Menino do rio, de Luiz Zerbini (1988), na exposição Paisagens Ruminadas, retrospectiva do pintor no CCBB Rio. Foto de Pat Kilgore.

“Para pintar, é preciso estar em pé no campo, pisando o capim com o olhar vago, fixo no horizonte, e triturar involuntariamente paisagens, sonhos e memórias.” É com tal evocação visual que Luiz Zerbini nos convida a adentrar seu processo criativo, um emaranhado estético em que viver significa ruminar paisagem. O conceito está no coração da exposição Paisagens Ruminadas, a primeira grande retrospectiva do artista no Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro. Até 2 de setembro de 2024, o público terá a oportunidade de mergulhar nos quase 50 anos de trajetória de Zerbini, figura central da Geração 80 da arte brasileira.

Chuva de verão Santo Antônio (2020). Foto de Pat Kilgore

Sob a curadoria de Clarissa Diniz, a exposição ocupa o primeiro andar do CCBB, reunindo 140 obras distribuídas em cinco núcleos temáticos. Algumas dessas obras nunca foram exibidas antes, incluindo uma instalação criada especialmente para a exposição. Acompanhar esses cinco núcleos proporciona uma viagem visual e sensorial pelo universo multifacetado e inovador de Zerbini.

Maré alta – Mangaratiba 1 (2021). Foto de Pat Kilgore

“Como a paisagem é um conceito sociocultural”, comenta a curadora, “os paisagistas estão implicados num exercício interpretativo que é atravessado por transformações não apenas subjetivas, mas também sociais, públicas, históricas e políticas. Com Zerbini não foi diferente. Se nesses 50 anos de trabalhos vemos o artista amadurecer em âmbito pessoal, é também verdade que sua obra e o mundo que ela rumina igualmente se adensaram, abraçando um número cada vez maior de camadas, nuances, interesses, compromissos. Suas estratégias formais e plásticas — bem como seus assuntos e ambições — se transformam continuamente, não numa linearidade evolutiva, mas em espiralados desdobramentos. Um exemplo desse movimento é a dimensão alegórica de sua obra, aspecto presente nas icônicas obras em que, já nos anos 1980, retratou seus amigos artistas, e que foi, mais recentemente, retomada e transmutada na forma de alegorias históricas.”

Maré alta – Mangaratiba 2 (2021). Foto de Pat Kilgore

Luiz Zerbini nasceu em São Paulo, em 1959, e iniciou sua atividade artística no final dos anos 1970. É conhecido por pinturas de grande escala, com cores exuberantes e incursões no abstracionismo geométrico. Mas sua obra é um mosaico de inúmeras formas, cores e narrativas, advindas da inquietude e sensibilidade diante do mundo. Além de pintor, Zerbini é um artista multimídia, explorando os limites entre as artes visuais, a música e o cinema. Há quase 30 anos, ele integra o grupo sonoro Chelpa Ferro, junto com Barrão e Sergio Mekler, produzindo objetos, instalações, performances, shows e CDs.

Mar branco – Mangaratiba (2021).

Não à toa, a exposição inclui diversidade de suportes e estilos em cada um de seus grupos temáticos. “Por ter um caráter panorâmico”, nos lembra Clarissa, “Paisagens Ruminadas é uma exposição que tem o compromisso de apontar para a complexidade da obra de Zerbini. Como um artista criativamente inquieto, Luiz expressa sua paixão pela experimentação de técnicas e mídias, como também nutre um profundo respeito aos acidentes, aos improvisos e aos acontecimentos que, guiados mais pela agência da matéria e do tempo do que pela racionalidade do artista, terminam por produzir arranjos e soluções plásticas que trazem, para o corpo da obra, uma miríade de outros suportes e formas de fazer. É buscando ser fidedigna à pluralidade material e técnica da obra de Luiz Zerbini que a exposição convoca toda essa diversidade para o seu coração, que deixa de ser território exclusivo da vetusta pintura.”

Boipeba (2016).

O primeiro núcleo da exposição, “viver é ruminar paisagens”, afirma a centralidade da paisagem na prática artística de Zerbini. Sua paisagística transcende a pintura, manifestando-se em múltiplas linguagens e experimentações. Uma das obras de destaque é High Definition (2009), peça monumental que marca o retorno de Zerbini às pinturas figurativas após um período dedicado ao trabalho com o grupo Chelpa Ferro. Este núcleo ilustra como a paisagem, para Zerbini, é tanto uma fonte de inspiração quanto um método de experimentação contínua, além de ser uma metáfora para os fluxos, para as energias, para as relações que nos constituem e que, em certo sentido, escapam à nossa compreensão.

High Definition, de Luiz Zerbini (2009). Foto de Eduardo Ortega.

No segundo núcleo, “o lugar de existência de cada coisa”, são exploradas as estratégias de Zerbini para forjar os lugares de existência de sua obra. Ele combina tradições naturalistas com elementos fabulares, memórias e alegorias. A obra Mesa Mar (2017) exemplifica essa abordagem, trazendo para o espaço expositivo objetos que habitam suas pinturas, criando uma sensação de vertigem quando as coisas parecem fora de seus lugares naturais, transformadas em espectros ou fragmentos de si mesmas. Este núcleo também aborda reflexões sobre a morte e o luto, ampliando a dimensão poética e onírica da obra.

“As paisagens”, comenta Diniz, “são compostas pelo que se revela aos olhos, mas também por sons, temperaturas, texturas, cheiros, dentre outros aspectos sensíveis que são radicalmente irredutíveis ao olhar. Há, ainda, presenças da ordem do invisível, como memórias, fungos, espíritos, etc. Nesse sentido, para ‘representar’ paisagens — ou, talvez mais precisamente, evocá-las —, Zerbini tem recorrido a estratégias que vão além do naturalismo do cânone europeu do gênero da paisagem. Sua obra tem se aproximado cada vez mais de problemas tais quais: ‘como evocar o vento?’, ‘como testemunhar, na pintura, a inseparabilidade dos muitos seres que compõem uma mata?’, ‘como fazer ressoar o som das folhas?’, ‘como tangenciar a luz que faz tudo vibrar?’, e por aí vai… Para lidar com esses problemas, o artista tem experimentado e inventado formas de representar que vão além da perspectiva linear, da distinção entre figura e fundo, da matização cromática, dentre outras prescrições naturalistas.”

Primeira Missa (2014). Foto de Jaime Acioli.

No terceiro núcleo, “da natureza alegórica da paisagem: Massacre de Haximu e Primeira Missa”, a retrospectiva destaca a vocação histórica da ruminação paisagística. As pinturas alegóricas revisitam a história brasileira, combinando signos e personagens em grandes composições que desafiam narrativas oficiais e avivam memórias de resistência e insurgência. As obras que dão nome ao núcleo, Massacre de Haximu (2020) e Primeira Missa (2014), confrontam iconograficamente a violência social que caracteriza a constituição colonial do Brasil, oferecendo uma leitura crítica e renovada da história nacional.

Massacre de Haximu (2020). Foto de Pat Kilgore.

O quarto núcleo, “eu paisagem”, desafia a dicotomia cartesiana entre o eu e o outro, a natureza e a cultura. Obras como Paisagem inútil (2020) exploram as inter-relações entre o retratado e o retratante, reconhecendo que a subjetivação é inerente aos territórios, objetos e elementos naturais. Este núcleo também investiga esquemas formais e ontológicos de culturas não-ocidentais, como os kenes Huni Kuin e os tecidos Batik, da Indonésia, que elaboram estéticas vinculadas à cosmovisões holísticas do mundo.

Paisagem inútil (2022). Foto de Pat Kilgore.
Eu paisagem (1998). Foto Vicente de Mello.

O último núcleo, “não é só sobre o que se vê”, estende a inscrição paisagística de Zerbini para além das referências visuais, incorporando leituras sonoras, espaciais e rítmicas. Em Miragem (2004), a paisagem se mescla com a geometria e a musicalidade, refletindo a intensa colaboração do artista com o Chelpa Ferro. Aqui, a arte de Zerbini é apresentada como uma experiência sensorial completa, onde o visual se funde com o sonoro, o espacial e o vibrátil.

Paisagem digital (2003). Foto de Vicente de Mello.

Sobre a integração da sonoridade e musicalidade na obra de Zerbini, a curadora observa: “Nele [no núcleo “não é só sobre o que se vê] vemos obras que lidam com a representação de instrumentos e outras tecnologias musicais (Paisagem digital, 2003) e com a alusão visual a ritmos (Frevo, 2019); brincam com a representação gráfica do som (Miragem, 2004) ou exploram a dimensão visual das ondas, frequências e outras instâncias vibráteis (Frequency of human hearing, 2017), bem como tem, ainda, uma peça (Chuva) que, composta junto ao Chelpa Ferro, é ela mesma uma fonte de emissão sonora.”

Após o CCBB Rio de Janeiro, Paisagens Ruminadas seguirá para o CCBB Brasília, de 17 de setembro a 10 de novembro de 2024, continuando a oferecer ao público a oportunidade de mergulhar nessa paisagem poética. 

Autorretrato (2024), de Luiz Zerbini. Foto de Pat Kilgore.

“Como tem reiterado Zerbini”, relembra Clarissa Diniz, “uma retrospectiva tem a capacidade de oferecer, aos públicos e ao próprio artista, a possibilidade de (re)ver obras que foram pouco exibidas em diálogo com aquelas mais icônicas, que costumam identificar uma poética. Ao fazê-lo, permite uma visada geral sobre o trabalho e suas transformações: perspectiva cuja generosidade costuma ser de fato relevante para a compreensão de uma obra. Esperamos que Paisagens Ruminadas possa trazer essa contribuição através da articulação de trabalhos de épocas, linguagens e intenções distintas em torno da ideia da ruminação, o operador conceitual da mostra que é, ao mesmo tempo, uma chave bastante útil à navegação por entre a complexa e ampla produção de Luiz Zerbini.”

sem Título / “Prata e Rosado” (1999).

Clarissa Diniz é curadora da exposição Paisagens Ruminadas, escritora e educadora em arte. Graduada em artes pela UFPE, mestre em história da arte pela UERJ e doutoranda em antropologia pela UFRJ, Diniz traz um olhar sensível e profundo para a obra de Zerbini. Seu trabalho no Museu de Arte do Rio e em diversas exposições, como Histórias Brasileiras no MASP, destaca sua habilidade em matizar o protagonismo de artistas contemporâneos, revelando as múltiplas camadas de suas criações.

Se, em um primeiro momento, o gesto de folhear livros, enciclopédias, álbuns de fotografias e revistas pode parecer uma ação simples, dependendo de quem executa, isso se torna tão complexo quanto o ato de desvendar um teorema. Em ambas as situações, trata-se de perceber para além das imagens que atravessam a retina, de conceber ideias mais à frente do que está dado; tal como olhar para o céu e enxergar não apenas as estrelas, mas todo o movimento cósmico que as articulam. Pois, enquanto matemáticos resolvem problemas com números, artistas criam problemas com imagens. É com essa metáfora que se inicia um dos muitos caminhos que se tem para adentrar a obra de Nino Cais.

Partindo da compreensão de que tanto a arte quanto a matemática são disciplinas do enigma, pode-se dizer que a produção de Nino Cais se encontra mais perto do que se crê do pensamento matemático. Isso não quer dizer que ele trabalhe literalmente com essa linguagem, longe disso. Ao observar sua produção, sobretudo aquela voltada para a técnica da colagem, é possível notar o interesse nato do artista pelo mistério e por tudo aquilo que tange o campo simbólico das formas. Se um matemático busca com números, letras e símbolos dar contorno a um buraco negro, por exemplo, por que um artista não poderia querer materializar sua existência?

Insistir na experimentação e na ampliação do “horizonte da geometria” ao encontro das imagens que habitam o mundo, mesmo quando não é possível vê-las, são alguns dos procedimentos que percorrem o ato criativo de Nino Cais. Pode-se dizer que a curiosidade e a obsessão em desvendar o enigma das representações imagéticas são o que mantêm viva sua prática. Trabalhando exaustivamente com a colagem, linguagem recorrente em sua produção, é possível observar como as fotografias de arquitetura, paisagem, obra de arte e corpo humano são os grandes protagonistas de seus cálculos matemáticos: estilete, tesoura e/ou simplesmente o gesto cru de amassar e dobrar o papel com as mãos são ferramentas de subtração e adição; cortar e colar são sinônimos de divisão e multiplicação.

Desse modo, o resultado de suas colagens varia conforme o problema dado pelas imagens que por ele são apropriadas. Entretanto, a lógica de como resolvê-lo é algo próprio e intrínseco ao artista. Assim, a identificação do autor não se dá pelo enunciado do problema, mas pela maneira como ele é solucionado. Tornar perceptível aquilo que não existe é a grande questão de Nino Cais, que a desvenda com uma fórmula simples, porém complexa: menos com menos é igual a mais. Finalmente, seu teorema calcula a compreensão da falta enquanto presença, do espaço vazio enquanto espaço cheio, por mais que este pareça estar cheio de vazios.

Nas palavras do artista: “Eu gosto muito da entrada da luz, do branco na imagem. Se a gente pensa em imagem, antes de mais nada é preciso lembrar que ela é um código cerebral, que o que vemos não é exatamente o que vemos. Tem um transmissor aí, um flash, que é o que se reconhece. O branco é um pouco esse espasmo, essa abertura que a gente tem entre ler a imagem e o que ela é, como um intervalo que se dá para construí-la”.

Não é de se surpreender a proximidade do pensamento do artista com outros matemáticos, como, por exemplo, Leonhard Paul Euler (1707–1783). Conhecido por criar a Identidade de Euler (ei π + 1 = 0), historicamente famosa por sua beleza, o matemático utiliza o i como uma unidade imaginária. Em outras palavras, é possível compreender os espaços em branco presentes nas colagens do artista como uma luz que guia o olhar de quem as contempla, convidando para ver além das imagens dadas, ativando outras conexões, próprias dessa apreciação. Um espaço em branco que, na equação de Euler, poderia ser lido como um número imaginário.

O que se tem, então, é um branco-luz, um branco-prisma, um branco-respiro, um branco-pensamento, que reseta, redefine e rearranja a ordem das coisas. São, enfim, colagens que falam também de outras possibilidades de lidar com a ausência que atravessa a vida em seu sentido amplo e profundo; desde sua concepção econômica, material, política e social até sua percepção emocional e simbólica. São trabalhos que anunciam a falta por meio de sua presença, da possibilidade de poder imaginar ao se deparar com um espaço em branco a ser preenchido.

A coexistência entre a presença e a ausência parece ser a chave para se adentrar aquilo que poeticamente se chama o Teorema de Nino Cais. Um teorema que se dá no campo do simbólico, que se propõe a agir na subjetividade e “abrir espaço” na mente de quem o vê. Um teorema que vem ao mundo por meio das artes visuais, que atua cognitivamente naquilo que é próprio do sensível. Um “teorema-imagem”, que sempre apresenta uma área em branco, pois é aí onde Nino Cais guarda seu enigma.