Tanto Israel quanto a França vêm sendo palco de manifestações populares relevantes, cada semana mais divulgadas pelos noticiários ao redor do mundo. Em Israel, as reivindicações gritam contra a reforma judicial proposta pelo primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu; na França, a voz popular está contra a reforma da Previdência, uma das principais pautas do presidente Emmanuel Macron. Na medida em que as ruas dos dois países recebem mais e mais protestos — sim, com a violência infelizmente se fazendo presente —, os estadistas em questão seguem um tanto distantes do vozerio, respondendo a tudo com certa indiferença, a despeito das proporções enormes que as ondas de protestos tomaram. 

Casa do Senado francês.

Antes de nos darmos conta, por essas e outras, adotamos uma atitude cética quanto à real participação popular nas decisões políticas do Estado.

Em uma democracia participativa, os cidadãos são ativamente envolvidos no processo de tomada de decisão política, seja por meio de votação, debates, consultas populares, audiências públicas, fóruns e outros mecanismos de participação popular. Em muitos países, a democracia representativa tradicional tem sido criticada por não conseguir representar de forma adequada as necessidades e desejos da sociedade, especialmente de grupos minoritários ou marginalizados. Um equilíbrio entre a representativa e participativa, em tese, teria o poder de aumentar a confiança dos cidadãos nas instituições políticas e a construir uma sociedade mais inclusiva. Como garantir que todas as vozes sejam ouvidas e que as decisões sejam tomadas com mais de um grupo social em mente? O conceito de democracia parece divergir se analisarmos suas aplicações em diferentes contextos político-sociais, cada qual com seus conflitos e divisões. 

Se cada um tem a sua, do que é feita uma democracia? E do que é feito o espírito político de um país?

“do que é feita uma democracia?”

Alguns países são mais politizados do que outros e existem várias razões para isso. Primeiro, e possivelmente antes de qualquer outro fator, temos o histórico específico daquela nação — ainda que seja difícil, ou quase impossível, compreender totalmente de que maneira o passado vai se reverberando por entre as épocas. A verdade é que ele não vai só passando, como também se alterando. Se um país teve uma longa tradição de democracia e participação política, por exemplo, talvez seja mais provável que seus cidadãos estejam envolvidos em assuntos políticos.  Por outro lado, se um país teve uma história de autoritarismo e instabilidade política, talvez haja menos interesse e participação política. O “talvez” é a palavra-chave. Não é verdade que países mais desenvolvidos economicamente tendem a ter mais recursos para investir em educação, mídia e outras formas de envolver a população em assuntos políticos? Sim. E que, além de, dotados de todo o desenvolvimento, esses cidadãos têm mais acesso à informação e podem, assim, criar mais naturalmente um senso crítico em relação ao governo? Sim. Mas nada garante que as linhas dessas digitais serão assim ou assado. O que não quer dizer que devemos ignorar esses ou outros indicativos. 

Populações de países com maior liberdade política, incluindo liberdade de imprensa e de expressão, são mais propensas a serem mais politizadas, já que, em um contexto no qual as pessoas sentem que têm voz e poder para influenciar a política, elas tendem a se envolver mais. O mesmo acontece em países com maior polarização, por se tratar de uma pauta rotineira e difundida: guardadas as devidas proporções, é como quando somos pequenos brasileiros e nos sentimos forçados a dizer para que time de futebol torcemos, Palmeiras ou Corinthians, Flamengo ou Fluminense. Quando as questões são controversas e polarizadas, as pessoas tendem a se identificar mais fortemente com um lado ou outro e se mobilizar para defender seus pontos de vista. 

Se os “propensas a…” e os “tendem a…” deixam clara a imponderabilidade, as conjunções de cada caso deixam claros os caminhos a serem seguidos. Tomando como referência a história da França, por exemplo, não precisa de muito para que logo se veja um espírito democrático aflorado. 

Por mais que se questione o lugar-comum que nomeia o país como o “berço da democracia”, é inegável que se trata de uma cultura política que valoriza e naturaliza manifestações populares contra medidas do governo ou seja qual for o tema social. Só na última década, podemos citar vários protestos que aconteceram na França, como em 2016, quando o governo francês propôs uma reforma trabalhista que, entre outras coisas, tornaria mais fácil para as empresas demitir funcionários e facilitaria a negociação de acordos de trabalho. Ou, então, como em 2018, quando ocorreram as manifestações dos coletes amarelos, um movimento espontâneo de pessoas vestindo coletes e protestando no país todo contra o aumento dos impostos sobre combustíveis e os custos de vida em geral. 

Podemos até citar os protestos contra a reforma da Previdência de 2019 — opa, bateu um déjà vu aí? Já no final daquele ano, o governo francês propôs uma reforma vista como uma ameaça aos direitos trabalhistas. Agora, pela segunda vez em pouco tempo, a população francesa testemunha um aumento na idade de aposentadoria: o objetivo da nova lei previdenciária é, de maneira gradual (mas rápida), subir a idade de 62 para 64 anos, até 2030. A última mudança havia sido recente, em 2010 — antes disso, a idade de aposentadoria era 60. A reforma também adianta para 2027 a exigência de contribuir 43 anos para obter uma pensão, e não 42 anos como acontecia até agora. Além disso, a nova lei elimina os privilégios de aposentadoria de alguns funcionários do setor público, como os trabalhadores do metrô de Paris. Os protestos e greves de setores trabalhistas vêm acontecendo desde 19 de janeiro, quando a proposta foi apresentada. Desde então, centenas de milhares de pessoas se mobilizaram e foram às ruas — o que, ao menos por ora, tem se mostrado insuficiente

Knesset, o parlamento de Israel.

No caso de Israel, que também vive um contexto conturbado, basta uma rápida passada de olho pelas últimas décadas para perceber que as manifestações políticas, assim como na França, fazem parte do gene da população. A polêmica e infindável questão da Palestina decerto exerce influência sobre esse aspecto, uma vez que a mentalidade das pessoas israelenses é cultivada com a normalização de protestos, tendo os seus respectivos eu-políticos lembrados constantemente. Não é difícil encontrar exemplos recentes: em 2019, milhares de israelenses protestaram contra a crescente violência em comunidades árabes do país e pediram ações do governo para combater o crime; em 2018, manifestações em Tel Aviv gritavam contra a lei de imigração de Israel, que muitos argumentaram ser discriminatória contra os refugiados africanos. Os protestos populares são um aspecto importante da vida política em Israel e, com a reforma judicial israelense de 2023, não está sendo diferente. 

O plano apresentado pelo vice-primeiro-ministro e ministro da justiça, Yariv Levin, com o apoio do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, tem como objetivo mudanças fundamentais no ordenamento jurídico de Israel. Alguns aspectos da proposta dão ao governo influência decisiva sobre a escolha de juízes, além de impedir que a Suprema Corte do país revise leis aprovadas pelo Parlamento. A medida é considerada controversa por causa do sistema político de Israel, que não tem uma Constituição formal e usa leis básicas para definir o papel das instituições e Poderes. O parlamento teria o poder de anular as decisões da Suprema Corte por maioria simples, além de dar ao governo o poder de nomear juízes — algo que, atualmente, fica a cabo de um comitê composto por juízes, juristas e políticos. A reforma judicial é uma das principais apostas do governo Netanyahu. Porém, em meio à gigantesca onda de protestos, que dura praticamente 3 meses e parece não ceder, anunciou na última segunda-feira de março (27) uma pausa no andamento do projeto de reforma.

É claro, no entanto, que a criação de uma cultura política é um processo complexo e que nem sempre se serve de uma leitura linear. A espinha dorsal de uma nação é composta também pelo intangível. O que dizer do famoso paradoxo político argentino? Talvez não exista exemplo melhor para ilustrar a contradição que muitas vezes faz parte da construção da política de um país. Na Argentina, ao mesmo tempo em que há uma forte tradição que valoriza a democracia e a participação popular, mas, há também uma curiosa tendência histórica de líderes populistas autoritários que governam com mão de ferro.

“a criação de uma cultura política é um processo complexo e que nem sempre se serve de uma leitura linear”

Durante grande parte da história argentina, houve um forte apelo popular por governos que prometiam justiça social e participação democrática, como foi o caso do Movimento Nacional Justicialista, mais conhecido como peronismo, um movimento político fundado nos anos 1940 pelo então presidente argentino Juan Domingo Perón. No entanto, muitos desses governos populistas também foram caracterizados por um estilo autoritário e uma concentração de poder em torno de uma figura carismática — caso do próprio Perón e sua esposa, Evita —, o que levou a períodos de repressão e violência política. O paradoxo político argentino se tornou evidente em várias ocasiões históricas, como durante a ditadura militar que governou o país entre 1976 e 1983. Desde a redemocratização do país na década de 1980, a Argentina tem passado por altos e baixos em sua história política, com governos mais populistas e autoritários e outros mais democráticos e reformistas.

Quando comparamos a Argentina ao Brasil, vemos similaridades e diferenças, cada qual com seu jeito latino de ser. Da tradição política mais fragmentada, com muitos partidos políticos e ideologias diferentes, nem sempre se vê com bons olhos os protestos de rua no Brasil. Eles existem, claro, mas, pela difusão de ideais, existem em proporções humildes e raramente em escala nacional. Numa lógica mais polarizada, a Argentina tem uma longa história de confrontos entre o peronismo e o antiperonismo, e acaba gravitando em torno de greves e mobilizações sindicais. Os dois países tiveram períodos de governos militares autoritários, mas a forma como a transição para a democracia ocorreu foi diferente: na Argentina, houve uma reação forte e prolongada contra a ditadura, além da busca profunda pela justiça e responsabilização pelos crimes cometidos; já no Brasil, a transição para a democracia foi mais calma e gradual, com menos esforços para julgar os crimes cometidos durante a ditadura militar. Em suma, de um lado temos 1985, filme com Ricardo Darín; do outro, temos a avenida Presidente Castelo Branco, uma das maiores de São Paulo. 

Os protestos populares seguirão reverberando aqui, ali, em espanhol, português, francês, hebraico, nesta e em qualquer outra época. Isso é fato. A constituição histórico-cultural de cada canto há de definir os comos e porquês

O poder do povo na política é um conceito que remonta às origens da democracia, onde a voz do cidadão comum era tão importante quanto a dos líderes. No entanto, ao longo dos anos, tornou-se cada vez mais evidente que a influência dos mais poderosos muitas vezes vence os interesses da maioria. No mundo ideal, viveríamos onde os governados não temam falar e os governantes não temam ouvir. Mas não é bem assim. A riqueza e o poder político são recursos que muitas vezes estão nas mãos de uma pequena elite, que tem acesso aos corredores de poder e aos tomadores de decisão. A capacidade dos mais poderosos de moldar o processo político em seu favor muitas vezes resulta em políticas que beneficiam a eles próprios e prejudicam a maioria. Muitas pessoas acreditam que a política é corrupta e que as mudanças reais são difíceis de serem alcançadas por meio dos mecanismos democráticos tradicionais. Mas a descrença e o desencanto com a política, que desestimulariam a participação em protestos, não foi o bastante para impedir o atual contexto conturbado de Israel e da França. 

“ao longo dos anos, tornou-se cada vez mais evidente que a influência dos mais poderosos muitas vezes vence os interesses da maioria”

Com a crescente conectividade e o avanço tecnológico, a democracia participativa pode se tornar ainda mais acessível e eficaz. A internet e as redes sociais, por exemplo, possibilitam a participação de cidadãos em debates e consultas populares sem a necessidade de estar fisicamente presente. A democracia participativa — ou a ideia de uma democracia participativa — continua sendo relevante, e deve ser incentivada como uma forma de promover a inclusão cívica e a justiça social.

Do que, afinal, a democracia é feita? Sobretudo, de força de vontade. De muita força de vontade.

Um dos fatos relevantes nas eleições ocorridas no Brasil, nesse ano de 2022, foi a emergência de agentes religiosos como protagonistas do jogo político. A participação de líderes, destacadamente pastores e pastoras das igrejas cristãs protestantes neopentecostais, para influenciar e controlar o voto dos fiéis e o alinhamento quase automático da maior parte desses cidadãos à candidatura de extrema direita tornou-os definitivamente protagonistas do jogo e da disputa eleitorais. Esse estado de coisas foi alvo de críticas por parte dos que se incomodaram com a instrumentalização da religião, da Bíblia e do cristianismo na luta política. No entanto, o envolvimento de religiosos e da religião com os jogos do poder no Brasil não é fato novo da história desse país, nem estranho da sociedade brasileira.

A chegada dos portugueses às terras que viriam a ser nomeadas de Brasil é ilustrada, entre outros caracteres, pela cena da missa celebrada por Henrique Coimbra, padre e bispo português. A tela, produzida em 1860, foi inspirada na Carta de Pero Vaz de Caminha, elaborada mais de três séculos antes, enriquece a iconografia da presença religiosa católica como aliada inseparável do projeto político de conquista, desbravamento e introdução da civilização europeia em terras do novo mundo. A formação das cidades, a construção das instituições e das estruturas de poder político no Brasil não podem ser compreendidas sem a influência que sobre todas elas exerceu a Igreja Católica, seja no período do Brasil Colônia, seja no do Império e na República. Recordemos que, na abertura de nossa primeira Constituição, de 1824, a do Império do “Brazil”, anuncia-se o texto em nome da Santíssima Trindade e, no Artigo 5°, está escrito: “A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio”. 

Isso não queria dizer, contudo, que outras religiões, também de matriz europeia, não tivessem já deitado suas raízes sobre essas terras. O reconhecimento de sua presença na Constituição do Império se afirmava com a restrição de sua atuação pública, fora dos templos e do culto doméstico. 

O caminho de ingerência sobre os assuntos do poder e de controle das instituições políticas segundo os interesses religiosos esteve franqueado à Igreja Católica no Brasil, pelo menos até a Proclamação da República. A instauração da Constituição liberal de 1891 marcou a intenção de distanciamento entre religião e Estado. Nela se proibiu tanto aos Estados quanto à União “Estabelecer, subvencionar, ou embaraçar o exercício de cultos religiosos”. Em 1926, na mesma Constituição, o Estado permitiu que “Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim adquirindo bens”. O reconhecimento do exercício público da religiosidade legitimava a pluralidade, embora estivesse quase limitada ao universo do cristianismo. 

As religiões de matriz africana, como o Candomblé, e as originadas do sincretismo afro-brasileiro, como a Umbanda, mantiveram-se em posições sociais e políticas marginais ainda ao longo do século XX. Pelo fato de serem reconhecidas em comunidades onde predominava a população negra, a sua visibilidade pública se tornou mais presente quando líderes e instituições religiosos se aliaram aos movimentos de luta pela defesa dos direitos civis da negritude. Apenas no início do século XXI, o preconceito nas instituições políticas e civis em relação aos cultos e à predominância de cidadãos negros começou a ceder espaço às demandas por maior participação pública e político-institucional desses grupos.

Pode-se considerar a Constituição de 1988 o marco legitimador dessa emergência de uma religiosidade mais plural e pública. Embora não esteja dito com todas as letras que o Estado brasileiro é laico, nela está escrito no artigo 5° que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. O fato de que outros direitos civis estejam afirmados na mesma Carta legitimou a participação secular, civil, política e pública como um elemento inerente e inquestionável à condição do cidadão identificado aos princípios, dogmas, regras e tradições religiosos, quaisquer que sejam eles.

A laicidade, ainda que tenha sido um princípio norteador do espírito dessa Carta Constitucional, não implicou o afastamento das religiões da visibilidade e do envolvimento com os temas de interesse público. Se a religião católica tomou parte nas articulações e na vida política do país desde a chegada dos portugueses, por que não as demais denominações cristãs, aquelas tradicionais de matriz africana, entre outras, não poderiam se fazer vistas e ouvidas em pleno século XXI?

De fato, a separação rígida da religião como um fator de influência sobre a vida pública e civil, as instituições e os poderes políticos das sociedades tem se mostrado menos efetiva, mesmo em sociedades nas quais a laicidade constituiu um princípio fundante e estruturante do Estado. A França, em razão da Revolução de 1789, fez da separação entre Igreja e Estado, religião e poderes políticos, um princípio inarredável para a construção da República. Outros países de tradição protestante, como a Inglaterra, optam por entender a laicidade do Estado atribuindo à autoridade política suprema a primazia sobre a autoridade religiosa. 

No Brasil, a laicidade do Estado é uma noção ainda pouco enraizada social e politicamente. A construção de uma experiência singular da laicidade em sintonia com a história do país, de sua sociedade e de suas instituições é um processo complexo. Ele envolve a manifestação pública da imparcialidade do Estado em face de conflitos do campo religioso. Da mesma forma, ao Estado não caberia se inclinar em suas decisões, formulações políticas e atuação públicas em favor desta ou daquela orientação religiosa. Em face dessa noção, como entender o processo político que se deu nas eleições dos governos estaduais e federal no Brasil de 2022?

A junção entre interesses religiosos e objetivos políticos evidenciou não apenas que a religião pode ser utilizada como instrumento de luta pelo poder político, mas também a intenção de colonização do poder e das instituições públicas foi e é um propósito divulgado à luz do dia por autoridades e representantes religiosos de vários matizes. Inúmeros eventos houve em igrejas católicas e protestantes nos quais os líderes religiosos orientavam, quando não determinavam, o voto dos fiéis em favor de candidaturas específicas. De outro lado, se viram fiéis recriminando padres e religiosos que se manifestavam em favor de certas posições políticas inaceitáveis como: a defesa do armamentismo como fator de pacificação da sociedade, a leniência dos poderes públicos em face da fome dos cidadãos, o silêncio das autoridades governamentais em relação ao massacre de populações indígenas e à devastação ambiental em curso no país. Pregações lastreadas em passagens bíblicas país afora evocaram o mais rasteiro maniqueísmo, que dividiu partidos, grupos políticos, autoridades e lideranças públicas em geral entre aqueles que encarnavam o bem e aqueles que exprimiam as forças do mal. Divisões no interior do catolicismo trouxeram à luz tanto a revitalização do integralismo e do tradicionalismo conservadores ancorados na Igreja do século XIX, assim como no seio do protestantismo se viram manifestar aliados do fundamentalismo original Norte-americano, do início do século XX. 

Aos religiosos identificados ao cristianismo que se alia aos pobres e denuncia os falsos tementes a Deus, àqueles que, piedosos, perdoam as ofensas e recriminam os ultrajes, aos que consolam os aflitos e não zombam da fragilidade e da miséria chocou a adesão explícita de pastores, padres e bispos ao bolsonarismo nu e cru. Nem mesmo a violação de direitos dos indígenas, dos quilombolas, das mulheres estimulada pelo governo Bolsonaro, nem a insensibilidade do presidente em relação aos mortos na pandemia ou a inoperância estatal nos momentos críticos dos hospitais abarrotados de cidadãos em desespero, nada disso demoveu tais religiosos do apoio insuspeito. Não se incomodaram, inclusive, com a identificação dessa autoridade – desacreditada mundo afora – ao Messias, o salvador, o escolhido.

Nos momentos mais tensos da campanha política, sobrepôs-se às propostas e aos debates políticos uma retórica de combate ao inimigo ancorada na linguagem bíblica. Uma plataforma muito suspeita de defesa da família tradicional foi divulgada por políticos atolados em episódios incontáveis que denunciavam a própria hipocrisia moral. Manifestações irascíveis contra a educação sexual nas escolas públicas, o ódio em relação às posições legítimas em defesa de direitos das mulheres, às questões de gênero, às demandas por igualdade de grupos LGBTQIA+ passaram incólumes às autoridades do judiciário responsáveis por julgar o preconceito e a ofensa. Houve até religiosos desejando a morte de cidadãos, fossem os empobrecidos vítimas da violência nas periferias das cidades, fossem as autoridades do Supremo Tribunal Federal de Justiça, fosse o candidato Lula.

Que interesses poderiam conduzir tais práticas tão flagrantemente ofensivas do cristianismo original? A adesão explícita protestante, inclusive de grupos tradicionais outrora zelosos para defender a decência moral, a esse bolsonarismo irascível se explica pela abertura de uma janela de oportunidade. Esteve, e ainda está, em jogo a disputa pela obtenção da hegemonia religiosa que, uma vez conquistada, poderá colonizar de vez as instituições do Estado, assim como as próprias noções de comum e de público, que balizam a percepção dos cidadãos acerca do que diz respeito ao Estado como instância estruturante do todo social e o que é próprio à esfera da vida privada.

Entre os fatores mais elementares da civilidade abalados nessa experiência de instrumentalização da religião no vale tudo pelo poder, está um dos pilares mais fundos que sustentam as democracias: a convivência respeitosa, equânime e paciente entre os diferentes cidadãos. O enraizamento e a sedimentação de uma experiência da laicidade são desafios inadiáveis que se apresentam à sociedade brasileira. Será inútil buscarmos uma noção essencialista que estabeleça uma forma para a sociedade no interior da qual ninguém se localize.  Para que a liberdade política, de pensamento e de manifestação da opinião sejam a pré-condição e os sustentáculos da liberdade religiosa, será necessário recuperarmos os exemplos vários em nossa história nos quais as religiões serviram de instrumentos em favor da exclusão: de homens e mulheres simplesmente identificados aos diferentes desalmados, aos inimigos, aos hereges, aos ímpios, aos indesejáveis. Apenas a experiência da laicidade vigilante face às intenções de colonização das instituições públicas por orientações religiosas específicas a favor da exclusão de outras orientações politicamente legítimas será capaz de nos recolocar nos trilhos da construção de uma sociedade democrática. Façamos por onde a fim de responder a esse tremendo desafio.

Na última década, a representação de minorias políticas na mídia se tornou um assunto com muito espaço e alguma tração. Muitos também apontam, no entanto, que a moeda da “representatividade” pode ser uma armadilha, valorizada de maneira isolada. Grandes corporações como a Disney estão mais do que dispostas a incorporar minorias como protagonistas, às vezes encenando narrativas de emancipação política, mas isso tende a se dar de uma maneira que suaviza conflitos e arestas. 

Do ponto de vista da crítica, a valorização do cinema negro, por exemplo, na forma de uma “tokenização” (para falar como o crítico e produtor Bernardo Oliveira), periga apenas estender o velho circuito de apropriação capitalista da criatividade popular, como tanto se fez no século XX com a música negra em particular. 

A bandeira da “representatividade” não pode ficar restrita a botar dentro da tela pessoas diferentes daquelas de sempre (ou, mesmo, a colocá-las por trás das câmeras). Tampouco pode ser reduzida a uma camada de conteúdo, em que qualquer narrativa de empoderamento seja vista como um gesto emancipador. A diversidade precisa alcançar todo o circuito, e não só a superfície, se quiser se fazer valer. 

Não sou exatamente um especialista nesta questão. O que estudo, além de literatura, é comunicação e tecnologia, teoria de mídia, o campo que alguns, como o inglês Matthew Fuller, chamariam de ecologia dos meios de comunicação. Essa é a dimensão que quero invocar aqui. 

Representar, afinal, não é só atuar, escrever, dirigir uma cena. Produtores, editores, donos de revista e jornal, todos estão implicados em gestos de representação. Não só estes, mas ainda programadores de plataformas, engenheiros de dados, gestores públicos, servidores de agências de controle. Se a nossa vontade é democratizar nossa comunicação, equalizar nossos canais culturais, a diversidade implicada do circuito precisa ser repassada de cabo a rabo. 

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O pensador canadense Marshall McLuhan disparou o campo anglo-saxão dos estudos de mídia nos anos 60 propondo que o “o meio é a mensagem”, ou seja, a forma com que a informação chega importa tanto quanto o conteúdo. Muniz Sodré, professor da UFRJ e um dos mais notáveis teóricos brasileiros da comunicação, retoma e amplia essa ideia dizendo que a televisão não é só um modo de transmitir um conteúdo, mas é uma forma de vida, parte integral da composição de um novo tipo histórico de ambiente imersivo e interativo. O mesmo poderia ser dito das nossas plataformas atuais.

Por isso mesmo, Sodré também nos adverte há tempos que, dentro desse espraiamento progressivo da tecnologia sobre a sociedade, os atos políticos genuínos envolvem a possibilidade de quebrar a forma midiática dominante. Justamente porque vivemos hoje no interior de plataformas digitais, torna-se cada vez mais importante a necessidade de contrabalancear o poder das coreografias que nos regem por meio da introdução de outras – criando forças de distribuição que preencham os intervalos deixados pelas formas dominantes, por exemplo, ou mesmo (nos casos em que isto é impossível ou pouco estratégico) arranjando formas de utilizar as plataformas dominantes atuais de modo “errado”, em direções contrárias àquelas que seus parâmetros esperam. 

Não que seja fácil. Afinal, como argumentam teóricos como Friedrich Kittler e Wendy Chun, os dispositivos digitais tendem a reproduzir as estruturas de poder que os produziram. Neste sentido, vários dos problemas que enfrentamos hoje em nossa ecologia digital atual já se encontravam latentes na formação da cultura do Vale do Silício. A chamada “ideologia californiana” se consolidou durante as décadas de 80 e 90 na forma de um utopismo digital com inspirações diluídas da contracultura dos anos 60, mas centrado sobretudo no poder do usuário como consumidor, em interfaces cada vez mais fáceis de usar e na crença do poder libertário da informação conectada em rede.

Tanto as primeiras redes de TCP-IP (como a ARPANET) quanto o protocolo de transferência de hipertexto (desenvolvido no CERN) eram infraestruturas públicas de pesquisa, desenvolvidas dentro de um espírito científico colaborativo (ainda que com um pano de fundo militar). Mas a visão que triunfou desde a década de 90, sincronizada com o triunfo político do neoliberalismo, foi a da privatização progressiva da internet, tomada como uma nova fronteira a ser conquistada por empreendedores titânicos. Depois do estouro da primeira bolha especulativa, no final do milênio, tivemos a expansão acelerada, principalmente a partir da década de 2010, do tamanho e do valor de um punhado de plataformas e redes sociais.

Algumas tentativas de manter a visão utópica da internet como um bem comum continuam aí, mantendo-se como podem (Wikipédia, a lista Net-time, Scihub, etc.), mas, fora da pálida possibilidade de intervenção estatal para quebra dos monopólios, o cenário para uma internet mais diversa não anda muito animador. 

Além dos riscos já notórios à democracia e à competição, a concentração extrema do poder digital na mão de um grupo muito pouco diverso de pessoas leva a uma série de pontos cegos e distorções graves, reforçando patologias sociais já existentes (desde erros no reconhecimento facial de pessoas não brancas ao uso de algoritmos de Big Data em direito penal).

A questão urgente de ampliar a diversidade na tecnologia, portanto, não deveria se concentrar em buscar incentivos para criar um Steve Jobs negro, ou um Mark Zuckerberg que acontece de ser uma mulher latina, mas em promover publicamente uma cultura técnica de inovação sistêmica e coletiva, uma ecologia digital democrática em que figuras românticas nocivas como o bilionário visionário não tenham o espaço que ainda têm hoje.

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A pandemia escancarou de maneira escandalosa o tanto que a saúde de uma sociedade depende da saúde de suas redes de comunicação. Não só o Brasil, mas quase todo o mundo dito desenvolvido teve muita dificuldade em fazer com que as pessoas acreditassem nos especialistas e seguissem as recomendações científicas, mesmo num caso de vida ou morte. 

O negacionismo teve concentração intensa na extrema-direita, mas o fato é que se espalha por toda a sociedade, dos mais aos menos escolarizados, dos hippies aos fascistas. A crise de credibilidade e confiança em especialistas e instituições não é bem um problema técnico de comunicação, no sentido de ser algo que se resolveria com um sistema melhor de publicidade e checagem de fatos (embora essas coisas possam ajudar, em alguns contextos). Aponta para uma cisão social muito mais profunda. O fato, que a pandemia tornou mais claro do que a eleição de 2018 já havia tornado, é que hoje vivemos em bolhas de informação que mal se tocam, preenchidas por valores e imagens radicalmente antagônicos.

Parte do desafio, hoje, de comunicar a gravidade da emergência climática, por exemplo, parece derivar da dificuldade profunda de criar laços de credibilidade numa ecologia midiática tão pulverizada. Num mundo em que o dinheiro fala mais alto do que tudo, com camadas diversas de publicidade dominando o discurso público, as pessoas têm todos os motivos concebíveis para serem paranoicas com o que ouvem por aí. Tampouco podemos ficar tão surpresos assim com a falta de credibilidade em especialistas em geral, quando tanto espaço nos canais das correntes dominantes é dado para tecnocratas cínicos que defendem os interesses de sempre, mesmo nas situações mais absurdas, diante dos sinais mais extremos. Num mundo assim, fica difícil simplesmente pedir para as pessoas acreditarem nas instituições e pronto, sem deixar claro que algumas delas precisam, de fato, ser transformadas radicalmente.

Na maior parte do século XX, o modelo midiático dominante foi o dos meios de massa, em que um único “mainstream” (ou corrente dominante) era concentrado em alguns poucos canais de informação. Desde o início do novo milênio, esse modelo de concentração midiática em alguns canais dominantes com capacidade grande de controle do que circula vem sendo substituído, aos poucos, por uma ecologia de meios muito mais dispersa (mesmo que perigosamente concentrada num punhado de plataformas).

No Brasil, as novas camadas de comunicação digital recobrem um país ainda marcado por uma profunda concentração midiática de caráter oligárquico, tanto regional quanto nacionalmente. Apesar da proibição legal explícita, é de amplo conhecimento o controle oficial ou extraoficial que inúmeros políticos eleitos em cargos do executivo e do legislativo têm de concessões de rádio e de televisão, por todo o Brasil. Além disso, um pequeno punhado de jornais e canais de televisão, concentrados no Rio de Janeiro e em São Paulo na mão de poucos grupos e famílias, ainda se compreende como constituindo a opinião pública relevante, no sentido de formadora de consenso político (mas com uma força que parece ter minguado bastante nos últimos anos). 

Com todos os seus limites e problemas, a internet de fato trouxe um começo de equalização do acesso à informação (mesmo que precária e ainda bastante parcial), principalmente a lugares profundamente desiguais como o Brasil. Num país onde tudo está tão concentrado na mão de poucos, não se pode desprezar a potência radical de democratização que a internet ainda pode trazer, por baixo dos jardins fechados das plataformas.

A solução para a torre de Babel atual de desinformação não pode ser um retorno à banda estreita e concentrada de antes, mas é claro que tampouco pode ser uma ecologia totalmente horizontal em todas as direções, sem mediadores e especialistas, sem regulamentação e responsabilidade legal, sem alguns nódulos concentrados e canais institucionais robustos. 

Críticos e curadores precisam ainda ter o seu lugar, mas não como implementadores de uma tecnocracia vertical em bloco, moralistas de ocasião ou sacerdotes de distinções sociais arcaicas fantasiadas de apreciação cultural. Críticos devem ser sensores e não censores, sugere Kodwo Eshun. A equalização geral dos canais culturais é totalmente necessária, é para ontem, mas não pode querer dizer a dissolução de tudo numa mesma massa pastosa e entrópica – que seja, antes, o triunfo da diferença, com todo seu ruído, toda sua amplidão.