Folhinhas, série de Manuela Costa Lima. A artista assina a capa da edição Amarello Família. Foto de Mario Grisolli.
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Buscando raízes, derrubando árvores

Você recebe a caixinha pelo correio. Dentro, um copinho para a sua saliva ou um cotonete para passar por dentro da bochecha. Uma caixinha que pode satisfazer a necessidade primordial do Homo sapiens de pertencer — a uma comunidade, a um grupo, à família, a alguém. Mas também uma caixinha que pode, assim como a de Pandora, soltar uma cambada de males no seu mundo.

Nos últimos anos vivenciamos uma explosão de kits caseiros de DNA. Se pararmos para pensar, é um fato fantástico. Afinal, há poucas décadas, o sequenciamento do genoma humano era inatingível, e mesmo quando foi parcialmente decifrado, o pulo até chegar nas mãos do cidadão em casa, sentado no sofá, querendo descobrir suas raízes genéticas, é de estontear. Afinal, estamos falando de uma descoberta científica recente, que, em menos de duas décadas, pulou dos laboratórios mais sofisticados do mundo até as mãos de qualquer um com acesso à internet e com alguns reais no bolso.

Não é de espantar que esses kits caíram no gosto popular. Afinal, o ser humano é um animal social. A continuação da espécie foi garantida pelo grupo. Um ser humano sozinho não iria durar muito há trezentos mil anos. Nem Raul Seixas. Dependemos uns dos outros, e somos geneticamente predispostos a viver em família e em grupos familiares maiores. Quando olho para minhas filhas, vejo o olhar da minha mãe, o nariz do meu pai, a gargalhada do meu avô. Reconheço ali a minha tribo, o meu pertencer.

É essa vontade de encontrar a quem pertencemos que leva muitos de nós a fazer um teste de DNA caseiro. Saber, num país formado por tantos povos, de onde vieram os nossos ancestrais. Para muitos, os resultados confirmam as lendas familiares. É mesmo verdade que meus bisavós vieram da Itália, ou da Bélgica, ou do Japão, ou de Portugal, e assim por diante. Para outros grupos, que tiveram suas identidades roubadas ou apagadas, através da escravidão, na fuga de guerras, genocídios ou regimes autoritários, é uma forma de resgatar uma identidade perdida.

Para algumas pessoas, a busca é de uma história mais recente. Pessoas, por exemplo, que foram adotadas e buscam seus pais biológicos. Filhos de mães ou pais solteiros que nunca souberam a identidade da mãe ou do pai ausente. Mães forçadas a darem seus filhos para adoção por falta de recursos, por causa da religião, por vergonha da família. Filhos frutos de casos, de mães solteiras ou adolescentes. A lista é longa; as razões, complexas. Existem mil motivos para ir em busca de uma família, de querer se ver nos traços e gestos de alguém mais.

Mas uma advertência: é bom seguir com cautela. A busca pela família desconhecida pode implodir a família existente. À medida que mais e mais usuários disponibilizam seus resultados através de empresas como a 23andMe, AncestryDNA ou FamilyTreeDNA, mais aumentam as chances de que algum segredo enterrado virá à tona. Imagine descobrir que seu pai não é seu pai, que sua irmã é na verdade sua mãe, que seu irmão tem outro pai. Situações que podem ser traumatizantes e desestabilizadoras. Imagine interrogar sua mãe sobre a verdadeira identidade de seu pai e receber uma resposta arrasadora? Ou descobrir apenas após a morte dela que ela levou um segredo para o túmulo e que você nunca terá uma resposta sobre quem você realmente é, de onde você realmente veio. Para algumas pessoas, isso pode ser avassalador.

Agora tente imaginar que você fez um teste desses, e que anos depois recebe um telefonema da polícia, que lhe informa que usou o seu DNA — aquele que você submeteu lá por diversão — para prender um homem suspeito de assassinar dezenas de pessoas. Ou que um belo dia você é preso, acusado de cometer estupro e assassinato. Eles dizem que tem seu DNA na cena do crime. Um mês depois, você consegue provar que o DNA era na verdade do seu pai, que você mal conhece, mas que tem muitos dos mesmos marcadores de DNA que você. Ou imagine abrir os seus resultados do seu teste de DNA e ver que você tem não apenas um ou dois meio-irmãos, mas mais de duzentos. Duzentas pessoas que têm o seu mesmo pai, um doador de esperma. Todos em uma mesma região do país. Imagine descobrir incesto. Que seus pais eram na verdade primos, ou até irmãos. Esses são todos casos verídicos.

Há um provérbio chinês que diz: quando as raízes são profundas, não há razão para temer o vento. Talvez nos dias de hoje tenhamos que emendar para: se cavar muito fundo procurando suas raízes, poderá derrubar a árvore. A sua árvore genealógica.