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consumo

Cena de Estou me guardando para quando o carnaval chegar, filme de Marcelo Gomes.
#52SatisfaçãoSociedade

Moda, consumo e desejo: quando o carnaval da satisfação chega só para ir embora

por Revista Amarello

“O que é felicidade?”, pergunta Don Draper em um dos muitos momentos memoráveis presentes na série Mad Men. Ele mesmo responde: “É o momento antes de você precisar de mais felicidade”. 

A frase não poderia ser mais perfeita para a era da ultra fast fashion. A moda sempre esteve ligada ao desejo, mas, atualmente, se transformou em um ciclo ainda mais acelerado de satisfação e frustração — satisfação momentânea no momento da aquisição; frustração duradoura na busca ininterrupta pelo breve regozijo da compra. A promessa de acesso fácil a novas tendências esconde uma engrenagem que gira à base da insatisfação permanente: as roupas-novidade duram pouco, e o desejo por algo novo nunca é completamente saciado, uma vez que sempre haverá algo “mais novo”.

Representada por gigantes como Shein e Temu, a ascensão da ultra fast fashion intensificou um processo que há décadas já transformava a indústria. Se antes as marcas rompiam com os tradicionais ciclos sazonais para lançar coleções com mais frequência, essas plataformas agora despejam novos modelos diariamente, alimentando um consumo compulsivo embalado pelas redes sociais. Um estudo da McKinsey & Company revela que a velocidade de produção atual supera, e muito, o que as varejistas de fast fashion alcançaram nos anos 90, quando a Zara, uma das pioneiras, quebrou o modelo convencional ao lançar centenas de novas peças por semana. “Centenas” parece muito, mas aí cortamos para mais de trinta anos mais tarde: em 2023, a Shein chegou a produzir até 10 mil novos modelos por dia. O ritmo frenético atual escancara a derrota pré-anunciada de correr atrás da novidade ad aeternum, criando uma cultura na qual o valor de um objeto, sobrepujado pelo que há de vir, é cada vez mais efêmero. O descarte danoso é, assim, efeito colateral.

Segundo a ONU, a indústria da moda é responsável por até 8% das emissões globais de carbono e 20% do desperdício mundial de água, tornando-se uma das indústrias mais poluentes do planeta (o que, neste planeta, não é pouca coisa). O volume de roupas descartadas também é alarmante: de acordo com a Abrema (Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente), o Brasil descarta mais de 4 milhões de toneladas de resíduos têxteis por ano, a maioria sem qualquer reaproveitamento. Nos Estados Unidos, de acordo com um levantamento feito pela Environmental Protection Agency (EPA) há alguns anos, o número salta para 17 milhões.

Essa dinâmica da moda refém do desejo e do trabalho refém da mega produtividade é registrada com sensibilidade no documentário Estou me guardando para quando o Carnaval chegar, de Marcelo Gomes, lançado em 2019. O filme acompanha a vida dos moradores de Toritama (PE), cidade considerada um dos maiores polos de produção de jeans do Brasil. Ali, trabalhadores dedicam a vida à costura e ao acabamento de peças. Como ganham por produção, sentem a necessidade de trabalhar duro sem descanso, tudo para, no Carnaval, venderem seus bens e viverem alguns dias de liberdade. Ironicamente, tal qual na lógica da moda ultra veloz, a satisfação é passageira. Logo o ciclo se reinicia.

O filme de Marcelo Gomes opta por uma lente crua e local, despida de qualquer glamour ou romantização. Toritama, conhecida como a “capital do jeans”, sintetiza o mecanismo global da fast fashion aplicada à realidade brasileira: produção incessante, baixo custo e condições de trabalho exaustivas. Os moradores, que ralam de forma autônoma e sem qualquer segurança trabalhista, representam o bebedouro invisível do sistema que banha as grandes marcas e os desejos insaciáveis de consumo. O contraste entre o ritmo intenso de trabalho e a esperança de alguns dias de lazer revela a fragilidade, e a melancolia, do modelo vigente.

A história de Toritama ressoa a realidade de outras regiões brasileiras que vivem da produção têxtil. O que acontece por lá não é um caso isolado, mas um microcosmo da forma como o Brasil se insere na cadeia produtiva da moda global, muitas vezes reproduzindo os mesmos ditames de exploração vistos em lugares como Bangladesh e Vietnã. A produção incessante encontra seu respaldo em um consumo igualmente célere, impulsionado pela internet.

Falar de consumo impulsivo significa apontar o dedo diretamente para a influência das redes sociais. O Instagram e o TikTok popularizaram o famigerado unboxing — espetacularizando a sensação de bem-estar ao se abrir um pacote de entrega e monetizando em cima do consumo rápido, que faz com que roupas novas sejam exibidas e celebradas naquele momento para nunca mais. A prática acaba servindo como um símbolo emblemático da contemporaneidade dopaminérgica. Uma pesquisa recente da CNDL (Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas) e do SPC Brasil (Serviço de Proteção ao Crédito) revela que 51% dos consumidores compram por impulso na internet com certa frequência e 9% fazem isso sempre, influenciados pelas redes. O FOMO (fear of missing out, ou medo de ficar de fora) gera ansiedade e reforça a ideia de que estar atualizado é indispensável, não importando o quanto isso pode custar e quão pouco isso pode durar.

A relação entre moda, desejo e insatisfação está, então, entrelaçada com questões psicossociais, especialmente se pensarmos que a necessidade de constante renovação do guarda-roupa corrobora a ideia de que a identidade está diretamente ligada ao consumo. Sem aquilo, você não tem identidade; sem o novo, você não é relevante. Há estudos que indicam que a satisfação gerada por compras impulsivas dura em média apenas vinte minutos antes que o desejo por algo novo se imponha novamente. Não é que Don Draper tinha razão? Essa efemeridade do prazer é a espinha dorsal da ciclicidade do mundo fashionista e do consumo, curiosamente criando padrões de moda que, no fim, mais nivelam do que destacam. Isto é, a identidade não é caracterizada por aquele vestido ou aquela camisa, pois a identidade não é o que se está consumindo, mas o consumo em si, e o consumo é um estilo fácil de se reproduzir.

A cultura que se gera é paradoxal. Por um lado, ela se vende como libertadora: consumir significa expressar quem somos, conquistar autonomia e pertencer a grupos sociais. Por outro, a identidade que se cria passa a ser mediada por um sistema que exige constante atualização. O desejo nunca é realizado por completo, pois sua função é justamente manter a roda girando. Disfarçado sob as sombras das vontades que nos são impostas, está o aprisionamento.

Será possível encontrar satisfação real dentro desse sistema? Ou estamos fadados a desejar sempre o próximo lançamento, o próximo look, a próxima tendência? Prevalece a angústia de quadros pintados com sonhos que, independentemente de quais sejam, foram pincelados com as cores da impossibilidade.

Por mais que a desejemos, a verdadeira satisfação do Carnaval não virá. Se chegar, será por míseros minutos. A moda, que historicamente sempre refletiu os anseios de seu tempo, precisa encontrar novas formas de se reinventar — e nós, como consumidores, também.

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O que cuidadores de elefantes e um chocolate dividido dizem sobre a modernidade e a sociedade atual.

As lágrimas rolaram pelo meu rosto por boa parte do documentário Como Cuidar de um Bebê Elefante (The Elephant Whisperers). Ao receber o Oscar na categoria Documentário em Curta-Metragem, a diretora indiana Kartiki Gonsalves falou sobre coexistência e sobre o vínculo sagrado entre nós e o mundo natural. A história de dois cuidadores de elefantes órfãos na Índia não emociona apenas pela surpreendente conexão entre eles, mas também porque o filme serve como um espelho reverso: a gente enxerga no casal de cuidadores os valores mais nobres e básicos que precisamos pra sermos felizes. Eles vivem isolados e têm uma vida precária, mas vivem totalmente em sintonia com a natureza e o mundo animal e parecem muito mais felizes e completos do que a gente. Apesar de terem muito pouco, eles vivem a vida na sua totalidade e se sentem parte do todo, algo que nós buscamos duramente todos os dias, muitas vezes sem chegar a lugar algum. Isso porque, é óbvio, estamos buscando no lugar errado.

A modernidade nos tirou a sincronia com a natureza, esgotando nosso mundo interior. Nosso apetite por novas emoções está nos deixando indiferentes a valores como a sutileza e a ética. O dia em que recuperarmos a nossa atenção das redes sociais e olharmos para as coisas que realmente importam, uma revolução começa. Um levante tão importante quanto as grandes transformações tecnológicas que estamos presenciando. Inteligências artificiais, novos mundos imersivos e possibilidades de socialização que nunca havíamos imaginado estão sendo criados sem a nossa participação, causando FOMO (do inglês fear of missing out, isto é, medo de estar perdendo algo) e ansiedade e aprofundando ainda mais a desigualdade no mundo.

Sim, a tecnologia traz possibilidades incríveis, mas as mídias sociais fraturaram nossa capacidade de foco e nos encurralaram. Olhamos nossos celulares a cada minuto, na expectativa por uma notícia, um convite, um elogio, um like, um match, qualquer coisa que provoque faíscas e nos faça sentir vivos. Enquanto isso, o mundo “lá fora” queima. E o mundo lá fora também é lindo.

O problema que enfrentamos hoje é que a atenção às redes ocupa o espaço que antes era ocupado pela empatia. Não precisamos ir longe para perceber que há mesmo um “déficit de empatia” no mundo, parafraseando Obama em um discurso de 2013.

Queremos feedback instantâneo; não escutamos, não elaboramos as consequências dos nossos atos online e buscamos escapes da rotina vivendo qualquer experiência que prometa algum tipo de iluminação, de um Carnaval frenético a um ritual de ayahuasca no meio de São Paulo. Esportes radicais, comidas exóticas, experiências lisérgicas e encontros relâmpagos viram condutores de adrenalina que, assim como uma droga, duram pouco e fazem as pessoas ansiar por mais e mais. Estamos viciados.

No livro The Life Intense: A Modern Obsession, o autor francês Tristan Garcia nos descreve como paraquedistas emocionais, “em busca de sensações fortes que possam justificar nossas vidas”. Quando foi a última vez que você fez algo pela primeira vez?

A economia da experiência está por todos os lugares, vendendo novas aventuras e emoções, e a gente segue comprando do lado de fora para alimentar o lado de dentro. Sensações de vazio e de que nunca temos o suficiente estão há anos sendo semeadas em larga escala na mente humana para acompanhar um mundo organizado para o lucro, e não para a prosperidade humana ou ambiental.

O nosso tempo e a nossa atenção tornaram-se os ativos mais valiosos dessa nova economia. Nosso status é cada vez mais medido não pelo que somos ou pelo que contribuímos, mas pelo que vivenciamos, fotografamos e escolhemos compartilhar. Vivemos um caos publicitário, em que o objetivo dos anúncios parece não ser mais a informação, mas simplesmente a atenção. E a qualidade dessa atenção não importa.

Esta é a vida agora: um fluxo constante e interminável de conteúdos fragmentados e sem sentido que a gente nem quer ver, mas dos quais, por algum motivo, não consegue desviar o olhar.

A possibilidade do conhecimento ilimitado da web é tão onipresente que nem nos lembramos de como era não o ter. Superestimamos o quanto essas tecnologias estão nos prejudicando e subestimamos o quanto também estão nos ajudando. Porque, sim, a internet e as redes podem proporcionar coisas incríveis e propagar assuntos importantes que rodam o mundo em minutos. As redes foram fundamentais para movimentos como #MeToo, Time’s Up e #BlackLivesMatter, e funciona com igual importância para educar e alertar a sociedade sobre questões sociais e ambientais, como as atrocidades cometidas contra o povo Yanomami e a tragédia que devastou o Litoral Norte de São Paulo.

Então o problema não é a tecnologia em si, e sim como escolhemos usá-la. A gente realmente escolhe o que vê ou tem alguém decidindo por nós? A tecnologia está nos servindo ou nós é que estamos servindo a ela?

Nos dias de hoje, não elaboramos os assuntos que nos atravessam. Frases inteiras são resumidas em emojis, a vida (dos outros) é sempre bela, nos comunicamos através de likes, não lemos mais e não sabemos mais nada em profundidade. Nosso conhecimento, assim como nossa atenção, é fragmentado. Sabemos um pouco de tudo e de tudo um pouco, e isso parece ser o suficiente em conversas rápidas em festas entre uma foto e outra ou para engajar vídeos no TikTok.

Muitos dizem que a hiperdigitalização está impulsionando um retorno do mundo analógico, trazendo de volta o uso de discos, câmeras polaroides, enciclopédias, fitas cassete, telefones com fio e Ligue-Táxi — enfim, experiências de um mundo hiperfísico e tangível.

A gente não é o que tem nem podemos ser definidos pelos nossos 15 segundos de engajamento no Instagram. Nós somos o total das nossas experiências de vida: cada lágrima, cada sorriso, cada vez que o coração bate mais forte, cada vitória e cada tombo, cada paisagem, cada música, cada trabalho concluído, cada livro lido, cada história de amor, cada decepção, toda morte e nascimento, cada vez que temos coragem, todos os sins e todos os nãos, as superações e os desgostos, cada ideia e solução, cada beijo, cada gozo, cada abraço de saudade, cada partida e cada reencontro.

Amor, dedicação, conhecimento e foco nos levam a relacionamentos mais profundos e geram sucesso a longo prazo. No entanto, nossa economia atual está constantemente nos levando para longe disso. Precisamos parar de buscar só do lado de fora para acalentar o interno. Nossa atenção pode estar à venda, mas iluminação e paz de espírito não estão, e dependem puramente do nosso esforço e da nossa habilidade de empatia.

Encerro com a história de um estudo feito em 2011 na Universidade de Chicago, em que os pesquisadores realizaram um experimento para entender se um rato libertaria outro de uma gaiola sem receber uma recompensa. A resposta foi sim. Depois de várias sessões, os ratos aprenderam rapidamente a liberar os colegas enjaulados. Os ratos repetiram o comportamento mesmo quando lhes foi negada a recompensa do reencontro. Ainda mais surpreendente: quando os ratos foram apresentados a duas gaiolas, uma contendo um rato e a outra um chocolate, eles optaram por abrir as duas gaiolas e dividir a recompensa.

Qual foi a última vez que você dividiu o seu chocolate?

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Meu último café

por Thais Fonseca de Andrade

Eu peço meu terceiro café.

Vou tomar outra bronca da minha dentista.

Christiane, minha amiga de Londres, está atrasada — de novo.

***

Ela chegou, toda esbaforida.

— Oi, Thais! Me desculpa pelo horário. A minha vida está parecendo aquela música da Tulipa Ruiz, sabe qual é?

E canta:

— Tem que correr, correr, tem que se adaptar (…) tem tanta gente sem saber como é que vai priorizar… Aquela que se chama Dois cafés — diz a Chris, olhando para as xícaras vazias que estão sobre a mesa.

A atendente da padaria chega com o meu pedido e minha amiga solta essa:

— Ué!? Você não ia parar de tomar café?

Não respondo; meu sorriso amarelo diz tudo.

Ouço com atenção o que ela começa a me contar.

***

— Slam! Blam! É um excesso de ruído dentro e fora de mim, Thais! Não aguento mais! Todos os dias ouço esse barulho, diversas vezes. Meu novo vizinho, acredita? Não se preocupa em fechar a porta de sua casa sem batê-la! E o pior… Minha cachorrinha, curiosa que é, toda vez que a porta bate, começa a latir. Eu levo o maior susto! É a britadeira de alguma construção próxima à minha casa, são os carros passando na rua em frente, são as mensagens no WhatsApp que não param de chegar. Instagram, Facebook, Twitter. Curto, não curto? Posto, não posto? Quantos seguidores? Eu não desligo! Meus pensamentos ficam a mil por hora! São escolhas e decisões que não consigo fazer, deadlines a cumprir, meus pais envelhecendo, eu envelhecendo. Terei filhos? Tenho 40 anos! Sinto medo ao perceber o passar do tempo… Um calafrio… Areia da ampulheta que não para de escorrer… Ah… Como eu queria segurar cada um desses grãozinhos.

Eu a interrompo e digo:

— “O tempo e suas águas inflamáveis, esse rio largo que não cansa de correr”.  Lembrei desse trecho de Raduan Nassar, do Lavoura arcaica. Lembra, Chris, quando assistimos ao filme juntas?

— Faz quase vinte anos! Nossa, Thais, ele descreve de forma perfeita o que me queima. E por falar em fogo, voltei a fumar! O alívio dura pouco, depois me sinto péssima, culpada, e acendo outro cigarro. O que estou fazendo com a minha saúde? Quanto mais ansiosa fico, mais eu fumo. Pareço levada por uma avalanche. Pensamentos e sentimentos invadem a minha cabeça e me paralisam ou me levam a repetir o mesmo caminho de sempre, familiar. Que raiva eu sinto quando me vejo nesse looping… Eu não entendo por que ajo dessa maneira tão sem lógica! Thais, você que é psicóloga, me fala: você acha que tomar muito café, como você faz, que meu vício em fumar e esses pensamentos repetitivos que me assolam têm um quê de compulsão?

Deixo de respondê-la, pois do fundo da padaria surge uma melodia, em meio ao estalar das chapas, que desvia a minha atenção.

— Chris! Ouça a música que está tocando!

— Adooooro!

E, se referindo à letra da música, ela completa:

— Como ser livre para ser quem eu sou?

— É, amiga… Boa pergunta! Liberdade para nos tornarmos nós mesmas…

Da padaria ao consultório

Compulsão não é uma conduta voluntária, é uma expressão da grande dificuldade que muitas pessoas têm de controlar os seus impulsos.

Segundo o Vocabulário da psicanálise de Laplanche e Pontalis, compulsão é uma atividade que o indivíduo realiza sob o domínio de uma imposição interna, e seu não cumprimento é sentido como algo que levará ao aumento da angústia.

Pensamentos obsessivos levam a comportamentos repetitivos: compulsão por trabalho, compras, jogos, sexo, exercícios físicos, comida, roer unhas (onicofagia), contar mentiras, arrancar os cabelos (tricotilomania), transtorno de acumulação, consumo excessivo de álcool e drogas, uso excessivo de redes sociais e a problemática de nossos tempos, a nomofobia, que é o medo irracional de ficar sem o celular. Esses são alguns dos comportamentos compulsivos mais comuns.

Tais comportamentos trazem muito sofrimento ao indivíduo em razão da vivência de estar preso em uma sensação de eterno retorno, de um looping infinito. Refiro-me a um funcionamento psíquico em que o agir impera — sua força, pungente, chega antes da força do pensar e praticamente suprime a capacidade de se fazer escolhas. Nesse mundo interno ruidoso e, muitas vezes, acompanhado por um “vazio” turbulento, a culpa reina.

“I wish I knew how it would feel to be free”[1]

Freud disse que repetimos aquilo que não conseguimos elaborar. Depois aprofundou seu olhar ao propor a presença de uma força poderosa — difícil de transpormos — que nos impele a repetir um estado anterior, mesmo que desagradável, em busca de evitar qualquer tensão psíquica. O trabalho dessa força, realizado de forma silenciosa e sorrateira, teria como meta a descarga, a rejeição ao novo e, em última instância, a volta ao inorgânico, à morte. Freud nomeia tal força destrutiva de pulsão de morte, e esse movimento interno, de compulsão à repetição. O pai da psicanálise escreveu de forma muito interessante e profunda sobre esses fenômenos em seu clássico texto intitulado Além do princípio de prazer, elaborado entre 1919 e 1920.

Não é preciso ir aos extremos dos vícios e das adições, pois a força destrutiva da compulsão à repetição é grande, cotidiana e afeta todos nós.

Certa vez, um analisando, muito irritado por não conseguir mudar determinada forma de agir que o levava continuamente a situações de risco, me disse:

— Nonsense!

Sua voz raivosa revelava não apenas frustração, mas também, como minha amiga da história, a percepção dolorosa da existência de um mundo dentro de cada um de nós que nos foge ao controle.

“I wish I could break all the chains holding me”[2]

Vem à mente o delicado livro chamado a A parte que falta, de Shel Silverstein. É bonito como poetas tocam nossas emoções e falam de maneira tão simples aquilo que especialistas (não sem o mesmo valor!) comunicam de maneira tão complexa. Sentimento de falta sempre nos acompanhará, e senti-lo também nos é importante.

Poderia a falta virar espaço para a criatividade?

Para Bion, um psicanalista da linha inglesa cuja obra muito aprecio, um pensamento novo pode surgir da nossa capacidade para tolerar a frustração, a falta, a ausência, aquilo que desconhecemos.

Precisamos suportar uma dose de frustração para desenvolvermos a capacidade de pensar, de construir redes simbólicas. Tal condição de autoria permitirá que novos horizontes se revelem dentro e, consequentemente, fora de nós — caminhos a serem desbravados que podem nos levar à relevante descoberta de quem somos, ainda que esta, por natureza, seja transitória e incompleta.

***

Finalmente, me lembrei! Os versos que ressoam dentro de mim enquanto escrevo este texto são da música que tocava na padaria, na voz de Nina Simone:

“I wish I knew how it would feel to be free

I wish I could break all the chains holding me

I wish I could say

All the things that I should say…

Say ‘em loud say ‘em clear

For the whole round world to hear[3]”

A conversa que tive com a minha amiga ressurge em meus pensamentos. Me emociono e, por algum tempo, assim permaneço. Os ruídos em mim viram melodia.

________________________________

P.S: Considero importante destacar o valor, o significado histórico e o profundo peso político da música I wish I knew how it would feel to be free, composta por Billy Taylor, em 1963, e que ganhou popularidade na voz de Nina Simone. Essa canção tornou-se um hino do movimento afro-americano pelos direitos civis nos anos 60. Neste texto, procurei usar — alegórica e respeitosamente — alguns de seus versos para ilustrar o anseio humano por romper com aquilo que aprisiona e, assim, ser livre.


[1] Em tradução livre, “Eu gostaria de saber como seria me sentir livre”.

[2] Em tradução livre, “Eu gostaria de poder quebrar todas as correntes que me seguram”.

[3] Em tradução livre: “Eu gostaria de saber como seria me sentir livre / Eu gostaria de poder quebrar todas as correntes que me seguram / Eu gostaria de poder dizer / Todas as coisas que eu gostaria de dizer… / Dizer em alto e bom som / Para todo mundo ouvir”.

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