Sem título, serigrafia de Anna Maria Maiolino (1995). A artista ítalo-brasileira é uma das homenageadas da 60a Bienal de Veneza (Divulgação).

Talvez você se lembre do clássico de 1979, Video Killed The Radio Star, da banda The Buggles. A música celebrava um futuro em que as imagens tinham o poder de estar em todos os lugares (lê-se “sala de estar”), dizendo coisas como “Pictures came and broke your heart, put the blame on VCR” (as imagens chegaram e partiram o seu coração, ponha a culpa no videocassete). Embora datada, a canção teve um impacto imenso e ecoava um sentimento geral de que o passado estava totalmente para trás e ninguém mais precisava de rádios, porque as músicas agora vinham acompanhadas de videoclipes na televisão. E se você pode ter som associado a imagens deslumbrantes, por que ficar só com som? Bem… De maneira irônica, quem parece estar com os dias contados hoje em dia são justamente os videoclipes.

Esse cenário tão prolífico e indispensável de não tanto tempo atrás está passando por uma mudança sísmica, onde os números estrondosos de visualizações estão sendo substituídos por uma paisagem mais fragmentada e desafiadora. Após o declínio das vendas de CDs no final dos anos 2000, o YouTube emergiu como uma métrica crucial de sucesso e os números de visualizações de videoclipes pareciam estar em constante ascensão. No entanto, agora nos encontramos em um momento em que até mesmo os gigantes do pop estão lutando para manter a relevância e o engajamento com suas produções visuais.

Um exemplo marcante desse declínio é o contraste entre os videoclipes de artistas como BTS, Beyoncé e Drake, que conseguiram no passado atingir cifras estratosféricas de visualizações mas que, no presente, já não conseguem reproduzir tamanha relevância com esse formato. A grande questão é: eles continuam tão populares quanto antes. E isso só pode significar uma coisa: houve uma mudança de mentalidade, mesmo para as pessoas mais fanáticas. Algumas dessas estrelas, inclusive, já decidiram parar de fazer clipes tradicionais. O novo álbum da Queen B, Cowboy Carter, foi lançado recentemente e… nada de clipe. Ou melhor, ela lançou o que a indústria chama de “visualizers”, que, no fim, não deixam de ser videoclipes, mas são consideravelmente menos complexos e sem muitas pretensões. Com Texas Hold ‘Em, uma música central de trabalho do novo disco, foi assim. Nada daquele clipe elaborado que seria de se esperar há 10 anos, quando canais de videoclipes resistiam na televisão, na era que antecedeu o boom dos streamings e do reinado TikTok.

Foi-se o tempo de grandes clipes musicais como Thriller do Michael Jackson, dirigido por John Landis, ou Dancing in the Dark, hit de Bruce Springsteen, dirigido por Brian De Palma. Essas obras tinham a liberdade para serem o que quisessem ser e, por conta disso, ditavam tendência e definiam toda uma época. Os anos 1980 foram marcados por inúmeros clipes dessa estirpe: Take On Me, A-Ha; Like A Prayer, da Madonna; Once in a Lifetime, do Talking Heads; Total Eclipse of the Heart, de Bonnie Tyler; Welcome to the Jungle, do Guns N’ Roses; e tantos outros. Aqui no Brasil, os anos 1990 tiveram o seu auge de videoclipes marcantes, como Diário De Um Detento, dos Racionais, dirigido por Maurício Eça, e Minha Alma (A Paz Que Eu Não Quero), canção d’O Rappa com direção de Luciano Vidigal. 

Há não muito tempo, os clipes reinavam com ainda mais força do que nos anos 80 e 90, devido à abrangência sem precedentes do YouTube, que permitia com que as pessoas assistissem aos clipes que desejavam, na hora que quisessem, quantas vezes lhes desse na telha. Mas algo no meio do caminho mudou tudo. O quê?

Uma das razões por trás desse fenômeno é a mudança no comportamento do público. Em um mundo inundado de informações e entretenimento instantâneo, manter a atenção do espectador por toda a duração de um videoclipe tornou-se uma tarefa hercúlea, mesmo que você seja uma Billie Eilish ou uma Olivia Rodrigo. Se o vídeo matou a estrela do rádio, o scrolling matou as estrelas dos videoclipes. Se lançado nos dias de hoje, ninguém saberia os passinhos feitos pelos zumbis de Thriller e as marias-chiquinhas colegiais de Britney Spears em Baby One More Time não causariam tanto furor. A ascensão do TikTok como uma plataforma dominante para o compartilhamento de conteúdo musical contribuiu ainda mais para essa mudança de paradigma, onde os vídeos curtos e virais dominam a paisagem digital. Hoje em dia, mais vale uma dancinha de segundos feita no quarto de casa do que um grande número musical de quatro minutos. Da perspectiva de um artista popular, é compreensível, já que esse tipo de divulgação natural dá muito mais retorno e não custa nada. 

Além disso, a própria indústria musical está passando por uma transformação radical. Há uma contenda famosa e contínua entre artistas e serviços de streaming: os artistas ganham quase nada com Spotify, mesmo aqueles com bilhões de plays, mas, sem a plataforma, sem dúvida a mais popular delas, não são tão ouvidos. E, se isso vale para os gigantes, vale em dobro para os pigmeus, que se agarram aos seus poucos ouvintes para fazer shows menores em casas locais. O conflito por si só gera um atrito que acaba mudando o modus operandi geral, criando um senso de cautela maior. Os orçamentos para videoclipes, quando existem, estão encolhendo, e os diretores estão sendo desafiados a fazer mais com menos — eis os tais visualizers. Outra solução para isso, que entrega tanto economia quanto eficiência, é o lyric video, uma produção de motion design que apresenta a letra da música com alguma elaboração gráfica. Claro que, enquanto produto artístico, nem os visualizers e nem os lyric videos chegam aos pés das ambições por trás dos videoclipes tradicionais. Então, fica uma sensação de perda.

“A própria indústria musical está passando por uma transformação radical. Há uma contenda famosa e contínua entre artistas e serviços de streaming”

No entanto, mesmo diante desses desafios, há uma crença persistente na importância dos videoclipes como uma forma de arte. As novas gerações podem estar distraídas demais para assistir a um clipe, e elas são as que costumam jogar números nas alturas, mas muita gente que já se impactou por esse ou aquele videoclipe ainda está aí, como mercado consumidor. Talvez, hoje, um videoclipe não valha mais tanto a pena. Mas o que se pensa é que, nos ciclos inevitáveis da cultura, eles voltem à baila. Assim esperamos, ao menos, porque eles têm o poder de criar momentos visuais que ressoam com os espectadores e transcendem o tempo e o espaço. Por que outra razão se não essa ainda estamos assistindo ao clipe de Gangnam Style ou de Bad Romance? Ou de Bohemian Rhapsody? Dos visuais icônicos de artistas como Spike Jonze, que dirigiu clipes para bandas como os Beastie Boys, aos cenários deslumbrantes feitos para Bjork nas colaborações com Michel Gondry, os videoclipes têm o potencial de se tornarem marcos culturais que definem uma geração.

Fica a dúvida: os videoclipes podem sobreviver e prosperar neste novo cenário digital? Claro que sim. Mas adaptações precisarão ser feitas. Uma delas foi anunciada recentemente: o Spotify agora está passando clipes. Muito embora isso queira dizer que essas produções serão consumidas pela tela de um celular, o que incomodaria muitos realizadores, a tendência é que sejam mais vistas. Ao menos parte delas. É um sinal dos tempos, mas é o que é.

No final das contas, acima de lucros ou prejuízos, a indústria musical deveria continuar a apoiar e investir na produção de videoclipes de alta qualidade. Por quê? Mais do que nunca, precisamos de algo que nos fascine verdadeiramente. No TikTok, não acharemos isso. À medida que nos aprofundamos no vórtex sem fim de pequenos vídeos vistos pela tela do celular, sem ver ou sentir a vida passar, esquecemos da intensidade e complexidade dos nossos sentimentos — algo que um videoclipe tem o poder de traduzir, visto que sua função primária é representar as principais sensações contidas naquela canção. Precisamos nos entregar novamente ao que quer que esteja dentro de nós, deixando a passividade de lado. 

Precisamos disso, nem que seja por míseros três minutos e meio

Dorival Caymmi | Foto: Evandro Teixeira/AJB

Em entrevista presente no filme “Dorival Caymmi — Um homem de afetos”, de Daniela Broitman, o compositor conta que seu primeiro encanto com o mar veio pela música do mar. De madrugada, em sua cama, ouvia o barulho das ondas quebrando nas pedras de Salvador, observando a variação sonora conforme a maré enchia e esvaziava.

As ondas que quebravam ali, na sua imaginação de menino, definiram mais do que a música de Caymmi. O imaginário formado pela espuma que se ergueu delas, pelo aroma da maresia, pela erosão lenta das pedras, pelas marcas que elas deixaram na areia moldaram a existência do baiano, seu olhar sobre o mundo. Um olhar materializado e traduzido, em poesia e música, no conjunto de composições que ficou conhecido como “canções praieiras”. 

Ali, nesse gênero musical criado e encerrado em si mesmo (não há canções praieiras antes ou depois de Caymmi), o artista entrelaçou filosofia e poética, o documental e o mitológico. Tudo partindo do mar, a grande metáfora da vida — aquele que guarda os mistérios, a bonança das redes cheias de peixes, as tempestades, a morte.          

A memória do mar como beleza e dor remonta à primeira vez que Caymmi o viu, na casa de sua tia e madrinha Maria da Piedade (ou Tia Pipi, como ele chamava), no Rio Vermelho. Ele conta, em relato que pode ser lido na biografia “Dorival Caymmi — O mar e o tempo”, escrita por sua neta Stella Caymmi: “Subi num monturo para alcançar o alto do muro e ver o mar. Escorreguei com peito do pé num caco de vidro, o que me abriu um talho no dedo polegar direito”.  

Aquele universo da praia, dos pescadores e suas mulheres, a riqueza simbólica e imagética presente ali, foi exercendo fascínio crescente conforme Caymmi crescia. Sobretudo a partir de sua experiência em Itapuã, praia paradisíaca afastada do centro de Salvador. Desde a adolescência, o baiano costumava veranear lá, com amigos. Observando aquela vida que corria à beira-mar e mar adentro, compôs a que afirma ser sua primeira canção praieira, “Noite de temporal”. 

Apesar de seu caráter inaugural, “Noite de temporal” já encerra muito do universo que se delinearia melhor nas canções praieiras que viriam. Estão ali o mar como entidade poderosa, merecedora de respeito (“Pescador não vá pra pesca/ Que é noite de temporal”); os dramas vividos na praia (“Pescador se vai pra pesca/ Na noite de temporal/ A mãe se senta na areia/ Esperando ele vortá”); a referência a cantos tradicionais dos pescadores (“Ê lambaê, ê lambaio”); e o violão especialíssimo de Caymmi, que encarna em si o próprio movimento do mar e das cenas litorâneas.

Em “Noite de temporal”, seu violão bate como o mar agitado pelo tempo ruim, marcado no polegar que bate nas cordas graves. Em seguida, ele se desmancha em dedilhado suave, ao sair do fato concreto da tempestade e transportar para o plano do narrador — a voz da sabedoria, que aconselha a não ir pescar, e a voz da serenidade, que conta da angústia da mãe. Por fim, o instrumento volta a emular o mar revolto.

Impressiona a maneira como o violão de Caymmi evoca a atmosfera praieira tanto ou mais do que suas letras. Seu violão não imita o mar, como se fosse uma sonoplastia — ele é o mar. Não por acaso, foi pelo instrumento que o baiano quis apresentar essas músicas, nos anos 1950, em álbuns como “Canções praieiras” (1954) e “Caymmi e seu violão” (1959) — num momento em que o formato voz-e-violão estava longe de ser um padrão, ou de ter a popularidade que teria a partir da década seguinte. 

Em “O vento”, o dedilhado é cheio de ar e movimento, como a brisa marinha. “É doce morrer no mar” tem a suavidade da maré calma que Caymmi canta — apesar de o tema ser a morte, ela é doce. Os ataques do polegar em “Pescaria” acompanham o ritmo dos remos e de todas as ações descritas nos versos (“Cerca o peixe/ Bate o remo/ Puxa corda/ Colhe a rede”). “A lenda do Abaeté” traz nas tensões harmônicas de seus acordes a atmosfera das histórias de assombração associadas à lagoa do Abaeté (“Credo cruz, te desconjuro/ Quem falou de Abaeté”). Em “Milagre”, a mudança de tempo repentina é acompanhada por uma rara modulação, uma mudança de tom tão repentina quanto (“Se sabe que muda o tempo/ Se sabe que o tempo vira/ Aí o tempo virou”). “O mar” é pura contemplação de alguém sentado na areia, na qual o violão parece vir daquele som que o menino Caymmi ouvia em seu quarto.

“O mar” é uma das canções na qual se mostra de forma mais marcante o olhar de Caymmi sobre o mar. A construção dos versos iniciais, que servem de motivo e refrão, merecem um olhar detido. As vogais alongadas (“O maaaaaaaaaaaaar/ Quando queeeeeeeeebra na praia”) cria uma tensão de onda que se forma e que criam a expectativa da conclusão, a quebra da onda. E ela se dá da forma mais surpreendente, porque, para dar conta da beleza do mar, da grandeza imensurável que ele tem a seus olhos, Caymmi não procura palavras especialmente poéticas e precisas, tampouco uma metáfora sofisticada. A impossibilidade da descrição é resolvida, pelo compositor, no adjetivo mais banal: “é bonito”.

A maneira que Caymmi fala sobre o mar reflete esse olhar de quem o vê como algo tão profundo que dispensa que isso seja sublinhado em palavras. Por isso, se seu violão parece pintar com tintas impressionistas o cenário marinho, seus versos são essencialmente concretos, substantivos, descritivos. O narrador não comenta, não conclui nada. Apenas expõe o que testemunha: “A jangada saiu com Chico, Ferreira e Bento/ A jangada voltou só” (“A jangada voltou só”); “No Abaeté tem uma lagoa escura/ Arrodeada de areia branca” (“A lenda do Abaeté”); “Vento que dá na vela/ Vela que leva o barco/ Barco que leva a gente/ Gente que leva o peixe/ Peixe que dá dinheiro” (“O vento”, num conjunto de versos que descreve de maneira extremamente sintética toda a grandeza do ato do trabalho, da conversão da ação humana sobre a natureza em dinheiro, sustento).

Antonio Risério chega a observar, no livro “Caymmi: uma utopia de lugar”, que não há uma única metáfora nas canções praieiras, ou seja, não há abstração. Isso não impede a carga filosófica altíssima presente nesse cancioneiro. “O bem do mar” é um dos maiores atestados dessa concretude caminhando lado a lado da profundidade existencial. A letra afirma, em seu primeiro verso, assumindo a fala de seu personagem central: “O pescador tem dois amor”. Caymmi segue, num desdobramento: “Um bem na terra/ Um bem no mar”. 

O bem da terra, ele canta, é a mulher “que fica na beira da praia quando a gente sai”, “é aquela que chora, mas faz que não chora quando a gente sai”. Enfim, a companheira, o amor que se deposita num outro (“É impossível ser feliz sozinho”, como escreveu Tom Jobim numa canção coincidentemente marinha, “Wave”). 

Já o bem do mar é descrito por Caymmi dentro da mesma dinâmica que denuncia a insuficiência das palavras para falar do que não cabe nelas, em versos que talvez sejam os mais bonitos (como o mar quando quebra na praia) de sua obra: “O bem do mar é o mar, é o mar/ Que carrega com a gente pra gente pescar”. Ou seja, o bem do mar é a própria existência, “que carrega com a gente”. O amor que não depositamos no outro, e sim na vida em si. No mar.

“João Valentão” não costuma ser agrupada entre as canções praieiras, por se referir à chamada fase urbana de Caymmi, de sambas-canções. Mas seu personagem é um pescador, uma típica figura das que povoam as músicas litorâneas do compositor. Feita por Caymmi inspirada num sujeito que conheceu em Itapuã, ela traça o perfil de um homem duro, violento, mas que “tem seu momento na vida”, em que a sensibilidade aflora: “É quando o sol vai quebrando/ Lá pro fim do mundo pra noite chegar / É quando se ouve mais forte/ O ronco das ondas na beira do mar/ É quando o cansaço da lida da vida/ Obriga João se sentar/ É quando a morena se encolhe/ Se chega pro lado querendo agradar”. 

Caymmi conclui “João Valentão” com versos que soam como possível autorretrato, e talvez por isso esteja entre os seus preferidos: “E assim adormece esse homem/ Que nunca precisa dormir pra sonhar/ Porque não há sonho mais lindo do que sua terra/ Não há, não há”. Sua terra que também é seu mar.

Uma canção praieira se destaca em meio às outras, por certa estranheza de sua melodia e mesmo nas escolhas poéticas: “Sargaço mar”. Há nela uma densidade de afogamento que não há, por exemplo, em “É doce morrer no mar”, que a princípio trata do mesmo tema. Mas em “Sargaço mar”, quem morre é o narrador. Nela, Caymmi contempla o próprio fim, no mar: “Quando se for esse fim de som/ Doida canção/ Que não fui eu que fiz/ Verde luz verde cor de arrebentação/ Sargaço mar, sargaço ar/ Deusa do amor, deusa do mar/ Vou me atirar, beber o mar/ Alucinado desesperar/ Querer morrer para viver com Iemanjá/ Iemanjá, odoiá”. Nela, como que ecoam o som das ondas que ele ouvia da cama. Ou se manifesta a derradeira fisgada do corte no pé ante a visão magnífica do oceano. Magnífica não. Bonita, bonita.    

Em março de 1915, num Estados Unidos ainda neutro em plena Primeira Guerra Mundial, chegava ao mundo Rosetta Nubin. Filha de pais religiosos que participavam ativamente das atividades da igreja, desde cedo Rosetta foi incentivada a fazer o mesmo: aos 6 anos de idade, juntou-se à mãe para se apresentar regularmente pelo sul dos EUA com um itinerante grupo musical evangélico. Daí em diante, nada parou a menina de desenvolver seu talento musical prodigioso — dona de vocais potentes, arrebatou as pessoas trovejando uma gravidade emocional ímpar, e, com a sua guitarra sempre a tiracolo, fez o mundo tremer. 

No auge dos 19 anos, já no norte do país, casou-se com o pastor Thomas Thorpe. O casamento durou pouco, mas serviu a um grande propósito: ao adotar oficialmente o sobrenome do pastor e assumir o erro de grafia que veio junto (um “o” que virou um “a”), encarnou o nome artístico Sister Rosetta Tharpe, que nunca deixou de ser usado. Com vinte e poucos anos nas costas, apesar da pouca idade, Rosetta amadurecia um estilo inigualável de tocar, unindo o blues, jazz e gospel com distorções elétricas mirabolantes, em uma fórmula que jamais havia sido ouvida. Tamanha era a intensidade com que se apresentava e tamanho era o peso do que esmerilhava na guitarra que voos maiores não demoraram a acontecer. No final da década de 30, lançava o seu primeiro disco. 

Era o rock’n’roll tomando forma. 

Em 1945, lançava aquela que é considerada a primeira gravação do gênero, “Strange Things Happening Every Day“. A versão acelerada, cheia de arpejos e com aquela levada típica que hoje conhecemos como os primeiros estágios do rock, chamou a atenção de muitos e as revoluções não arredaram o pé: Rosetta seguiu influenciando gerações e mais gerações. Munida de seu virtuosismo na guitarra, em suas performances gostava de conclamar a plenos pulmões, para o mundo inteiro ouvir: “Nenhum homem toca como eu!”

A frase icônica ecoa em alto e bom som. Como as palavras escritas no violão de Woody Guthrie (“Esta máquina mata fascistas”), a mensagem era um berro de alguém que vivera a vida lutando contra o establishment. Contra tudo e contra todos, era uma ameaça viva ao conservadorismo vigente. Além da inventividade musical, que, por si só, era um alerta à preponderância masculina no meio musical, por não ter medo de se relacionar com mais de um sexo, Rosetta ainda foi uma grande representante na luta pela ampliação de espectros sexuais — e tudo isso na sociedade americana de mais de 60 anos atrás, fazendo parte de uma comunidade religiosa, sendo mulher, sendo mulher negra.

É seguro dizer: nenhum homem tocou como ela.

No filme recém-lançado de Baz Luhrmann, Elvis, Sister Rosetta Tharpe é interpretada por Yola, musicista britânica. Como não podia ser diferente, com um quê de justiça histórica, ela é apresentada pelo roteiro como uma influência gigantesca sobre o desengonçado adolescente de Memphis, Tennessee, que amava sua música e que, sem ela, nada teria conseguido. A cultura negra, como um todo — indo de Arthur “Big Boy” Crudup até Chuck Berry e B.B. King —, recebe atenção especial na produção, que deixa claro que o “rei do rock’n’roll” seguiu passos que já haviam sido pisados, ainda que à sua maneira.

Morta em 1973, após um derrame, foi introduzida ao prestigiado Rock’n’roll Hall of Fame somente em 2018. Para dizer o mínimo, a honraria tardou a acontecer, com bons 40 anos de atraso. Pelo menos, aos poucos, vem-se falando mais sobre o impacto para lá de substancial causado pela artista, por aquela menina negra oriunda de família humilde e religiosa. Rosetta traçou um “pré” e um “pós” na história da música que, felizmente, estão cada vez mais evidentes a quem estiver disposto a enxergar.

Quem sabe, com o sucesso do blockbuster protagonizado por Austin Butler e Tom Hanks, não se ventila por Hollywood a ideia de jogar luz sobre uma das principais pioneiras da música popular, conferindo à ela o devido reconhecimento e contando de forma categórica, de uma vez por todas, a história de quem foi a verdadeira mãe do rock’n’roll

Pois, se Chuck Berry e Elvis Presley inventaram o rock, Chuck Berry e Elvis Presley foram inventados por Sister Rosetta Tharpe.