Domingo à tarde. Ao sentar para conversar via zoom com Pedro, sou lembrado de que, para além do estardalhaço das buzinas e britadeiras — alarido desse cenário paulistano pelo qual sou envolto —, a vida no litoral canta ao próprio diapasão. A lembrança vem sem esforço, assim que bato o olho na câmera que acabou de ser aberta e escuto no fone um barulhinho de onda tímido ao fundo.
Apesar de jamais ter manuseado um estetoscópio, a mim fica claro que esse som marítimo é o que se ausculta do peito de Pedro Perdigão. É por isso que ele próprio diz que vive no Rio de Janeiro, mesmo quando distante dele. Desde suas primeiras impressões de mundo, tem o mar como habitat natural, subindo nessa onda por influência do pai, que via na prática do surfe uma espécie de louvor. Daí em diante, a relação entre Pedro e o mar se tornou praticamente simbiótica — em suas andanças profissionais como editor de revista, diretor criativo e colaborador artístico múltiplo, tomou a forma de culturas diferentes como se água fosse. Ao adaptar-se ao contexto com o máximo de respeito, de maneira quase reverenciosa, nadou sempre com a adaptabilidade típica do mar.
Assim como o chá que vira a xícara de porcelana ou o suco que se transforma na jarra de vidro, deixa de lado as próprias perspectivas para se amalgamar ao cenário. É assim que, apaixonado por observar e entender diferentes visões, Pedro perscruta comportamentos a partir de pequenos instantes, aqueles que são pequenos o suficiente para serem vastos e grandiloquentes. Na ponta do arco-íris dessa jornada, encontrou uma grande paixão por construir atmosferas por meio de imagens.
Mas como de fato chegar ao centro dessas atmosferas, que muitas vezes acabam rodeadas por delimitações manufaturadas pelo olhar externo? Seu processo de captação propõe o derretimento dos entornos, de maneira tal que, despindo-se de qualquer protagonismo, não é mais Pedro que registra ali ou lá, é o espaço e a narrativa que ditam os passos. Estamos falando de reações — nunca conclusões — àquelas realidades.
O mar não pode ser controlado, e Pedro o abraça com o surfe. O mesmo vale para as culturas: longe de querer interferir, ele as abraça ao absorvê-las e por elas se deixar ser absorvido.
Para a capa desta edição, apresentamos sua série Azul no Zênite.
Registros de uma energia ardente, com corpos inundados nos enigmas de suas próprias presenças. Para evocar a beleza dessas indefinições, os cenários livres e turvos — quase sempre solares, marítimos e celestes —, fazem-se indispensáveis. E sim, me confirma Pedro quando o questiono, há muito vermelho no zênite desse azul. Constrói-se, assim, um universo à flor da pele, em que o azul se faz presente como um fluxo entre presença, desejo, frequência, imaginação e corpo. No meio de tudo, claro, há uma presença mística e misteriosa que remete à Iara, a Mãe d’Água, também em roupagem cálida.
“Mistério”, aliás, talvez seja a palavra-chave para desvendarmos essa equação artística, descobrindo afinal que aqui não existe uma resolução. Com o vermelho num tom mais baixo, as imagens estão submersas também em escuros, cujas ranhuras ressoam a frequência vulnerável do mar.
Pedro então me mostra o poema Noturno, de Ariano Suassuna (1927 – 2014), que mais parece um manifesto de Azul no Zênite. Curiosamente, num desses acasos da vida, a leitura só aconteceu depois das imagens estarem prontas. Muito embora seja de 1945, quase oitenta anos atrás, e marque a estreia literária do autor de O Auto da Compadecida, aos dezoito anos, o texto contém passagens que abrem diálogos surpreendentemente diretos entre as obras e suas épocas.
Têm para mim Chamados de outro mundo
as Noites perigosas e queimadas,
quando a Lua aparece mais vermelha
São turvos sonhos, Mágoas proibidas,
são Ouropéis antigos e fantasmas
que, nesse Mundo vivo e mais ardente
consumam tudo o que desejo Aqui.
Com esses versos de abertura, à semelhança de Perdigão, Suassuna chama à ribalta toda a complexidade e misticismo que vêm da sobreposição daquilo que, num primeiro momento, é ameno — como a noite, a lua, os sonhos —, mas que também é queimado, ardente e vermelho. Os ecos entre as temáticas acerca de dualidades e divisões esfumaçadas, assim como os símbolos usados para elaborar sobre elas, misturam-se para criar uma ponte entre Recife e Rio de Janeiro, realidade e fantasia, vermelho e azul, zênite e nadir, dia e noite, vida e morte, 1945 e 2022.
Deixa que teu cabelo, solto ao vento,
abrase fundamente as minhas mãos…
Mas, não: a luz Escura inda te envolve,
o vento encrespa as Águas dos dois rios
e continua a ronda, o Som do fogo.
Ó meu amor, por que te ligo à Morte?
Assim termina Noturno, assim começa Azul no Zênite.
Me despeço e, naqueles breves momentos ligeiramente desconfortáveis em que procuramos os botões de desligar, ouço barulhos ondulantes chegando da janela e inundando a tela à minha frente.
Eis a vida na frequência do mar. Pedro está em casa.