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Arte de Alvaro Seixas, capa da Amarello Erótica.
#48EróticaArtes VisuaisCultura

Perder a cabeça

por Elizama Almeida

Na milésima segunda noite,
Sherazade degolou o sultão.

— Antônio Carlos Secchin


Você me vira a cabeça
Me tira do sério

— Alcione

1.
A bíblia era meu livro preferido. Na verdade, era um dos poucos livros que tinha em casa quando criança. Folheando aquelas páginas finas, caí de amores por Judite, a mulher que me ensinou a cortar cabeças sem portar espada.

Judite decapitando Holofernes, Artemisia Gentileschi. 1614-1620. Óleo sobre tela.

2.
A ideia me veio durante uma aula sobre corpos impossíveis à luz da Acéphale, revista capitaneada por Georges Bataille, que circulou na França pré-guerra; o periódico reunia outros importantes intelectuais franceses da época, como Pierre Klossowski e André Masson.

O objeto da análise, naquela classe, era uma ilustração de Marx Ernst, que estampou os cinco volumes que circularam entre 1936 e 1939. Em formato de cruz, o desenho trazia um torso masculino com duas estrelas no lugar dos mamilos e uma caveira no lugar do pênis. Abertos os braços, a mão direita segurava um coração flamejante; a esquerda, um pequeno punhal. Os pés grandes estavam bem fincados no chão.

Embora chamasse atenção, eu não queria cuidar da ilustração, do movimento histórico ou da discussão existencial sobre o corpo deformado. No centro do meu interesse estava menos o objeto e mais o agente: quem teria decepado aquela cabeça?

Ao lembrar de outros acéfalos, busquei ver nas histórias também a figura feminina. Há o caso célebre da cabeça de São João Batista que Salomé exige em uma bandeja de prata. Há Medusa, que, por oposição, não era um corpo sem a cabeça, mas uma cabeça sem o corpo. E havia a Judite da minha infância, da minha primeira pátria.

3.
No episódio bíblico, o mundo estava em guerra — como sempre esteve. Um homem em particular, Holofernes, encarnava a figura do terror a mando de Nabucodonosor. Sob seu comando estavam cerca de 200 mil homens.

O desespero de reinos e províncias precede a aproximação desse corpo militar. Se não há adjetivos que os possam definir, os verbos do texto bíblico dão contorno às suas ações: tomar de assalto, saquear, penetrar, rapinar, arrasar, apossar-se, levar, passar a fio, queimar, cortar.

Ao contrário de cidades anteriores — que tentaram pegar em armas ou abrandar a fúria de Holofernes entregando tudo o que possuíam de mão beijada –, a Judeia se vale de certo privilégio geográfico para arriscar uma resistência passiva que consistia em estocar água e comida. A resposta do general segue linha parecida: com paciência, ele se organiza para matar o povo de sede e de fome. Matar sem golpe de espada, apenas cortando o acesso aos reservatórios.

Em desespero, um conselho formado por representantes políticos, administrativos e religiosos (bem definidos na imagem de homens e anciãos) se reúne no templo e vaticina: estarão mortos em cinco dias. Com a cidade sitiada, chegaram ao fim todos os recursos.

4.
Judite, jovem e viúva, tinha um plano que soava como um sacrifício. Sem laços familiares, marido ou filhos, ninguém choraria em cima de seu corpo se falhasse o planejado.

A ideia não era mirabolante.

Ela se comportaria como esperavam que uma mulher se comportasse: corpo cheiroso e enfeitado para festa, cabelo no lugar, pulseiras e anéis nos braços, brincos pendurados nas orelhas. Carregaria nada além de um pedaço da cozinha: bons vinhos, pães, queijos, grãos e figos. Consigo, seguiria outra mulher, não nomeada, sua criada.

Passos firmes, elas andam em direção à grande ameaça. Cruzam o cheiro, o barulho, as cantadas de 200 mil homens. Pulam por cima dos animais que os serviam. Atravessam o acampamento até a tenda do comandante — o cabeça do exército.

Diz a bíblia que, ao ver Judite, Holofernes fica preso no laço de seus olhos e nas doces palavras de seus lábios: ela lhe promete contar os segredos para conquistar a cidade ao fim de três dias.

Animado — excitado — não só com a notícia, mas com a presença daquela mulher, o general abaixa a guarda e lhe dá tenda, comida e passe livre para andar pelo acampamento com ordens explícitas de não a incomodarem.

Judite avança em seu plano. Eis a vanguarda doméstica.

5.
A partir deste ponto, testemunhamos a reversão não só da conquista, como da hierarquia.

Se, no início da história, a bíblia diz que nada era capaz de “abrandar a ferocidade do coração” de Holofernes, depois de conhecer Judite, já no fim do terceiro dia, este mesmo coração arde de paixão por ela. O general nem de longe percebe que obedece ao que está previsto na etimologia da própria palavra sedução: se + ducere, o que pode ser compreendido como “desviar alguém do caminho”.

Até agora, a palavra “conquista” estava confinada a um contexto bélico: o poder de Holofernes dizia respeito a um domínio geopolítico, que se manifestava por meio do discurso de ameaça e da prática violenta. Para Judite, o campo de batalha é outro, é o corpo; é por meio de Eros que ela atrai amorosamente o inimigo, conquista sua cabeça e, logo, a vitória real na guerra.

Anoitece. Há festa. As taças ficam mais leves quanto mais cheias de vinho. O general come do que Judite lhe dá. A sedução desativa os dispositivos de poder. São deixados a sós.

6.
A tela pode ser dividida em três diagonais.

Na diagonal inferior, vê-se o colchão duplo, de aparência macia, forrado com lençol branco, invadido por linhas de sangue (não foi na cama que tantas virgens sangraram?). O amassado do lençol se intensifica com o peso da cabeça do general em agonia e o movimento dos outros dois corpos.

As rugas da cama se duplicam no tecido azul do vestido de Judite, já na segunda diagonal. Os braços dela formam paralelas que delimitam a cena e colocam em destaque duas cabeças: a de Holofernes, embaixo, e a sua, em cima.

Os olhos do general parecem fitar o nada; a boca permanece aberta na intenção de um grito, como um bocejo eterno. O corpo tenta se defender em vão. Sobre o colchão, observamos um homem que morre pela própria espada – sua arma. Ele morre pela latência em seu falo — uma grossa lâmina.

Enquanto Judite porta um distinto tecido azul com detalhes dourados, o homem, embaixo dela, está nu, coberto apenas com lençóis a partir do peito.

O cabelo dela está preso em um coque alto, meio bagunçado. Uma mecha escapa pelo pescoço e cai sobre os ombros nus. O ombro esquerdo, mais à mostra, e a sombra que acompanha seu torso, atrás, indicam uma folga — talvez o vestido esteja semiaberto?

De mangas arregaçadas, Judite empunha com destreza a pesada arma. Não se pode ler em seu rosto resquícios de hesitação. É a representação do clímax que ela planejara dias antes. O seu gozo é vermelho cor de sangue e dá certo: o grande guerreiro já não é mais guerreiro, nem grande. A acefalia se aproxima dentro de um minuto ou dois.

Na terceira diagonal, o vestido vermelho da criada (cúmplice, companheira, amiga) funciona como uma continuação vertical do sangue. É no pescoço desta mulher que está a mão já fraca do general. A parte esquerda do rosto dessa personagem faz par com a face esquerda de Judite: metades sombrias.

Toda a cena se desenrola em um fundo escuro. É o suposto silêncio da alta madrugada.

Quando os soldados souberam que Holofernes tinha sido decapitado, ficaram desorientados. A cabeça é o domínio da razão e, ao perder o cabeça, perdem a guerra. Como recompensa, à jovem é oferecido o espólio de Holofernes: ouro, prata, tecidos, pedras caras. Judite, agora duas vezes viúva, acumula a herança de dois homens.

7.
É curioso perceber como as esferas que apontam a tradição do feminino estão presentes tanto na antiga história de Judite quanto nas pintoras que retrataram o episódio.

A tela aqui comentada é de 1620, e nela podem ser identificados elementos do barroco italiano. De autoria de Artemisia Gentileschi (1593-1653), filha de um pintor italiano tradicional, ela foi a primeira mulher aceita na Academia de Belas Artes de Florença, e dedicaria ao episódio outras duas versões.

Contemporânea a Artemisia, Lavínia Fontana (1552-1614) foi outra pintora de destaque que deu a Judite algumas versões. Lavinia, que pode ser situada entre o Maneirismo e o Barroco italiano, seria eleita, de forma inédita, para a Accademia di San Luca, de Roma. Reza a lenda que o marido é quem cuidava dos onze filhos para que ela seguisse carreira e sustentasse a casa. Elisabetta Sirani (1638-1665), que morreu subitamente aos 33 anos, escolhe pintar não apenas o momento da decapitação de Holofernes, dentro do quarto, mas a volta gloriosa de Judite com a cabeça em mãos, recebida por uma gente pálida e curiosa na praça da cidade.

Fazendo uma ponte entre os anos, Julia Kristeva (1941), no livro O gênio feminino, afirma que “o próximo século será feminino”. Mas talvez os séculos passados também tenham testemunhado essa genialidade a partir de elementos banais e, muitas vezes, domésticos: o corpo, a comida, a festa, a futilidade, uma amiga ao lado.

Esse conjunto, tido quase como uma “condição natural” da mulher, é a receita para cortar cabeças de forma intelectual e política, baseada no desejo, no segredo e na sedução.

É precisamente aí que cabeça e mãos se unem com finalidades levemente semelhantes: mãos para cortar cabeças, no caso de Judite; mãos para pintar o corte de cabeças, no caso de Gentileschi, Fontana e Sirani; mãos para escrever sobre pinturas que retratam cortes de cabeças, no meu caso, aqui e agora.

— Este texto é dedicado a Marília Rothier que me ensinou a ler, escrever e pesquisar.

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