Álbum de Família, de Nelson Rodrigues, encenada pelo Grupo Galpão. Fotografia de Guto Muniz.

A família como argumento transecular no teatro ocidental

A família enquanto dispositivo temático e signo estrutural de uma trama está presente na história do teatro ocidental, de acordo com a literatura especializada, ao menos desde a Grécia Antiga. Dos chamados mestres clássicos — Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Aristófanes, dentre outros — ao giro da dramaturgia shakespeariana, passando também por nomes como Molière, Ibsen, Strindberg, Tchekhov e os realistas russos, Brecht e as críticas substanciais à esfera pequeno-burguesa, enredos que apresentam narrativas concernentes a relações entre pais e filhos, irmãos que pelejam por heranças ou que postulam vinganças, romances proibidos ou a descoberta de segredos e infidelidades são uma constante na tessitura do que convencionou-se intitular teatro universal. Assim, ao mesmo tempo em que desempenha consolidado valor estético e poético, a pauta familiar como argumento teatral também é portadora de expressiva marca documental, uma vez que o que se narra em um programa dramatúrgico, ainda que absolutamente ficcional, evidencia elementos políticos e sociais típicos de uma época — o que engendra não apenas um produto artístico destinado à fruição, mas também um fecundo retrato dotado de historicidade e análise.

Álbum de família, de Nelson Rodrigues, encenada pelo Grupo Galpão. Fotografia de Guto Muniz.

No Brasil, múltiplos são os exemplos de peças teatrais cuja trama esteve pautada na mecânica subjetiva e nos processos de interação de um núcleo familiar. Dos casos mais emblemáticos — tanto por sua importância para a engenharia teatral, como porque operam como testemunhos históricos de seu tempo —, é possível mencionar O juiz de paz na roça (1838), de Martins Pena;  O defeito de família (1870), de França Júnior; Moral quotidiana (1922), de Mário de Andrade; Nossa vida em família (1972), de Oduvaldo Vianna Filho; De braços abertos (1984) e Querida mamãe (1994), de Maria Adelaide Amaral; e, mais recentemente, Luís Antônio-Gabriela (2011), de Nelson Baskerville, e a Trilogia das pessoas (2014, 2016 e 2017), de Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez. Tais obras, apesar de sua heterogeneidade estética e de época, expõem, criticam e denunciam um sem fim de querelas, violências e/ou perversões intrafamiliares, compondo um contínuo de produções textuais que, decerto, possui em seu cume epistêmico a obra Álbum de família”, escrita por Nelson Rodrigues em 1945.

 

Álbum de família: uma autópsia teatral da parentela

Álbum de família inaugura uma sorte de linguagem teatral a que o próprio Nelson Rodrigues definira como “teatro desagradável” — de que fazem parte, também, as suas peças Anjo negro (1946) e Senhora dos afogados (1947) —, assim classificadas pelo autor em entrevista à Revista Dyonisios, em 1949, por serem obras “pestilentas, fétidas, capazes por si só de produzir o tifo e a malária na plateia”. Tendo saído à luz cerca de dois anos após a consagração de Nelson por Vestido de noiva (1943), Álbum de família foi retida pela censura do governo de Eurico Gaspar Dutra, tendo permanecido embargada até o ano de 1967 — quando, finalmente, pôde ser encenada no Teatro Jovem do Rio de Janeiro. Dentre as principais razões para a proibição da montagem, destaca-se a multiplicidade de incestos, atos obscenos e cenas familiares asquerosas que compõem o enredo da peça — atributos que constituíam, para as entidades de controle do período, justificativa mais do que plausível para salvaguardar o espectador da influência de comportamentos considerados depravados e indecorosos pelos censores.

Com uma dramaturgia proposta em planos — característica já presente em Vestido de noiva, que veio a tornar-se um dos principais símbolos da identidade estética do teatro rodrigueano —, a narrativa de Álbum de família alterna-se entre cenas compostas por registros fotográficos de um livro familiar, que são comentadas por um speaker que desempenha uma espécie de voz ou opinião pública, e cenas que retratam o cotidiano dessa mesma família, que difere por completo da conduta de aparente harmonia e retidão posada para as fotografias. Daí, então, a audiência se depara com personagens como Jonas, o patriarca, que se envolve sexualmente com meninas menores de idade arranjadas por sua cunhada Rute, que nutre por ele uma enferma devoção; D. Senhorinha, esposa de Jonas, que teve um caso com o filho caçula do casal, Nonô — o que teria condicionado o enlouquecimento do rapaz; Guilherme, o filho mais velho, que frequenta um seminário, mas é apaixonado por sua irmã Glória — que, por sua vez, tem desejos eróticos pelo pai, ao mesmo tempo que mantém uma relação com Teresa, sua colega de convento; e Edmundo, que mora no exterior com sua esposa, a quem abandona por almejar viver um romance com D. Senhorinha, sua mãe.

 Desta barafunda de disparadores incestuosos, o raconto de Álbum de família constitui-se de traições, assassinatos, suicídios, estupros, dentre outras ocorrências repulsivas que, como recurso de provocação ao paradoxo, são constantemente intercaladas com a dissimulação imagética proposta pela fotografia — uma vez que a disposição inerte dos corpos ajeitados para o retrato promove uma suspensão temporária da brutalidade e da hediondez, escamoteando uma nefasta ciranda doméstica ao mesmo tempo em que forja um panorama dissimulado de respeito, paz e concórdia. Com isso, Rodrigues destapa alguns dos tantos crimes e as agruras que, lamentavelmente, permeiam as mais diversas configurações da instituição familiar: para o dramaturgo, o âmbito privado — em que se verifica a imensa maioria das dinâmicas de parentela — pode ocultar tantas atrocidades quanto as que transcorrem na sociedade “da porta para fora” de lares e moradas.

 

A desagradável contemporaneidade

Em Álbum de família, Nelson Rodrigues não apenas contesta a rotunda inadequação da organização familiar enquanto arcabouço social, como também alerta para o fato de que, como uma grande e incontestável escusa, muitos são os infortúnios e as monstruosidades obliterados em nome da preservação e da perpetuação da família como redoma nuclear inabalável, intransponível e incorruptível. Para Nelson, era urgente levar aos palcos esse recado de espanto, com o intuito de chacoalhar, moralmente, o público — que seguramente possuiria em sua rede de parentesco ou se identificaria com figuras tais como Jonas, D. Senhorinha, Rute, Glória, Nonô, Guilherme e Edmundo. Possivelmente por isso, então, é que a peça tenha permanecido vinte e um anos interceptada pela censura, “encarcerada, enjaulada como uma cachorra hidrófoba”, de acordo com Rodrigues em depoimento ao periódico O Jornal, em 1967: porque questionava e promulgava a erradicação de valores, normas e comportamentos que, apesar de execráveis e gravíssimos, asseguravam a manutenção de uma ordem conveniente para o domínio exercido pelos órgãos de poder daquele de então.

Quase oitenta anos após seu advento, a peça de Nelson Rodrigues ainda impressiona e escandaliza por sua absoluta atualidade. Sobretudo porque, se bem a implantação de certas medidas e procedimentos legislativos matiza e difere esta contemporaneidade da do texto rodrigueano — cito, por exemplo, a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990; a sanção da Lei Maria da Penha, em 2006; ou o reconhecimento da união estável entre casais do mesmo sexo como entidade familiar pelo STF a partir de 2011 —, também é verdade que o Brasil em que o dramaturgo se baseou para compor a peça de 1945 ainda perdura incólume, e inegavelmente fortalecido, nos mais profusos rincões de nossa geografia. Afinal, apesar da conquista de mudanças, tais como as citadas — inquestionavelmente, vale dizê-lo, por meio da luta de grupos progressistas —, são ainda aterradoras as estatísticas de abuso infantil, considerando-se que cerca de 70% dos casos registrados anualmente ocorrem na residência da vítima e são praticados por familiares; de estupros maritais e feminicídios; de entraves e preconceitos para a adoção homoparental; dentre tantos outros calamitosos acontecimentos que aproximam o tempo histórico de Nelson Rodrigues da perturbadora atualidade em que se vive.

Tanto por sua magistralidade dramatúrgica como por sua essencialidade temática, Álbum de família continua a ser uma peça irrestrita e desagradavelmente contemporânea. Trata-se de uma obra trágica, contundente, por meio da qual dotou-se o teatro brasileiro de um texto amolado para desvelar o abjeto, escancarar o abominoso e firmar-se enquanto mensagem constrangedora, urgente e fundamental. Porque é mesmo bem verdade, como escreveu Friedrich Nietzsche, que a arte existe para que a realidade não nos destrua. Em se tratando desta peça de Nelson Rodrigues, tem-se não apenas um excelente material teatral, como também um excepcional produto político — cujo incômodo e repugnância causados, de sua irrupção em 1945 ao ano em que se escreve este ensaio, confirmam a irrefutável falência dos modos convencionais de projeção, constituição e operação do arranjo institucional familiar.

#43MiragemArteCultura

Miríades, miragens, metamorfoses: uma história concisa do teatro de grupo no Brasil

por Mariana Ferraz

Breve gênese do teatro de grupo no Brasil

O chamado teatro de grupo caracteriza modos de fazer associativos entre artistas e operários das artes do palco cuja prática reivindica, para além de uma condução de processos essencialmente colaborativa, a relevância da constituição de linguagens e identidades qualificadoras de uma epistemologia própria. Sobretudo, destaca-se a importância da preposição de, que articula os termos mobilizados para designar o referido fazer teatral – uma vez que um teatro (feito) por grupo não necessariamente assinala um teatro de grupo, na medida em que o exercício daquele não prescinde, apesar de também grupal, do empenho arquitetônico de entidades criadoras e colaborativas, bem como promulgadoras de narrativas que lhes sejam inerentes. 

No Brasil, a placenta de tais ressignificações reside principalmente na fundação de grupos como o Teatro de Arena (1953) – que emergiu, segundo Maria Silvia Betti, também “como alternativa para o enfrentamento de pressões econômicas que pesavam sobre a esfera de produção no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC)” –, e o Teatro Oficina (1958), uma das companhias mais longevas em atividade no país, que, sob a égide de José Celso Martinez Corrêa, conjurava, desde sua formação, a concepção de um teatro radical, ritual e multitudinário. Tanto o Arena como o Oficina, cada qual com suas particularidades de operação, despontaram enquanto arquétipos do que viria a ser o chamado teatro de grupo, especialmente pela primazia, em ambos os conjuntos, da consideração do teatro como ofício comunitário de invocação intrínseco aos debates, subjetividades e demandas políticas, econômicas e identitárias apresentadas – o que se revelava, é claro, também nos procedimentos artísticos e métodos de organização que anunciavam o estabelecimento de uma operação pertencente ao e definidora do agrupamento teatral executor, sempre em diálogo com o contexto que lhes compreendia.

Tal marco, ainda que poroso e flexível, não pressupõe que as tantas erupções artísticas precedentes – do teatro jesuítico ao teatro de revista da primeira metade do século XX – não fossem operadas por comunidades de artistas, ou que o teatro feito anteriormente não denotasse um fazer de conjunto – inferência absolutamente antagônica à gênese do empreendimento teatral. O que aqui se salienta, contudo, é a sensível transformação anunciada principalmente pelo Arena e pelo Oficina, dado que a inauguração desses espaços de experiência – pela terminologia koselleckiana – acarretaria também na conclamação de outros horizontes de expectativa, portadores de insólitos rumos, sinas, possibilidades e propósitos para um teatro firmado num impulso de operação consubstancialmente coletivo.

Augusto Boal em 1975

“Diante da desarticulação de movimentos populares, cordões de militância e organizações de luta, igualmente o fazer cênico teve de mobilizar-se pela resistência e pela sobrevivência diante das diversas medidas de cerceamento e silenciamento impostas no cenário ditatorial.”

O golpe de 64 e o postulado cultural de resistência

A conjuntura do golpe militar de 1964, que suspendeu o regime democrático brasileiro e instaurou um período de truculência, perseguição e censura, também reverberou no contexto teatral. Diante da desarticulação de movimentos populares, cordões de militância e organizações de luta, igualmente o fazer cênico teve de mobilizar-se pela resistência e pela sobrevivência diante das diversas medidas de cerceamento e silenciamento impostas no cenário ditatorial.

Do referido período, enfatiza-se a realização do show Opinião, no RJ, evento considerado a primeira resposta cultural à deflagração do golpe. No Arena, o espetáculo Arena conta Zumbi, dirigido por Augusto Boal e livremente inspirado na linguagem brechtiana, rebentou como a concretização do chamado “sistema coringa”, experimento/procedimento prestado pelo Teatro de Arena que, dois anos mais tarde, se manifestaria também em Arena conta Tiradentes. Tal centelha, dentre outras interpretações, apresentava a crença de Augusto Boal no formato como a solução para um teatro em crise estética, econômica e política. 

Como postulado cultural medular de resistência do período, a Tropicália eclodira também do entremeado de estímulos oferecidos pela encenação de O Rei da Vela, do Teatro Oficina, trabalho caracterizador dos códigos cênicos que passaram a ser, nas palavras do próprio Zé Celso, responsáveis pelo grande momento de “descolonização” da companhia. Mas se O Rei da Vela foi uma das grandes molas propulsoras para a alvorada do movimento tropicalista, bem como para a reconfiguração dos brados políticos do Oficina, foi sobretudo com Roda Viva – texto de Chico Buarque encenado no RJ em 1968 – que essa nova semântica da resistência efetivamente se confirmou: pela figura de Ben Silver, um anti-herói macunaímico, a peça rogava interações de constante provocação e zombaria quanto à plateia, afirmando-se em metáforas grotescas e signos de escárnio e profanação. Concomitantemente, Boal e o Arena realizavam a Feira Paulista de Opinião, evento que almejava dar voz aos artistas da cena que pretendiam posicionar-se acerca do panorama político da época.

Com a imposição do AI-5, em dezembro de 1968, o terror repressivo e a censura passaram a ser cometidos com ainda mais vigor. O Teatro de Arena, o Teatro Oficina e o Opinião, que se vinham plasmando como importantes referências de inovação e combate ao longo da década de sessenta foram, então, constrangidos a um estado de grave retraimento e reclusão – minimamente matizado pelo advento das vertentes contraculturais disseminadas a partir dos EUA, bem como pela ocorrência dos movimentos de Maio de 1968, em Paris.

Se bem Augusto Boal apresentou seu último trabalho junto ao Arena em 1971, antes de sua prisão, tortura e exílio – Teatro Jornal – 1ª edição, que veio a ser um dos principais laboratórios para a composição do chamado Teatro do Oprimido –, células de rebeldia e ineditismo resplandeciam em diversas outras regiões do país naquele então. Do contexto, destacam-se as montagens de Macbeth segundo Ariman, na Bahia, em 1970; bem como A casa de Bernarda Alba e Tito Andrônico, de José Possi Netto, em 1973, e as de Língua de Fogo e Decamerão, de Luiz Marfuz, em seguida. Em Manaus, evidenciou-se a condução de Márcio de Souza, a partir de 1974, da encenação de A Paixão de Ajuricaba – que antecedeu outras três que também exaltavam temas indígenas e amazonenses: Dessana Dessana e A Maravilhosa História do Sapo Tarô Beque, ambas de 1975, e As Folias do Látex, de 1976.

O teatro de grupo contemporâneo

Com o prenúncio do outono da ditadura militar em 1985, tiveram início as experiências que caracterizaram a etapa contemporânea do teatro de grupo – uma vez que, com a paulatina erradicação das políticas de contenção e censura a partir do governo de João Baptista Figueiredo (1979 – 1985), bem como com o gradativo processo de redemocratização do país, “a cena teatral que até então estivera, de forma predominante, marcada pelas bandeiras de resistência democrática, começou a ganhar novos contornos”, como indicam J. Ginsburg e Rosangela Patriota.

Avultam-se, dentre os tantos traços tipificadores do teatro de grupo contemporâneo, um postulado novidadeiro, experimental e permanentemente autobiográfico por parte das companhias, sem que houvesse abdicação de sua condição estrutural de sujeito histórico. Daí, então, cintilam nomes como Gerald Thomas, Antunes Filho, Gabriel Villela e Bia Lessa – para indicar alguns encenadores –, bem como grupos tais como a Cia. do Latão (1977) e o XPTO (1984) em SP; o Tá na Rua (1980) no RJ; o Galpão (1982) em MG; o Imbuaça (1977) no SE; a Carroça de Mamulengos no CE (1982); a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveis (1977) no RS; o Teatro Sim… Por que não?!!! (1984) em SC; o Ventoforte (1974) entre Buenos Aires, RJ e SP, dentre outros. 

Considerando-se a abrangência do fenômeno e o enrobustecimento da coletivização do fazer teatral, o final da década de 1980 e o transcurso da década de 1990 abarcaram o nascimento de uma série de formações colaborativas, que objetivavam “impor-se por seus projetos artísticos e modos próprios de criação compartilhada”, de acordo com Silvana Garcia, e que foram responsáveis pelo eloquente fenômeno de reinvenção operativa que vigora até o presente momento. Alguns dos agrupamentos que emergiram a partir do referido período foram Os Satyros (1989), os Parlapatões, Patifes e Paspalhões (1991), o Teatro da Vertigem (1992), a Sutil Cia. de Teatro (1993), a Cia. Ensaio Aberto (1993), o Grupo Folias d’Arte (1997), a Cia. da Revista (1997), a Cia. do Feijão (1998), a Cia. São Jorge de Variedades (1998), o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos (1999) e a Cia. de Teatro Balagan (1999) em SP; a Cia. dos Atores (1987) e a Péssima Companhia (1999) no RJ; o grupo Clowns de Shakespeare (1993) no RN; o Grupo Totem (1988) em PE; o Cemitério de Automóveis (1982) – companhia criada no PR e radicada em SP a partir de 1997; e o Armazém Cia. de Teatro (1987) – criada no PR e radicada no RJ a partir de 1999.

Dos que surgiram a partir dos anos 2000, já num contexto em que o exercício teatral havia se consolidado enquanto “estética poético-militante a (en)cantar a história, as cidades e as gentes”, nas palavras de Alexandre Mate, encarnam particular importância o grupo Os Fofos Encenam (2001), o Coletivo Negro (2007), a Cia. do Tijolo (2008), a Cia. Mungunzá de Teatro (2008) e o Coletivo Legítima Defesa (2015) em SP; o Grupo Magiluth (2004) e o Coletivo Caverna (concebido em 2014 e fundado enquanto grupo em 2017) em PE; o Grupo Carmin (2007) no RN; o Ateliê de Criação Teatral (2000) no PR, e tantos mais.

É necessário mencionar, particularmente no que se refere à ampliação da articulação e à politização desses conjuntos, o advento do chamado Movimento Arte contra a Barbárie, em 1999, que se posicionava contra a mercantilização da cultura – especialmente em SP – a partir do descontentamento quanto aos critérios e prerrogativas demandados para a obtenção de recursos provenientes da Lei Federal de Incentivo à Cultura/Lei Rouanet. Foram publicados três manifestos entre 1999 e 2000, assinados por diversos artistas e operários das artes do palco, que lograram no ano de 2002 a aprovação da Lei de Fomento Municipal de SP, bem como a criação do jornal O Sarrafo – Teatro em Debate, em 2003. Tanto o Movimento Arte contra a Barbárie como outras manifestações coletivas decorrentes da referida organização – tais como a Roda de Fomento, o Movimento 27 de Março, o Movimento Teatro de Grupo e a Rede Teatro da Floresta – contribuíram com a criação, organização e tonificação de um arcabouço pelejante pela ampliação de subsídios para a cultura.

Montagem original da peça O Rei da Vela, no Teatro Oficina (1967).

“faz-se imprescindível tanto reconhecer como celebrar a contribuição dessa multiplicidade de companhias que amanheceu dos anos 1960 em diante para o estabelecimento de uma vigorosa resistência das artes, da cultura, das liberdades e da democracia brasileira.”

Epistemologias coletivas e identidade nacional: apontamentos conclusivos.

Das preponderantes características que constituem a experiência do teatro de grupo no Brasil, é mister considerar que a elaboração de epistemologias coletivas se apresenta como aspecto cardinal dessas abordagens: sobretudo, porque é no vislumbre e na edificação de premissas comuns, caracterizadoras de projetos e narrativas de cada coletivo, companhia, grupo ou núcleo teatral, que o referido fenômeno se revela em sua tipicidade e autenticidade histórica. Entretanto, como foi apresentado ao longo deste ensaio, é certo que, para além das narrativas próprias, o espírito associativo do teatro de grupo também congrega uma série de demandas e proposições que tangenciaram, circundaram e atravessaram querelas e discussões acerca da identidade nacional brasileira – disposições que seguem ressoando no tempo presente.

Tal processo histórico, como relatado, condicionou que os conjuntos que ascenderam, a partir da década de 1960, desempenhassem contundentes interações e participações nas inúmeras contendas políticas e epistêmicas que, desde então, se deram – do contexto prévio à ditadura militar aos desdobramentos da contemporaneidade. Primordialmente, porque o engendramento das tantas cartografias de si por parte desses coletivos teatrais passou a ser, impreterível e fundamentalmente, também uma revelação profunda de seu posicionamento frente aos impasses, dilemas e urgências deste “tempo que nos toca viver” – expressão de autoria da dramaturga e encenadora Cláudia Schapira, do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos.

Isso posto, faz-se imprescindível tanto reconhecer como celebrar a contribuição dessa multiplicidade de companhias que amanheceu dos anos 1960 em diante para o estabelecimento de uma vigorosa resistência das artes, da cultura, das liberdades e da democracia brasileira. Em particular, porque, apesar das múltiplas medidas persecutórias e obliterantes promovidas pelo regime militar e a despeito do desamparo e da precariedade que tem assolado novamente o país também nos anos mais recentes, o fortalecimento dessa miríade de conjuntos, assentiu a consolidação de novos preceitos, meios e miragens para a realização do teatro brasileiro – garantindo, por sua adaptabilidade e eficácia metamórfica, a consumação, legitimação e preservação de suas agendas políticas e estéticas – sempre imbricadas e indissociáveis em seu cerne.