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Depois do capitalismo vem mais capitalismo
Dá para dizer que o capitalismo não goza exatamente de boa reputação na nossa cultura. Embora vivamos em um mundo largamente capitalista, as práticas e características associadas a ele (competição, lucro, desigualdade) são vistas, na melhor das hipóteses, como males necessários enquanto ainda não somos capazes de pensar em um sistema melhor.
Tentativas de encontrar uma alternativa não faltaram, mas não foram bem-sucedidas, e, por isso, desde a Queda do Muro, o mundo vive mais ou menos resignado ao sistema que, bem ou mal, mais produziu riqueza e ascensão social na história. Contra a ideia de que capitalismo significa aumento da miséria entre os mais pobres, os dados mostram que, nas últimas décadas – justamente quando as nações asiáticas abraçaram progressivamente as instituições de mercado –, a miséria global caiu vertiginosamente. Pela primeira vez na história da humanidade, menos de 10% da população mundial vive em pobreza extrema (dados do Banco Mundial), número que vem caindo tanto em termos proporcionais quanto absolutos.
Ainda assim, fica no ar um sentimento de insatisfação com um sistema no qual tudo parece ter um preço e o poder do dinheiro define os caminhos da sociedade. A utopia continua a nos chamar com seu canto sedutor: a possibilidade de uma vida na qual tudo seja partilhado de bom grado, sem competições vazias de status e sem a brutal desigualdade dos dias atuais.
Algumas experiências, que ocorrem dentro da sociedade capitalista, parecem apontar nessa direção: comunidades de ajuda mútua, aplicativo de troca de produtos e serviços sem uso de dinheiro, esquemas para partilhar o uso de automóveis e apartamentos. E, ao contrário das tentativas frustradas de instaurar esse modo de vida pela via política (ou seja, da violência estatal), um outro caminho parece se abrir: o da tecnologia. Mas será que o avanço da capacidade produtiva vai realmente levar ao fim dos preços e ao reinado da gratuidade?
A razão de algo ter um preço é a escassez. Não existe em quantidade suficiente para que possa satisfazer todos os desejos humanos presentes e futuros. O que é abundante nesse sentido estrito – todo mundo pode usar o quanto quiser que não vai acabar – não tem preço; é o caso do ar que respiramos. Fora casos como esse, se um bem ou serviço não é abundante, será necessário limitar acesso a ele de alguma forma ou assisti-lo ser consumido até o fim. A forma clássica é o racionamento: uma autoridade determina o quanto cabe a cada um. O outro modo é o mercado: o bem tem um preço determinado por negociação entre todos os agentes, e esse preço acaba servindo a duas funções: limita o consumo de um lado e estimula a oferta de outro.
Se pão fosse gratuito, todo mundo comeria sem pudores até que o estoque global acabasse, e ninguém teria nenhum incentivo em produzir mais, exceto para consumo próprio. No capitalismo, cada um consome de acordo com seu orçamento, restringindo o próprio consumo. Por outro lado, há um enorme incentivo para que mais pães sejam produzidos constantemente. É por isso que, via de regra, bens que ficam a cargo do mercado, como comida, não acabam e atendem a uma gama bastante ampla de gostos e orçamentos.
O sistema de preços, além disso, tem outra vantagem inestimável: ao quantificar a produção humana em uma unidade comum, permite organizar a produção. Lucros e prejuízos servem também para que descubramos o que satisfaz e o que não satisfaz a demanda dos consumidores. Sem isso, não dá nem para começar a organizar um sistema produtivo complexo como o nosso. O desperdício de recursos escassos seria constante e monstruoso. Será que o ferro extraído das minas deve ir para a produção de aviões ou de aparelhos dentários? Sem um denominador comum, é impossível responder.
O capitalismo é, assim, a melhor maneira que o homem conhece para lidar com a escassez. A tecnologia moderna está acabando com a escassez? Estaremos às vésperas da pós-escassez e, portanto, do pós-capitalismo? Eu não iria tão longe. Em alguns setores – comunicação e acesso a entretenimento audiovisual, por exemplo –, a tecnologia de fato barateou tanto os serviços que estamos nos aproximando do custo zero. Ainda assim, nossa demanda por matéria-prima e recursos naturais nunca foi tão grande. Não estamos prestes a atingir a abundância plena no mundo físico. Pelo contrário: coisas que sempre nos pareceram abundantes – peixes no mar, ar limpo, espaço para jogar lixo – agora começam a escassear. Precisaremos de mais capitalismo para resolver isso, ou então teremos que limitar o consumo da humanidade na marra, com prisão e cassetete.
Isso significa que experiências alternativas, que se dão, via de regra, na esfera do consumo pessoal, última etapa do processo produtivo, nunca darão conta de substituir o grosso dessa cadeia, toda a infraestrutura que está por trás dos produtos e serviços que consumimos.
Mas vamos dar um salto na utopia e sonhar com uma revolução tecnológica tal que, de fato, nos libere da escassez dos fatores de produção. Com um punhado de átomos, produzimos tudo que precisamos a custo próximo de zero. Mesmo nesse caso, vejam só, ainda encontraríamos limites ao que podemos fazer: pois nosso próprio corpo e a própria natureza do tempo impõem limites às escolhas. O sonho utópico de Engels, do indivíduo que trabalha no campo de dia e é crítico literário à noite, provavelmente continuaria fora de nossas possibilidades.
Viver é fazer escolhas, é preferir um caminho a outro, e não podemos estar em dois lugares ao mesmo tempo. Com os problemas do campo material resolvidos, restariam ainda todas as angústias – talvez até mesmo acentuadas pela abundância ao redor – sobre como viver, como alocar nosso tempo finito entre todas as incontáveis oportunidades de consumo e experiências que a tecnologia permite. E, onde existe angústia, existe demanda; onde existe demanda, há empreendedores querendo lucrar.
Com os problemas materiais resolvidos, o mercado migraria inteiramente para o campo espiritual: das artes, da filosofia, da competição social baseada em bom gosto e conhecimento, da culinária (que é muito mais do que alimentação), dos coaches de vida e dos psicólogos, das religiões e das escolas éticas, dos cursos, das humanidades e de revistas culturais, como esta. Que é um pouco o que acontece entre as classes mais altas do mundo capitalista atual, e é por isso que, neste momento, você está aqui lendo um artigo em vez de descansando, todo moído depois de um dia pesado na fábrica ou na lavoura.
Não quero ser um grande estraga-prazeres. Ou talvez queira. Independentemente disso, acho que vale resgatar a ideia da utopia e trazê-la para a esfera mais modesta do indivíduo: reformular a sociedade humana talvez seja impossível, mas isso não nos obriga a parar de tentar. Comunidades alternativas, estilos de vida que fogem completamente ao padrão, vidas individuais que almejam ao status de obras de arte, tudo isso é possível dentro da estrutura fria e calculista (ainda bem!) do capitalismo. Sendo assim, os pós-capitalismos dependem do capitalismo para existir, e isso não é motivo para desistir deles.
Favelas: celeiros de empreendedorismo
Casinhas feitas na pequena favela que se instalou no local, com madeira usada para fazer os pallets vendidos ao CEASA. Raramente se vê um carro parando para comprar uma casinha ali, mas os donos e os funcionários daquele empreendimento (moradores da favela) não se preocupam: a maior parte das vendas é feita pelo Facebook.
Esse caso, que tive a oportunidade de conhecer por conta própria, é apenas um dentre os milhões de exemplos de empreendedorismo nas favelas brasileiras, uma realidade por muito tempo escondida pelos preconceitos que a opinião letrada costuma nutrir sobre as classes sociais mais baixas.
Ou ajudamos os pobres, ou eles ficarão para sempre na miséria. As multidões que habitam as favelas são um problema social aguardando uma solução, e cabe a nós, privilegiados, oferecê-la aos coitadinhos. Essa é uma visão ainda muito comum; assim como é comum a mescla de boas intenções (querer ajudar o próximo) e condescendência (setores inteiros da população são incapazes) que expressa.
Na verdade, as favelas do Brasil (e do mundo) não são um problema social, mas, sim, uma solução, e uma solução bastante eficiente. São o resultado de um processo intenso de migração do campo para a cidade que, em uma geração, conseguiu mudar o patamar social da maioria dos que fizeram o movimento. E o empreendedorismo foi e é parte crucial desse processo.
O primeiro grande estudo realizado sobre as favelas do Brasil é o Data Favela, feito pelo Instituto Mercado Popular e publicado pela primeira vez em 2013, com uma segunda edição em 2015. Os dados da primeira edição estão sintetizados e interpretados no livro Um país chamado favela, de Celso Athayde e Renato Meirelles. Um estudo global sobre o fenômeno das favelas em diversos países pode ser encontrado no livro Cidade de chegada, de Doug Saunders.
A foto de uma favela é uma foto de pobreza; são pessoas com menos acesso a bens e serviços do que a média dos que moram fora da favela. Mas o filme, a história que se desenrola ali, é de ascensão social. Em vinte anos, a pirâmide social das favelas se inverteu: se antes eram maioria as classe D e E, hoje (dados de 2015) as favelas têm 61% de seus moradores na classe C e ainda 7% nas A e B. O observador atento já deve ter reparado como, ao longo das duas últimas décadas, a favela de barracos de madeira perdeu espaço para as casas de alvenaria, inicialmente sem reboco e, posteriormente, até com pintura exterior. A ascensão se verifica também no consumo: TVs de tela plana, motos e smartphones são itens comuns, ainda que muitas vezes emprestados para vizinhos.
Essa população tem a aspiração do empreendedorismo no sangue, com 40% dos moradores pretendendo abrir um negócio nos próximos dois anos. Cerca de 10% têm já um negócio próprio; se por vocação ou por necessidade, pouco importa. Numa economia em que nem sempre é fácil encontrar emprego, criar valor diretamente para clientes é uma solução preferencial.
Vemos nas favelas brasileiras muitas das características que marcam o Brasil: criatividade, capacidade de improviso, uso extenso de gambiarras e outras soluções informais e de baixo custo, e dedicação incansável para obter sucesso (não como fim em si mesmo). Nesse contexto, operam com uma grande diferença: o Estado não está presente de maneira eficaz, seja para prover os serviços básicos que esperaríamos dele, seja para regular, taxar e proibir o empreendedorismo com impostos e regulamentações.
Ao contrário da visão tradicional, a economia dentro das favelas brasileiras é muito rica, e os negócios são de todos os tipos: botecos e restaurantes (inclusive com festivais gastronômicos), salões de beleza, lojas de varejo, transportes (motos e vans), mercados, casas de shows, gráficas, oficinas etc. Em quase todos os casos, reina a informalidade. Laços de confiança permitem que o sistema continue a operar e a crescer.
O desejo humano de melhorar de vida jamais arrefece. Se o Estado não aparece para cuidar de algo essencial como saneamento básico em uma área urbana, a população não fica parada esperando uma solução chegar. Encanamentos informais — pelos quais se paga taxa —, venda de galões d’água e instalação de fossas sépticas — e limpeza periódica delas — são também negócios em muitas comunidades. No transporte é a mesma coisa: mototáxis e vans informais levam moradores e fazem entregas por morros íngremes. Em alguns casos, como o da Rocinha, a ausência de ruas formais fazia com que os Correios não entregassem correspondência na comunidade — a solução foi dada por empreendedores locais que, mapeando as vielas e cobrando uma taxa, passaram a fazer o serviço do qual o Estado abdicou. A garra do empreendedorismo supera a ineficiência do monopólio estatal.
O urbanismo não planejado, por fim, é outra lição que a favela tem para ensinar ao restante do Brasil. Com as edificações sempre muito próximas, cada casa ocupando novos espaços, subindo uma na outra, como numa selva baixa, valoriza-se o convívio e a troca. É muito comum morar na mesma vizinhança que a família, e a visita à casa de amigos bem como o empréstimo de bens (e até de cartão de crédito) são mais comuns lá do que no Brasil das habitações formais. Para o senso de ordem cartesiano e asséptico de alguns, o aparente caos urbanístico de uma favela pode parecer feio. Este crescimento orgânico e adaptável, contudo, é muito mais propício ao empreendedorismo do que conjuntos habitacionais frios e sem lugar para comércio e serviços.
As favelas são máquinas bastante eficientes de ascensão social. Enfrentam, no entanto, muitos desafios para se integrar e continuar a se desenvolver. Saneamento básico, lei e ordem providas por um Estado de Direito — infelizmente, o Estado brasileiro fica muito aquém desse ideal quando se trata das favelas, ainda que seja preferível a suas alternativas: crime organizado e milícias —, simplificação regulatória e tributária para não matar a economia popular, regularização fundiária de muitas das propriedades que já existem de fato. As soluções, sejam quais forem, ainda que demandem (e certamente demandarão) investimento de fora, partirão de dentro, desde que haja a liberdade necessária para o crescimento continuar.