RODRIGO VILLELA é gestor cultural, curador e editor independente. Formado em Letras pela Universidade de São Paulo e especializado em Edição pela Universidade Complutense de Madri. De 2016 a 2020 foi diretor executivo e artístico do Espaço Cultural Porto Seguro, em São Paulo, onde realizou dezenas de exposições e catálogos. Hoje atua junto a galerias e instituições culturais.
Em sua casa-ateliê, numa rua pacata da Vila Mariana, em São Paulo, Alexandre Furcolin cria paralelamente obras em desenho, pintura, fotografia, e mistura tudo em cada uma delas, num jogo sem-fim de relações visuais bastante livres – prática que intercala com leituras de filosofia oriental, meditação e muita flauta (flautas essas fabricadas por ele mesmo, para preencher sua contínua instalação sonora). Isso sem mencionar sua produção fotográfica para a moda, com uma volúpia tão presente quanto não objetificante.
Essa inquietação plástica pode ser notada expressamente em seus nove livros de fotografia, com especial destaque para São Paulo, da Coleção Fashion Eye, publicado pela Fundação Louis Vuitton, cujo lançamento mundial no Festival d’Arles deste ano, no sul da França, denota uma relação amorosa com sua São Paulo e nos guia para um mundo plural, diverso e bastante singular. O livro é uma composição que segue o sopro que corre pela planícies, vales e clubes dessa cidade sem fim e desbrava a megalópole pulsante com o frescor da música do vento, a força da luz do sol e da lua, no compasso entre o estranhamento e o maravilhamento. Da dura e crua cidade, Furcolin extrai o fortuito que escolhe desposar, delineando uma ligação íntima de espanto e afeto.
A energia vital caótica e livre da múltipla produção artística de Alexandre Furcolin convida a ver o mundo com olhos mais concentrados, elegendo um certo campo de visão, focando no essencial. Seus trabalhos trazem a luz do inesperado em cada uma das mídias em que atua. Com traços musicais de improvisação e domínio dos gestos, Furcolin preenche suas telas em linho cru como quem desenha na terra: com gestos firmes em sulcos profundos, aplicando diferentes técnicas e inserindo imagens fotográficas rasgadas e fragmentadas, com total desprendimento pelo suporte. Mas aqui a água do mar ou da chuva não apaga essa escrita, só sugere movimento e fluxo vital em seus negros textos ilegíveis, acompanhados de cores que fazem alusão aos principais elementos da natureza.
Já os desenhos revelam um tipo de composição harmoniosa e inesperada, jocosamente infantil, com traços delicados e ágeis, que não respeitam a imobilidade. Clamam por vida e movimento e até dançam sozinhos, sob nosso olhar, com a fluidez de um desenho às cegas.
Como quem respira (e como quem faz do sopro música, na flauta), Furcolin pinta, desenha e fotografa. Em cada uma dessas mídias, o artista elabora ambiências oníricas que exploram o caos da cidade e a sabedoria da natureza. Numa escrita de garatuja ilegível, explora diversos meios para inscrever um novo alfabeto e, assim, conciliar num mesmo plano ritmos, volumes e cores que pareciam inconciliáveis.
Dessa pulsão por cor, forma e sensação, o artista nos convida a um universo saturado que emana uma busca por estabelecer contato com sutilezas e estranhamentos do mundo. As paisagens são desenho, são traços, mas também enquadramento; os retratos são registros de feixes de luz, portanto desenho também, e as pinturas são partituras cromáticas eloquentes. Assim, as fotografias conectam as demais obras de maneira muito sutil e fina, não só pela reiteração de ambiências, composições e cores, mas também pela confirmação da postura do artista: tanto agente quanto observador.
Desse embate entre complementares, entre noite e dia, fúria e placidez, Furcolin não se contenta com o registro documental do mundo. E se mostra fotógrafo-desenhista, ou pintor-fotógrafo, ou pintor de fotografias musicais — artista múltiplo. Se, para Susan Sontag, “fotografar é em essência um ato de não intervenção”, para Furcolin fotografar é também intervir e criar novos jogos visuais, que vão além das pessoas, além da cidade — não para abarcá-la em sua totalidade, mas para rasgar uma nova conexão com o entorno, a partir da sua intimidade. Ao ser um fotógrafo documental e também intervencionista, Furcolin cria novas realidades, novos jogos poéticos vitais.
Com um trabalho focado no instante, Furcolin cria momentos dilatados, a partir de decisões plásticas firmes, que podem ser continuamente revistas, baseadas em seus critérios de composição, enquadramento, para assim estabelecer jogos de campos justapostos, sincronizando pontos de vista.
Na fotografia, manifesta sua identificação com a distante paisagem estranha, talvez na inversa medida com que explora seu olhar admirado e desejante pela proximidade dos corpos. Nesses jogos de encantamento e repulsa, procura uma abordagem sem julgamentos, expressa por meio de uma contundente inteligência visual, com uma paleta vibrante magnética, flashes que atenuam o alto contraste e que pontuam faces, corpos e naturezas-mortas.
No desenho, brinca jocosamente com pintura e fotografia, alternando papeis — a pintura quer ser desenho, a fotografia quer ser pintura, e o desenho sugere uma junção de todas as anteriores, a partir de traços mínimos, com colagens que convocam as outras técnicas e criam um desenho de muitas vozes e cores. Explorando distintas abordagens da linguagem fotográfica, adequadas a distintas atmosferas e assuntos, e distintas soluções para cada suporte, o artista se vale de múltiplas formas de abordagens para as imagens que cria. E, assim, faz com que sejamos guiados por essa força do vento, que dá forma a silêncio e ruído, sedução e repulsa — como um flautista de Hamelin gauche, que reorganiza o caos para torná-lo ainda mais complexo, numa improvável condensação de geografia e tempo.
A flecha artística de Aislan me atingiu em meados de 2021, pelo Instagram: impactado com a produção incansável e inédita desse jovem artista, entrei em contato: “Olá, boa tarde, tudo bem? Sou curador e gostaria de conhecer mais sobre seu trabalho.” A partir daí, seguiram-se incontáveis mensagens, uma conversa por videochamada e um convite que fiz para o então estudante de medicina da Universidade de Brasília (UnB), prestes a se formar: fazer parte da residência artística que eu estava organizando no Kaaysá, na Praia de Boiçucanga, em São Paulo. Dez dias depois, lá estava Aislan. Dada sua habilidade pictórica, em desenho sobre kraft, transposta à tela pela primeira vez, o então médico se formou artista, e com ele aprendi inúmeras relações entre ciências biomédicas e arte, entre universos ínfimos e a visualidade de suas obras, eivada pelos padrões e ritmos das células e moléculas — algo que, para o homem branco, geralmente são apenas elementos constitutivos da matéria observados pelo microscópio, mas que, para Aislan, são representações da sua maior ancestralidade. Isso sem falar em propriedades curativas, atribuídas por ele tanto à medicina como à arte. Rebelde e contestador, Aislan soube trilhar seu caminho com autonomia e liberdade, e digo isso como quem o viu “saindo do ovo da cobra”, como ele mesmo afirma. Hoje ele é representado pela Galatea Galeria, onde realizou sua primeira mostra individual, em novembro de 2023, com curadoria de Lisette Lagnado. O artista de 33 anos também tem um trabalho que integra a mostra Histórias indígenas, no Museu de Arte de São Paulo, o Masp.
Todo esse enorme preâmbulo para falar do que importa: a produção de Aislan. Por sorte, já tomei ayuahuasca algumas vezes (uma delas com um maldito xamã Hanilkui, deixa ele), mas digo isso porque a aproximação com a ayuahuasca me parece fundamental pra entender a onda de fractais inexplicáveis em movimento orgânico, contíguo, infinito. E como pessoa branca, distanciada dessa realidade, uspiano de formação eurocêntrica, olho com deslumbre para essa força pulsante calcada na planta e na organicidade celular. Num tempo cada vez mais dissonante, com pandemias que parecem só começar, degelo de calotas polares, enfim, o caos, ter contato com uma produção artística que problematiza o conhecido a partir do elemento celular mais elementar e do encantamento provocado por ele me parece um vislumbramento instigante e necessário — quase da ordem da “miração”. Daí a força de Aislan, que, com cosmovisão, transforma tempos, movimentos e traços — e pontos (ele é obcecado por bolinhas). Eis que o médico-artista-curandeiro nos receita uma medicina que pode causar rebuliço. Incontrolável. E se soma a isso seu questionamento quanto a uma visão indígena exclusivamente amazônica, dado que ele vem e fala da caatinga. Tudo isso nos faz rever de onde falamos e também indagar sobre a multiplicidade de visões e cosmogonias presentes apenas no território chamado Brasil.
Com isso, torna-se urgente dizer: nada de se ater à beleza por si. O belo no trabalho de Aislan convida à luta — resta encontrar qual luta transformadora é essa. Assim como ele descobre o mundo através do fazer, primeiro pintando em posca sobre papel kraft, agora em telas de linho, em couro, bordado em voal ou ainda em escultura. Isso deixa claro que o suporte não realiza, só informa, mas o problema que ele alcança segue se mostrando inalcançável, e a elaboração sobre o fazer segue sendo a posteriori, dada a urgência de realizar e de se apresentar. O que ele alcança, porém, segue, de certa forma, inalcançável, porque é mistério é dessa ordem micro-macrocósmica ligada ao funcionamento de tudo. Mesmo para Aislan, a elaboração sobre o que faz parece ser a posteriori, dada a urgência daquilo que pressente e manifesta.
Alheio a rótulos, livre e contundente, Aislan nos apresenta, por meio de seus trabalhos, um cosmo complexo, muito mais ligado ao sentir do que à racionalização. Entretanto, se trata de um sentir conectado a algo imenso. Aislan apresenta em seu trabalho um tipo de junção de firmamentos, conhecimentos, sensações — algo que para nós tem também o efeito de um universo de perguntas em aberto.
Essa falta de resposta em sua produção, uma progressiva elipse, paradoxalmente produz conexões inesperadas em todos os suportes e as técnicas que utiliza. Esse paradoxo de seu trabalho, esse inesperado, esses delicados momentos de espanto que nos oferece e que talvez ele próprio não entende completamente são a impressionante e crescente força de sua produção: a força de um mistério.
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