#43MiragemCulturaLiteratura

Poesia: Sara Ramos por Natasha Felix

por Natasha Felix

12.199
(Sara Ramos)

para Carreira Comprida, 
a praia submersa 

navego desde pequena
nomes de barcos são sempre femininos 
nomes de barcos são sempre nomes de mães
mas a voadeira é sempre uma voadeira
rasa fina fatal

os prazeres: 
não resta corpo intocado pelo vento
só fala o motor 
só falam as águas

navego de voadeira desde pequena
as mães falam delas 
como falam dos homens
uma voadeira é sempre uma voadeira
tenha medo, não faça graça
não se distraia, prenda os cabelos

na pilantragem, Lázaro
esse é o jeito de te dizer adeus

(Natasha Felix)

Lázaro suas feridas são as minhas feridas
a pele descansando na pedra
mera distração
detalhe que se esquece 
a história que vamos contar não é essa
uma chaga só pode reconhecer outra chaga 
uma imagem só pode reconhecer outra imagem
no escuro
estendo minha mão esquerda em direção a Lázaro
o que alcanço não tem nome
não é Lázaro              e é feliz por isso
vai embora 
me leva junto enquanto fico
as garras polidas 
cravadas no asfalto
o sol é bom o sol é justo e queima comigo


Sara Ramos por Natasha Felix:

Enquanto peço para Lázaro me levar para esse lugar ainda sem nome, algo acontece em outro lugar. Um alerta. Imagino duas mulheres embarcando, uma delas ampara a outra pelo quadril à beira do Rio Tocantins. Lembro de Lázaro na catraia, a travessia entre Santos e Guarujá, contando as moedas. Sempre pela madrugada. Em Santos não dizemos voadeira, dizemos barquinha. Tem o mesmo fim, por isso os mesmos medos.

#43MiragemCulturaLiteratura

Poesia: Miriam Alves por Heleine Fernandes

Parto
(Miriam Alves)

Uma batida surda
dói ouvir
Viver viver
presa na gaiola
pássara
Já vi o infinito
fui constelação
Agora asteroide vagando
estrela cadente
dividi-me em duas
Dividida para não ser subtraída
fiquei inteira amolgada em cada pedaço
Chorei por que eu nascia.

cordão umbilical
(heleine fernandes)

para entrar
no mar
derramar-se

é preciso tomar um caldo
uma lapada
ser arrastada

pelo redemoinho
dos cabelos
da vulva
de mamãe

gargalhar
e chorar
como uma criança parida.


Miriam Alves por Heleine Fernandes:

Miriam Alves é uma poeta contemporânea mais velha por quem tenho muita admiração. Ela é da geração dos Cadernos Negros, assim como Conceição Evaristo, e fez parte do grupo Quilombhoje, junto a Cuti e Esmeralda Ribeiro. Conheci a poesia da Miriam através de poemas esparsos presentes em antologias de literatura negra. Sua linguagem e estilo me chamaram a atenção desde a primeira leitura, seus versos me tocaram de um jeito muito contundente, e fiquei me perguntando como podia uma poeta tão expressiva e singular não ter seus livros acessíveis. Meu sonho era ler a poesia reunida de Miriam Alves. Lancei esse desejo para o universo em meu livro “A poesia negra-feminina de Conceição Evaristo, Lívia Natália e Tatiana Nascimento” (Malê, 2020), e ele se concretizou neste ano de 2022, graças ao trabalho cuidadoso de Leonardo Gandolfi e de Marília Garcia, da editora Luna Parque, que, junto à editora Fósforo organizaram os Poemas Reunidos, de Miriam Alves. Tive o prazer de fazer a orelha desta reunião e também fazer a preparação da obra. Vou aprendendo com a Miriam como trazer a oralidade e o corpo para a escrita, assim como a tradição de saberes afro-diaspóricos, com sua mitologia, filosofia e ritmos para os versos. Miriam foge dos estereótipos criados para aprisionar a literatura negra em uma forma única, o que também busco fazer. O tema do nascimento é muito caro para mim, e, por isso, escolhi o poema “Parto”, de Miriam, que nos conduz a um percurso antes do nascimento, de uma existência mergulhada no cosmo e na natureza, para além do humano e da racionalidade heterocispatriarcal eurocentrada. Uma trilha para fertilizar futuros.