Hambagu, de Luísa Matsushita (2023). Cortesia Galeria Luisa Strina.

O jogo da amarelinha não é apenas a realização literária mais célebre de Julio Cortázar (1914-1984), mas também, ao lado de Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez (1927-2014), é um dos romances mais importantes e influentes tanto do boom literário latino-americano da década de 1960 quanto de toda a literatura moderna. Ou melhor… Seria a obra de Cortázar um único romance? Um único livro talvez sim, se pensarmos em termos físicos (ou de arquivos digitais), mas é mais preciso dizer que, neste livro, na verdade existem alguns romances. 

Julio Cortázar. Foto: Ulf Andersen.

Como o próprio Cortázar explica (aqui na tradução de Eric Nepomuceno) com sua “tabela de leitura”, uma breve instrução que precede o capítulo de abertura, “Este livro é, à sua maneira, muitos livros, mas é acima de tudo dois livros. O leitor está convidado a escolher uma das duas possibilidades seguintes: O primeiro livro se deixa ler na forma comum e corrente, e termina no capítulo 56(…) O segundo livro se deixa ler começando pelo capítulo 73 e depois na ordem indicada ao pé de cada capítulo.”

Em pleno 2023, ano que marca o aniversário de 60 anos da obra, a proposta ainda soa com frescor. A ideia de um leitor ativo que toma as rédeas da história se popularizou nas décadas seguintes no formato de livros infantis, nos quais as escolhas do leitor são feitas do jeito mais simples e didático possível, e também na forma de videogames e jogos que não necessariamente caminham de maneira linear, mas conforme as opções feitas por quem está jogando. Recentemente, usaram o formato na série Black Mirror, da Netflix. No caso dos romances, porém, isso nunca virou mainstream. Por incrível que pareça, a audácia do magnum opus de Cortázar ainda chama a atenção — e isso diz muito sobre duas coisas: sobre a literatura contemporânea e a força d’O jogo da amarelinha. 

As muitas promessas e projeções feitas em cima da literatura latino-americana talvez não tenham se concretizado. Ou talvez tenham, mas não pela brecha radical, revolucionária e anti-establishment aberta principalmente por Cortázar e Amarelinha, mas também por Vargas Llosa e Conversa na Catedral, García Márquez e Cem Anos de Solidão. Não virou moda quebrar as estruturas nessa escala, pelo menos não no nível de modificar tanto a experiência da leitura, pois, se o boom da literatura latino-americana se deu pelos leitores e não pelos editores (como, aliás, costuma acontecer com movimentos realmente importantes), quando essa lógica voltou ao seu estado natural de mercado ditando a produção, logo as ideias mais vanguardistas foram sendo estruturalmente cerceadas. 

Mas, de toda forma, a revolução foi televisionada (ou, no caso, impressa) e o caminho foi aberto, causando grande impacto. É como escreve Carlos Fuentes (1928-2012), outro autor de mão cheia que também fez parte desse momento de globalização da literatura latino-americana, em sua resenha de 1966:

Em suma, O jogo da amarelinha, na sua profundidade de imaginação e sugestão, no seu labirinto de espelhos negros, na sua irônica potencialidade através da destruição do tempo e das palavras, marca a verdadeira possibilidade de encontro entre o imaginário latino-americano e o mundo contemporâneo.

O jogo da amarelinha tem grande sucesso: é o equivalente latino-americano de livros como As Asas da pomba [romance de Henry James] e Suave é a noite [romance de F. Scott Fitzegeral].

Carlos Fuentes, 1966

O primeiro romance que existe em O jogo da amarelinha é lido de ponta a ponta, seguindo a tradição. Já o segundo, vai se formando pela leitura dos capítulos fora de sequência, de acordo com as instruções do autor. Os outros, podem ser montados a bel prazer por quem estiver lendo. Embora esse tipo de conceito estrutural e narrativo seja mais facilmente digerido pelos leitores do século 21, mais familiarizados com os experimentos literários pós-modernos, o alvoroço foi altamente positivo para o público que inicialmente recebeu Amarelinha. Era um abandono bem-vindo das regras rígidas de antes, uma fuga que exigia que o leitor saísse de qualquer zona de conforto. Assim, entre a polêmica e a apreciação, tanto o livro quanto o seu autor alcançaram imediatamente a fama e infâmia internacionais. Julio Cortázar, é verdade, já havia consolidado sua reputação como um escritor talentoso e inovador com tour de forcées como Bestiário (1951) e As armas secretas (1959). Sua escrita anterior, repleta de contos curtos e narrativas desafiadoras, sinalizava sua inclinação para a experimentação literária e sua capacidade de lidar com temas complexos. Mas O jogo da amarelinha foi sua grande catapulta para o reconhecimento global.

Na primeira leitura, o livro é dividido em duas seções principais, “Do lado de lá” e “Do lado de cá”, com uma terceira, “De outros lados”, que o autor afirma que o leitor “dispensará, sem remorsos”. O protagonista de O jogo da amarelinha é o boêmio Horacio Oliveira, escritor argentino radicado em Paris, desanimado com o fim de seu relacionamento com Maga. No início do romance, Oliveira é mostrado como uma alma perdida. Ele vaga pelas ruas de Paris procurando em vão a visão de Maga, torturado pela lembrança dela. Grande parte de seu tempo é passado com seus amigos, artistas fracassados e descontentes como ele. Essa convivência, no entanto, oferece pouca clareza ou paz e, assombrado pela memória de suas próprias falhas, Oliveira é incapaz de conciliar as peças do seu passado e presente. Na segunda seção, “Do lado de cá”, o pobre-diabo retornou a Buenos Aires, deportado, e foi morar com uma ex-namorada, ainda longe de resolver sua dor pela perda de Maga. Suas obsessões começam a ter terríveis consequências.

Embora a leitura deste primeiro romance seja linear, a narrativa não é nada simples, alternando entre capítulos na primeira e terceira pessoa. A primeira, no presente; a terceira, no passado. Dessa maneira, Cortázar desenvolve o personagem através de um processo de agregação e justaposição, com capítulos que nem sempre se prefiguram ou respondem diretamente uns aos outros e mudam no tempo, no espaço e na voz. Como Oliveira é um homem fragmentado, os recursos aos quais o autor lança mão são importantes para o desenvolvimento do personagem. É quando a inovação se preza a ir adiante, bem além do que somente sua proposta de rearranjar as bases sobre as quais se erigiam as fundações literárias, agregando não só exuberância à técnica mas também camadas metafóricas ao retrato. Toda a complexidade estrutural não tem a ver com um escritor que quer provar que pode escrever algo assim, que tem o desejo de se estabelecer contra alguém que dita as regras. Tem a ver, na verdade, com a experiência do personagem principal e do ensejo revolucionário de seu autor. Entre as idas e vindas de leitura, experiencia-se um pouco da irresolução de Horacio e um outro tanto da insatisfação de Cortázar, além de uma peregrinação profunda pelos estados mentais de ambos.

Oliveira mira no futuro mas inevitavelmente acerta o passado e, como resultado, não encontra um sentido unificador do presente ou de si mesmo. Nesse sentido, a primeira leitura do livro talvez prepare o leitor, tanto estruturalmente quanto tematicamente, para a suposta disjunção da segunda. O Oliveira da segunda leitura, ao contrário do primeiro, reflete não só sobre o sofrimento, mas sobre a capacidade de cura da arte e, em particular, da linguagem. Ou seja, o Oliveira da segunda leitura revela-se como um homem em busca — e, se alguém procura por algo, em algum nível existe a expectativa verdadeira de que, algum dia, não importa o quão distante ele esteja, se encontre o que está sendo procurado. O enfoque metafísico e metalinguístico da segunda leitura é favorecido pelo enigmático Morelli, personagem de filosofias similares às de Oliveira e Cortázar. Escritor, ele defende um novo tipo de arte literária, uma “narrativa que atuará como coagulante de experiências”, que criará, por sua vez, um novo tipo de homem ao criar um novo tipo de leitor, tornando-o “um cúmplice”, um companheiro de viagem.” Assim, o metafísico torna-se metaficcional, e o tipo de romance que o personagem defende é aquele que está nas mãos do leitor. Na superfície, portanto, o livro pode até parecer pessimista, mas, ainda que elenque frustrações e exaspere desesperos, a busca constante lida em qualquer versão denota a existência de uma esperança incorrigível.

Mas Cortázar, no fim, é um artista que prefere a provocação ao pronunciamento, então a busca de Oliveira na segunda leitura permanece sem solução. Melhor assim. Melhor ficar dentro do labirinto. O jogo da amarelinha não oferece conclusões definitivas ou delineadoras, apenas possibilidades.

Tudo em O jogo da amarelinha é um duplo fantasmagórico de si mesmo: cidades, personagens, culturas, até o próprio autor. Mas, na América Latina, a fantasia é história. A história como mudança não existe, há apenas a repetição compulsiva de atos rituais. Como Borges, Cortázar tenta pôr em movimento o tempo latino-americano através do fantástico. A Argentina, diz Cortázar, tem todo o futuro pela frente, e esta é a mais pobre das riquezas: eis a América Latina, em poucas palavras. Continuamente referidos às promessas do futuro, só poderemos responder com ficções se quisermos fixar o presente e sentir-nos vivos.

Carlos Fuentes, 1966

Publicado em 1963, o romance teve um impacto profundo. Além de suas inovações estruturais, também abordou questões políticas e sociais da época, lançando um olhar crítico sobre a realidade da América Latina. O livro foi publicado em um momento de agitação política da Argentina, que estava sob o regime autoritário do general Juan Domingo Perón (1895-1974). A atmosfera repressiva da época foi incorporada ao romance, e Cortázar, que era um crítico feroz do governo peronista, usou a literatura como uma forma de expressar o seu descontentamento. Com suas questões existenciais, filosóficas e culturais, O jogo da amarelinha refletiu a sensação de alienação e desilusão que muitos sentiam na época. A busca de Horacio Oliveira por sentido em sua vida é um reflexo da busca por sentido em um mundo em constante mudança que é, muitas vezes, absurdo e violento.

O livro ganhou um lugar de destaque no cânone literário latino-americano e tornou-se um marco da literatura contemporânea, não apenas na América Latina, mas em todo o mundo. 60 anos mais tarde, O jogo da amarelinha permanece uma obra essencial. Em um mundo onde o facismo parece sempre ter vez, é importante oferecer novas visões e extrapolar limites impostos explícita ou implicitamente. Ao abordar questões importantes e pulsantes de uma maneira nunca antes vista, Cortázar queria dar o poder na mão das pessoas e deixar que elas dominassem a própria narrativa, negando tanto o poder ditatorial de um autor quanto a passividade de um leitor. O jogo da amarelinha era um ato revolucionário, um grito altivo por mudança. 

Mudar a literatura e, quem sabe, mudar o mundo.

Tanto Israel quanto a França vêm sendo palco de manifestações populares relevantes, cada semana mais divulgadas pelos noticiários ao redor do mundo. Em Israel, as reivindicações gritam contra a reforma judicial proposta pelo primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu; na França, a voz popular está contra a reforma da Previdência, uma das principais pautas do presidente Emmanuel Macron. Na medida em que as ruas dos dois países recebem mais e mais protestos — sim, com a violência infelizmente se fazendo presente —, os estadistas em questão seguem um tanto distantes do vozerio, respondendo a tudo com certa indiferença, a despeito das proporções enormes que as ondas de protestos tomaram. 

Casa do Senado francês.

Antes de nos darmos conta, por essas e outras, adotamos uma atitude cética quanto à real participação popular nas decisões políticas do Estado.

Em uma democracia participativa, os cidadãos são ativamente envolvidos no processo de tomada de decisão política, seja por meio de votação, debates, consultas populares, audiências públicas, fóruns e outros mecanismos de participação popular. Em muitos países, a democracia representativa tradicional tem sido criticada por não conseguir representar de forma adequada as necessidades e desejos da sociedade, especialmente de grupos minoritários ou marginalizados. Um equilíbrio entre a representativa e participativa, em tese, teria o poder de aumentar a confiança dos cidadãos nas instituições políticas e a construir uma sociedade mais inclusiva. Como garantir que todas as vozes sejam ouvidas e que as decisões sejam tomadas com mais de um grupo social em mente? O conceito de democracia parece divergir se analisarmos suas aplicações em diferentes contextos político-sociais, cada qual com seus conflitos e divisões. 

Se cada um tem a sua, do que é feita uma democracia? E do que é feito o espírito político de um país?

“do que é feita uma democracia?”

Alguns países são mais politizados do que outros e existem várias razões para isso. Primeiro, e possivelmente antes de qualquer outro fator, temos o histórico específico daquela nação — ainda que seja difícil, ou quase impossível, compreender totalmente de que maneira o passado vai se reverberando por entre as épocas. A verdade é que ele não vai só passando, como também se alterando. Se um país teve uma longa tradição de democracia e participação política, por exemplo, talvez seja mais provável que seus cidadãos estejam envolvidos em assuntos políticos.  Por outro lado, se um país teve uma história de autoritarismo e instabilidade política, talvez haja menos interesse e participação política. O “talvez” é a palavra-chave. Não é verdade que países mais desenvolvidos economicamente tendem a ter mais recursos para investir em educação, mídia e outras formas de envolver a população em assuntos políticos? Sim. E que, além de, dotados de todo o desenvolvimento, esses cidadãos têm mais acesso à informação e podem, assim, criar mais naturalmente um senso crítico em relação ao governo? Sim. Mas nada garante que as linhas dessas digitais serão assim ou assado. O que não quer dizer que devemos ignorar esses ou outros indicativos. 

Populações de países com maior liberdade política, incluindo liberdade de imprensa e de expressão, são mais propensas a serem mais politizadas, já que, em um contexto no qual as pessoas sentem que têm voz e poder para influenciar a política, elas tendem a se envolver mais. O mesmo acontece em países com maior polarização, por se tratar de uma pauta rotineira e difundida: guardadas as devidas proporções, é como quando somos pequenos brasileiros e nos sentimos forçados a dizer para que time de futebol torcemos, Palmeiras ou Corinthians, Flamengo ou Fluminense. Quando as questões são controversas e polarizadas, as pessoas tendem a se identificar mais fortemente com um lado ou outro e se mobilizar para defender seus pontos de vista. 

Se os “propensas a…” e os “tendem a…” deixam clara a imponderabilidade, as conjunções de cada caso deixam claros os caminhos a serem seguidos. Tomando como referência a história da França, por exemplo, não precisa de muito para que logo se veja um espírito democrático aflorado. 

Por mais que se questione o lugar-comum que nomeia o país como o “berço da democracia”, é inegável que se trata de uma cultura política que valoriza e naturaliza manifestações populares contra medidas do governo ou seja qual for o tema social. Só na última década, podemos citar vários protestos que aconteceram na França, como em 2016, quando o governo francês propôs uma reforma trabalhista que, entre outras coisas, tornaria mais fácil para as empresas demitir funcionários e facilitaria a negociação de acordos de trabalho. Ou, então, como em 2018, quando ocorreram as manifestações dos coletes amarelos, um movimento espontâneo de pessoas vestindo coletes e protestando no país todo contra o aumento dos impostos sobre combustíveis e os custos de vida em geral. 

Podemos até citar os protestos contra a reforma da Previdência de 2019 — opa, bateu um déjà vu aí? Já no final daquele ano, o governo francês propôs uma reforma vista como uma ameaça aos direitos trabalhistas. Agora, pela segunda vez em pouco tempo, a população francesa testemunha um aumento na idade de aposentadoria: o objetivo da nova lei previdenciária é, de maneira gradual (mas rápida), subir a idade de 62 para 64 anos, até 2030. A última mudança havia sido recente, em 2010 — antes disso, a idade de aposentadoria era 60. A reforma também adianta para 2027 a exigência de contribuir 43 anos para obter uma pensão, e não 42 anos como acontecia até agora. Além disso, a nova lei elimina os privilégios de aposentadoria de alguns funcionários do setor público, como os trabalhadores do metrô de Paris. Os protestos e greves de setores trabalhistas vêm acontecendo desde 19 de janeiro, quando a proposta foi apresentada. Desde então, centenas de milhares de pessoas se mobilizaram e foram às ruas — o que, ao menos por ora, tem se mostrado insuficiente

Knesset, o parlamento de Israel.

No caso de Israel, que também vive um contexto conturbado, basta uma rápida passada de olho pelas últimas décadas para perceber que as manifestações políticas, assim como na França, fazem parte do gene da população. A polêmica e infindável questão da Palestina decerto exerce influência sobre esse aspecto, uma vez que a mentalidade das pessoas israelenses é cultivada com a normalização de protestos, tendo os seus respectivos eu-políticos lembrados constantemente. Não é difícil encontrar exemplos recentes: em 2019, milhares de israelenses protestaram contra a crescente violência em comunidades árabes do país e pediram ações do governo para combater o crime; em 2018, manifestações em Tel Aviv gritavam contra a lei de imigração de Israel, que muitos argumentaram ser discriminatória contra os refugiados africanos. Os protestos populares são um aspecto importante da vida política em Israel e, com a reforma judicial israelense de 2023, não está sendo diferente. 

O plano apresentado pelo vice-primeiro-ministro e ministro da justiça, Yariv Levin, com o apoio do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, tem como objetivo mudanças fundamentais no ordenamento jurídico de Israel. Alguns aspectos da proposta dão ao governo influência decisiva sobre a escolha de juízes, além de impedir que a Suprema Corte do país revise leis aprovadas pelo Parlamento. A medida é considerada controversa por causa do sistema político de Israel, que não tem uma Constituição formal e usa leis básicas para definir o papel das instituições e Poderes. O parlamento teria o poder de anular as decisões da Suprema Corte por maioria simples, além de dar ao governo o poder de nomear juízes — algo que, atualmente, fica a cabo de um comitê composto por juízes, juristas e políticos. A reforma judicial é uma das principais apostas do governo Netanyahu. Porém, em meio à gigantesca onda de protestos, que dura praticamente 3 meses e parece não ceder, anunciou na última segunda-feira de março (27) uma pausa no andamento do projeto de reforma.

É claro, no entanto, que a criação de uma cultura política é um processo complexo e que nem sempre se serve de uma leitura linear. A espinha dorsal de uma nação é composta também pelo intangível. O que dizer do famoso paradoxo político argentino? Talvez não exista exemplo melhor para ilustrar a contradição que muitas vezes faz parte da construção da política de um país. Na Argentina, ao mesmo tempo em que há uma forte tradição que valoriza a democracia e a participação popular, mas, há também uma curiosa tendência histórica de líderes populistas autoritários que governam com mão de ferro.

“a criação de uma cultura política é um processo complexo e que nem sempre se serve de uma leitura linear”

Durante grande parte da história argentina, houve um forte apelo popular por governos que prometiam justiça social e participação democrática, como foi o caso do Movimento Nacional Justicialista, mais conhecido como peronismo, um movimento político fundado nos anos 1940 pelo então presidente argentino Juan Domingo Perón. No entanto, muitos desses governos populistas também foram caracterizados por um estilo autoritário e uma concentração de poder em torno de uma figura carismática — caso do próprio Perón e sua esposa, Evita —, o que levou a períodos de repressão e violência política. O paradoxo político argentino se tornou evidente em várias ocasiões históricas, como durante a ditadura militar que governou o país entre 1976 e 1983. Desde a redemocratização do país na década de 1980, a Argentina tem passado por altos e baixos em sua história política, com governos mais populistas e autoritários e outros mais democráticos e reformistas.

Quando comparamos a Argentina ao Brasil, vemos similaridades e diferenças, cada qual com seu jeito latino de ser. Da tradição política mais fragmentada, com muitos partidos políticos e ideologias diferentes, nem sempre se vê com bons olhos os protestos de rua no Brasil. Eles existem, claro, mas, pela difusão de ideais, existem em proporções humildes e raramente em escala nacional. Numa lógica mais polarizada, a Argentina tem uma longa história de confrontos entre o peronismo e o antiperonismo, e acaba gravitando em torno de greves e mobilizações sindicais. Os dois países tiveram períodos de governos militares autoritários, mas a forma como a transição para a democracia ocorreu foi diferente: na Argentina, houve uma reação forte e prolongada contra a ditadura, além da busca profunda pela justiça e responsabilização pelos crimes cometidos; já no Brasil, a transição para a democracia foi mais calma e gradual, com menos esforços para julgar os crimes cometidos durante a ditadura militar. Em suma, de um lado temos 1985, filme com Ricardo Darín; do outro, temos a avenida Presidente Castelo Branco, uma das maiores de São Paulo. 

Os protestos populares seguirão reverberando aqui, ali, em espanhol, português, francês, hebraico, nesta e em qualquer outra época. Isso é fato. A constituição histórico-cultural de cada canto há de definir os comos e porquês

O poder do povo na política é um conceito que remonta às origens da democracia, onde a voz do cidadão comum era tão importante quanto a dos líderes. No entanto, ao longo dos anos, tornou-se cada vez mais evidente que a influência dos mais poderosos muitas vezes vence os interesses da maioria. No mundo ideal, viveríamos onde os governados não temam falar e os governantes não temam ouvir. Mas não é bem assim. A riqueza e o poder político são recursos que muitas vezes estão nas mãos de uma pequena elite, que tem acesso aos corredores de poder e aos tomadores de decisão. A capacidade dos mais poderosos de moldar o processo político em seu favor muitas vezes resulta em políticas que beneficiam a eles próprios e prejudicam a maioria. Muitas pessoas acreditam que a política é corrupta e que as mudanças reais são difíceis de serem alcançadas por meio dos mecanismos democráticos tradicionais. Mas a descrença e o desencanto com a política, que desestimulariam a participação em protestos, não foi o bastante para impedir o atual contexto conturbado de Israel e da França. 

“ao longo dos anos, tornou-se cada vez mais evidente que a influência dos mais poderosos muitas vezes vence os interesses da maioria”

Com a crescente conectividade e o avanço tecnológico, a democracia participativa pode se tornar ainda mais acessível e eficaz. A internet e as redes sociais, por exemplo, possibilitam a participação de cidadãos em debates e consultas populares sem a necessidade de estar fisicamente presente. A democracia participativa — ou a ideia de uma democracia participativa — continua sendo relevante, e deve ser incentivada como uma forma de promover a inclusão cívica e a justiça social.

Do que, afinal, a democracia é feita? Sobretudo, de força de vontade. De muita força de vontade.