Brasa, série fotográfica de Gleeson Paulino, gentilmente cedida para a edição O Homem: Amarello 15 anos. Todos os direitos reservados.

Para os povos indígenas, o território ancestral é a própria essência de nossa identidade. É nele que se realizam os rituais sagrados, que se aprende a respeitar a natureza e que os conhecimentos sobre as curas com benzimentos e ervas medicinais, a arte, as narrativas, a língua ancestral, a vida, o espírito, as cosmovisões e os grafismos são repassados e criam conexões entre o passado e o presente.

“A desconexão e a falta de identidade com a natureza levam a uma série de atitudes violentas, marcadas pelo desrespeito e pela destruição ambiental”

Nós, povos indígenas, compreendemos o território ancestral como sendo a conexão viva e contínua entre um povo e seu território, entendendo-o não apenas como um espaço físico, mas como um ser integral e espiritual, onde se manifestam a história, a cultura, a memória, as narrativas, os saberes que fortalecem a identidade coletiva dos povos indígenas. Ele carrega memórias e energias dos antepassados e sustenta, protege e comunica com os que nele vivem. Essa concepção do território como extensão da identidade reflete uma visão de mundo onde o solo, os rios, as florestas e os animais são considerados parentes e elementos sagrados, que guardam histórias e memórias ancestrais.

Para muitos povos indígenas, viver no território é seguir uma cosmovisão que permite o equilíbrio entre o ser humano e os elementos naturais, um ensino transmitido pelos anciãos e pelos espíritos da floresta, guiando práticas e rituais. Assim, a espiritualidade indígena não se separa da luta pela preservação e demarcação das terras. Defensor do território é também defensor da cultura, da autonomia e da própria existência indígena, que se encontra na terra do seu lugar sagrado, onde passado, presente e futuro se entrelaçam. Essa conexão representa não apenas um vínculo espiritual, mas também um ato de resistência contra as pressões externas que ameaçam essa relação tão vital.

Ao longo dos séculos, nossos ancestrais viveram em seus territórios ancestrais em uma relação de cooperação e respeito com a natureza. Existia um equilíbrio sagrado entre os humanos e o meio ambiente, onde cada um ocupava seu lugar e o sustento era obtido sem que os ecossistemas sofressem grandes impactos. Minha avó costumava dizer que, para encontrar um jabuti, bastava olhar no quintal — ele estava ali, ao nosso alcance. Os rios eram repletos de peixes, e o roçado florescia até nos períodos mais quentes, garantindo fartura para as famílias. As cheias, que hoje trazem destruição, eram então mais suaves, sem deixar marcas devastadoras. Contudo, com o passar do tempo, essa relação harmoniosa foi profundamente afetada. O que antes era uma convivência respeitosa com a natureza transformou-se em um cenário de desequilíbrio ambiental, fruto do distanciamento e da falta de respeito.

Aponto isso para destacar que o território não é apenas essencial para fortalecer as relações que se constroem dentro de seus limites ou ao seu redor, mas também é fundamental para que as pessoas que vivem em comunidade, especialmente os povos indígenas em aldeias, desenvolvam um vínculo de identidade com a própria terra. O território é compreendido como fonte de vida, uma verdadeira mãe que nutre e sustenta. Esse entendimento não é meramente simbólico, mas um princípio que molda a visão de mundo e a existência coletiva, onde a terra se revela como parte indissociável da própria identidade.

A desconexão e a falta de identidade com a natureza levam a uma série de atitudes violentas, marcadas pelo desrespeito e pela destruição ambiental. A crise climática que enfrentamos atualmente não atinge apenas os povos indígenas — suas consequências afetam o mundo inteiro de forma catastrófica. As florestas são devastadas, os rios secam, as estações tornam-se imprevisíveis e as colheitas já não trazem a mesma abundância de outrora. Essa transformação, resultado das ações humanas que ultrapassam os limites do meio ambiente, desestabiliza não apenas o planeta, mas também os modos de vida daqueles que sempre acreditaram na responsabilidade de cuidar e preservar a terra. Esses povos, que historicamente mantêm uma relação de harmonia e respeito com o território, agora se veem ameaçados por mudanças que colocam em risco o próprio bem viver tão estudado pelas universidades e tão falado no sentido de buscar entender e viver para poder contribuir com o adiamento do fim do mundo.

Todavia, mesmo diante dos impactos devastadores das mudanças climáticas — como secas, enchentes, perda de biodiversidade e invasões territoriais — muitos povos indígenas demonstraram uma resiliência profunda. Essa força está enraizada nos saberes ancestrais, nos rituais espirituais e nas práticas tradicionais de manejo da terra, externas para a preservação do equilíbrio ecológico. Ao resistirem às pressões externas, como a exploração desenfreada de recursos e a apropriação de suas terras, os povos indígenas seguem firmes na defesa de seus territórios sagrados, reafirmando uma relação espiritual com a natureza.

Para os povos indígenas, o território ancestral é a raiz que nutre a identidade desde o primeiro instante em que uma criança nasce. O hábito de subir nas árvores, de observar pelos rios, de nadar em suas águas e de imitar o canto dos pássaros, em perfeita sintonia com a vida ao redor, não são apenas brincadeiras – são lições profundas que a natureza oferece. Cada gesto, cada som, cada pulsar da floresta ensina à criança que ela faz parte de algo maior, uma conexão que fortalece os ensinamentos transmitidos pela aldeia. Assim, a criança cresce entendendo que tudo está interligado na grande casa comum; ela aprende que não é separada da natureza, mas sim que ela própria é a natureza, entrelaçada em um tecido de mundos e saberes.

Para os povos indígenas da Amazônia, o rio é visto como um ancião, um ser sábio, com o corpo marcado pelo tempo. Essa personificação é mais do que uma metáfora cultural: há relatos de indígenas que dizem tê-lo visto sentado sobre uma árvore caída ou transportado pelas praias com o corpo coberto de feridas. Tais imagens evocam a poluição que o aflige e nos levam a refletir sobre as feridas que, diariamente, infligimos a esse ser sagrado. O rio, ao transmutar-se em figura humana, nos transmite uma mensagem clara: seu corpo está doente e precisa urgentemente de cura. Mas quem tem o conhecimento ou a medicina capaz de restaurar a saúde desse ser que é vital para toda a vida na Amazônia? Essa é uma pergunta que devemos nos fazer.

É importante dizer também que a identidade indígena, apresentada na literatura produzida por autores indígenas, se manifesta como uma extensão viva do território. Nessa literatura, o território se revela não apenas como espaço físico, mas como um tecido pulsante de memórias, histórias e ancestralidade. A palavra escrita se torna a materialização da oralidade — é o prolongamento da narrativa tradicional, das vozes dos líderes e do entendimento profundo que se adquire observando a natureza. A literatura indígena traduz, em sua essência, a sabedoria ancestral e as vivências que emergem do contato íntimo com a terra e com seus elementos.

Ao narrar o mundo indígena, esses textos tecem uma ponte entre os ensinamentos antigos e o presente, formando uma trama que une o corpo, o espírito e o território. Cada verso, cada conto, é uma afirmação da identidade e da visão do mundo indígena, compondo, junto ao território, uma identidade coletiva. Assim, a literatura é ao mesmo tempo expressão e extensão do território, um lugar de resistência e celebração, no qual as histórias dos povos indígenas encontram uma nova forma de existir e de serem partilhadas.

A literatura indígena é mais do que um exercício criativo; é um ato de resistência e uma afirmação de identidade. Ao transportar a oralidade para a palavra escrita, escritores indígenas transformam suas histórias, seus saberes e sua espiritualidade em um território simbólico que continua a viver e a se expandir. Esse espaço literário se torna uma extensão do próprio território físico e ancestral, fortalecendo a relação íntima entre os povos indígenas e a terra, seus elementos e seus ensinamentos. Através da literatura, essa identidade ganha novas formas de expressão e visibilidade, preservando saberes que desafiam o esquecimento e convidando o leitor a enxergar o mundo pela perspectiva dos povos originários. Assim, a literatura indígena reafirma o papel fundamental do território não apenas como espaço geográfico, mas como um tecido cultural e espiritual, em que palavra e terra se entrelaçam para manter vivas as raízes de um povo e seus ensinamentos.

Por fim, é essencial compreender que a luta contra o marco temporal vai muito além de uma questão legal — é uma luta pela própria vida nos territórios indígenas. Nessas terras, onde a ancestralidade se mistura ao cotidiano, fortalece-se uma rede de relações que abarca afetos, resistência e espiritualidade. Ali, cada elo entre as pessoas e a terra nutre o sentido profundo de pertencer, de honrar as raízes e de proteger um legado que sustenta não apenas as comunidades indígenas, mas a biodiversidade e o equilíbrio natural do planeta.

Quando os povos indígenas falam em “parente”, evocam um conceito que transcende o laço de sangue. Essa palavra carrega em si a força da união, da parceria, da solidariedade e da identidade coletiva. Ser “parente” significa considerar noutra uma extensão de si mesmo, uma ligação que se fortalece diante das ameaças e dos desafios. A luta pela terra é também uma luta pela diversidade dessas relações que, assim como o território, são constitutivas de um tecido de saberes e de apoio mútuo.

Defender o território contra o marco temporal é, portanto, proteger o direito de existir em harmonia com a natureza e com os laços comunitários. É garantir que as futuras gerações possam ser refletidas num espaço onde possam ser quem são, onde a terra e os trajes sejam preservados. É, acima de tudo, afirmar que a identidade indígena não pode ser definida por limites temporais impostos, mas sim pelo vínculo atemporal com a terra.

Uma pessoa na casa dos seus vinte ou trinta anos, de classe média, acorda. Com as redes sociais buzinando desde que ela abre os olhos, não demora a prorromper uma certa pressão — às vezes sutil, às vezes nem tanto — para que um senso generalizado de realização, num âmbito pessoal e profissional, seja vivido. Seis, sete, oito da manhã e já há quem tenha jogado na cara uma ida à academia e um sorriso indefectível no rosto para encarar os perrengues do dia. Tão logo, mesmo que ainda sob o cobertor, essa pessoa se vê imersa em um mundo regido pela diretriz de se ir atrás, alegremente, daquilo que “te faz feliz” e conseguir tirar uma vida disso — e olha que essa pessoa nem sequer teve tempo de abrir o LinkedIn. Durante toda a vida do arquétipo tratado aqui, de vinte/trinta anos e de classe média, essa pessoa foi incentivada a perseguir os seus sonhos e transformar as suas paixões em uma carreira viável. Se por um acaso, nos anos de formação, ela pensou em se dedicar à medicina ou, vá lá, à advocacia, foi mais por gosto pessoal e menos por pressão parental.

“Insecure”, série da HBO, aborda a complexidade do trabalho no mundo de hoje. Foto: Reprodução

No entanto, a expectativa de encontrar realização pessoal a partir da profissão pode trazer uma carga opressiva de pressão, o que acontece pela visão de que é inviável ter prazer na vida sem que se encontre o trabalho perfeito e se alcance o equilíbrio entre o que é a vida pessoal e o que é o trabalho. A impressão, muitas vezes, é a de que, sem isso, a felicidade real não vai ser possível e que a culpa, no fim, é sua. Se ao acordar para ir trabalhar a pressão já se faz presente, ao menos para martelar os ânimos, em algum nível, imagine então no trabalho propriamente dito. Neste contexto, esta pessoa se esgota fazendo um verdadeiro malabares mental para balancear suas expectativas pessoais, as demandas do mercado de trabalho e a realidade das oportunidades disponíveis, tudo isso enquanto busca construir uma relação saudável e significativa com o trabalho, além de quebrar a cabeça para fazer com que as finanças batam. É um prato cheio.

Será mesmo que aquele nove-às-cinco impessoal, bate-cartão-na-entrada e bate-cartão-na-saída, era tão ruim assim? 

O dia acaba e, veja só, ela não está necessariamente feliz, o que é algo natural na vida de qualquer um, mas, considerando a positividade profissional tóxica que o mundo circunscreve à ela, isso faz com que ela fique ainda pior, seja por não estar fazendo o que ama ou por estar fazendo o que em tese ama e mesmo assim não ter alcançado a tão almejada plenitude. Uma coisa leva a outra, feito a mais Millenial e Gen-Z das bolas de neve, e, agora com a cabeça deitada no travesseiro, os pensamentos não dão trégua. 

a expectativa de encontrar realização pessoal a partir da profissão pode trazer uma carga opressiva de pressão”

Eventualmente, dorme. E, então, para o bem e para o mal, o dia seguinte vem.

Parece exagero televisivo ou literário, coisa saída de uma ficção distópica de pouca imaginação, mas essa autocomparação que coloca o factual e o idílico lado a lado é uma dinâmica diária de muitas pessoas. A psicóloga Thais Andrade1, tomando como referência seus muitos anos de prática, reflete sobre a importância do trabalho para as pessoas:

“A partir da minha experiência, observo que o trabalho é não apenas central como também essencial na vida de grande parte das pessoas. Para uma vasta maioria significa sobrevivência e sustento; para outros, como deveria ser para todos, significa também a possibilidade de reconhecimento e satisfação pessoal. Por essa razão tantos caem em depressão quando, por exemplo, deixam de trabalhar ou se aposentam. Para muitos essa mudança é catastrófica, uma vez que inúmeras perguntas nunca questionadas começam a emergir: quem eu sou sem meu trabalho? O que faço comigo? O que faço com meu tempo? Do que eu realmente gosto? Como estão minhas relações pessoais? Além de, é claro, a preocupação em pagar as contas.”

A relação com o trabalho passou por transformações significativas ao longo das últimas décadas. Basta tomarmos os anos 1980 como parâmetro. Havia aquele grande culto ao trabalho, sendo praticamente inevitável que aquilo fosse o centro da vida de uma pessoa, que tinha uma mentalidade de dedicação e comprometimento total à carreira. E não era bem como vemos com mais frequência hoje, de “eu faço o que gosto, então é claro que me dedico”, mas uma lógica de “eu vou virar tudo o que me dá retorno, não importa o que seja”. Os engomados de Wall Street, tão bem vestidos quanto tão sem escrúpulos, vêm à mente, certo? De Michael Douglas a Leonardo DiCaprio, de Sigourney Weaver até Melanie Griffith. Aqui no Brasil, com o boom de agências de publicidade e o espírito empreendedor generalizado começando a florescer, não foi muito diferente. 

Aqui e lá — e em tantos outros “lás” —, foi a década dos yuppies, obcecados em fazer mais e mais dinheiro, independentemente do quanto isso fosse pesar na vida pessoal. Analisando em retrospecto, com os valores da sociedade atual em mente, isso pode soar como algo absurdo. De fato, houve uma mudança nessa perspectiva.

“A vivência da frustração, que nos acompanha desde o nascimento, é fundamental para o desenvolvimento do nosso psiquismo e para a constituição de quem somos”, diz Thais Andrade. “Wilfred Bion e Donald Woods Winnicott, psicanalistas ingleses, escreveram de forma muito profunda sobre o tema. Frustrar-se faz parte da natureza humana e a maneira como lidamos com a frustração desenhará nosso caminhar pela vida.

Agora, será que uma pessoa que nasceu no início dos anos 80 teria uma tendência a ter mais tolerância e capacidade de lidar com as frustrações do que, digamos, um nativo digital? Alguém que, ainda engatinhando, já teclava nos celulares e tablets? Acredito que já existam pesquisas nesse sentido. Talvez sim, talvez não (existem os aspectos da constituição de cada um). O fato é que a vivência da espera era outra e a percepção desta parece mudar a cada geração.”

O trabalho é visto atualmente de uma maneira diferente, como uma ideia que foi, ao mesmo tempo, expandida e reduzida.

Leonardo DiCaprio em O Lobo de Wall Street.

Expandida porque, na medida em que a gama de possíveis atividades profissionais vai se ampliando a cada dia, mais caminhos podem ser traçados — estamos na época em que jogar videogame pode dar dinheiro (imagine dizer isso a um menino dos anos 1980!). E reduzida porque, por mais importante que seja o trabalho, ele não deveria mais ter o poder de nos definir. “Eu não sou o meu trabalho” é um discurso recorrente. Há uma tendência crescente de enxergar o trabalho como uma parte importante da vida, mas não necessariamente como o único ou principal elemento definidor da identidade pessoal. 

A busca por propósito e satisfação pessoal no trabalho tornou-se mais evidente, e as pessoas estão cada vez mais dispostas a explorar suas paixões e interesses, transformando-os em carreiras viáveis. Bonito, não? Sim, bastante. Mas é justamente aí que as contradições começam a aparecer. Há pouco tempo, tanto em redes sociais de caráter profissional quanto em plataformas como o Instagram, rodou o seguinte desafio: “Diga quem você é sem citar o seu trabalho”. Isto é, não valeria dizer “comunicador”, “empresário”, “bartender”, nem nada disso. Difícil. Por mais que a vida pessoal hoje seja importante — talvez, sim, até mais importante do que a vida profissional —, ainda temos o costume de nos classificarmos a partir de nossas atividades profissionais. O que isso diz sobre nós? É um mero ricochete de outras gerações ou a coisa vai bem além? A reflexão ganha ainda mais camadas quando a digital pessoal é tão marcada na vida profissional, como ocorre amiúde na atualidade, na grande maioria de setores e até classes sociais. O trabalho, então, por mais que mudanças teóricas, e até práticas, tenham acontecido, segue tendo muitas vértebras em nossas espinhas dorsais. 

Será que, no fim, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais?

Uma mudança notável e inegável é que as atividades que antes eram consideradas apenas hobbies, como gostar de filmes ou de games, agora podem ser encaradas como opções reais de carreira. Essa mudança de mentalidade, e realidade de mercado, permite que as pessoas busquem caminhos profissionais que estejam mais alinhados com seus interesses e habilidades, o que resultaria em uma maior satisfação e realização no trabalho — isso, claro, quando o bailado é feito sobre o campo da teoria. Por mais positivo que esse novo aspecto possa ser, a busca por uma carreira baseada em paixões e interesses também pode trazer um sem-fim de frustrações. Não vai ser toda vez que aquilo que se deseja vai ser alcançado, e se porventura isso acontecer, as expectativas nem sempre são atendidas. É a velha máxima do “cuidado com o que deseja, pois você pode um dia conseguir tudo”. A discrepância entre a realidade e as expectativas têm o poder de levar a um constante estado de insatisfação, criando um inquietamente interno psicológico que faz as pessoas estarem sempre em busca de algo mais, em busca daquela sensação de plenitude profissional, e pessoal, que muitas vezes é difícil de ser alcançada.

“Um dos problemas do mundo atual, onde estamos com nossos pés fincados, é que com tanta demanda, tanto excesso de informação o tempo todo, fica difícil encontrar espaço para o sentir — incluindo a felicidade ou o processo de descobrimento do que despertaria tal sentimento. Como encontrar espaço dentro de nós, e em nosso dia a dia, para que os momentos de felicidade possam existir? Ou para percebê-los?”, questiona a psicóloga. “Outro ponto é que mesmo aquilo que nos faz feliz vai dar trabalho, vai ter perrengues, dificuldades, restrições, escolhas.”

Jesse Einsenberg em “A nova vida de Toby”, minissérie da Hulu/Disney Plus

Lembra da frase “trabalhe com o que você ama e nunca mais precisará trabalhar na vida”, atribuída a Confúcio? Ela reflete uma noção completamente idealizada de que se pudermos fazer o que amamos, o trabalho se tornará uma fonte contínua de felicidade e satisfação. Acordar vai ser fácil, enfrentar o trânsito não vai doer, passar horas infindas na labuta vai ser mole. Convenhamos que Confúcio, ainda que no auge de sua sabedoria, nada sabia sobre levantar cedo para trabalhar. Estima-se que o filósofo chinês viveu no mundo que antecedeu Cristo, séculos e mais séculos atrás. No entanto, essa perspectiva otimista segue sendo amplamente divulgada e incentivada, muito embora não responda mais ao que entendemos por mundo há um bom tempo.

Que justiça seja feita, há perfis por aí, populares e conscientes, que questionam tais platitudes, como o Obvious aqui no Brasil. No geral, transmitem mensagens empáticas sobre trabalho, autoestima, as dificuldades enfrentadas diariamente por mulheres e tantos outros temas importantes. É necessário que esse contraponto exista para que se enfrentem as visões idealizadas e crie nas pessoas a sensação de que está tudo bem caso alguma coisa dê errado nas suas respectivas buscas por satisfação pessoal e profissional. É uma questão de perspectiva: a frase de Confúcio, dependendo de quem a encara, pode ser vista como “trabalhe com o que você ama e, assim, você trabalhará 24 horas por dia”. Ela expressa um ponto de vista mais realista, destacando que se dedicar exclusivamente ao trabalho que amamos pode levar a uma imersão constante, onde a linha entre vida pessoal e profissional se torna tênue.

Enquanto a primeira versão da frase sugere que a paixão pelo trabalho elimina a sensação de estar trabalhando, a segunda versão aponta para a possibilidade de uma sobrecarga e de sacrificar outros aspectos importantes da vida. É importante reconhecer que, mesmo em uma carreira apaixonante, haverá tarefas menos agradáveis e pressões profissionais. E, acima de tudo, haverá o compromisso, a responsabilidade, que, por si só, já têm um peso diferente. Assistir a um filme é uma coisa, assistir a um filme e ter que escrever sobre ele é outra; ter uma banda é uma coisa, ter que compor um número razoável de novas canções dentro do prazo e fazer 25 shows ao mês é outra. E por aí vai. Nem mesmo seguindo as vocações que respondem ao mais espiritual dos ensejos, por exemplo, impedem que os burnouts aconteçam.

“Correr não adianta”, analisa Thais Andrade, “precisamos de pausas. É nessa brecha que podemos, quiçá, encontrar opções criativas e mais saudáveis para sairmos do lugar. Porém, descer da esteira que nos faz correr e não nos tira do lugar implicará em lidar com a realidade externa e com nós mesmos. Isso inevitavelmente vai gerar sofrimento, mas também será uma oportunidade de desenvolvimento pessoal. Quando nos olhamos, além de nos depararmos com nossas limitações, também podemos nos deparar com nossos potenciais, a depender do quanto é possível tolerar a dor que a realidade nos impõe.”

“Em complemento”, finaliza ela, “estamos na era da positividade excessiva, em tempos em que a Fake News do ‘tudo é possível e está a seu alcance’ circula das mais diversas formas pelas redes sociais. Se por um lado, a geração Z se opõe ao modelo de trabalho excessivo das gerações anteriores; por outro, também são estimulados a fazer aquilo que amam e a seguir seus sonhos. Cabe destacar, porém, que o véu do excesso de positividade pode turvar a visão e deixar o coração iludido.”

O pessimismo recorrente em algumas gerações pode ser atribuído em parte à percepção de que alcançar a felicidade plena no trabalho pode ser uma expectativa irrealista. É importante lembrar que a felicidade não é exclusivamente derivada do trabalho. Outras áreas da vida, como relacionamentos e tempo livre, obviamente também desempenham um papel significativo no bem-estar geral. Em vez de buscar incessantemente a perfeição e a felicidade total no trabalho, é mais realista e benéfico buscar um equilíbrio saudável, encontrar propósito nas atividades profissionais e também valorizar os momentos de descanso e cuidado pessoal. 

É como diz Issa, protagonista de Insecure (2016-2021), série que, dentre muitos temas, lidou muito bem com as complexidades do trabalho na vida atual, especialmente quando ele se mistura com a vida pessoal: 

“Eu sou uma bagunça. Mas uma bagunça que está aprendendo a lidar com os seus problemas.”

“Insecure”, série da HBO. Foto: Reprodução

1Thais Fonseca de Andrade, psicóloga clínica e psicanalista em formação pelo Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Mestre em Ciências (USP) e Especialista em Psicoterapia Psicanalítica (USP) ([email protected]).