1. 

Antes de sair da academia, eu entrei, passei pelo pórtico do Campus do Vale, UFRGS, dentro da mochila a Filosofia do Direito, G. W. F. Hegel, Professor de Berlim do século XIX, cujas ideias alcançaram o século XXI e o bairro da Agronomia, grande Porto Alegre. Lá ia eu, com o Espírito Objetivo nas costas, história da razão impressa e apresentada em páginas hoje ameaçadas por traças e por estudos pós-coloniais. Eu entrei na Academia procurando saber. Comecei por saber que nada sei. E tropecei em livros, conceitos, fatos, lendas. 

2. 

Tales de Mileto, conta a lenda, olhou as estrelas e tropeçou num buraco. Alguém riu, chamou-o de lunático: não adianta contemplar os astros e esquecer o chão onde se pisa. Num fato mais prosaico e recente, lembro um Professor de Metafísica esperando, inerte, a metros do meio-fio da calçada, os carros pararem na faixa de segurança. Os carros não paravam. O professor, em indecisão comovente, não atravessava. Nada acontecia. Era como se o Professor estivesse transmutado do plano físico ao transcendente. Eu segui, arrastado pelo tempo. Fui a um Congresso de Filosofia. No hotel, um colega abriu a mala e mostrou o que trouxera: rolo de papel higiênico. Eu disse que o hotel provinha papel higiênico. “Nunca se sabe”, ele respondeu.  

A tradição filosófica começa com o desajeito do intelectual nas ruas da realidade (ele que diz entender a realidade) e culmina nos versos de Heinrich Heine sobre o Professor alemão, que, “com touca de dormir / (…) tapa os buracos do mundo”.  

Tropeçante, paralisado frente à rua a ser atravessada, papel higiênico e pijama, seria o intelectual, assim, apto a tapar os buracos do mundo?  

“O pensador reconciliado com a realidade não tapa buracos – ele suja as mãos para estudá-los.”

3. 

Na Crítica da Razão Acadêmica, deve constar defesa da excentricidade intelectual. O pensador deve, isso mesmo, ser “ex-cêntrico”, “fora do centro”, posicionado nas margens, de onde olha e medita.  

Um passo atrás, antes de Tales cair no buraco: só um lunático compreende a lua. O passo atrás, longe do centro, significa olhar deslocado do imediato ao mediado por realidades esquecidas no passado, no abstrato, no céu, no microscópio, em fórmulas matemáticas, categorias sociais, princípios políticos. Hegel diria a Heine: mesmo um mundo esburacado precisa de conceitos (o conceito de “buraco”). O pensador reconciliado com a realidade não tapa buracos – ele suja as mãos para estudá-los.     

Um passo adiante, depois de Tales, não encontramos filósofos apenas em buracos e em cavernas. Sócrates está no centro da praça. Ele pede respostas consistentes aos concidadãos. O que é justiça? O que é virtude? Sócrates evita cair no buraco de opiniões sem fundamento. Ele está na realidade. Quer pensá-la com outros. Mas a cidade não quer pensar com ele – e condena o fazedor de perguntas à morte.   

4. 

Das colinas quentes de Atenas, a Academia, em gêneses histórico-sociais, metamorfoseou-se nas universidades de hoje, departamentos e comitês multidisciplinares, que poderiam ser imaginados como:    

Castelo, e digo como elogio, castelo protegido por muros e arqueiros conscientes de sua tarefa: defender a pesquisa contra pressões sociais, humores coletivos, lobbies econômicos, contra o que vem “do centro” e ameaça a autonomia universitária.  

Armazém, com depósitos, prateleiras, potes e caixas, limpas ou empoeiradas, onde se estocam objetos do saber em várias formas temporais, geopolíticas, metodológicas.     

Fábrica, onde ideias são produzidas. Deixemos para depois a pergunta: produzidas por quem, para quem, por quê?  

5. 

Na pólis pós-moderna, a Fábrica ameaça o Castelo, sobretudo se pensarmos na linha de montagem da fábrica. Os arqueiros viraram mecânicos com funções específicas, em disciplinas e subdisciplinas. O Castelo se desencantou. Dentro dele, se instalou complexo de racionalizações e sistemas de explicação (ou “discurso”) interminável. São tantos saberes, que se volta a saber que nada se sabe, ou se produz conceito para a nova realidade: alienação. O professor tem título, tem crachá, tem sala compartimentada de conhecimento específico. Da sala, ele sai quando tem conferência com outros técnicos que sabem tanto quanto ele – muito sobre pouco.    

6. 

A Fábrica significa, ainda, entrada do capital e metamorfose do “padre, poeta, intelectual…em seu trabalhador remunerado”. Estudantes de pós-graduação imaginam entrar num Castelo protegido contra as forças do mercado. Mas então descobrem que tem pouca bolsa, pouca vaga, tem competição, carreirismo e burnout. Professores recém-ingressados em universidades privadas descobrem que tem pouca turma com muito aluno. O desempenho pedagógico é medido em consumer ratings. É preciso muito mérito para criticar o mérito.  

7. 

Se a universidade for Armazém abastecido por atualidades brasileiras, a pergunta é como ter espaço para tanta autoimagem, conceito, conceito defasado, interpretações, sons, como dar conta de tanta “bagunça transcendente”, “mestiçagem”, “bovarismo”, elitismo, racismo, tanto “carnaval sem nenhuma alegria”, cordialidade e violência, tanta mistura e tanta área VIP, tropicalismo e meridionalismo, Gonçalves Dias e Jojo Todynho, tanto Deus, tantos falsos Messias, tanta dúvida? Seriam vastas prateleiras brasileiras em vastíssimos departamentos de estudos culturais humanos.  

A filósofa Hannah Arendt, na Universidade de Wesleyan (1961-62).

“não é contraditório que falem em empiria e entreguem ficção?”

8. 

Na pós-graduação, estudei a obra de Hannah Arendt. Pensadora no limite de uma tradição arrasada, Arendt se confrontou com o fato de o “povo mais teórico da Europa” (palavras de Engels) vestir a “camisa-de-força” da lógica totalitária, apoiando projeto de destruição e autodestruição, porque “assim deve ser” (palavras de um oficia da SS, em carta, à esposa). Não, não devia ser, não podia ter acontecido, Arendt respondeu. Ela defendeu o pensar – “fora de ordem” – como antídoto contra ideologias, teorias, ideias que funcionam como “escudos contra a realidade”. E recomendou pensar “com outros”, pensar condicionado por people, na ambiguidade do inglês – “pessoas”, personalidades únicas, e “povo”, entidade política em formação. 

9. 

People, not concepts”, Fred Dewey repetia no grupo Portable Polis, em Berlim, 2017, meu pós-doutorado pós-acadêmico. Todo sábado, sempre em lugar diferente (livraria, jardim coletivo, centro de refugiados, sala de estar privada), líamos Arendt sem pré-requisitos técnicos. Escutávamos o que as frases e pensamentos nos diziam, e o que dizíamos uns aos outros. Pensávamos juntos, concordando, discordando, mas no mesmo “mundo”, na mesa e no texto compartilhados. Como “desafiar, responder, refazer”? Como governar nossas vidas, sobretudo vidas públicas? A resposta de Fred Dewey era sentar, ler, falar e escutar. Essa “universidade”, chamada por ele de Escola da Vida Pública, não era castelo, nem fábrica, mas assembleia democrática informal. 

10. 

Certa vez, lendo a crítica de Arendt às ciências humanas de métodos estatísticos, uniformidade “sem desvios”, e “tipos puros” sem impurezas individuais, Dewey me perguntou: “não é contraditório que falem em empiria e entreguem ficção?” Ler Arendt com Dewey era, como ela dissera na abertura de Origens do Totalitarismo, compreender e resistir à realidade que se compreende. 

E era recolocar a questão do bisavô, John Dewey, em Experiência e Educação. Como educar para emancipar? Como demarcar disciplinas preservadoras, voltadas ao passado, das orientadas ao futuro? A resposta do bisneto havia se emancipado da resposta do bisavô, e, buscado nas categorias políticas de Arendt – pensar, julgar, agir – princípios constituintes de uma pólis em miniatura, atualizada a cada sábado, por três horas, no verão berlinense.   

E era, ainda, volta à questão entre “interpretar” ou “mudar” a realidade, cravada no peito da tradição filosófica pelo intelectual (jornalista, agitador, orador) de Trier. No debate sobre o papel do intelectual frente ao “povo”, Rosa Luxemburgo falaria depois em “escola da vida”, sem, contudo, resolver a tensão entre dogmatismo e “oportunismo” solto, sem princípios. O debate permanece aberto: cabe ao intelectual dirigir as massas a um fim ou, quase o contrário, deve a teoria se abrir mais ao “espontâneo” e aos buracos dos acontecimentos humanos e naturais?   

11. 

Essas perguntas nos levam a outra, mais elementar. Como falar com o “povo”? Para afirmar o valor do pensamento conceitual, o acadêmico precisa comunicar e, em sentido socrático, entrar no espaço público. Mas como falar em público de “traços putativos” e “modalidades enunciatórias”? Como evitar a fuga do leigo, assustado com substantivos zumbis e com linguagem em que “knowhow” e pensamento se estranharam? Eu, acadêmico ex-acadêmico, não proporia síntese, muito menos solução, aos problemas da universidade atual. Mas, pensando em Sócrates, Arendt, Dewey, em castelos e em assembleias, proponho que se ensine, junto com Método Científico e Introdução à Pesquisa, dois cursos básicos – Escrita e Oratória. Para interpretar, ou para mudar, é preciso se fazer entender.   

*

Na cabana com quarto, sala, cozinha, cabana cujo aluguel consome dois terços da minha renda mensal, às margens do lago Rixdorfer, das ovelhas e das pombas, dos traficantes africanos sem acesso ao mercado de trabalho e das águias de pedra, eu deito as folhas do jornal na mesa, leio sobre plebiscito em que 56,4% dos eleitores de Berlim decidiram expropriar conglomerados com mais de 3 mil apartamentos e casas. “Esta é a nossa cidade, é a nossa casa”, reclamam locatários e organizadores da iniciativa pela “ressocialização” da moradia em Berlim.

Eu fecho o jornal. Olho a pilha de livros na mesa. No topo está Walden, e, na abertura do texto, o indiciamento de Henry D. Thoreau à sua época, quando o “pobre homem civilizado” devia trabalhar metade da vida para comprar casa que pudesse chamar, legalmente, de sua. O homem selvagem vive em choupana modesta, mas pelo menos é sua choupana, sua propriedade — sem contrato de aluguel, fiador, reajustes conforme inflação. Progresso? As casas melhoraram, mas não os habitantes das casas, ainda aprisionados em “opiniões sobre si mesmos” e em práticas sociais irrefletidas. Thoreau se cansou da sociedade, de suas convenções, e foi viver no bosque.

Por dois anos, dois meses e dois dias, Thoreau viveu mais precisamente em Walden, perto de águas verdes e azuis, esquilos e corujas, pinheiros e mirtilos, numa cabana que ele edificou, por menos de 29 dólares (sem correção monetária), telhas, reboco, “com um sótão e um armário, uma janela grande de cada lado, dois alçapões, uma porta e uma lareira de tijolos no lado oposto”, e três cadeiras: “uma para solidão, duas para amizade, três para sociedade”. Thoreau não se isolou na natureza (ele construiu a cabana perto da família, no terreno de Ralph Waldo Emerson): ir ao bosque, in the woods, significava dar passo atrás, ou adiante, a uma “civilização exterior”. Significava observar, emancipar-se de condições dadas, pensar, viver desperto, alerta. Construir a casa significava obedecer “às leis do seu próprio ser” — e, se preciso, desobedecer a leis que prescrevem votar, mentir, bajular, sabujar vizinhos para vender sapatos, apólice de seguro, casas arquitetadas por gerentes de banco e outros gerenciadores da vida alheia.

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Na pilha de livros, está ainda As origens do totalitarismo, obra na qual vivi por anos, meses, dias, e Hannah Arendt alertou sobre o “perigo de que uma civilização global, universalmente inter-relacionada, possa produzir dentro de si bárbaros ao forçar milhões de pessoas a condições que, apesar de todas as aparências, são condições de selvagens”. O perigo era que essa civilização se expandisse tanto a ponto de não restar nenhum canto “incivilizado” aonde fugir, onde se refugiar. Essa civilização de nacionalismos, imperialismos, totalitarismos ejetou humanos de suas fronteiras, colocou-os em rotas de fuga, campos de trânsito, guetos, dizimou-os não pela intenção maligna deste ou daquele governante, mas pela essência mesma de políticas geradoras de “seres humanos nus” — sem casa, sem proteção governamental, sem direito a asilo.

Com as sociedades de apátridas, “associais”, displaced, o projeto civilizatório passou do “mal-estar” ao não-estar. Assim, em face aos abismos abertos em 1939, 1941, 1945, ao deslocamento e desaparecimento de milhões, Arendt pediu novas leis e novos princípios, e buscou novos exemplos para reestabelecer a decência humana. Um desses exemplos era o pária. Membros da minoria europeia “por excelência”, párias como Heinrich Heine e Franz Kafka tinham começado “emancipação por conta própria”, sem ideologias, dogmas, programas revolucionários predefinidos — sua revolta era fundada em “seus próprios corações e mentes”.

Os párias pressentiram forças mortificantes de suas épocas, enxergaram as “correntes subterrâneas” (Kafka) e sentiram o “cheiro do futuro” (Heine). Profetas negativos de “tempos sombrios”, acusaram, artisticamente, a censura, os livros queimados (prelúdio a pessoas queimadas), a aliança entre racismo e burocracia em violência jurídica operada por “ninguém”, guerra, deportação e outras “selvagerias” politicamente organizadas. E pensaram, e falaram sobre a ansiedade apátrida. “Quem não tem pátria”, Kafka escreveu a Milena Jesenská, “tem de pensar o tempo inteiro em buscá-la ou construí-la”, pensar sobre estabelecer residência em Praga, Berlim, Tel Aviv, onde for, desde que se possa viver como escritor ou garçom numa polis onde pessoas não sejam pisoteadas como baratas.


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Na cabana em Walden, perguntando-se sobre as “leis essenciais da existência humana”, Thoreau afirmou, entre elas, “alimento” e “abrigo”. Então, se comer e ter um teto para descansar são — ou deveriam ser — condições humanas básicas, como podemos apoiar sociedade cuja maioria não possui título de propriedade, onde se ingere açúcar demais ou calorias de menos, afixa-se placa de “Proibido Entrar” em florestas frutadas, arregimentam-se vidas para invadir e morrer no México, açoitam-se costas cansadas pelo trabalho forçado em plantações de algodão e promovem-se guerra e escravidão com impostos públicos?

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Ano passado, eu fui a bosques e pedras polidas da Croácia participar de seminário intitulado A condição desumana, em que falei sobre a capacidade do pária de captar “correntes subterrâneas”, usar o nariz para “cheirar desumanidade” — e não apenas “dispensar catarro”, como Joseph Roth disse de escritor exilado em Paris nos anos 1930. Na apresentação, eu me lembrei das sessões por Skype com Fred Dewey, no início da pandemia, quando líamos A marcha Radetzky e deliberávamos sobre como resistir ao “espírito do tempo” e, se possível, acusá-lo. Quando eu falava em Hegel e “complexidade”, Fred protestava: “Não é simples? Quem quer beber água intoxicada, quem quer despejar bombas ou ter bombas despejadas sobre si?” Quem quer dormir em estacionamento, endividado, barraca sob a ponte, comunidade costeira ameaçada pelo nível de oceanos, quem quer morar em casa prestes a desabar?

Não é simples? “Simplifique, simplifique”, Thoreau propôs. Com isso, ele — não um ermitão apolítico, talvez um pária voluntário — iniciou sua jornada “extra-vagante”, pôs-se a vagar por casa e vida liberadas de pressões sociais. Era como se o livro da experiência em Walden, o diário da casa, dissesse aos visitantes: não seja uma função profissional, vá ao bosque e escute a linguagem pré-metafórica do vento, neve, sol (“estrela da manhã”), das formigas. Escute o lamento silencioso de escravos, de índios mortos. Discipline o olhar, perceba “a extensão infinita das nossas relações”. Pegue emprestado um machado, construa sua cabana, ocupe prédio abandonado, funda comunidade onde se transacionam beecoins. Desobedeça a Estados escravistas e militaristas, retire apoio a práticas que você considera injustas. Pense no corpo, na coruja, no oceano, na cidade, na cidade no outro lado do oceano, pense em você e no conceito de humanidade como casas que precisam ser edificadas, protegidas, governadas e, de tempo em tempo, despertadas por rebeldes.