Le Corbusier em 1950. Imagem: Sam Lambert/Architectural Press Archive/RIBA Collections

Le Corbusier (1887-1965) foi possivelmente o mais influente arquiteto do século XX. Não só o mais influente: o mais controverso também. Com o centenário de seu clássico manifesto Por uma arquitetura (Vers Une Architecture, no francês), vale refletir sobre o que a tapeçaria teórica e a prática contida na obra representou, e representa, para a arquitetura contemporânea. Tanto a obra em questão quanto a carreira de Le Corbusier foram construídas a partir de ideias realmente inovadoras, mas ideias que, de acordo com muitos especialistas (munidos, claro, com o distanciamento temporal), não tinham em vista o mundo assim como ele

Independentemente disso, fato é que há um pré-Corbusier e pós-Corbusier. Não é sempre que vemos esse papel de divisor de águas atribuído à uma única pessoa, e isso vale para qualquer área. Ou seja: controverso, sim; irrelevante, jamais.

Nascido em 1887 na Suíça, Le Corbusier começou sua vida profissional como pintor e designer de móveis. Foi em seus tempos de aprendiz de relojoeiro, aliás, que começou a desenvolver uma consciência de estrutura e sua apurada precisão, algo fundamental em tudo que produziu posteriormente. Seu interesse por arquitetura, o levou a se matricular na Escola de Artes de La Chaux-de-Fonds, onde estudou sob a orientação de Charles L’Eplattenier (1874-1946), um mentor crucial que o introduziu ao pensamento vanguardista da época. Em 1907, se embrenhou profundamente na cena artística parisiense ao se mudar para a capital francesa. Lá, trabalhou com arquitetos proeminentes, como Auguste Perret (1874-1954) e Peter Behrens (1868-1940), adquirindo uma compreensão profunda da aplicação de materiais modernos em projetos arquitetônicos. Essas experiências o ensinaram a enxergar beleza em uma abordagem funcionalista do design, quando a forma segue a função e não ao contrário — eis a filosofia que se tornaria um pilar fundamental da arquitetura moderna.

Le Corbusier não apenas revolucionou a forma física dos edifícios, mas também introduziu novos materiais e técnicas construtivas. Ele foi pioneiro em adotar o concreto armado como material de construção principal, o que permitiu a criação de estruturas mais esbeltas, abertas e flexíveis. Essa abordagem inovadora influenciou a estética da arquitetura moderna e contribuiu para a rapidez e eficiência da prática da construção. 

Tendo em vista essa sua veia radicalmente transformadora, logo se imagina que, por trás de tudo (ou na frente de tudo), houvesse uma pessoa detentora de um arcabouço teórico amplo capaz de estruturar ideias de maneira clara e sedutora. Além de seus projetos arquitetônicos e urbanísticos, Le Corbusier era um prolífico escritor e teórico — o que nos leva ao famoso Por uma arquitetura.

Publicado como livro há cem anos, em 1923, baseado parcialmente em artigos anteriores, Por uma arquitetura é um manifesto do modernismo que defendia a aplicação tecnológica a projetos de edifícios, tomando a beleza e a lógica das máquinas e da engenharia de viadutos, transatlânticos e silos de grãos como a mais importante. O manifesto também promove — há quem diga “acima de tudo” — o próprio Le Corbusier, como um homem (quiçá, o único) habilitado a dar vida ao novo mundo proposto. É um caso clássico de um egocentrismo que, de boca cheia, diz: “O mundo precisa disso e ninguém melhor do que eu para fornecê-lo”. Em defesa de Corbusier, se havia alguém que podia fazer isso à época, era ele. E, de um jeito ou de outro, Le Corbusier o fez. 

Usando combinações de fotografias, desenhos medidos e esboços, o livro mostra imagens de carros e aviões ao lado do Partenon e da catedral de Notre Dame, considerando as cidades como receptáculos inevitáveis de toda e qualquer tecnologia. Estabelece, assim, cinco princípios-mor de design, que propõem novas formas de construir cidades, com torres de 60 andares implantadas entre vastos jardins e campos desportivos, servidas por auto-estradas de múltiplas faixas, e também blocos de “vilas-apartamentos” de vários andares onde cada casa tem o seu próprio jardim.

Os cinco princípios são:

Os pilotis — Le Corbusier propunha elevar os edifícios do chão, apoiando-os em pilotis (colunas). Essa abordagem permitia a criação de espaços abertos no térreo, liberando o solo para jardins, estacionamentos e uma maior circulação. Os pilotis também enfatizavam a separação entre o edifício e o solo, criando uma sensação de leveza e permeabilidade visual.

A planta livre — Espaços internos de um edifício deveriam ser flexíveis e livres de paredes estruturais, possibilitando uma adaptação fácil dos espaços de acordo com as necessidades dos ocupantes. Com a estrutura sustentada pelos pilotis e sem paredes de suporte, os interiores poderiam ser organizados de forma mais eficaz.

A fachada livre — A fachada de um edifício não deveria mais desempenhar um papel estrutural. Isso permitia a criação de grandes janelas e uma fachada mais leve, enfatizando a relação entre o interior e o exterior. As fachadas poderiam ser projetadas com aberturas generosas para a entrada de luz e ventilação naturais.

A janela em fita — Janelas em faixas horizontais ao longo das fachadas dos edifícios. Simples. Isso não apenas fornecia uma vista panorâmica do ambiente externo, mas também garantia uma distribuição uniforme de luz natural em todo o espaço interno. Essa abordagem transformou a qualidade dos espaços interiores.

O telhado jardim — Le Corbusier acreditava na utilização dos telhados como espaços habitáveis ou de lazer. Essa ideia promovia uma melhor utilização do espaço e incentivava a integração da natureza na arquitetura. Os telhados podiam ser transformados em jardins, áreas de recreação ou até mesmo espaços para atividades ao ar livre.

A maneira como apresentava tais preceitos era também um grande chamariz. Um dos muitos motivos para o sucesso, a abrangência e a longevidade de Por uma arquitetura, é o fato de que a obra conta com um manancial de frases marcantes, dignas de serem usadas facilmente como um ardil que se leva na bolsa ou como palavras que estampam uma camiseta. A mais conhecida delas é a que diz, em tom futurista, que “Uma casa é uma máquina de morar”. Além dela, “A paixão faz das pedras inertes um drama” e “A arquitetura é o jogo sábio, correto e magnífico dos volumes dispostos sob a luz” também entram na lista de citações memoráveis e persuasivas. Para além desse caráter progressista da maioria delas, a veia frasista mostra a importância que mensagens fortes têm, em especial na apresentação de ideias inovadoras que não necessariamente tem uma aplicação prática boa e imediata.

Mas justiça seja feita: Le Corbusier colocou, sim, suas teorias em prática. Para citar algumas obras, ele projetou a Unité d’Habitation em Marselha, um monumental bloco de apartamentos que tirava do papel suas ideias sobre habitação coletiva. Temos também as Maisons Jaoul, um par de casas em um subúrbio de Paris construídas com tijolos de barro e abóbadas robustas. Muitos, no entanto, defendem que ele criou as regras para desrespeitá-las e, portanto, muito do trabalho posterior a Por uma arquitetura se distanciou do que o próprio preconizou anos antes. Mais tarde em sua carreira, especialmente de 1945 adiante, ele rompeu com seu apego a linhas limpas e formas primitivas, explorando concreto áspero e formas curvas de forma livre. Exemplo disso é sua igreja de Notre-Dame du Haut, no topo de uma colina, em Ronchamp, no leste da França.

Unité d’Habitation em Marselha, França. Imagem: Gili Merin

Goste ou não, Le Corbusier foi uma força criativa imponente — e, talvez, egomaníaca — que transformou para sempre a sua disciplina. Seus edifícios inspiraram admiração, às vezes devoção. Como todo ícone, também foi, e é, vigorosamente atacado, como um fanático mecanicista cujas ideias inspiraram torres desumanas e selvas de concreto. Sua visão de planejamento urbano às vezes negligenciava as nuances culturais e as necessidades específicas das comunidades locais. Se, a título de exemplo, analisarmos mais atentamente a ideia de erguer edifícios sobre pilotis para permitir que o jardim se estenda por baixo da residência, logo se percebe que ela é um tanto estranha. Pode mesmo haver um jardim natural sem chuva e luz solar? Simbolicamente, você poderia ver o pilotis como um dispositivo para separar o edifício do solo e uma negação da dependência da terra, ou mesmo como uma afirmação de domínio e controle sobre a natureza. 

Villa-Savoye. Imagem: Paul Kozlowski/FLC/ADAGP

Outro fator muito criticado hoje em dia é que os planejamentos urbanos de Le Corbusier tinham o automóvel como centro. A arquitetura do movimento moderno baseava-se na presunção de combustíveis fósseis baratos e ilimitados, além de outros recursos finitos. É claro que, somente 50 anos depois da publicação de Por uma arquitetura, a consciência começou a ser formada e tal ideia passou a ser questionada. Mas isso em nada ajuda a visão em retrospecto que, para o bem ou para o mal, se dá nestes tempos em que a nossa relação com a natureza é o principal desafio da continuidade humana. Enquanto tentamos, cem anos depois, fazer as pazes com o mundo tanto em termos ambientais quanto sociais, Por uma arquitetura utilizava uma linguagem de limpeza, limpeza e eficiência, de um tipo que tende a apagar tudo o que é esteticamente diferente ou espacialmente diferente. Na argumentação corbusiana, “diferença” ganha conotações extremamente negativas e problemáticas. 

Notre-Dame du Haut. Imagem: Luke Stearns

Além disso, seu envolvimento com regimes autoritários sempre levanta questões éticas e políticas. Ele se tornou cidadão francês em 1930, aliando-se à extrema-direita. Fez parte do comitê de urbanismo da França de Vichy, liderada pelo marechal Philippe Pétain (1856-1951), que colaborou com a Alemanha nazista durante a Segunda Grande Guerra. Argumenta-se que os envolvimentos políticos de Corbusier tinham menos a ver com ideais e mais a ver com uma estratégia para conseguir produzir suas ideias, percebendo que, para tanto, tinha que ter amigos poderosos que lhe concedessem licitações. Isso justificaria a troca de correspondência não só com Adolf Hitler (1889-1945), mas também com Benito Mussolini (1883-1945) e Joseph Stalin (1878-1953). A contra-argumentação, porém, é das mais simples: seja com qual propósito, apertou mãos que não devia.

A fala de Denise Scott Brown, pioneira da arquitetura e arquiteta pós-moderna, sintetiza bem a maneira como Le Corbusier é visto sob a ótica contemporânea: “Amo as casas dele, mas ele não entendia como as cidades funcionam.” Essa é uma boa amostra, acima de tudo, porque respinga para os dois lados, o da admiração e o da rejeição, duas instâncias bem presentes quando o arquiteto é mencionado atualmente em qualquer roda de discussões. Ela continua: “Ele olhou para Nova York e disse que, quando as ruas estão retas, a mente fica clara. Adoro isso, mas quando ele diz que tudo deve ser retangular, está completamente errado. Ele não sabia relacionar nada com nada, não sabia como funcionavam os sistemas de movimento. Le Corbusier escreveu que as cidades da Europa foram construídas por burros, com as ruas moldadas em torno dos seus trilhos. Ele insulta o burro, diz que ele é preguiçoso e anda em círculos quando deveria ir direto. Mas o burro segue o caminho que faz sentido, contornando uma elevação no terreno em vez de passar por cima dela, e é assim que se obtêm os lindos padrões das cidades antigas. O burro não é preguiçoso, é um funcionalista.”

Embora muitas de suas visões tenham enfrentado críticas e desafios práticos — não só no presente, mas desde que foram apresentadas —, elas deixaram uma marca duradoura no pensamento urbanístico e inspiraram discussões sobre como projetar cidades para atender às necessidades das pessoas e ao mesmo tempo preservar o meio ambiente. Diante do centenário de Por uma Arquitetura, é essencial reconhecer que Le Corbusier não apenas moldou a arquitetura moderna, mas também contribuiu significativamente para a maneira como pensamos sobre o espaço e o ambiente construído. Seu legado perdura como um testemunho de como a visão e a inovação podem transformar radicalmente nossa relação com o mundo construído, ainda que com problemáticas vindo de todos os lados. 

Onde quer que ele esteja — possivelmente em um projeto urbanístico que aplica à outra dimensão os 5 princípios-chave da arquitetura — deve estar pensando: “Qu’on parle de moi en bien ou en mal, peu importe.” Ou: “Falem bem ou falem mal, mas falem de mim.”

Le Corbusier em 1953. Imagem: Willy Rizzo.

A Bienal de Arquitetura de Veneza é uma das premiações mais importantes e tradicionais do setor, sendo reconhecida mundialmente. Sua 18ª edição, inaugurada para o público no último dia 20 de maio, tem como temática central “O Laboratório do Futuro”, com destaque para a influência e a indispensabilidade do continente africano na formação do mundo de amanhã. A exposição internacional, com curadoria de Lesley Lokko, conta com 89 participantes. Já a exposição nacional conta com 63 pavilhões. 

Foto: Murdo MacLeod/The Guardian

“Que impacto terá esta Bienal? Que impacto espera ter? Espero que ressoe, que provoque o público a pensar de forma diferente e talvez com mais empatia sobre aquelas partes do mundo que parecem, à primeira vista, ter pouco a ver com ele, que proporcione momentos de alegria, surpresa e curiosidade” 

— Lesley Lokko, curadora da Bienal de Veneza 2023

E, pela primeira vez na história, o pavilhão brasileiro foi agraciado com o Leão de Ouro de Melhor Participação Nacional. A exposição intitulada “Terra”, vencedora do prêmio, foi organizada por Gabriela de Matos e Paulo Tavares, que com inventividade e apuro teórico estimulam uma reavaliação do passado capaz de projetar o futuro. 

Matos e Tavares propõem uma reflexão sobre a arquitetura ancestral realizada por comunidades quilombolas e indígenas, ao mesmo tempo em que investigam a tese de que Brasília foi construída sobre terras originalmente ocupadas por povos nativos, abordando assim um processo de colonização territorial. O pavilhão contempla o passado, presente e futuro do Brasil, com a terra como tema central de discussão tanto de forma poética quanto concreta no espaço expositivo. Ao cobrir completamente o pavilhão com terra, os visitantes são convidados a entrar em contato direto com as tradições indígenas, quilombolas e com a prática religiosa do Candomblé. A instalação site-specific enaltece a abordagem da terra em todas as suas dimensões.

“Terra” também aborda um futuro pós-mudanças climáticas, um porvir onde os conceitos de “descolonização” e “descarbonização” caminharão juntos, quase como noções interligadas e inseparáveis. Práticas, tecnologias e costumes relacionados à gestão e produção da terra, assim como outras abordagens na concepção e compreensão da arquitetura, são fundamentados na terra e carregam conhecimentos ancestrais para ressignificar o presente e vislumbrar futuros alternativos. Esses futuros não se limitam apenas às comunidades humanas, mas também se estendem às não humanas, caminhando em direção a um futuro planetário.

Foto: Rafa Jacinto/Fundação Bienal São Paulo

Com uma estrutura dividida em duas galerias — “De-colonizando o Cânone” e “Lugares de Origem, Arqueologias do Futuro” —, há uma aproximação entre temas emergentes no contexto brasileiro, como reparação e decolonialidade, e tópicos abrangentes e fundamentais no debate global contemporâneo, como descarbonização e meio ambiente. 

O Ministério da Cultura, que destinou aporte ao projeto, comemorou a vitória. A ministra Margareth Menezes, além de prestigiar a presença brasileira no evento, parabenizou os arquitetos vencedores em suas redes sociais por promoverem a cultura brasileira e proporcionarem aos visitantes uma imersão nas tradições indígenas, quilombolas e na prática religiosa do Candomblé.

Gabriela de Matos é criadora do projeto Arquitetas Negras, que mapeia a produção de arquitetas negras brasileiras e pesquisa o racismo estrutural e suas influências no planejamento urbano. Também é professora da Escola da Cidade, em São Paulo, onde é vice-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil no departamento de São Paulo (IAB-SP). Em 2020, foi premiada como Arquiteta do Ano pelo IAB-RJ. Seus trabalhos pesquisam tanto o racismo estrutural e suas influências no planejamento urbano quanto a arquitetura contemporânea produzida na África e sua diáspora. 

O trabalho de Paulo Tavares abre um campo colaborativo voltado para a justiça ambiental e contra-narrativas na arquitetura, operando através de múltiplas mídias. Seus projetos foram apresentados em várias exposições e publicações em todo o mundo, incluindo Harvard Design Magazine, The Architectural Review, e a Bienal de Arte de São Paulo. Além disso, foi co-curador da Bienal de Arquitetura de Chicago 2019 e faz parte do conselho curatorial consultivo da Bienal de Sharjah 2023. No Brasil, lidera a agência de defesa espacial autônoma e leciona na Universidade de Brasília.

Leia nossa conversa com Gabriela e Paulo:

Foto: Matteo de Mayda/Courtesy La Biennale di Venezia/dpa/picture alliance

Do ponto de partida “Laboratório do Futuro”, como chegar à ideia de explorar a arquitetura ancestral realizada por quilombolas e indígenas no pavilhão “Terra”?

Um conceito que sempre foi crucial para nosso projeto é a ideia de que “o futuro é ancestral”, elaborada por Ailton Krenak e o movimento indígena. Há algo de muito profundo nesta ideia do ponto de vista do design, do desenho da paisagem, da produção de uma arquitetura da terra, por assim dizer, terra como chão e planeta. É amplamente comprovado cientificamente — e também através de certificados patrimoniais como recentemente laureado ao Quilombo Kalunga pela UNESCO — que os saberes e as tecnologias de produção e reprodução da paisagem cultivados através de gerações por povos originários e povos africanos diaspóricos são cruciais para enfrentar a encruzilhada existencial que se impõe à espécie humana frente a crise climática global. Por isso olhamos para estes espaços e práticas como tecnologias do futuro, tecnologias ancestrais e ao mesmo tempo radicalmente contemporâneas. 

Foto: Rafa Jacinto/Fundação Bienal São Paulo

Qual foi o processo de pesquisa envolvido na coleta de informações sobre a arquitetura ancestral e sua relação com a colonização territorial em Brasília?

“Coleta de informações” é um termo ruim. O que tentamos fazer, com todas as dificuldades e limitações de um projeto desenvolvido em prazo tão curto, foi estabelecer relações com entidades e lideranças das comunidades e povos que são os autores das arquiteturas apresentadas no pavilhão. Por exemplo, o Terreiro da Casa Branca, as Tecelãs do Alaká, a FOIRN — Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, entre outros. São muitas gentes (sic) e terras que fizeram este pavilhão, a quem agradecemos por compartilhar deste projeto. E também tentamos entender de que maneira o projeto da bienal poderia estar em aliança com o contexto político destas comunidades e organizações. 

Por exemplo, o filme de Day Rodrigues, O Corpo da Terra, uma comissão da curadoria, fala das ameaças ao patrimônio do Terreiro da Casa Branca, em Salvador, primeiro patrimônio negro tombado no Brasil, que nos últimos anos tem visto suas terras ameaçadas pela especulação imobiliária e total descaso do poder público em preservar este patrimônio. Um outro exemplo é o modelo digital da Cachoeira do Iauaretê, desenvolvido em parceria com a FOIRN e a BrTech, que utiliza técnicas sofisticadas de preservação patrimonial digital. Esperamos que estes materiais possam ter uma agência para além de Veneza, fortalecendo a agenda de reconhecimento e proteção destes patrimônios culturais. 

Quais foram os principais desafios enfrentados ao propor uma reflexão sobre o passado para projetar o futuro na exposição? Em especial, como alcançar uma mensagem universal a partir das especificidades contidas no pavilhão “Terra”, como as reflexões sobre Brasília?

Acho que é importante salientar que, apesar de estarmos olhando para questões memoriais, questões relativas à memória e ao patrimônio, não estamos falando do passado no sentido de algo remoto, distante, passado em termos literais. Estamos falando de questões muito contemporâneas, que, sim, certamente refletem sobre a história, mas uma história muito presente. Por isso também não falamos de “arquitetura vernacular” ou “arquitetura tradicional”, ou mesmo “arquitetura popular”, para designar as espacialidades originárias e diaspóricas do Brasil. Estes conceitos são, em muitos sentidos, legados de um sistema colonial de classificação da arquitetura elaborado pela modernidade, que desafiamos no pavilhão através de diferentes camadas e narrativas. Talvez um termo mais adequado seja “arquiteturas ancestrais”, no sentido projetivo que a frase “o futuro é ancestral” de Ailton Krenak carrega. 

Sobre “como alcançar uma mensagem universal”, como você pergunta, achamos que a universalidade da mensagem está justamente no fato de que o pavilhão trata de questões e práticas locais, situadas e históricas, práticas do chão e do solo, mas que assumiram uma dimensão política global, propriamente planetária frente a crise climática, da terra à Terra. Além disso, questões sobre a de-colonização de narrativas canônicas e reparação histórica que abordamos no pavilhão são questões que estão na ordem do debate arquitetônico e artístico contemporâneo mundialmente. Considere, por exemplo, todo o debate sobre a restituição de objetos de arte pilhados de territórios colonizados que hoje encontram-se nos museus europeus, ou o debate sobre a reparação memorial que surgiu com o movimento Black Lives Matter, e explodiu em manifestações mundo afora em 2019. O pavilhão fala sobre o Brasil, mas o Brasil também como epicentro deste movimento global antirracista e de-colonial. 

Foto: Rafa Jacinto/Fundação Bienal São Paulo

Quais foram as reações e feedbacks que receberam dos visitantes da exposição? Houve algum ponto de destaque ou surpresa?

Ficamos muito contentes com a conexão do público com a exposição, especialmente o público não especializado em arquitetura. Parece haver uma relação afetiva com a terra e o chão de terra instalado no pavilhão que traz questões mais amplas sobre nosso futuro, através da arquitetura, mas para além de seu nicho disciplinar. Antes da abertura estava muito úmido em Veneza, havia chovido por dias, e a instalação de terra preservou esta umidade, exalando um cheiro de terra batida molhada por todo o edifício. Criou-se uma atmosfera sensível com a terra, não apenas no nível da representação dos projetos expostos, mas da própria experiência espacial imersiva, da experiência arquitetural do pavilhão. Como escrevemos no catálogo, ao fazer uma crítica às narrativas hegemônicas do modernismo, principalmente através de Brasília na primeira sala, não poderíamos deixar de considerar que o edifício do pavilhão brasileiro no Giardini, uma obra do arquiteto modernista Henrique Mindlin, não é um objeto neutro, dissociado das narrativas e ideologias que sua arquitetura carrega. Logo esta instalação site-specific em diálogo crítico com a arquitetura patrimonial do pavilhão no Giardini, que chamamos de “aterramento”, aterrando o edifício sobre o chão de terra batida. 

De que maneira vocês enxergam a interseção entre arquitetura e questões climáticas no contexto da exposição “Terra”?

Existem vários aspectos onde a articulação entre os termos “de-colonizacão” e “de-carbonização” colocada pela curadoria de Lesley Lokko aparece na exposição. Mais explicitamente no reconhecimento de que saberes e tecnologias indígenas e negras, manifestas em espaços como terreiros, territórios indígenas e territórios quilombolas, apontam caminhos para o enfrentamento da crise climática global de maneira igualitária e sustentável. Veja uma coisa interessante: os espaços de terreiros em Salvador tornaram-se verdadeiras “ilhas ecológicas” em meio à expansão urbana predatória e muitas vezes ilegal (este é o atual conflito enfrentado pelo Terreiro da Casa Branca, que faz parte da exposição, que é o primeiro monumento negro tombado no Brasil e está sob constante risco da especulação imobiliária). Aqui encontramos um saber/fazer de espaços — liderados por mulheres negras identificado por Gabriela de Matos como a origem da arquitetura afro-brasileira — que nos parece fundamentalmente atual para lidar com as mais prementes questões urbanas e ecológicas contemporâneas.

Como vocês vêem o reconhecimento do governo brasileiro, representado pela ministra Margareth Menezes, em relação ao prêmio conquistado pelo pavilhão brasileiro? Vocês acreditam que esse reconhecimento reflete uma mudança de postura em relação ao incentivo à cultura no país?

Ficamos honrados com a presença da ministra Margareth Menezes no evento de abertura do pavilhão. Em seu discurso, Margareth Menezes fez uma leitura sobre o significado do projeto curatorial de Terra para o Brasil contemporâneo. Não é coincidência que este prêmio venha neste momento. O Brasil passa por um momento de reconstrução, de reparação, temas centrais do projeto curatorial. De certa maneira, o Leão de Ouro vir para o Brasil neste momento simboliza uma reparação pelo desmonte ao incentivo cultural dos últimos quatros anos.   

Quais desafios vocês enfrentaram, especialmente no período de gênese do projeto, para realizar a exposição Terra em um contexto em que a cultura foi pouco incentivada? Como pensar além e superar desafios para alcançar o reconhecimento internacional?

Os desafios foram muitos e vieram em escalas diversas. Desde a distância entre nós, pois moramos em cidades e estados diferentes; a dificuldade de, institucionalmente, se entender um projeto que estabeleceu pontos de partida propondo outros cânones, isto é, a partir de epistemologias pretas e indígenas; e, por fim, projetar algo que faz reverência a nossa cultura ao mesmo tempo que não tínhamos, no momento que iniciamos o projeto (out 2022), um departamento em âmbito nacional que estivesse apoiando o campo. No entanto, a presença da Ministra Margareth Menezes na abertura do pavilhão em Veneza afirma o compromisso de sua gestão com uma proposta como a nossa.

Foto: Rafa Jacinto/Fundação Bienal São Paulo

Com esse prêmio histórico, joga-se uma luz sobre o desafio de questionar, ou ao menos ampliar, as narrativas canônicas e expandir assim a compreensão sobre a formação do território brasileiro. Em termos práticos, o que mais pode ser feito para chegar lá?

Em termos práticos, a principal questão é política. As narrativas, imagens e imaginários de outras histórias, memórias, patrimônios, arquiteturas. Tudo isso é fundamental, e também fundamentalmente político, mas não é suficiente. No momento em que esse prêmio histórico chega ao Brasil, reconhecendo as práticas espaciais e territorialidades dos povos originários na Bienal de Arquitetura de Veneza, um dos mais importantes fóruns da arquitetura mundial, vemos um retrocesso absurdo, a continuidade da violência colonial por outros meios, através da aprovação, ocorrida hoje, ao tempo desta escrita, da PL490, que adotou a tese do “marco temporal” na demarcação de terras indígenas. 

O Leão de Ouro nos faz refletir sobre uma questão crucial de um Brasil em reconstrução, um Brasil que deve olhar para sua história como horizonte de um outro possível futuro. Como as políticas de reparação serão implementadas para além de uma questão simbólica, mas sim acompanhadas de ações que garantam os direitos dos povos a terra? Em muitos sentidos, o horizonte político de nosso projeto curatorial Terra é sobre isso, através e além da arquitetura. 

Para o arquiteto, a falta importa. A inexistência de matéria, mais propriamente entendida como vazio, pode ser melhor compreendida a partir das considerações adiante expostas.

A construção do vazio é um dos pontos principais que o arquiteto deve dominar. Isso porque, em primeiro lugar, habitamos o vazio. Nossa experiência com o espaço, seja ela práticaou subjetiva, acontece nele. Assim como um escultor, a partir de um bloco monolítico, esculpe a figura pretendida através da remoção da matéria, o arquiteto se depara com um exercício semelhante em diversas escalas e contextos.

 A expressão “vazios urbanos”, por sua vez, é usualmente empregada pelos urbanistas como espaços negligenciados pela cidade, áreas sem uso, lotes vazios, obstruções físicas que impedem, parcial ou totalmente, a integração urbana. Esses comprometimentos da fluência dos espaços dificultam o acesso e a relação de áreas residenciais com setores comerciais e de serviços, e, o que é mais grave, em alguns casos, criam barreiras e acentuam desigualdades sociais.

Panteão, em Roma.

Quero, porém, ressaltar os necessários — e desejados — vazios que melhoram a qualidade de vida dos habitantes. Por exemplo, um projeto de urbanismo pode ser desenvolvido a partir do reconhecimento dos vazios, como no caso de uma praça, de calçadas mais largas, de um recuo de edificações ou mesmo do recuo das construções em relação ao passeio público, e assim por diante. O respiro, a pausa, o maior espaço e a permeabilidade na circulação dos pedestres se torna fundamental no contexto de nossas cidades mais densas. Ao analisar Manhattan, em lugar de inúmeras praças espalhadas pela cidade, foi idealizado um grande vazio central, o Central Park. Em contrapartida, Londres foi desenhada pontuando jardins menores e fragmentados pela malha urbana, alguns inclusive fechados para uso exclusivo dos moradores das casas que os circundam. Os grandes parques de Londres eram, em sua maioria, campos de caça que posteriormente se transformaram em parques. Evidentemente, as estratégias adotadas nessas cidades para os vazios planejados geram impacto nas dinâmicas sociais.

As cidades brasileiras, por sua vez, são colchas de retalhos de estratégias inspiradas nas principais correntes urbanísticas, a depender da época em que foram implantadas — na maioria das vezes, apenas em áreas privilegiadas da cidade. Nossa carência de vazios planejados é evidente, e os poucos existentes resultam de boas intenções pontuais e muito empenho, como o Parque Augusta e a abertura do Minhocão nos finais de semana,no caso da cidade de São Paulo.


Santa Paula Iate Clube, projetado pelo arquiteto João Batista Vilanova Artigas na década de 1960.

Os vazios planejados são fundamentais para que a vida urbana aconteça em sua plenitude e têm impacto direto na qualidade de vida e na saúde mental de seus habitantes. As cidades precisam ser densas(que não haja equívoco quanto a isso), as pessoas devem morar onde desejam e preferencialmente próximas de onde trabalham. As demandas precisam ser atendidas, mas, tão importante quanto a alta densidade das áreas urbanas, deve haver o contraponto, há que se dimensionar e locar adequadamente os vazios e requalificaraqueles que nos separam.

O vazio também merece protagonismo na escala das construções, seja numa casa, numa capela ou num museu. A proporção do vazio no espaço construído e sua dimensão em relação ao pé direito projetado, somadas as aberturas para a entrada de luz natural, têm influência direta na psique humana, evocando desde o acolhimento e a serenidade até a grandiosidade dos monumentos.

A magnitude do Panteão, em Roma, impacta não pela altura da construção, mas sim pela dimensão de seu vazio interno, coroado pela abertura de luz no topo.

Em um de seus últimos projetos, a reforma da Bolsa do Comércio de Paris, o arquiteto japonês Tadao Ando, que possui grande sensibilidade para o vazio, através de intervenção precisa de empenas de concreto, organizou a circulação em torno do vazio central e reforçou seu protagonismo.

Bolsa do Comércio de Paris, de Tadao Ando.

Vale aqui referir David Byrne, vocalista do Talking Heads, que em uma palestra muito interessante, correlaciona o desenvolvimento de alguns tipos de música ao espaço onde foram criadas, essencialmente a melhor propagação da música no vazio em que surgiram. Cantos gregorianos em catedrais góticas, jazz em ambientes pequenos, rock e punk nos porões.


Planta e corte de uma casa projetada por Felipe Hsu, no interior de São Paulo, em torno de um vazio central.

Nas casas brasileiras, em função das dimensões recorrentes dos lotes de meio de quadra, o vazio em forma de pátio interno, central ou lateral, recurso utilizado desde a Antiguidade Clássica, é ferramenta que permite a entrada de luz, confere permeabilidade visual à construção e agrega vantagens térmicas na implantação do projeto.


Casa em Santa Teresa, projetada pelo arquiteto Angelo Bucci. Foto: Nelson Kon

A ausência de materialidade em determinados pontos da construção é recurso que traz leveza ao objeto edificado. O que em princípio seria pesado e volumoso, pela ausência de matéria no encontro das formas, torna-se delicado e singelo.

O arquiteto brasileiro Angelo Bucci, um dos mestres em transformar o peso do concreto em construções leves que parecem apenas pousar no solo, utiliza empenas que não se tocam — vazios internos e externos que dialogam para criar uma construção rica, essencialmente através dos vazios e da ausência de encontros.

Nos dias atuais, marcados pela velocidade do mundo digital, pelo excesso de informação e pelas rotinas apressadas, o vazio, enquanto elemento chave do projeto, tem essa qualidade imaterial, muito própria e intrínseca, que traz bem-estar, proporciona oportunidade de contemplação e leveza e traz serenidade e respiro para aqueles que têm o privilégio de habitar, trabalhar e circular nos espaços assim projetados.

Lindesnes, na Noruega, é conhecida por suas condições climáticas intensas, que podem transitar da calmaria à tormenta várias vezes ao dia. No ponto mais meridional de todo o país, quando ocorre a confluência das correntes marítimas do norte e do sul, fortes tempestades berram com seu aguaceiro; caso contrário, a paz reina (nunca por muito tempo). 

Nesse cenário, emerge uma figura quase cinematográfica que, à uma olhadela rápida, mais parece a baleia encalhada de La Dolce Vita ou então o grande barco de Fitzcarraldo perdido em terra. Ao exame mais minucioso, porém, eis a mais inusitada, e grata, surpresa: nem baleia nem barco, mas, sim, um restaurante.

Inaugurado em 2019 com um projeto que estabelece um diálogo direto com o seu contexto geográfico, concebido pelo badalado escritório de arquitetura Snøhetta, o Under é o primeiro e único restaurante subaquático da Europa. Para além dos cinco metros e meio abaixo da superfície — que vale para apenas uma parte de sua constituição, enquanto a outra está acima do nível da água —, o conceito de coexistência se faz presente em uma proposta intrigante: com o tempo, cada vez mais, a estrutura do restaurante se tornará partícipe do ambiente marinho. Muito embora soe como aquele argumento de marketing pouco realista, a biologia marítima por trás do projeto explica que a rugosidade da casca de concreto age à semelhança de um recife artificial, acolhendo lapas e algas que nela podem habitar.

Há quem diga que, para a humanidade realmente cuidar melhor do meio ambiente, mais pessoas precisam ver, viver e aprender sobre ele — e essa é a ideia central no projeto do Under. 

O cronograma da experiência, sem considerar a trabalhosa viagem até o local, é: primeiro, torcendo para que as borrascas não atrapalhem, você caminha da costa por cima de uma ponte de cerca de 12 metros até a entrada com painéis de madeira do restaurante; ao adentrá-lo, logo cria-se um clima intimista com uma luz que vai gradualmente diminuindo e, uma vez que se chega ao mezanino, você está na companhia de uma janela que apresenta uma majestosa divisão entre ar e mar, bem no limite entre um e outro; e, finalmente, descendo uma grande escadaria, já com as luzes em seu estado mínimo, você se senta em uma mesa cinco metros e meio abaixo do nível do mar, de cara com as maravilhas e os mistérios da vida subaquática.

Um detalhe interessante, digno de nota por dizer muito sobre o que é e o que representa o restaurante, é que, na língua norueguesa, a palavra “under” tem um significado duplo: na mesma medida em que quer dizer “abaixo”, também quer dizer “maravilha”. 

Como metáfora, podemos pensar tanto na experiência quanto no nome como uma grande história de contrastes — entre água e ar, entre o que está acima e o que está abaixo. Com espaço para até 100 pessoas em uma área de cerca de 500 metros quadrados, o Under é o maior restaurante submarino do mundo. Diante dessa eloquência inegável, e dos entornos às vezes calmos e às vezes furiosos, ressalta-se o delicado equilíbrio ecológico entre a terra e o mar, chamando a atenção para a responsabilidade que temos de adotar modelos sustentáveis de consumo.

Se os seres humanos são compostos principalmente de água e que, portanto, queiramos ou não, estamos tremendamente conectados ao ecossistema aquático, estar no Under permite que as pessoas criem um relacionamento mais profundo com todas as formas aquáticas, refletindo sobre a nossa história antiga.

É como o oceanógrafo e documentarista Jacques Cousteau dizia: “O mar, depois que faz valer o seu feitiço, aprisiona aquela pessoa eternamente em sua rede de maravilhas.”

Rudy Ricciotti vê a arquitetura como um produto do seu contexto, combinando o poder da criação com uma genuína cultura de reconstrução e amplificação dos ecos de outrora. Nascido em 1952, o arquiteto e engenheiro francês já apresentou ao mundo uma série de trabalhos experimentais premiados, que se caracterizam pelo uso inovador de materiais – em especial, o concreto –, aplicados com preciosa imaginação aos mais diversos ambientes.

Ao longo de toda a carreira, Ricciotti nunca quis tomar de refém aquilo que já existe. Distinguindo-se da abordagem arquitetônica praticada amiúde, a destruição não faz parte da sua construção. Sua visão contribui para a fluidez dos espaços, formulando um diálogo entre épocas, sem que uma projete sombras sobre a outra. Como o próprio arquiteto diz, mais do que nunca isso se faz necessário, pois é a partir do discurso e da poesia plural que se faz resistência. Indo contra os ditames da globalização, num só tempo Ricciotti resgata e amplia a beleza, a legibilidade e a funcionalidade da história. Nutrido de uma particular inovação-preservação, prova que é possível agarrar o real com uma mão e, com a outra, reescrevê-lo.

Para citar alguns de seus prêmios e ilustrar a dimensão do impacto de sua obra, só no ano de 2006 ele foi galardoado com o Grand Prix National d’Architecture e com a Médaille d’or de l’Académie d’Architecture. Teve participações marcantes, grifadas pelo pioneirismo, em projetos como: 

Departamento de Artes Islâmicas (Louvre) – Cercado pelas fachadas neoclássicas do pátio Cour Visconti, um véu ondulante de vidro tesselado surge imponente. É o teto da ala dedicada à cultura islâmica, representada pelo tapete, tão presente no ideário do Islã. Com o cuidado de não se sobrepôr às fachadas que a rodeiam, a ala foi elaborada ao lado de Mario Bellini.

Museu Jean Cocteau – Inspirada no clássico de Cocteau, A Bela e a Fera, de 1946, essa concepção cria uma mistura de linhas serpenteantes que, qual o filme, brinca com a luz e a sombra, jogando fumaça sobre o que é sólido e o que é poesia. Ricciotti resgata, assim, um pouco do aspecto sonhador de uma das figuras mais importantes da cultura francesa.

Le 19M, de Rudy Ricciotti para Chanel

Com o 19M, edifício parisiense que reuniu 11 ateliês do Métiers d’Art da Maison Chanel, também pôs em prática suas principais ideias como criador. O número presente no nome representa o dia 19 de agosto de 1883, data de nascimento de Gabrielle Chanel; já o “M” é uma somatória das palavras métiers, mode, mains e maisons – todas relacionadas ao artesanato. Vê-se, portanto, a necessidade latente de abraçar capítulos passados para só então desenvolver o condão de recontá-los, como Ricciotti tanto gosta de fazer.

Evocando visualmente a malha de um tecido de alta costura, o 19M é um edifício triangular de 25 mil metros quadrados e de pura cronologia. Por acolher uma coleção de empresas especializadas, é tido como um manifesto arquitetônico do alardeado savoir-faire francês. Antigo, mas atual; jovem, mas reverente. Mais um típico projeto ricciottesco, em que os microcosmos do agora se adaptam ao macrocosmos de antes – nunca ao contrário.

Em visita ao espaço, vimos de perto o trabalho do arquiteto, além de entrevistar cinco jovens artistas que dividiram com a gente suas concepções sobre moda, alta-costura, modernidade e o relacionamento do setor com a nova geração.

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