por incrível que pareça, isso é sim possível. Nesse novo sistema-titereiro, a informação tornou-se o principal recurso estratégico e a elite dominante opera sob um novo conceito de classe, chamada pela autora de “vetorialista”.

A classe vetorialista, ao contrário do que nos vem à mente quando pensamos em grupos que prevalecem sobre outros, não detém seu poder com base na posse dos meios tradicionais de produção, mas o faz a partir do controle dos vetores de informação. Isto é, todas as redes e sistemas que dão forma e sentido aos dados que governam a sociedade e influenciam o comportamento humano. Esse controle da informação define novas formas de exploração e desigualdade, tornando-se central para o funcionamento da economia global.

O entendimento tradicional da informação como algo abstrato, leve e quase etéreo é posto em cheque por Wark. A informação, como ela observa, depende de suportes materiais, infraestrutura de redes de dados, servidores, dispositivos e energia que sustentam o fluxo incessante de dados na sociedade contemporânea. Esse novo recurso, então, representaria uma reconfiguração das forças produtivas, na qual os vetores de informação e suas complexas camadas de circulação tornam-se um campo de poder que redefine as relações econômicas e sociais. Wark sugere que a informação, capturada e mercantilizada, transforma-se inevitavelmente em uma ferramenta de dominação, estendendo o controle até os aspectos mais cotidianos da vida, desde as redes sociais até os assistentes digitais que respondem aos nossos comandos de voz e monitoram rotinas pessoais.

Empresas como Google, Amazon, Facebook e Apple exemplificam essa nova ordem em que o valor está no controle dos dados e na capacidade de influenciar/prever os comportamentos humanos. O verdadeiro poder da classe vetorialista reside na “assimetria da informação”, o que quer dizer que, enquanto o público tem acesso a uma pequena fração dos dados, as corporações retêm e acumulam vastos conjuntos de informações, mantendo uma vantagem constante na criação de valor e intensificando o poder sobre a sociedade.

Como um dos resultados desse caos, Wark destaca o surgimento de uma classe subordinada, chamada por ela de “hackers”, composta por todos aqueles que produzem novas formas de informação. Esses trabalhadores criativos (programadores, artistas, escritores, acadêmicos) geram conteúdo e inovação, mas veem suas criações apropriadas — pra não dizer surrupiadas — pela classe vetorialista, que detém o controle e os direitos sobre a circulação dos produtos informacionais. A relação de exploração se intensifica, pois o valor é extraído do trabalho físico, intelectual e de todas as formas de criação que se transformam em mercadoria nas plataformas vetorialistas. Cada pedaço de informação gerada pelos hackers é apropriada e monetizada, gerando mais valor para as plataformas e deixando seus próprios criadores ao deus-dará.

Não bastasse o controle econômico e social, Wark aponta para uma camada biopolítica mais profunda. O domínio vetorialista — e isso percebemos de maneira mais clara a cada dia que passa — alonga suas unhas até chegar à esfera do corpo humano, com tecnologias que monitoram o organismo e transformam aspectos físicos em dados. Relógios inteligentes e outros gadgets capturam informações sobre nossa saúde, sono, movimento e comportamento, criando um ciclo em que cada aspecto da vida se torna um insumo para o capital vetorialista. Quando os dados capturados continuamente ajustam o comportamento humano às demandas de um sistema que faz da vida cotidiana uma matéria-prima de valor, um preocupante sistema de retroalimentação é fomentado.

Fica impossível não se questionar: onde isso vai parar, hein?

Os insights de Wark questionam as noções tradicionais de classe, valor e trabalho, já que, na era do vetorialismo, o valor econômico não se limita ao trabalho direto, ele provém da capacidade de capturar, organizar e transformar dados em capital. O controle da informação vira um meio de controle social abrangente e os vetores que movimentam os dados são os mesmos que moldam as formas de socialização e as próprias escolhas individuais. Essa transformação exige uma nova compreensão da exploração, que incorpore a captura de dados e a constante vigilância de aspectos da vida pessoal.

A resistência à ordem vetorialista demanda novas formas de organização e consciência, pois as lutas tradicionais contra a exploração capitalista não respondem aos desafios do sistema atual. É preciso desenvolver meios de coletivizar o conhecimento e desafiar o monopólio da informação. 

A informação, afinal, não deve ser vista apenas como uma ferramenta, mas como uma força de produção com poder de moldar a vida social e política. É por essas e outras que a voz de alguém como McKenzie Wark precisa ecoar, sendo ao mesmo tempo um alerta e uma inspiração para resistir.

Confira nossa conversa com a autora:

Considerando a sua proposta de que o capitalismo foi substituído por uma nova ordem, como você enxerga o papel de uma obra como O Capital Está Morto? Qual a relação da classe vetoralista com os livros?

McKenzie Wark: O capitalismo foi apenas substituído como o modo dominante de produção. Sempre há múltiplos modos de produção que se sobrepõem e se entrelaçam. Livros já foram produtos da indústria cultural, vendidos como mercadorias, e, muitas vezes, seu conteúdo era moldado pela própria forma de mercadoria. Isso ainda ocorre em parte. Mas o “livro” agora também se tornou algo que a nova indústria de “conteúdo” entrega mais como um serviço, na forma de texto digital. O que é único sobre o texto é que ele se tornou uma relação dinâmica, de mão dupla. Ao ler um texto em uma interface, a interface também lê você, extraindo dados sobre seus hábitos e desejos. Esse regime do texto é extrativo de um jeito que o mundo dos livros não era. Com todas as suas falhas—ainda prefiro escrever, e ler, livros.

Na sua visão, o que tem sido mais difícil para a sociedade contemporânea entender sobre essa nova estrutura de poder baseada em dados e informações?

MW: Isso sempre nos é vendido como uma atualização daquilo que já conhecemos. Chegou até nós com a aparência dos meios de comunicação familiares e ainda usamos os termos antigos para isso — filme, livro, televisão e por aí vai. Assim, o lado mais sutil da mudança no modo dominante de produção passa despercebido.

Em uma sociedade que recompensa cada vez mais a velocidade, a produtividade e a exploração de dados, qual é o papel do silêncio, da pausa e da reflexão na construção de uma alternativa a esse sistema?

MW: Não acho que seja tão simples quanto lentidão versus velocidade, silêncio versus cacofonia. De certa forma, a infraestrutura técnica sobre a qual toda a economia agora repousa também é, em certo sentido, lenta. É incrivelmente difícil modificá-la para qualquer direção que não seja sua destruição constante do planeta. Acho que se trata mais das táticas de velocidade, de ter acesso a diferentes velocidades e intensidades.

O processo de coletivização do conhecimento parece fundamental para desafiar a classe vetorialista, mas há muitos desafios práticos para isso. Quais seriam as primeiras etapas para criar uma resistência informacional em direção à autonomia?

MW: Como todas as formas de trabalho e produção de conhecimento podem colaborar na tarefa comum de conhecer o mundo e criar uma relação com ele, dentro dele, que seja sustentável e mantenha esse sustento? Isso é incrivelmente difícil. Nos oferecem apenas formas de coordenação pelo mercado ou autoritárias. Então, trata-se de experimentar formas de trabalho e conhecimento baseadas na camaradagem. Isso pode ocorrer dentro das instituições existentes, enquanto elas durarem, ou fora delas.

Ao explorar o controle sobre o corpo e a mente através dos dados, surgem questões éticas profundas. Como você vê o papel da ética na ciência e na tecnologia hoje, e o que deveria mudar para que a informação sirva à sociedade em vez de controlá-la?

MW: “Ética” é a disciplina que encontra justificativas para as relações existentes de dominação e exploração. Precisamos de uma política da tecnologia e, curiosamente, de uma estética, uma arte experimental dela. Temos muito pouca autonomia em relação à grande infraestrutura da economia vetorial, então é uma questão de começar pequeno, criando ilhas de consciência e autonomia.

Em vários momentos, o livro parece um experimento de linguagem e pensamento. Você vê essa subversão no que escreveu? 

MW: O mais difícil é escrever de uma maneira que seja contemporânea. Há uma influência de ideias recebidas, de uma linguagem convencional, incluindo a linguagem conceitual. Ou, ainda, há a tendência de exagerar na novidade, perder de vista a inovação incremental. Para mim, isso significa trabalhar sempre para pressionar a linguagem, para desnaturalizá-la.

Escrever sobre a perda de autonomia e o aumento do controle pode ser um processo que traz inquietação. Foi doloroso ou desconfortável para você escrever sobre a ascensão dessa classe vetorialista? 

MW: Quando escrevi Um Manifesto Hacker (2004), eu estava em um momento otimista, o que é menos evidente em O Capital Está Morto (2019). Ganhamos algumas batalhas, mas perdemos a guerra, por assim dizer. As atuais relações sociotécnicas são o resultado de uma série de lutas, não por causa de alguma “essência” da tecnologia. Está ruim porque perdemos. Não estou aqui para vender otimismo. Mas, pelo menos quando as coisas estão ruins, há menos oportunistas. A luta agora é defensiva.

Sua escrita carrega um tom de urgência e um senso de alerta. Qual é o papel da linguagem e do estilo na transmissão dessa mensagem, e como você encontrou o tom ideal para falar sobre essas mudanças de forma acessível e envolvente?

MW: Sou uma escritora. Para mim, os livros são obras de arte tanto quanto qualquer outra coisa. Escrevi todos eles da melhor forma que pude. Leva muitas versões e muitos recomeços. Mas não é apenas por minha conta. Aprendo com outras pessoas, com outros escritores, tanto do passado quanto do presente. E também conversando com pessoas que fazem coisas e sabem de assuntos fora do meu campo de referência. Estou tentando apresentar a escrita como uma espécie de trans-texto, rompendo as divisões de trabalho, de gênero, de disposições estabelecidas, como um estímulo a um tipo de trabalho coletivo e alegre de fazer a vida juntos de uma maneira diferente.

O que você diria para alguém que, ao ler seu livro, se sente profundamente desanimado com a situação? Você vislumbra algum espaço para otimismo ou imagina que precisamos de uma perspectiva mais crítica e desconstrutiva para mudar o sistema?

MW: É uma pergunta muito abstrata… Todos os nossos humores variam de dia para dia, ou até de minuto a minuto! Quem sabe o que vai acontecer no futuro? Que parte das nossas vidas hoje podemos construir juntos agora? Essa é a pergunta.

Sem título, gravura de Anna Maria Maiolino. A artista ítalo-brasileira é uma das homenageadas da 60a Bienal de Veneza (Divulgação).

“Temos que reconhecer que, apesar de estarmos na era das Grandes Recessões, da austeridade e da estagnação, o que define a vida no Ocidente são os problemas de excesso, não da falta. Nem sempre a sensação é essa — afinal, quem não quer, ou mesmo precisa, de mais dinheiro? —, mas o fato é que, comparados a nossos antepassados, vivemos em meio à superabundância.”
Michael Bhaskar em Curadoria – O Poder da Seleção no Mundo do Excesso

Sinais dos tempos: antes, usávamos a palavra “conteúdo” para nos referirmos a uma abordagem de tema mais aprofundada ou mesmo como algo positivo que alguém possuía; hoje em dia, como um aceno cínico ao estado geral em que estamos, usamos a palavra para designar tudo aquilo, não importa o quê, que as redes sociais produzem. O “conteúdo”, feito bexiga de festa, vem se esvaziando, não sem fazer questão de soltar um barulho ao mesmo tempo estridente e moribundo.

Michael Bhaskar, em 2014. Foto: Bernd Hartung/ Frankfurter Buchmesse

Incrustados no excesso de informações dos dias atuais, envoltos sem direito de escolha nessa verdadeira contenda pela nossa atenção que faz com que cada visita ao celular se assemelhe a um desembarque violento em terras ocupadas, é essencial reconhecer a importância de se fazer escolhas conscientes que dizem respeito a conteúdo. Sob a névoa da guerra, o que consumir e o que não consumir? 

Existem duas razões principais que fundamentam essa necessidade: o gerenciamento do tempo (cada vez mais valioso) e a avaliação da relevância, qualidade e validade das informações recebidas. 

Considerando a limitação do tempo que temos disponível, é fundamental direcionar nossa atenção para aquilo que nos interessa e consideramos pertinentes. Se alguém se deixa levar, lá se vão horas e horas por dia num scroll infinito de informações extremamente descartáveis e pouca, para não dizer nenhuma, retenção de qualquer elucidação que em outro contexto seria válida. Nos tempos modernos — não exatamente iguais aos de Charles Chaplin, mas talvez mais análogos do que imaginamos num primeiro momento —, a inércia das redes sociais pode ser cruel. Com uma quantidade cada vez maior de conteúdos disponíveis, é inviável absorver tudo indiscriminadamente. Para que se cultive a saúde mental e se priorize alguma praticidade, desviar dos muitos dos estilhaços — numa lista rápida: postagens que retratam uma vida irreal e tóxica, influencers de qualquer tipo, pautas pouco desenvolvidas que se resumem às manchetes, notícias inexpressivas sobre o pé dessa ou daquela celebridade —, evitar que o jogo vire e que tudo nos consuma, é um mínimo.

Aos poucos estamos aprendendo, mas, sim, é verdade: nem tudo que chega até nós é factual ou representa uma opinião válida. Curioso pensar como muitas vezes obter uma informação em algum perfil do Instagram ou em qualquer site se assemelha ao que, antes, era ler algo no jornal, apesar deste estar cada vez mais desvalorizado. A lógica, ora, é praticamente a mesma: se está ali, se chegou até mim, então deve ser verdade. Porém, a lógica pregressa era um tanto mais sensata, já que, naqueles tempos — no vendaval do mundo digital, dizer “naqueles tempos” é pensar em praticamente tudo que está a mais de dois ou três anos de distância —, havia uma responsabilidade maior com o que era ou não noticiado, muito embora o poder manipulativo proveniente disso seja tão assustador quanto o das fake news atuais que nem se preocupam em parecer reais. A disseminação de desinformação e opiniões enviesadas é uma das realidade mais aterradores dos nossos tempos.

Desde o surgimento da internet e das mídias sociais, somos constantemente bombardeados por uma quantidade inimaginável de conteúdo. Notícias, artigos, vídeos, músicas, livros e tantos outros produtos, que, pelo volume exacerbado, chegam a ser nocivos, estão disponíveis em uma escala sem precedentes. Eleições já foram decididas tomando proveito disso e quem negar que elas têm papel crucial na formação de opiniões estará sendo, no mínimo, ingênuo. Portanto, é imprescindível desenvolver habilidades de avaliação crítica e discernimento para filtrar o conteúdo que encontramos. Isso envolve questionar a fonte das informações, verificar sua credibilidade, analisar diferentes perspectivas e considerar o contexto em que a informação está inserida. Ao fazer escolhas conscientes sobre o que ler, estamos adotando uma postura crítica e responsável em relação ao conhecimento que absorvemos.

Calma lá. Essa seleção criteriosa não significa fechar-se em uma bolha informativa ou limitar-se a apenas um ponto de vista. Pelo contrário, implica em buscar diversidade de fontes e opiniões, mas de forma consciente e fundamentada. Mais do que nunca, é de suma importância expor-se a diferentes perspectivas e ter acesso a informações confiáveis e embasadas, a fim de ampliar nossa compreensão e formar opiniões com base em ponderação, mas com um pequeno adendo: direcionar para o que nos é mais relevante, tanto pelas nossas predileções quanto pela necessidade de avaliar a qualidade e a validade das informações que nos chegam. Ao adotarmos uma abordagem consciente e crítica em relação à seleção de conteúdos, podemos otimizar nosso tempo, obter conhecimentos relevantes e desenvolver uma visão mais informada e equilibrada do mundo ao nosso redor.

Curadoria – O Poder da Seleção no Mundo do Excesso (2020), escrito por Michael Bhaskar, é um livro que explora a importância da curadoria, como uma forma de seleção proativa, em um mundo invadido por agentes com propósitos diversos, por vezes escusos. Como podemos navegar nesse oceano de excessos e encontrar valor e significado por meio da seleção? Como dar um sentido à loucura que é o bombardeamento de informações? Como é possível a abundância ser esmagadora e causar, paradoxalmente, uma sensação de esvaziamento?

“No contexto de excesso, curadoria não é só um modismo. Ela dá sentido ao mundo.”
Michael Bhaskar em Curadoria – O Poder da Seleção no Mundo do Excesso

Bhaskar é um profissional reconhecido na área da curadoria e do mundo editorial. Sua experiência prática o levou a explorar a importância da seleção como um meio de filtrar e dar significado em meio ao fluxo constante de informações disponíveis. À medida que somos inundados por uma quantidade avassaladora de informações, produtos e opções, a seleção se torna um poderoso mecanismo de autopreservação, filtragem e atribuição de valor.

Nos últimos duzentos e poucos anos, projetamos sociedade e negócios para que não parem de crescer, para que continuem somando. Mas, atualmente, os acréscimos provocam mais mal do que bem. Se muitos problemas são decorrentes de criar mais, não teríamos motivos para questionar esse pressuposto? Vivemos em um mundo fragmentado: nossas vidas se espargem por essas e aquelas redes sociais, com porções que se rompem cada vez mais e causam um danoso desmembramento de vivências, de personalidades, de visões de mundo. No fim, neste mundo estilhaçado, somos nós retalhos, frações, meros vestígios. Versões que gostaríamos de ser, mas não somos.

Ao criar um certo ideal de vida plena e satisfatória que muitas vezes parece inalcançável, uma ideia que se vê salpicada aqui e ali, a cultura e a sociedade amplificam um sentimento generalizado de perda. Perda daquilo que nunca se teve; perda daquilo que nunca se foi — fragmentos que nunca serão o todo. 

Adam Phillips, um renomado psicanalista britânico, escreveu O que você é e o que você quer ser (2012), um livro que explora a natureza humana e as escolhas que fazemos ao longo da vida. Partindo da ideia de que todos nós temos uma vida não vivida, uma vida alternativa que imaginamos ter se tivéssemos feito escolhas diferentes, ele argumenta que essa vida não vivida é uma fonte de angústia e sofrimento para muitas pessoas, pois dá a sensação de que estamos perdendo algo essencial e valioso. Mas questiona se devemos realmente nos lamentar por aquilo que não vivemos e propõe uma reflexão sobre a importância de abraçar as escolhas que fizemos e encontrar significado e satisfação na vida que temos.

“Como sabemos agora mais do que nunca sobre os tipos de vida que é possível viver (…), somos sempre assombrados pelo mito de nosso potencial, do que poderíamos ter em nós mesmos para ser ou fazer. Então, quando não estamos pensando, como o personagem do poema de Randall Jarrell, que ‘As maneiras pelas quais sentimos falta de nossas vidas é a vida’, estamos sofrendo, lamentando ou nos ressentindo por não sermos nós mesmos como imaginamos que poderíamos ser. Compartilhamos nossas vidas com as pessoas que deixamos de ser.”
Adam Phillips em O que você é e o que você quer ser

Adam Phillips, em 2017. Foto: Richard Saker/The Observer

Pensando nas escolhas que temos que fazer no que diz respeito ao que lemos e o que não lemos, aos vídeos que assistimos e aos que não assistimos, temos que saber que nem todas as vidas podem ser vividas. Inevitavelmente, algum assunto do momento passará batido — o que é bom. A curadoria motivada pela sobrevivência vai além da simples escolha, envolvendo também a capacidade de dar contexto, criar conexões e despertar emoções por meio das escolhas feitas. Talvez pareça algo simples, mas, diante do muito que vemos nas redes sociais e na mania que temos de optar pela manifestação célere ao invés de um momento de reflexão, não é algo que vem naturalmente. O natural é opinar sobre tudo, ao mesmo tempo, sempre que algum assunto amplamente discutido surgir — e, sim, ele vai surgir. Mas e se não fizéssemos isso?

É inevitável, e preocupante, o tanto que é possível nos enxergar na seguinte provocação: “Temos entretenimento constante, mas somos cada vez mais distraídos.”

Pensar no papel da seleção em um mundo abarrotado de informações é também refletir sobre como uma habilidade e um processo que pode nos auxiliar, e muito, na sinuosa navegação do mundo contemporâneo do excesso. 

“A curadoria é mal interpretada porque raramente é vista em todo o seu contexto. Curadoria tornou-se um modismo porque a ser resposta para uma série de problemas que antes não existiam: os problemas decorrentes do excesso. Há duzentos anos, vivemos num mundo que promove a criatividade, que busca o crescimento acima de tudo, que aumenta a produtividade sem dar trégua e que quer sempre mais: mais gente, mais recursos, mais dados, mais tudo. A cada dia que passa, porém, fica mais claro que estamos sobrecarregados.”
Michael Bhaskar em Curadoria – O Poder da Seleção no Mundo do Excesso

Mais do que selecionar: dar contexto e significado aos conteúdos escolhidos. Bons curadores, no contexto artístico em que estamos acostumados, são capazes de contar histórias, criar conexões e despertar emoções por meio de suas seleções, certo? Não seria ótimo poder aplicar isso à vida cotidiana?

“Por sorte, a natureza do problema sugere uma resposta: já estamos vendo uma revolução na forma como abordamos o valor. Se o valor, pecuniário ou de outro tipo, antes tinha a ver com a produção primária, agora, num mundo que deixou de ser dominado pela escassez, ele mudou. Hoje o valor está em resolver esses problemas e reduzir a complexidade. Curadoria tem a ver com construir empresas e economias em menos opções mais apropriadas, mais personalizadas. Essa é a diferença fundamental e a grande tendência subjacente que ainda estamos começando a entender.” 
Michael Bhaskar em Curadoria – O Poder da Seleção no Mundo do Excesso

Mais e mais também pode significar menos e menos. Esse, na verdade, é um paradoxo comum da vida. Se você tem muitas amizades, isso talvez signifique que você não tem amizades profundas; se você consumir 7 livros por semanas, isso talvez signifique que você não vai lembrar de nenhum deles daqui a uma semana. 

O excesso, afinal, também é o vazio cada vez maior de espaços livres. Talvez, com um pouco de seleção, o cenário abarrotado possa se inverter. 

Menos é mais, less is more, e nem sempre pingar é melhor do que secar.