#44O que me faltaRevista

O que me falta — Amarello 44

O que me falta é a edição de número 44 da Amarello. Com a psicanalista Helena Cunha Di Ciero como editora convidada e capa de Nino Cais, refletimos sobre o vazio como parte inevitável da vida a partir de diferentes perspectivas.

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Há doze anos eu larguei o cigarro, quando fumava compulsivamente mais de um maço por dia. Desde então, vim transferindo essa compulsão para trabalho, relacionamentos, esporte, sexo, comida, compras, bebida alcoólica e, por último, o mais complicado, tecnologia. Vários prazeres fugazes que eu usava como subterfúgio para não me deparar com as dores inerentes à minha existência.

O mundo em que vivemos é projetado para ocupar o lugar das nossas faltas e das nossas ausências. O consumo desenfreado, o uso exacerbado e viciante da tecnologia, a indústria alimentícia que se associa aos sentimentos, a cultura da hiperprodutividade, que nos obriga a estarmos ocupados o tempo todo. Tudo é arquitetado para estarmos “completos”, “plenos”, “preenchidos”, para que não sobre tempo para a reflexão, o acaso, a espontaneidade e as relações pessoais. Tudo é sobreposição, esgotamento, empilhamento, e se tudo é preenchido, não sobra espaço para a falta. Se tudo é planejado, não sobra espaço para aquilo que é prazeroso, inesperado, fortuito e, portanto, incompleto.

Quando tudo é planejado para que não haja perda, falta espaço para se perder e se redescobrir.

Como se reencontrar sem se perder?

Tentei tapar os meus buracos por muito tempo, mas, com distanciamento, começo a conseguir enxergar que o que me falta, ou me faltou, nunca será preenchido. Passo a olhar para essas lacunas com delicadeza e carinho, transformando minhas dores em ausência e, assim, dando um pouco mais de sentido aos buracos deixados por esses vazios. Ao assimilar o que me falta, me aproprio da incompletude para sair da escuridão.

Não que elas estejam resolvidas, muito pelo contrário. Mas o que me falta, me molda. E isso é bom.

Capas do artista Sergio Lucena.
Revista

Amarello Miragem — número 43

A Amarello Miragem inspira-se no fenômeno ótico para receber o sociólogo Jessé Souza como editor convidado e pensar a realidade do país, apresentando um panorama das principais miragens brasileiras.

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Miragem tem origem no vocábulo francês mirage, que provém do latim popular mirare para significar “olhar com espanto, admirar-se”. Mirar-se, em português, frente a um espelho.

As miragens se formam a partir de um fenômeno físicos chamado de refração – que nada mais é do que o desvio dos raios de luz. Ao contrário do que acreditam muitas pessoas, as miragens não são uma alucinação provocada pelo forte calor. Elas são um fenômeno ótico real que ocorre na atmosfera e que pode ser fotografado.

Fenômeno ótico esse construído em nossa memória através de uma história deturpada, violenta e torta. Forjada e interceptada de maneira que os interesses de domínio se mantivessem. Bibliotecas, indústrias, comércio, faculdades, jornais, revistas. A miragem brasileira, vista através do escudo racista, foi construída por intelectuais e perpetuada pelas elites.

Hoje, as redes sociais amplificam o papel que foi da elite até então. O algoritmo racial perpetua os interesses escravistas, e a cultura do politicamente correto isenta o racismo estrutural de ser olhado. Ao mesmo tempo, elas dão voz e empoderam nomes até então marginalizados, mudando o eixo do fenômeno ótico. Será que estou vendo uma miragem?

No pico do capitalismo em que vivemos, necessitamos nos olhar no espelho. A indústria cria subterfúgios como ferramenta de bem-estar, e nos anestesia para se apropriar de pessoas, vidas e identidades, a fim de manter a máquina girando. Tudo vira produto. Todos viramos produtos. Será que estou vendo uma miragem?

O viajante cansado e com sede já não corre mais em direção àquele Oásis tropical. O lago rodeado de palmeiras secou.

Dizem que o pior cego é aquele que não quer ver.

#40DemoliçãoEditorial

Demolição — Amarello 40

“Pressinto que tudo é o avesso da morte”.

Em sua edição de número 40, a Amarello recebe a artista Sofia Borges como editora convidada do tema Demolição.

Demolir é o ato de destruir uma estrutura de forma deliberada, a fim de dar outro destino ao espaço antes ocupado por ela.

Vivemos um momento único e necessário de revisão histórica. O levante das vozes caladas pelo arranjo colonial durante séculos ganha fôlego por meio da internet, amplifica os movimentos sociais e gera a transformação cultural que resultará na mudança política e social de que precisamos para adentrar o século XXI. É a demolição como ruína das grandes verdades que nos foram impostas: a igreja católica, o patriarcado, a segregação racial… Embebidos no lamaçal escatológico dessa decomposição, presenciamos o fim do mundo hegemônico conhecido até então.

A demolição é a força da natureza que nos habita. É deixar um lugar que não nos serve mais e sair em busca de outro. Reconhecer que estamos em estado de fragilidade nos dá a oportunidade de responder com vida, cuja inteligência é muito superior à da morte.

O Pântano, trabalho de Sofia Borges presente nesta edição, traduz com potência a coragem com que devemos encarar a mudança. Deixar os escombros do passado serem demolidos para abrir espaço ao novo é a chance preciosa que temos para reavaliar quem fomos e construir uma sociedade a nosso favor.

Tomás Biagi Carvalho