“A Rede Social”, de David Fincher (2010)

Hoje, um punhado de big techs prosperam como monopólios escondidos bem debaixo do nariz do mundo inteiro, como uma confidência amplamente conhecida mas ignorada. Elas formam o núcleo infraestrutural de um universo tecnológico em constante expansão, operando como interfaces digitais praticamente obrigatórias para a troca social e colonizando tanto a vida profissional quanto o consumo privado, além de controlar como verdadeiros mestres titereiros os fluxos de informação e comunicação. 

Mark Zuckerberg prestando testemunho em Washington, 2018. Foto: Alex Brandon-Pool/Getty Images

Tolos são aqueles que acham que a Amazônia ainda é o “pulmão do mundo”. Esse posto, na verdade, foi reivindicado por outro lugar já há algum tempo: o Vale do Silício é quem atualmente faz o mundo girar. 

Exemplo dessa realidade tenebrosa é o que não falta: foram as plataformas digitais que mais favoreceram a ascensão da extrema direita, certo? No Brasil que elegeu Jair Bolsonaro e nos Estados Unidos que elegeram Donald Trump. E, como prova de que estamos totalmente à mercê das idas e vindas dessas grandes empresas, foram elas também que uniram forças para banir o mesmo Trump da esfera pública digitalizada depois que o ex-presidente norte-americano incitou a violência no Capitólio. Embora existam evidências legítimas de que as big techs estão mexendo um pauzinho ou outro para combater a violência política oriunda de suas próprias interfaces — mesmo que, sim, meramente por estarem sob pressão pública e forte vigilância midiática —, esses e outros casos ilustram o crescente poder que essas mega corporações exercem sobre a vida social de todo o planeta. 

E o mais aterrador: em algum nível, esse poder parece ser incontrolável, o que não é necessariamente mau visto por quem acumula mais e mais dinheiro. 

Essas empresas, é óbvio, extraem renda ilimitada de suas respectivas posições na economia digital. Não querem sair do trono onde estão sentadas tão confortavelmente. E, assim sendo, realengas que são, vão em busca de estratégias para ir mais além, chegando a elaboradas técnicas financeiras, que inevitavelmente são traduzidas em lucros estelares e recursos inigualáveis usados para expandir seus monopólios de plataforma em escala e escopo. 

Ou seja, para a surpresa de ninguém, apesar de eventuais discursos apaixonados que dizem o contrário, no fim elas não querem ser capazes de se controlar.

Muito domínio para o própior bem

“O Dilema das Redes” (2020), filme de Jeff Orlowski.

É um caso clássico de um poder que ninguém deveria ter.

As grandes empresas de tecnologia estão exercendo um impacto colossal em diversos aspectos da sociedade. Essas empresas-titãs, por serem donas de tanta magnitude e poder, têm influência determinante em várias áreas devido ao seu alcance global e domínio amplo. Tal poder é exercido em diversas frentes.

Empresas como Google, Amazon, Apple, Meta e Microsoft dominam seus setores, o que lhes confere uma autoridade perigosa. Elas controlam plataformas e serviços essenciais usados por bilhões de pessoas em todo o mundo, o que lhes permite ditar as regras e moldar a experiência dos usuários. É assim que as big techs conseguem acumular enormes quantidades de dados sobre os usuários, desde seus hábitos de consumo até suas preferências pessoais. E esses dados são usados para alimentar algoritmos de aprendizado de máquina e inteligência artificial, permitindo às empresas melhorar seus produtos e serviços, além de segmentar anúncios e personalizar as experiências dos usuários.

É assustador pensar que big techs têm grande influência política, em um nível global, já que elas mantêm laços estreitos com governos e políticos, realizando atividades de lobby e contribuindo para campanhas políticas, o que pode levar a políticas favoráveis às suas próprias agendas e interesses. O impacto delas na economia global é verdadeiramente expressivo, tanto como criadoras de empregos quanto como impulsionadoras de setores inteiros. Por exemplo, empresas como a Amazon têm transformado o varejo e a entrega de produtos, enquanto a Apple e a Google têm moldado o mercado de aplicativos móveis.

Há quem diga que, apesar das novidades tecnológicas do nosso tempo, as grandes empresas de tecnologia apenas aumentam as tendências capitalistas pré-existentes. Em outras palavras, o que é novo não é a tendência ao monopólio, mas sim a comercialização desenfreada de pegadas digitais.

O debate em torno do papel e da influência das big techs continua evoluindo e é importante encontrar um equilíbrio entre a inovação tecnológica e a proteção dos direitos e interesses dos usuários. Mas a amplitude e a profundidade da digitalização vertiginosa nos convidam a repensar a lógica do capitalismo. É uma nova lógica de acumulação, conhecida como capitalismo de vigilância — surveillance capitalism, no termo original —, voltada para extração de dados e modificação comportamental. 

Capitalismo de vigilância e suas implicações

“O Código Bill Gates” (2019), minissérie de Davis Guggenheim.

Essa mutação do capitalismo é a que cobre a abominável e escusa utilização da imensurável quantidade de dados que usuários fornecem gratuitamente a empresas de tecnologias, transformando-a em matéria-prima e produto final altamente lucrativos. Não é necessário pensar em algo fora do comum para visualizar um cenário em que alguém dá à web todo tipo de informação de mão beijada. Preferências, emoções, hábitos, posicionamento político, credo e tantas outras características que a definem enquanto pessoa e que, mais tarde, será usada para fins diversos. 

Todas essas informações são consideradas dados em estado bruto. Às vezes, esses dados são usados para melhorar a experiência do usuário, personalizar conteúdo e anúncios, oferecer recomendações relevantes e aprimorar os produtos e serviços. Mas nem sempre.

5 big techs dominam o universo tecnológico por enquanto, com milhares de plataformas menores orbitando em torno delas e milhões de aplicativos construídos sobre suas costas. São elas: Alphabet (Google), Apple, Amazon, Microsoft e Meta. Com cada uma dessas empresas tendo um monopólio para chamar de seu, as big techs como um todo passaram a colonizar as principais formas e meios de troca social, sobrepondo as formas pelas quais as pessoas costumavam interagir por meio de interfaces digitais. Isso vale para comunicação e informação, para trabalho ou consumo e, ao definir os padrões para kits de ferramentas de software, e liderar o desenvolvimento do hardware para permitir a troca, essas empresas se colocaram como interfaces obrigatórias para todos os tipos de troca na economia digital. 

É uma nova realidade que se sobrepõe à economia e à sociedade, com as big techs operando sob as lógicas de seu próprio jogo, sujeitando cada vez mais o resto do mundo às suas diretrizes imponentes e intrusivas. E bota intrusiva nisso.

O uso indevido de dados pessoais por parte das big techs é uma das grandes questões do mundo atual. Casos de vazamentos de dados, violações de privacidade e escândalos envolvendo o uso de informações pessoais sem o consentimento adequado dos usuários surgiram. Essas questões levantaram preocupações sobre a segurança e a proteção dos dados pessoais nas mãos dessas empresas. Para lidar com essas preocupações, algumas regulamentações de proteção de dados — como o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) na União Europeia e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no Brasil —, foram implementadas para fornecer maior controle e transparência sobre o uso de dados pessoais. Essas regulamentações estabelecem diretrizes sobre a coleta, armazenamento, processamento e compartilhamento de dados pessoais, além de fornecer aos usuários mais direitos e opções em relação ao gerenciamento de suas informações.

Há, portanto, esforços em andamento para regulamentar e proteger a privacidade dos usuários, tentando garantir que o uso dessas informações seja feito de maneira ética e legal. 

Mas quando essas empresas exercem tanto poder e influência na política, na economia e na sociedade, ficamos com a pulga atrás da orelha. Um termo como capitalismo de vigilância devia dar calafrios a qualquer um. 

(Falta de) limites morais

As grandes empresas de tecnologia são entidades comerciais que buscam maximizar seus lucros e crescer no mercado, então é comum que os interesses corporativos prevaleçam sobre os limites morais. Não deveria, mas é. Em muitas circunstâncias, as decisões são tomadas em detrimento de considerações morais ou éticas mais amplas e os casos de empresas acusadas de usar práticas questionáveis ​​de coleta e uso de dados pessoais dos usuários, violando toda e qualquer privacidade, comprovam isso de maneira categórica. Além do que, algumas empresas podem estar dispostas a sacrificar a transparência ou manipular algoritmos para promover determinados conteúdos ou maximizar o engajamento, mesmo que isso signifique a disseminação de informações falsas ou prejudiciais.

O que nos leva, claro, ao episódio recente envolvendo o Telegram e sua infame mensagem que dizia aos usuários que “o Brasil está prestes a aprovar uma lei que irá acabar com a liberdade de expressão”. A empresa, conhecidamente orgulhosa por seu desacato às autoridades — o que acaba sendo seu principal diferencial, quando comparada ao concorrente WhatsApp (ainda que esse não seja moralmente irrepreensível) —, manifestava sua ojeriza em relação ao projeto de combate às fake news que tramita na Câmara dos Deputados. Ir com unhas e dentes contra um projeto que, entre outras determinações minimamente sensatas, criminaliza a divulgação de conteúdos falsos por meio de contas automatizadas e determina a retirada imediata de conteúdos que violem direitos de crianças e adolescentes, transparece a gema obscura do Telegram. E, sabemos, ela não é a única empresa que é contra a regulamentação. O que isso nos diz sobre os valores morais e éticos das big techs?

É claro que nem todas as empresas de tecnologia agem dessa maneira — principalmente, nem todos os funcionários dentro dessas empresas compactuam com tais modus operandi condenáveis. Muitas dessas pessoas têm consciência dos desafios éticos associados à tecnologia e estão pressionando por mudanças internas. Além disso, existem organizações e ativistas que trabalham para aumentar a conscientização sobre essas questões e exigir responsabilidade das big techs. A pressão da opinião pública, a concorrência no mercado e a implementação de regulamentações governamentais podem incentivar as empresas a repensar suas estratégias e considerar mais profundamente as implicações éticas de suas ações. 

Embora os interesses corporativos possam influenciar as decisões das empresas de tecnologia, o que parece fugir à lógica dessas empresas é que é fundamental que haja um equilíbrio entre a busca por lucro e a responsabilidade social. A sociedade como um todo desempenha um papel crucial na definição dos limites que devem ser aplicados a essas empresas, seja por meio de regulamentações governamentais, boicotes, engajamento cívico ou outras formas de pressão. Cada vez mais a tecnologia adentra a vida das pessoas. Por um lado, isso pode ser positivo, quando essas inovações estão atreladas a resolução de um problema humano, por exemplo, ou então facilitam alguma atividade que outrora necessitava de bem mais tempo investido. Por outro lado, essas novas tecnologias podem nos tornar dependentes de certos recursos e, consequentemente, das empresas que nos trazem essas inovações.

Quando os setores de IA dessas empresas crescem desenfreadamente e as equipes de ética diminuem em ritmo similar, fica claro que temos um problema.

Mas as coisas vão realmente bem para as big techs?

Os bancos centrais exercem poder por meio dos mercados financeiros, criando várias interdependências entre domínios e interesses públicos e privados. Esse núcleo de infraestrutura é continuamente refinado por meio da extração e análise de dados, acumulando mais aluguel e poder em um ciclo que aumenta as dependências tecnológicas dos estados. É por essas e outras que os legisladores em todo o mundo precisam controlar o poder crescente das big techs, antes que elas absorvam o poder dos governos eleitos democraticamente: as grandes empresas de tecnologia se tornaram caixas eletrônicos altamente financiados para seus acionistas e executivos. 

Para aqueles que acreditavam que os multibilionários da tecnologia são intocáveis, parece impensável qualquer cenário que não remeta àquela imagem de Tio Patinhas nadando num mar infinito de dinheiro. Mas o futuro talvez não seja tão promissor a essas empresas quanto imaginamos. 

Em 2020, o mundo foi forçado a frear bruscamente. A pandemia forçou as pessoas a mudarem suas vidas profissionais e sociais totalmente. Para a grande tecnologia, isso foi um grande impulso, já que essas transformações apontaram muito para a vida online. As principais empresas de tecnologia atingiram os níveis mais altos de capitalização de mercado na história, o que permitiu com que contratassem e investissem significativamente. Depois de um tempo interminável, as coisas voltaram ao normal e a maioria das pessoas se reajustou do mundo virtual para o real, num balanço funcional entre os dois, deixando as grandes empresas de tecnologia com planos ainda mais megalomaníacos, expostas ao superestimar o crescimento das atividades online. Presumiram, erroneamente, que as pessoas iriam para o mundo virtual e ficariam lá, mas não foi o caso. 

O Fundo Monetário Internacional, por exemplo, descobriu que os gastos online aumentaram de 10,3% antes da pandemia em 2019 para 14,9% em 2020 durante a pandemia, mas depois caíram para 12,2% em 2021 após o levantamento das restrições. A grande tecnologia foi, portanto, forçada a ajustar suas expectativas de crescimento. Mas a volta à normalidade não é a única má notícia na perspectiva da Meta e de outras empresas. 

Como o resto da economia, as big techs sentiram o efeito de uma sucessão de choques. A inflação galopante, o aumento dos preços da energia e a interrupção das cadeias de suprimentos globais têm sido notícias tristes para as famílias, especialmente aquelas com renda mais baixa, e para as empresas, que em alguns casos não tiveram escolha a não ser fechar as portas. As empresas de tecnologia também sofrem. Eles enfrentam custos crescentes e demanda menor em suas principais operações de negócios, como a publicidade da Meta, que perdeu 4% de sua receita no último trimestre. E os bancos centrais aumentaram as taxas de juros, atingindo a indústria de tecnologia, que passou a depender de quantias colossais de dinheiro de baixo custo.

Por outro lado, visto que as big techs respondem ao lobby e têm relações estreitas com políticos e instituições que ditam os caminhos da economia, virou algo frequente nos últimos meses vermos CEOs convocando as pessoas a voltarem a trabalhar presencialmente, devido ao impacto econômico negativo que o trabalho remoto representa para grandes cidades. Um caso recente foi o de um dos criadores do Chat GPT, Sam Altman, que disse que o home office foi “um erro”. Isso só mostra, mais uma vez, que a lua que dita o vaivém das marés dessas empresas é inconstante e moralmente questionável. 

Com um presente em que líderes de Estado são forçados a dividir poder com os Zuckerbergs, Bezos e Musks do mundo, previsões para o futuro talvez não venham a calhar. Melhor pensar no que fazer hoje.

Mas isso só é possível no caso de a tecnologia já não ter mudado o nosso comportamento para sempre.

Todo mundo que se apaixona é uma aberração

Nem mesmo as oito bilhões de pessoas do planeta são suficientes para preencher o sentimento de ausência que certos traumas cuidam de cultivar. O pediatra e psicanalista inglês D. W. Winnicott (1896 – 1971) dizia, em linhas gerais, que os temores que mais fazem morada no nosso âmago estão relacionados a algo que já vivemos. Isto é, se você tiver sido vítima de um assalto armado, são altas as chances de você reviver o episódio cada vez que sair à rua, desenvolvendo uma relação delicada e sobressaltada com qualquer coisa que remeta à ocasião do trauma. Por já ter acontecido e deixado suas escaras, aquilo tem o potencial de se tornar o mais pontiagudo dos medos. No caso dos relacionamentos, um término custoso pode figurar um vórtex de trauma que vai e volta, tão profundo e complexo quanto o interior de um vulcão O magma está lá, quente e fluido, tomando os formatos do dia a dia e, antes que se note, está a cargo das decisões.

Um repertório emocional carregado a tiracolo serve ora como a shoulder bag da qual tiramos um ou outro item de enorme importância, tal qual um guarda-chuva, ora como a espingarda que cospe fogo à menor ameaça, tomada por um déjà vu daquilo que já nos fez sofrer. Não queremos passar por aquele sufoco de novo, então cada silhueta sombreada na parede se configura à semelhança do passado. Como ignorar o que já foi e colocar os óculos escuros para pisar na estrada de um futuro ensolarado? Há quem não consiga. As projeções sempre estarão lá, minando todo tipo de relação, sendo uma presença que respira pelo pulmão da ausência.

No meio de tanta erupção, “projeção” ganha o formato daquilo que estabelecemos como ideal para nós. O famoso “para mim tem que ser assim e assado”, cuja base, teoricamente, é empírica, mas que sempre vem com uma pitada de capricho pessoal. Procurar um modelo exato no meio de humanos inexatos é a fórmula da decepção. Mas e se essa busca pudesse ser expandida? Digamos, a novos receptáculos de interação. Estamos entrando na era das inteligências artificiais, as IAs — se é que já não estamos afundados nela —, e tudo é possível.

No filme Ela, clássico moderno de Spike Jonze, Theodore está passando por um difícil divórcio. Talvez não especialmente difícil, considerando o quão brutal um divórcio pode ser, mas, de partida, uma separação é algo que por algum tempo nos consome carga emocional. O personagem de Joaquin Phoenix, um escritor (nem um romancista, nem um autor de autoajuda, mas um ghostwriter de cartas pessoais), vem passando por maus bocados depois que anos ruins culminaram no final de seu casamento com Catherine (Rooney Mara). Mesmo no meio da enorme massa populacional da megalópole onde vive e da boa vontade de alguns amigos, a solidão é sua maior companhia durante o processo.

Ela, de Spike Jonze

Em dado momento, ele até vai num encontro às cegas, mas a tentativa acaba não vingando. É nesse estado camuflado, escondido na geografia da cidade grande, que conhece Samantha, seu mais novo sistema operacional. De cara os dois se dão bem, sendo boas companhias um para o outro. Ela é uma voz sem forma física, é verdade, mas isso não impede um relacionamento amoroso. No mundo criado por Jonze, a prática não é incomum, e os temores que afligiam Theo parecem se apequenar perto da cumplicidade oferecida por Samantha. Na medida em que vão se conhecendo e que Samantha vai se descobrindo, ela demonstra insegurança sobre si mesma — mas you feel real to me[SBC1] , rebate o escritor. Até certo ponto, ela era a projeção do relacionamento perfeito que ele nunca teve e uma supressão do que ele não conseguiu manter. E sim, o sexo também está lá, como demonstrado numa inspirada sequência em que uma tela preta representa não só o pináculo sexual de ambos, mas a conexão entre os dois atingindo seu estado mais puro.

Theo sabe bem: estatisticamente, relacionamentos com sistemas operacionais são raros, e é por isso, conclui, que o que tem com Samantha é real. As feridas começam a se deixar fechar aos sopros suaves da voz de Scarlett Johansson. Em contraponto à sua felicidade, ele ouve sua amiga (Amy Adams) relatar o fim de um relacionamento de oito anos, engatilhado por uma discussão boba, e muito humana, sobre onde colocar os sapatos. Se “o passado é uma história que contamos a nós mesmos”, ele finalmente sente que está no controle da narrativa.

Quanto mais Samantha se desenvolve, porém, mais humana ela fica. A eficiência normalmente atribuída às inteligências artificiais aqui significa mais suscetibilidade e uma ampliação progressiva do desejo de explorar mundos e sensações. Muito embora não veja problema nisso a priori, a projeção idealística que Theo tinha no começo passa a desvanecer, e seus erros reverberam, como fariam em uma relação unicamente humana. Quando enfim assina os papéis de seu divórcio, ele acusa o golpe e volta ao estado de isolamento do qual a duras penas saiu, não compartilhando com Samantha suas angústias, a despeito das inúmeras tentativas de aproximação dela. Se um dia ela foi ideal para ele, talvez agora ele não seja mais o ideal para ela. E assim eles se despedem.

Em uma carta para a ex-esposa, a primeira que o vemos assinar com o próprio nome, ele escreve: “Sempre terei um pedaço seu em mim”. De maneira similar a uma inteligência artificial que acumula informações e se aperfeiçoa com o tempo, sempre tentando preencher as lacunas de seu sistema, Theo carregará Samantha e Catherine em si.

 “Pode a consciência existir sem interação?”

Já o filme Ex Machina, dirigido e roteirizado por Alex Garland, dá ares mais fatalistas à ideia de eficiência. É essa competência que nos vem à mente quando pensamos em IA e procedimentos cirúrgicos ou IA e um chat de respostas. Mas e quando isso é aplicado a uma relação, uma troca entre dois seres? Ao passo que nós, no auge de nossa humanidade, temos que lidar com demônios internos, uma inteligência artificial opera para conseguir aquilo que foi programada para conseguir. É uma dinâmica que constitui uma curiosa “vantagem competitiva”.

Ex Machina, de Alex Garland

Ciente desse conceito, o magnata da tecnologia Nathan (Oscar Isaac) sai em busca de um programador da sua empresa: quer alguém de coração mole para conhecer Ava (Alicia Vikander), a versão mais recente de seus experimentos com robôs humanoides. Seu objetivo é ver se ela se aproveitará do ponto fraco do humano para escapar da jaula em que está aprisionada. Escolhe a dedo o traumatizado Caleb (Domhnall Gleeson), que perdeu os pais na adolescência num acidente de carro, sob o falso pretexto de que ele aplicará nela um Teste de Turing — mas em uma versão mais complexa, já que ele não somente tentaria identificar em Ava traços humanos, como também avaliaria a consciência que se conhece o suficiente para saber que não é uma pessoa. Na relação de pai e filha que Nathan tem com Ava, Caleb é uma mera engrenagem, um meio para um fim. Domhnall Gleeson, sempre capaz de evocar profunda empatia, e Alicia Vikander, em seu primeiro grande tour de force, proporcionam interações vibrantes.

Ao encontrar prazer nas conversas, Caleb se depara com o que ele mesmo define como the chess problem: ela tem sentimentos reais ou está simulando? Só mais para frente junta os pontos e descobre as verdadeiras intenções de Nathan, entendendo que até o modelo de Ava foi feito com base no seu histórico de pornografia. Vendo os dois, é difícil cravar quem é mais sozinho: o CEO beberrão que se embriaga diante do original de Jackson Pollock que tem no quarto de sua mansão isolada e hermética, ou Caleb, que, apesar de se considerar uma pessoa boa, ainda sente falta dos pais? O que destrói mais, o vazio orgânico deles ou o artificial-mas-inflexível ímpeto de viver de Ava?

“Tornei-me a Morte, a destruidora de mundos” é uma famosa fala de Robert Oppenheimer (1904 – 1967), criador da bomba atômica, como Caleb lembra em conversa com Nathan. Não à toa.

Se em Ela há uma voz de camadas tão palpáveis quanto qualquer gadget, e em Ex Machina, uma representação ardilosamente física que age conforme os interesses próprios, A.I. — Inteligência Artificial (A.I. Artificial Intelligence) tem em si um combinado desses dois. Essa trinca fílmica, de bases científicas e físicas sólidas, representa bem como o conturbado mundo em que vivemos pode, exatamente como ele é, servir de trampolim para mundos que ainda não aconteceram: mais sci-fi, menos sci-fun. Como veio antes, em 2001, A.I. é como se fosse o pai, ou o irmão bem mais velho, de uma dupla que tomou caminhos divergentes (seguindo a analogia, o filme-pai, inevitavelmente, é Blade Runner — O Caçador de Androides). Ainda que não tenha sido vista assim à época de seu lançamento, a obra de Steven Spielberg é tão sensível quanto ambiciosa.

A.I. — Inteligência Artificial é fruto de uma parceria de Spielberg com um de seus ídolos, Stanley Kubrick (1928 – 1999). Baseado em um conto do escritor Brian Aldiss (1925 – 2017), esse era um projeto de estimação de Kubrick, que por anos o desenvolveu. Ele criou argumentos, fez designs de produção, buscou investimento e, por tudo estar assim tão próximo ao seu coração, reconheceu que não era o nome mais indicado para a empreitada. Quando fez contato com Spielberg, disse que aquela ideia tinha mais a ver com a sensibilidade do diretor, talvez pensando em obras como E.T. ― O Extraterrestre e Contatos Imediatos de Terceiro Grau, que injetam à ficção científica uma grande (e rara) carga emocional. Juntos, foram aos estúdios, apresentando o projeto como “uma mistura de Blade Runner com Campo dos Sonhos”.

“A Fada Azul faz parte da maior falha humana, que é desejar coisas que não existem, ou então do maior dom humano, que é a capacidade de perseguir sonhos

A família Swinton vive uma tragédia: Martin, o primogênito, está em coma e os médicos não demonstram muita esperança. Monica e Henry, pais de primeira viagem, tentam se reerguer, mas é claro que os buracos na estrada dificultam tudo. Paralelamente, o laboratório do professor Hobby desenvolveu o primeiro robô-menino programado para amar e, ansiosos para testar a invenção, procuram os voluntários ideais. O caso dos Swinton parece perfeito, e Henry, sem que sua esposa saiba, adota David — interpretado pelo jovem e já indicado ao Oscar Haley Joel Osment. Com exceção de sua falta de costume e seus movimentos duros, David parece um menino qualquer, assim como o filho que está momentaneamente ausente. E se, no começo, a mãe se mostra incomodada com aquela presença estranha na casa, ela logo se deixa levar pelo enorme carinho que o filho adotivo demonstra. Considerando a linda visão de Hayao Miyazaki sobre o que é uma expressão verdadeira de amor, definida por ele como “quando duas pessoas se inspiram mutuamente a viver”, temos uma manifestação genuína de afeto entre os dois. Ela volta a sorrir, e ele, em seu primeiro contato com o mundo, não faz ideia do que é tristeza.

Para David, deveria ser assim: ele e sua mãe sendo felizes. E isso, ao menos por um período, acontece ― até que Martin volta, depois de um milagre inesperado.

Como um garoto que nem à puberdade chegou, Martin fica às turras com David, criando uma rivalidade fraterna que explora a inocência do irmão, sempre que possível o lembrando que eles não são iguais. Sentindo-se acuado, cada vez mais David quer provar que é humano, chegando ao cúmulo de lotar a boca de espinafre, numa atitude que prejudica seu mecanismo. O médico (ou o mecânico) adverte: “Espinafre é para coelhos, pessoas e o marinheiro Popeye. Não para meninos-robô”. Além de Popeye, outra figura conhecida que ganha destaque é Pinóquio. Monica lê a fábula e David logo se encanta com a possibilidade de, como o boneco de madeira de Gepeto, virar um menino de verdade. Para isso, precisa da Fada Azul, que realizará o seu desejo.

Eventualmente, depois de conflitos que são vistos como ameaças à segurança da família, o casal decide abrir mão de David, devolvendo-o ao laboratório. No caminho até lá, porém, sabendo que mandá-lo de volta significa fazer com que seja descartado, Monica prefere abrir o carro e mandar o filho correr para a floresta, para bem longe do laboratório. Jogado ao mundo, David só consegue pensar na mãe. Agora, custe o que custar, encontrará a Fada Azul. Quer de todo jeito ser um menino de verdade, pois julga que só assim sua mãe o amará de verdade. A longa jornada de David envolve um robô-gigolô (Jude Law), uma carnificina mecânica chamada de Flash Fair e uma Manhattan inundada; uma série de eventos que gira em torno de uma única obsessão: ser amado.

Como Theo foi amado por Catherine. Como Caleb foi amado pelos pais. Como sua mãe chegou a amá-lo, nem que por uma fração de segundo.

O que os traumas nos ensinam é que sempre haverá uma versão melhor da vida, por mais inalcançável que ela seja, e que essa versão vai nos perseguir continuamente com unhas e dentes, nos seduzindo e nos jogando em um estado perpétuo de saudade. Nada pode ser amado com mais intensidade do que aquilo que nos faz falta. E quanto mais artificial se torna o mundo, mais incessante é a nossa busca pelo real.

No fim, estamos todos em busca da Fada Azul.

O desenvolvimento da vida moderna e das grandes cidades trouxe para a sociedade uma sensação constante de ansiedade: estar sempre coordenando o horário do trabalho, a correria no transporte, a paisagem urbana em constante transformação, o avanço da tecnologia, a superficialidade das relações, etc. Com tudo isso, veio também uma sensação constante de incompletude e, muitas vezes, de solidão. Claro que essas questões, que são tanto sócio-históricas quanto filosófico-existenciais, já foram abordadas de diversas maneiras pelas ciências e pelas artes, em todas as suas linguagens.

Um estudo mais ou menos recente de pesquisadores portugueses — Rui Miguel Costa, Ivone Patrão e Mariana Machado — com jovens e jovens adultos, publicado em 2018, detectou que o uso intensivo e problemático da internet causa um sentimento de solidão que não está associado à falta de apoio social — ou seja, à falta de um relacionamento amoroso, de uma família presente, de um grupo de amigos coeso —, mas sim à falta de tempo para interagir cara a cara com os outros por passar tempo demais no mundo online.

Ou seja: é justamente a comunicação online que gera a sensação de solidão. Claro, não há calor na interação pela internet, o famoso olho no olho, o toque, o abraço, o contato com a pele do outro. No entanto, uma das conclusões mais interessantes dos cientistas é a de que, por mais que a comunicação através da internet não nos satisfaça justamente pela ausência de troca sensorial, recorremos a ela para nos sentirmos mais conectados com as outras pessoas.

Vivemos um tempo em que temos a oportunidade de falarmos de forma rápida e direta com nossos amigos e familiares como nunca tivemos antes — pelo menos para quem viveu a época do telefone com fio e os altíssimos preços das chamadas interurbanas. Hoje podemos mandar mensagens instantâneas por diferentes aplicativos e redes sociais para quem está do cômodo ao lado ou para quem está do outro lado do globo. Só que junto à possibilidade do contato imediato vem a ânsia por se sentir conectado ou correspondido imediatamente. E não é sempre assim que o tempo — ou melhor, que os tempos próprios das pessoas — corre, apesar do fluxo acelerado da contemporaneidade. É como se a velocidade do tempo do trabalho tivesse invadido o ciclo do tempo dos nossos sentimentos e afetos e eles tivessem entrado em rota de colisão.

“Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”

A célebre frase do livro O pequeno príncipe, de Saint-Exupéry, também ganhou novas interpretações na era das redes sociais. Entre um giro e outro nas timelines de plataformas como o Twitter e o Instagram, é bem possível que o algoritmo te indique um post contendo um meme ou um recado fofo com a frase. De um lado, há os que defendem que a ideia apresentada no livro através do diálogo do pequeno príncipe com a raposa sobre a relação do garoto com a rosa impõe uma obrigação afetiva entre duas partes que pode ser desgastante, sobretudo por causa do “eternamente”. Se uma relação entre duas pessoas que se gostam, a partir de um determinado momento, passa a ser desgastante ou “tóxica” (para usar uma palavra em voga), não há por que não se interromper esse ciclo. De outro lado, estão os que defendem que, se tudo é conversado, os danos emocionais de uma relação que precisa de reparos é menor. Parece óbvio que, quando estamos falando de relações interpessoais, sejam elas afetivo-sexuais, de amizade ou de trabalho, esteja implícita a reciprocidade entre as duas ou mais pessoas em questão. Mas nem tudo é o que parece, e, quando um lado não é correspondido em suas expectativas, mas não é avisado disso, há uma gíria mais ou menos recente que dá nome à situação: é o ghosting.

O ghosting se tornou uma expressão muito utilizada no contexto do uso das redes sociais e aplicativos de mensagens para se referir a quando uma pessoa deixa de nos responder. A expressão em inglês que se refere à palavra “fantasma” — ou seja, a pessoa sumiu, mas você sabe que ela continua rondando o seu entorno, mesmo que não apareça — é sinônimo do uso do termo “vácuo” como gíria. O ghosting pode ser “dado” ou “recebido” por diversos motivos: pelo fato de uma das partes não querer mais se comunicar, por não saber como comunicar o fim de um relacionamento ou uma situação desagradável envolvendo o outro, mas também por consequências psíquicas do uso extremo das redes sociais ou, como chamaram o pesquisadores mencionados, o PIU (do inglês problematic internet use).

Mais uma vez, os memes são ótimos termômetros para inferir situações cotidianas pelas quais os indivíduos têm passado e com que, na experiência de compartilhar nas redes, acabam se identificando. Há, por exemplo, o meme sobre quem você é no WhatsApp: aquele que responde tudo imediatamente; o que visualiza e deixa pra depois; o que demora dois ou três dias para responder a mensagem de um amigo; ou o que visualiza, deixa pra depois e nunca mais se lembra daquela mensagem, que acaba indo para as profundezas das suas notificações?

A novidade, no entanto, parece ser que o ghosting passou a rondar também o ambiente de trabalho. Não é raro se deparar com textos sobre o tema ao abrir outra plataforma de interação online, o LinkedIn, exclusiva para trocas profissionais. O “ghosting trabalhista” aparece ali tanto do lado do patronato quanto do trabalhador. Ou seja, há relatos e análises de situações em que funcionários, em um determinado dia, simplesmente abandonaram o emprego sem explicações prévias, ou mesmo de empresas que deixaram funcionários ou candidatos a uma vaga em estado eterno de espera. Essa segunda situação, que ocorre no momento da entrevista de emprego e ocorre por falta de retorno ao candidato, é a mais comum.

Essas situações vêm demonstrando que a necessidade de estarmos o tempo inteiro conectados é cansativa. Como as demandas de trabalho se tornaram exaustivas e pouco rígidas quanto aos seus limites de início e fim, sobretudo depois da pandemia, em que muitos de nós passamos dois anos seguidos tentando conciliar o ambiente doméstico com o profissional, vivemos constantemente com uma sensação de estafa mental. Ansiedade, tristeza e nervosismo são sentimentos que foram relatados por mais de metade da população em pesquisas sobre saúde mental em todo o globo.

A tal “parte que falta”

Há mais ou menos cinco anos, a youtuber Jout Jout[1], cujo canal já era largamente conhecido do público jovem brasileiro, viralizou mais uma vez com um de seus vídeos. Nele, ela lia o livro infantil A parte que falta, do norte-americano Shel Silverstein, traduzido para uma edição brasileira. O livro é de 1976 e conta a história do personagem O, um círculo em que há um pedaço em formato de fatia faltando. O sai em sua jornada disposto a encontrar a parte que irá lhe preencher. No caminho, ele nos mostra coisas que lhe dão prazer, como sentir o aroma de uma flor ou ter uma borboleta pousando em si.

O tenta se encaixar em várias partes que encontra pelo caminho, quase sempre sem sucesso. Porém, ele continua tentando, até que um dia encontra uma parte que se encaixaria perfeitamente nele, mas a parte simplesmente não quer. Ela se considera autossuficiente. Então ele segue, encontra uma outra parte que o preenche e fica muito feliz, rolando de um lado a outro, até que se sente sufocado, porque, com a parte junto dele, ele não para mais para sentir o cheiro da flor ou ver a borboleta. Ele nem mesmo consegue cantar. Angustiado, O por fim se separa da parte, começando uma nova busca por uma nova parte, entendendo a transitoriedade da completude de si, enquanto indivíduo, na caminhada.

A lição do livro, concorde-se ou não com ela, pode ser uma ponto de partida para pensar a questão contemporânea da solidão. O que tanto buscamos enquanto estamos atrás das telas, interagindo com amigos e desconhecidos, comparando nossas vidas com a do vizinho do prédio ao lado no mesmo grau com que nos comparamos com celebridades?

A questão apontada pelo estudo dos cientistas portugueses citados é tão complexa e paradoxal que se, de um lado, o mundo conectado nos faz mais solitários porque prescinde da sensorialidade do tato, por outro, a vida de carne e osso não supre a expectativa da superconectividade com pessoas e ambientes diferentes proporcionada pelo mundo virtual. Sabe quando você está no bar com os amigos e um deles não consegue sair do celular? Assim como o ghosting, esse fenômeno também acabou ganhando um nome em inglês: phubbing, que junta as palavras “phone” (telefone) e “snubbing” (esnobar), e significa esnobar alguém por causa do telefone.

Parece intricado o jogo que estamos jogando, cujo objetivo é matizar todos os espectros das possibilidades de relação entre o mundo virtual e o mundo real, que cada vez mais são praticamente uma coisa só. São muito diversas as variáveis de contato e resposta, e as pesquisas deixam cada vez mais claro que não, não estamos indo bem. Temos soluções? Bem, as redes sociais seguem criando problemas individuais e coletivos, inclusive de cunho político, bastante graves. Mas talvez uma busca equilibrada entre o que podemos cultivar e o que nos falta seja uma boa receita para criarmos novas conexões afetivas com nosso entorno.


[1] Nome artístico da jornalista, escritora e vloger Julia Tolezano.

#44O que me faltaCulturaSociedade

Tenho, logo sou?

O que cuidadores de elefantes e um chocolate dividido dizem sobre a modernidade e a sociedade atual.

As lágrimas rolaram pelo meu rosto por boa parte do documentário Como Cuidar de um Bebê Elefante (The Elephant Whisperers). Ao receber o Oscar na categoria Documentário em Curta-Metragem, a diretora indiana Kartiki Gonsalves falou sobre coexistência e sobre o vínculo sagrado entre nós e o mundo natural. A história de dois cuidadores de elefantes órfãos na Índia não emociona apenas pela surpreendente conexão entre eles, mas também porque o filme serve como um espelho reverso: a gente enxerga no casal de cuidadores os valores mais nobres e básicos que precisamos pra sermos felizes. Eles vivem isolados e têm uma vida precária, mas vivem totalmente em sintonia com a natureza e o mundo animal e parecem muito mais felizes e completos do que a gente. Apesar de terem muito pouco, eles vivem a vida na sua totalidade e se sentem parte do todo, algo que nós buscamos duramente todos os dias, muitas vezes sem chegar a lugar algum. Isso porque, é óbvio, estamos buscando no lugar errado.

A modernidade nos tirou a sincronia com a natureza, esgotando nosso mundo interior. Nosso apetite por novas emoções está nos deixando indiferentes a valores como a sutileza e a ética. O dia em que recuperarmos a nossa atenção das redes sociais e olharmos para as coisas que realmente importam, uma revolução começa. Um levante tão importante quanto as grandes transformações tecnológicas que estamos presenciando. Inteligências artificiais, novos mundos imersivos e possibilidades de socialização que nunca havíamos imaginado estão sendo criados sem a nossa participação, causando FOMO (do inglês fear of missing out, isto é, medo de estar perdendo algo) e ansiedade e aprofundando ainda mais a desigualdade no mundo.

Sim, a tecnologia traz possibilidades incríveis, mas as mídias sociais fraturaram nossa capacidade de foco e nos encurralaram. Olhamos nossos celulares a cada minuto, na expectativa por uma notícia, um convite, um elogio, um like, um match, qualquer coisa que provoque faíscas e nos faça sentir vivos. Enquanto isso, o mundo “lá fora” queima. E o mundo lá fora também é lindo.

O problema que enfrentamos hoje é que a atenção às redes ocupa o espaço que antes era ocupado pela empatia. Não precisamos ir longe para perceber que há mesmo um “déficit de empatia” no mundo, parafraseando Obama em um discurso de 2013.

Queremos feedback instantâneo; não escutamos, não elaboramos as consequências dos nossos atos online e buscamos escapes da rotina vivendo qualquer experiência que prometa algum tipo de iluminação, de um Carnaval frenético a um ritual de ayahuasca no meio de São Paulo. Esportes radicais, comidas exóticas, experiências lisérgicas e encontros relâmpagos viram condutores de adrenalina que, assim como uma droga, duram pouco e fazem as pessoas ansiar por mais e mais. Estamos viciados.

No livro The Life Intense: A Modern Obsession, o autor francês Tristan Garcia nos descreve como paraquedistas emocionais, “em busca de sensações fortes que possam justificar nossas vidas”. Quando foi a última vez que você fez algo pela primeira vez?

A economia da experiência está por todos os lugares, vendendo novas aventuras e emoções, e a gente segue comprando do lado de fora para alimentar o lado de dentro. Sensações de vazio e de que nunca temos o suficiente estão há anos sendo semeadas em larga escala na mente humana para acompanhar um mundo organizado para o lucro, e não para a prosperidade humana ou ambiental.

O nosso tempo e a nossa atenção tornaram-se os ativos mais valiosos dessa nova economia. Nosso status é cada vez mais medido não pelo que somos ou pelo que contribuímos, mas pelo que vivenciamos, fotografamos e escolhemos compartilhar. Vivemos um caos publicitário, em que o objetivo dos anúncios parece não ser mais a informação, mas simplesmente a atenção. E a qualidade dessa atenção não importa.

Esta é a vida agora: um fluxo constante e interminável de conteúdos fragmentados e sem sentido que a gente nem quer ver, mas dos quais, por algum motivo, não consegue desviar o olhar.

A possibilidade do conhecimento ilimitado da web é tão onipresente que nem nos lembramos de como era não o ter. Superestimamos o quanto essas tecnologias estão nos prejudicando e subestimamos o quanto também estão nos ajudando. Porque, sim, a internet e as redes podem proporcionar coisas incríveis e propagar assuntos importantes que rodam o mundo em minutos. As redes foram fundamentais para movimentos como #MeToo, Time’s Up e #BlackLivesMatter, e funciona com igual importância para educar e alertar a sociedade sobre questões sociais e ambientais, como as atrocidades cometidas contra o povo Yanomami e a tragédia que devastou o Litoral Norte de São Paulo.

Então o problema não é a tecnologia em si, e sim como escolhemos usá-la. A gente realmente escolhe o que vê ou tem alguém decidindo por nós? A tecnologia está nos servindo ou nós é que estamos servindo a ela?

Nos dias de hoje, não elaboramos os assuntos que nos atravessam. Frases inteiras são resumidas em emojis, a vida (dos outros) é sempre bela, nos comunicamos através de likes, não lemos mais e não sabemos mais nada em profundidade. Nosso conhecimento, assim como nossa atenção, é fragmentado. Sabemos um pouco de tudo e de tudo um pouco, e isso parece ser o suficiente em conversas rápidas em festas entre uma foto e outra ou para engajar vídeos no TikTok.

Muitos dizem que a hiperdigitalização está impulsionando um retorno do mundo analógico, trazendo de volta o uso de discos, câmeras polaroides, enciclopédias, fitas cassete, telefones com fio e Ligue-Táxi — enfim, experiências de um mundo hiperfísico e tangível.

A gente não é o que tem nem podemos ser definidos pelos nossos 15 segundos de engajamento no Instagram. Nós somos o total das nossas experiências de vida: cada lágrima, cada sorriso, cada vez que o coração bate mais forte, cada vitória e cada tombo, cada paisagem, cada música, cada trabalho concluído, cada livro lido, cada história de amor, cada decepção, toda morte e nascimento, cada vez que temos coragem, todos os sins e todos os nãos, as superações e os desgostos, cada ideia e solução, cada beijo, cada gozo, cada abraço de saudade, cada partida e cada reencontro.

Amor, dedicação, conhecimento e foco nos levam a relacionamentos mais profundos e geram sucesso a longo prazo. No entanto, nossa economia atual está constantemente nos levando para longe disso. Precisamos parar de buscar só do lado de fora para acalentar o interno. Nossa atenção pode estar à venda, mas iluminação e paz de espírito não estão, e dependem puramente do nosso esforço e da nossa habilidade de empatia.

Encerro com a história de um estudo feito em 2011 na Universidade de Chicago, em que os pesquisadores realizaram um experimento para entender se um rato libertaria outro de uma gaiola sem receber uma recompensa. A resposta foi sim. Depois de várias sessões, os ratos aprenderam rapidamente a liberar os colegas enjaulados. Os ratos repetiram o comportamento mesmo quando lhes foi negada a recompensa do reencontro. Ainda mais surpreendente: quando os ratos foram apresentados a duas gaiolas, uma contendo um rato e a outra um chocolate, eles optaram por abrir as duas gaiolas e dividir a recompensa.

Qual foi a última vez que você dividiu o seu chocolate?