Estamos em pleno 2024 e, para a surpresa de alguns e incredulidade de outros, os ventos parecem soprar a favor do barco das relações não-monogâmicas. Esqueça o clichê do amor livre hippie que costumava vir à mente quando se pensava em conceitos que gravitavam em torno de um relacionamento afetivo mais abrangente. Esteja você a bordo ou não, o não-monogamismo consensual está aqui e, ao que tudo indica, não vai recuar tão cedo.

Na verdade, esse tipo de relação é um fenômeno bastante presente em todo o mundo há algum tempo, inserido inclusive em acordos matrimoniais. Paulatinamente, o processo de mudança comportamental vem acontecendo. É como diz a escritora e psicanalista Regina Navarro Lins: “Não foi de uma hora para outra que a separação foi considerada normal. Veio vindo. Quando você olha agora, não sabe dizer o momento exato em que se separar deixou de ser uma tragédia. É a mesma coisa com as relações múltiplas.”

Ou seja, o casamento, outrora uma instituição selada em parte pelo moralismo e em parte pelas convicções, agora se vê desafiado, e talvez até encorajado, pela crescente aceitação desse novo modo de se relacionar.

Antes de qualquer coisa, é importante colocar os pingos nos is. A não-monogamia não é exclusivamente focada na diversidade de relações, mas sim no rompimento com as normas monogâmicas, o que quer dizer que há variações de relacionamentos que se encaixam nessa ideia. “Poliamor” é a possibilidade de se envolver sexualmente com mais de uma pessoa, mas é também poder ter um envolvimento afetivo com alguém de fora da relação central. Já “relacionamento aberto” trata da possibilidade de relações sexuais casuais que não envolvem amor, sendo os episódios extra-relação mais pontuais e sem envolvimento emocional. E se de um lado do espectro está a monogamia, em que há exclusividade total com o parceiro ou a parceira, no outro extremo, há a “relação livre”, em que não existem regras e nem centralidade entre as relações. 

Nomenclaturas como essas ganharam destaque sobretudo a partir de 1972, quando George e Nena O’Neill lançaram o livro Casamento Aberto, um best-seller estadunidense que contribuiu para promover uma espécie de revolução sexual naquela década. A bem da verdade, os O’Neills tinham para eles que um “casamento aberto” não passava de um relacionamento em que cada parceiro teria espaço para crescimento pessoal e desenvolvimento de amizades fora do matrimônio. A maioria dos capítulos apresenta abordagens práticas pouco controversas para revitalizar o casamento em áreas como confiança, flexibilidade de papéis, comunicação, identidade e igualdade. A intenção dos autores, curiosamente, era somente livrar o casamento de seus danosos ideais antiquados e falsamente românticos, encontrando maneiras de torná-lo mais contemporâneo e leve. Não fazia parte dos planos fomentar um grande movimento em prol do poliamor. Mas, uma vez que chega ao mundo, as repercussões de uma obra podem fugir do controle daqueles que a conceberam — e disso os O’Neills sabem bem. 

No meio de suas tentativas apaziguadoras de revisar ideias ultrapassadas, foram mais “radicais” em um capítulo — obviamente, o capítulo que mais deu o que falar. Ele propunha a ideia de que um casamento aberto poderia, sim, incluir algumas formas de sexualidade com outros parceiros. Essa sugestão, mais do que quaisquer outras presentes no livro, entraram na consciência cultural e o termo “aberto” tornou-se sinônimo de casamento sexualmente não-monogâmico. Até então, o que quer que acontecesse em casamentos e relacionamentos que driblavam a monogamia não tinha uma denominação específica. Assim, ainda que não fosse sua proposta inicial, os autores não só foram bastiões da possibilidade de casais explorarem novas formas de intimidade e conexão emocional, mas também criaram a linguagem que faltava para dar mais palpabilidade àquilo que, ainda que numa escala pequena, já existia. A partir daí, o céu virou o limite. O livro teve um impacto significativo na cultura e contribuiu demais para a discussão sobre relacionamentos que fogem da convenção.

O debate, portanto, talvez não seja novidade. O que acontece hoje é um resgate que viria a se dar mais cedo ou mais tarde. Mas a questão é que ele vem ganhando um espaço que talvez nunca antes tenha tido. Com as redes sociais e a discussão mais franca sobre muitos temas que antes eram tabus, a monogamia passa por um período de questionamentos. “Nós temos que nos sintonizar com as mudanças das mentalidades porque o amor e o sexo são construções sociais”, reflete Regina. “Alguém vai dizer assim: ‘Ué, mas sexo e amor sempre existiram’, mas a forma de você amar tem que ser aprendida. Em cada período da história o amor se apresenta de uma forma. Essas expectativas e esses ideais que regem esse amor é o amor romântico. O amor romântico é péssimo, causa sérios prejuízos, porque traz expectativas de que os dois tem que se transformar em um só, o que é um horror.”

Sons de alarme ressoam: é verdade que a monogamia já não representa o que entendemos como amor nos tempos presentes? Seria essa uma crise? 

Se tomarmos produções culturais como reflexos de um zeitgeist, sim — e isso inclui o Brasil. A não-monogamia não é mais “coisa de seriado gringo”, uma vez que o fenômeno não está mais restrito a enredos estrangeiros que soam distantes e improváveis. Cada vez mais, a ideia está se infiltrando nas produções culturais brasileiras. Lembra de A Porta ao Lado, filme de Julia Rezende com Bárbara Paz e Letícia Colin? A história, lançada em 2021, se debruça sobre a dualidade entre o amor monogâmico e o poligâmico por meio do convívio de dois casais de vizinhos muito diferentes entre si. E de Lov3, série brasileira do Amazon Prime? Na produção de Felipe Braga, três irmãos simplesmente se recusam a vivenciar o amor da maneira “quadrada” dos pais. E o poliamor ganhou espaço em séries aclamadas, como no notório Succession, em que Siobhan Roy e Tom Wambsgans, casal que vive às turras, explora possibilidades que se esquivam da monogamia — embora, claro, não seja esse um exemplo de relacionamento não-monogâmico saudável.

Se antes a monogamia tradicional era o padrão a ser representado, sendo a traição sempre uma fonte interminável de conflitos e discussões que ditavam os altos e baixos de uma narrativa, roteiristas e produtores estão agora explorando relações abertas para criar novos tipos de dramas envolventes. Isso não aconteceria se a mentalidade dos relacionamentos não estivesse, de fato, se transformando na vida real também. Ainda que se crie tendências comportamentais a partir de obras culturais, abordar tal assunto sem que isso fosse pauta na vida diária das pessoas, como algo com o qual elas podem se relacionar em algum nível, soaria como irreal e até antiquado, já que muita gente automaticamente ainda liga relações não-monogâmicas a décadas passadas. 

Ao examinarmos o quadro, não podemos ignorar a influência da realidade na arte. De acordo com pesquisas norte-americanas — uma sociedade que, em geral, é conservadora —, em 2023, 51% dos adultos com menos de trinta anos consideram o casamento aberto “aceitável”. Cerca de 20% dos americanos relatam ter experimentado alguma forma de não-monogamia. Seria inviável pensar em números assim há poucos anos. Não por um acaso, o caso Will e Jada Pinkett Smith se alojou no ideário popular, porque, além da popularidade gigantesca dos dois, também contribuiu para uma discussão que estava acontecendo, fazendo com que todas as polêmicas do casal gerassem uma multiplicidade de respostas por parte do público.

Mas por que isso? Adê Monteiro, psicóloga e sexóloga, acredita que cada um tem que “escolher o seu difícil” e que, na teoria, a não-monogamia oferece uma leveza que a monogamia muitas vezes falha em proporcionar, o que não quer dizer que seja fácil. “É difícil viver a não-monogamia também”, explica ela, “porque nós temos ainda uma estrutura de monogamia bastante forte. Essa estrutura tem, inclusive, base genética. A gente tem uma estrutura de romantismo, de patriarcado, é muita estrutura monogâmica para você, de uma hora pra outra, desconstruir isso.” O aspecto de aprisionamento conceitual é bastante relevante, já que leva em conta a hipótese de o panorama psicossocial ser, no final das contas, a maior das barreiras. E Regina Navarro Lins entra para o coro de maneira categórica: “Enquanto não se mudar aspectos como controle, possessividade, ciúme, desrespeito à individualidade do outro, o casamento não vai funcionar.”

Aqui no Brasil, vale citar a empreitada que aprovou na Câmara, em dezembro do ano passado, o projeto de lei que proíbe o poliamor. A Comissão de Previdência, Assistência Social e Família da Câmara dos Deputados aprovou o projeto que proíbe o reconhecimento de uniões poliafetivas com nove votos a favor da aprovação e três contra. A comissão é a mesma que, em outubro de 2023, aprovou um projeto que proíbe o casamento civil homoafetivo. Sempre haverá aqueles que apontam o dedo para qualquer formato que não seja o binarismo heteronormativo, condenando-o como “subversivo”. Mas, de subversivo, o amor não tem nada. Sob uma perspectiva poética, talvez sim; mas, sob uma perspectiva legal, definitivamente não.

Então, depois de muito pelejar e enfrentar todo tipo de preconceito, os relacionamentos não-monogâmicos naturalmente recuperaram seu lugar ao sol. Não fizeram esforço para que isso acontecesse, somente esperaram nas sombras a sua hora chegar — e, mais do que nunca, estão entre nós. Em meio a muitas novas visões de mundo que estão surgindo, essas formas de amar voltaram com tudo. Entre muitos obstáculos superados, os não-monos estão desafiando, de uma maneira muito particular (e, por isso, forte), a ideia convencional de casamento. Mas veja bem: isso não quer dizer necessariamente que estão desafiando o casamento em si. Não significa que estejam batendo de frente com a ideia do matrimônio como a conhecemos. 

Ao invés de se postarem como verdadeiras ameaças à instituição matrimonial, têm um arcabouço argumentativo para fazer com que os relacionamentos não-monogâmicos emerjam, na realidade, como uma possível salvação de uma instituição que vem perdendo popularidade há décadas. Não é mais apenas sobre “trocar” de parceiros, sobre não deixar de explorar caminhos sexuais, sobre aproveitar os “bons anos” antes da decadência física. Talvez ela até se apoie nesses pontos em alguns casos, mas a não-monogamia presente é sobre incentivar relações mais profundas e duradouras, reinventando as leis antes impostas e oferecendo uma perspectiva mais flexível e, acima de tudo, emocionalmente mais sustentável.

Sob essa ótica, é curioso pensar como, ao chegarem a um consenso de que a monogamia não será o caminho de um relacionamento, pessoas possam chegar a um compromisso ainda mais forte entre si. Uma coisa não exclui a outra e o que quer que permita que pessoas se amem mais e melhor deve ser reconhecido e validado. Isso porque, no fim, o casamento em si não é o maior problema. O que dá uma má fama à instituição é, principalmente, todos aqueles preceitos que tomamos como naturais e incontornáveis. Regina Navarro Lins resume bem: “Eu só acredito que uma relação funcione bem quando houver respeito ao jeito do outro ser, se comportar, pensar. Quando houver liberdade de ir e vir, ter amigos em separado, programas independentes e não houver controle algum da vida do outro. A maioria dos casamentos nunca foi assim. As mulheres não podiam se separar, não trabalhavam, não tinham como se sustentar. Havia aquela ideia de casamento ‘até que a morte nos separe’. Também a morte chegava muito antes, agora a morte chega depois.” 

Difícil pensar na monogamia perdendo todo o seu viço. Isso talvez nunca ocorra, ainda que seja possível que ela se veja na defensiva em seu corner, porque suas ideias ainda correm nas veias dos corpos sociais. Mas os tempos pedem que ela se adapte o quanto antes, pelo bem de todos os envolvidos. E, ufa, quem sai ganhando é o amor. As pessoas podem optar por um relacionamento não-monogâmico por várias razões, da atração por múltiplos gêneros até um rechaço à limitação imposta pela norma cultural da monogamia. Mas, seja qual for a motivação, é uma possibilidade, e quanto mais possibilidades de amor tivermos, melhor. O que a sociedade parece nos dizer é: vamos lá, finalmente estamos preparados para o poliamor. Resta saber se estamos igualmente prontos para exercitar a sinceridade, a conversa franca, a transparência em nossos desejos e a ética nos nossos afetos.

Claro, um relacionamento aberto é feito de humanos e, sendo assim, não está isento de desafios — mas o preconceito não pode ser um deles.

Sumário de plantas oficiosas: um ensaio sobre a memória da flora, do escritor e crítico colombiano Efrén Giraldo, combina uma rica iconografia a memórias pessoais, comentários literários e análise social para se debruçar sobre o papel e o poder curativo das plantas em nossas vidas.

Além de escritor, o autor nascido em Medellín é curador de arte, crítico, professor e pesquisador da Universidade Eafit. Com uma atuação ativa no debate sobre artes, literatura e cultura na Colômbia, já publicou outros trabalhos, incluindo Los límites del índice (2010), Entre delirio y geometría (2013) e La poética del esbozo (2014). Agora, com este que é seu primeiro trabalho traduzido para o português e lançado em solos brasileiros, foi vencedor do Prêmio de Não Ficção Latinoamerica Independiente. 

Capa de Denise Yui para a edição brasileira, lançada pela Editora Fósforo.

Diga a verdade: você já parou e pensou, de fato, sobre as plantas? Tudo bem se a resposta for “não”, pois Efrén Giraldo felizmente já pensou. Em uma mistura bem encontrada entre erudição e irreverência, o autor propõe esse olhar raro, mais aprofundado sobre a flora, fazendo com que as aulas de biologia se somem às aulas de sociologia e filosofia. A onipresença das plantas em nossa existência comumente é tomada com certa indiferença, no sentido de que tomamos tal existência como algo natural, partindo do pressuposto de que as plantas que estão nos circundando o fazem porque, bem, é aqui que elas deveriam estar. Onde mais estariam? Mas, se partirmos para uma proposta mais reflexiva — algo que se assemelha à perspectiva sociológica dos povoados de uma determinada terra, por exemplo —, concluímos que elas têm muito a nos ensinar sobre as andanças que espalham espécies e a superação de traumas coletivos (incluindo a pandemia de COVID-19, que estava no seu auge no período em que o livro foi escrito). 

Giraldo, assim, apresenta uma mescla inusitada de registros, saberes e emoções, destacando a resiliência da natureza diante da ação humana e convidando os leitores a repensarem suas ações em relação ao meio ambiente.

O livro é um tratado sobre plantas, tanto reais quanto imaginárias, sendo uma obra que pensa o fascínio que elas exercem. No entanto, a coisa toda vai além, ao abordar a importância crucial da ficção, especialmente em tempos em que violência e política parecem indissociáveis. Os capítulos do livro buscam reunir uma constelação de ornamentos, árvores, comidas, venenos e seres vegetais conhecidos e desconhecidos, provenientes da memória, experiência e diversas representações literárias, científicas e artísticas.

Juan Manuel Echavarría, elemento da série “Corte de florero”, (1997)

A nota do autor, que serve como preâmbulo para o livro, destaca que os textos exploram temas como transplantes, extinções e invasões, contribuindo para o inventário de ficções e iconografias das plantas. Escritos durante o confinamento pandêmico, eles formam um diário imaginário sobre presenças e ausências, representações e perplexidades da flora em um momento de dificuldade extrema.

Para quem lê essas linhas descritivas, talvez seja até difícil de visualizar o que, afinal, é este Sumário de plantas oficiosas. Um exemplo vem a calhar. 

No início da jornada literária proposta pelo colombiano, o autor apresenta as bases do livro com o capítulo inaugural, cujo título é Das árvores peregrinas às floras narradas – Uma invasão da beleza. O conceito floresceu durante o septuagésimo quinto aniversário do devastador bombardeio de Hiroshima, ocorrido em 2020, marcando o ponto de partida para uma reflexão profunda sobre a resiliência das árvores no pós-tragédia. Com habilidade, o autor tece uma teia de conexões entre o reino vegetal e a consciência humana, indagando sobre a origem das plantas e explorando minuciosamente o impacto da história, cultura e política na paisagem, muitas vezes relegada ao simplório “o que está aí”. Nessa narrativa perspicaz cheia de insights valiosos, ressalta-se a imperiosa necessidade de reconhecer não apenas a presença das plantas, mas também a intrincada relação que elas mantêm com a tapeçaria histórica e cultural. Linha após linha, começamos a olhar com atenção para os seres que estão do nosso lado e entender que há maravilha no pequeno e no cotidiano.

Mas Giraldo não se limita a contemplar apenas o mundo vegetal. Ele adentra o domínio da neurobiologia das plantas, valendo-se das palavras de seu pioneiro, Stefano Mancuso, para destacar a incrível capacidade das plantas de se moverem e adaptarem, desafiando a preconcebida noção de sua estaticidade — “Se os extraterrestres nos visitassem”, escreve ele, “buscariam as plantas como interlocutores, não os humanos.” Se com Cosmos, de Carl Sagan, e Uma breve história do tempo, de Stephen Hawking, a astrofísica ganhou um destaque sem precedentes como o ponto de partida para reflexões maiores, Mancuso nos últimos anos vem fazendo o mesmo com a biologia. E Efrén ajuda, e muito, nessa reafirmação da área. Ao explorar a difusão do conhecimento botânico através de correspondências entre ilustres cientistas como Carlos Lineu, José Celestino Mutis, Francisco José de Caldas, Alexander von Humboldt e Jules Émile Planchon, cria no leitor a necessidade de abaixar o olhar para esquecer um pouco das estrelas, planetas e galáxias. É certo: as plantas estão aqui e têm muito a nos dizer. 

A narrativa ganha vivacidade e ainda mais palpabilidade ao se dedicar também a esclarecer a importância crucial das ilustrações botânicas, delineando a sutil diferença entre representação artística e captura realista das plantas. Com a apreciação de ilustrações antigas, evidencia-se o impacto singular que o estilo realista e analítico das composições botânicas exerce na representação das plantas. A partir desse capítulo inaugural, começamos a questionar, a exemplo do que Mancuso escreve, se há uma maneira estritamente vegetal de compreender. 

Sumário de plantas oficiosas emerge como uma obra singular e poliédrica que desvela a presença das plantas em nossas vidas, estabelecendo eloquente conexão entre a natureza e os intrincados fios da cultura, história e experiência pessoal do autor. Do começo ao fim, é uma experiência de leitura enriquecedora e instigante da interseção entre a flora e a condição humana.

Deu para visualizar o que é a obra premiada de Efrén Giraldo ou ainda estamos no campo da abstração? Se a segunda opção ressoar, uma nova perspectiva de mundo se apresenta como a solução, que é, com a mente aberta, ler Sumário de plantas oficiosas.

O ano era 2012. Só agora percebo que já se passaram mais de 10 anos do momento em que conheci o professor Flávio dos Santos Gomes no Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Talvez soe estranho começar uma resenha assim em primeira pessoa, mas o livro que será comentado nas próximas linhas me atravessou dessa forma. Na primeira pessoa mesmo. Enquanto jovem estudante de licenciatura e bacharelado em História, a publicação, bem como a posterior orientação do professor Flávio Gomes, abriram um novo horizonte para mim: era possível reler minha própria cidade e meu próprio país a partir de uma lente que visibilizasse trajetórias negras. E é com essa lente que escrevo a resenha que segue.

Diferentemente das plantations estadunidenses, caracterizadas por grandes plantéis, agroexportação e feitores, grande parte do processo de escravidão no Brasil se deu em contexto urbano ou semiurbano. Milhares de escravos, tanto africanos quanto crioulos, entrelaçaram-se com marinheiros, caixeiros, comerciantes, viajantes e outros segmentos sociais do mundo transatlântico.

De 1570 até meados do século XIX, o Brasil recebeu entre 38% e 43% de todos os africanos traficados para as Américas, estimando-se esse total em aproximadamente dez milhões. Esses indivíduos desempenharam papéis cruciais nas zonas rurais, contribuindo para atividades como o cultivo de café, açúcar, algodão, tabaco, além da pecuária e da extração de ouro e diamantes. Paralelamente, moldaram diversas instituições relacionadas a tradições, família, culinária, música e cultura material em geral. Também formaram quilombos e nos contextos urbanos deram origem às irmandades.

O livro Cidades Negras, de Juliana Barreto Farias, Flávio dos Santos Gomes, Carlos Eugênio Líbano e Carlos Eduardo Moreira de Araújo, destaca algumas das instituições forjadas pelas populações negras nos contextos urbanos. Africanos e seus descendentes emergiram como figuras importantes nos universos do trabalho e da cultura urbana durante o século XIX, inventando territórios urbanos e diásporas, redefinindo identidades e sentidos de existência.

A publicação foi escrita a quatro mãos. Juliana Barreto Farias atua como editora-assistente na revista Nossa História e obteve o título de mestre em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Flávio dos Santos Gomes é professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Carlos Eugênio Líbano Soares desempenha a função de professor na Universidade Federal da Bahia. Carlos Eduardo Moreira de Araújo é mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutor em História Social do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas.

Os autores destacam que antes mesmo de vários países se constituírem enquanto Estados nacionais, em suas terras já havia territórios negros. Na primeira metade do século XIX, O Rio de Janeiro se destaca nesse sentido, sendo a maior cidade escravista das Américas. Em 1821 escravizados representavam 45.6% da população das freguesias urbanas do Rio. Observando a freguesia da Sé na cidade de São Paulo, 20% da população era composta por escravizados. Em freguesia homônima no Pará, a população cativa somava 51,8%. 

Ainda em período próximo, em 1872 em Curitiba, 33% da população livre era formada por pardos, pretos e caboclos (termo usado à época para se referir à população indígena). Já na província do Ceará, escravizados eram 35%. No Espírito Santo, pretos e pardos (livres, libertos ou escravizados) formavam um contingente de 74% da população. Assim, podemos elencar algumas importantes cidades negras no contexto de escravidão brasileira: Rio de Janeiro, Salvador, Recife, São Luís e Porto Alegre.

Com relação à origem, na região do Rio de Janeiro destacam-se os negros de origem angola, cabinda, cassange, benguela e congo, chegando a cerca de 80%. Em São Luís há destaque para os cabinda, moçambique, angola e mina. Já em Salvador destaca-se o perfil ocidental, com origem nagô, jeje e hauçá. 

Porém, a virada de chave de Cidades Negras se dá justamente em apresentar de início ao leitor uma série de dados e análises demográficas — que sem dúvida corroboram com a tese de que vivemos em um território negro enquanto país — e finalmente discutir que o conceito que dá nome ao livro vai muito além de dados. As cidades apontadas são negras não só por historicamente ter uma população de maioria africana ou afro-brasileira. Falamos de cidades negras porque estas populações inventaram e reinventaram identidades. 

As identidades se tornam questão importante no debate. O conceito de identidade é complexo. Segundo o sociólogo Stuart Hall, em A identidade cultural na pós-modernidade:

A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu” (veja Hall, 1990). A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar — ao menos temporariamente.

O caráter mutável e até mesmo contraditório das identidades apresentado por Hall dialoga com o que lemos em Cidades Negras:

Africanos e crioulos não eram necessariamente uma multidão ou massa escrava nos centros urbanos. Os recém-chegados produziam identidades diversas, articulando as denominações do tráfico, aquelas senhoriais e a sua própria reinvenção em determinados cenários. Ser um africano mina em Salvador não era o mesmo que no Rio de Janeiro. Os próprios minas do século XVIII no Rio de Janeiro eram outros daqueles do século XIX.

Assim, os tempos, espaços, redes de contato e de sociabilidade, bem como objetivos e articulações, foram essenciais para forjar diferentes identidades entre negros escravizados, livres e libertos que formavam as cidades negras no contexto escravocrata.

Os autores discutem também aspectos que interferiram diretamente nos fluxos de vida e de morte dessas populações. Os portos foram considerados “laboratórios de enfermidades” e de práticas de cura, a partir do intenso vai e vem de embarcações abarrotadas de pessoas em condições sub-humanas. A principal doença que acometia os trabalhadores escravizados era a tuberculose, seguida de disenteria, varíola, tétano e malária. Até metade do século XIX as forças do escravizado eram levadas ao seu limite, uma vez que era razoavelmente fácil realizar a substituição desta mão de obra em caso de morte. A partir de 1850, com a proibição do comércio negreiro o trabalhador escravizado fica mais caro, culminando em alguns cuidados maiores por parte dos senhores. Não por humanidade. Mas pela diminuição da oferta. Este quadro era semelhante em diferentes “cidades negras”.

As fugas também são analisadas, não como movimentação heroica de poucos, mas sim como atos políticos e organizados:

Nas cidades, as ações de fuga estavam inseridas na experiência cotidiana dos cativos. Revelavam tanto mecanismos de protesto como a constituição de comunidades e culturas na diáspora. Nesse processo, desvendam-se lógicas dos cativos e universos sociais das cidades negras (cotidiano, relações de trabalho, controle social, etc.).

No contexto de organização social e política, nos documentos de fuga e busca de escravizados, são encontrados relatos de africanos e crioulos com certo grau de profissionalização. Carpinteiros, barqueiros, sapateiros, alfaiates… Estas ocupações contribuíam para que esses indivíduos conseguissem reconstruir suas vidas após a fuga. Os fugitivos encontravam nos quilombos — rurais ou nas periferias urbanas — um destino frequente, de diferentes tamanhos e formas, especialmente nas proximidades das principais capitais coloniais. Exemplos são o Quilombo de Laranjeiras, localizado próximo à Corte, e o Quilombo do Urubu, situado na freguesia do Cabula, nos arredores da Cidade da Bahia (atual cidade de Salvador).

Ainda no sentido de reconhecer a agência dos negros, cabe destacar o papel dos marinheiros nos processos de fuga e ressignificação. Sua posição, podemos dizer “privilegiada” ao estarem em navios, facilitava a comunicação e percepção de políticas. Era nos portos, conveses e navios que as informações de África, Américas e Europa se encontravam e de certa forma ajudavam a alimentar redes de solidariedade entre negros.

Para concluir, cabe destacar a capoeira como fenômeno de resistência e agência, podendo ser interpretada como um dos maiores exemplos da reinvenção cultural urbana na diáspora brasileira. A participação dos capoeiras na Guerra do Paraguai contribuiu com o reconhecimento desse grupo social como grandes “lutadores de rua”. Em Cidades Negras percebemos que a capoeira passou por transformações, transitando da expressão africana para a crioula durante o século XIX, à medida que o número de africanos desembarcados diminuía. Podemos perceber um movimento de crioulização — ou, nas palavras de hoje, brasileirização — da capoeira, articulada em maltas, algumas de grande notoriedade nas cidades negras.

Assim, o livro Cidades Negras: africanos, crioulos e espaços urbanos no Brasil escravista do século XIX defende brilhantemente a tese de que as principais capitais do Brasil colonial podem ser consideradas territórios negros. E não há como não concordar. Uma análise crítica e sensibilizada pelas políticas públicas do Brasil contemporâneo reforça a percepção de que escravizados criaram diversos mecanismos cotidianos para resistir e mitigar os impactos da escravidão, bem como para criar e recriar identidades e subjetividades nas cidades negras por todo o Brasil.

A MPB, sigla para Música Popular Brasileira, sempre foi um lugar de disputas, discussões e teorizações, talvez sem nunca ter se chegado a uma unanimidade sobre uma definição final referente a sua forma e conteúdo. Seria um movimento, uma categorização musical ou uma época de produção cultural? Seria uma fase pós-bossa nova que abrangeria uma miríade de gêneros e estilos? Estaria ligada a uma suposta “modernização” da música brasileira e, assim, mais próxima do que se consideraria como “sofisticado”, “criativo”, “inteligente”? Ou uma representante, digamos, mais emblemática do que seria uma “brasilidade”, frente ao medo dos estrangeirismos dos mais nacionalistas? Poderia nos levar também a uma época de canções de protesto à Ditadura? 

Se você respondeu “sim” para algumas dessas perguntas, saiba que todas essas possibilidades já foram levantadas e discutidas por diverso(a)s autore(a)s, sendo algumas delas mais constantes que outras. E o objetivo desta reflexão não será responder a essas questões, mas pensar onde estaria o denominador “negro” dentro deste termo guarda-chuva que se tornou a MPB. Afinal, isso se torna uma questão urgente diante da afirmação do maestro Letieres Leite sobre toda a música das Américas, de caráter popular, advir de uma base africana (afirmação concedida ao jornalista GG Albuquerque, para o site Volume Morto) e de influenciar em toda uma produção transnacional de música pop e/ou popular no mundo, mesmo que não seja feita por negros. 

Porém aqui ainda vigora o racismo de ora inferiorizar o contributo negro à formação da cultura brasileira, ora de tentar apagá-lo. Que, por mais violentos que sejam esses movimentos e todas as consequências drásticas que recaem sobre a população negra, não passam de uma atitude desesperada da branquitude de querer se enxergar enquanto europeia e subtrair o nosso inegável prefixo afro. 

Da ideia colonialista da superioridade europeia, passando pela eugenia, à democracia racial dada pela mestiçagem e ao encontro das três raças, temos mitos fundadores ainda arraigados no imaginário social brasileiro, implicando diretamente no apagamento das contribuições afro-indígenas, pois servem, até hoje, para a manutenção dos privilégios da branquitude. De forma sempre perspicaz, nossa ancestral Lélia Gonzalez, assim como outro(a)s antes dela, abriram nossos olhos para o que estava em jogo: não deveríamos reivindicar o nome América para nós deste lado do Atlântico, mas sim Améfrica. A amefricanidade que nos constitui teria sido dada pelo movimento maciço de chegada de africanos às bandas de cá, que nos formaram através de seus valores civilizatórios e costuraram nossas espiritualidades e culinária; nosso jeito de andar, dançar e gingar, o uso do corpo; as línguas que subverteram a do colonizador e criaram o pretuguês; as formas de existência e resistência através dos quilombos; nada, porém, inventado, mas nos ensinado pelos povos Congo-Angola, iorubá e ewe-fon. 

Em sua teorização, Gonzalez nota mais semelhanças do que diferenças nos países em que visitou em todas as Améfricas, seja a do Norte, a Central ou a do Sul, reforçando sua tese de interligação entre as afrodiásporas a partir do inegável legado africano. Tendo lançado esse texto em 1988, é interessante notar como a mesma continua a confirmar suas hipóteses em momentos posteriores, como fica evidente em seus dois textos sobre a viagem à Martinica em 1991. Mas, voltando à categoria político-cultural da amefricanidade, Lélia atesta: 

Similaridades ainda mais evidentes são constatáveis se o nosso olhar se volta para as músicas, as danças, os sistemas de crenças etc. Desnecessário dizer o quanto tudo isso é encoberto pelo véu ideológico do branqueamento, é recalcado por classificações eurocêntricas do tipo “cultura popular”, “folclore nacional” etc. que minimizam a importância da contribuição negra.

Estamos chegando a um ponto crucial do argumento, que é articulado por Lélia quando destaca que muitos dos nossos saberes e tecnologias são enquadrados enquanto cultura popular e folclore. Percebemos, então, que as criações afro-indígenas são destituídas desses prefixos, sendo estas liquidificadas em termos genéricos para serem deglutidas com mais facilidade pelas classes brancas hegemônicas. O movimento é de apagamento para sua aceitação, desde que reconheçam seu devido lugar, numa posição de subalternidade em relação às referências eurocentradas. 

Talvez, desde que se começou a discutir o que seria de fato uma cultura brasileira, a partir de sua independência, e voltando para a discussão sobre a música popular, de caráter urbano, provavelmente o lundu e o maxixe, ancestrais do que hoje chamamos samba, tenham sido os primeiros gêneros musicais a pautarem esse debate. No brilhante livro Do Samba ao Funk do Jorjão, nosso mais velho, Spirito Santo, mostra com detalhes a origem indubitavelmente africana de nosso gênero mais popular e definidor e, mais especificamente, oriunda diretamente dos povos do arco linguístico bantu, genericamente identificados como Congo-Angola. A própria palavra samba já era utilizada e, através de escritos da época e mais contemporâneos, semelhanças entre lundu, coco, jongo, calango, entre outros, são mapeadas e comprovam a origem africana, em regiões diferentes do país, da “nossa” música popular. 

Daí voltamos para a questão inicial, a Música Popular Brasileira. Apesar das eternas disputas em relação ao termo, e sua consequente indefinição para os moldes acadêmicos, sabemos que o mesmo carrega, no imaginário popular, uma identificação de cultura local, reivindicando a ideia de uma certa brasilidade; assim como generalizações em torno de uma qualificação positiva de sofisticação e “bom gosto”, não tão generalistas assim, quando observamos como a mesma foi defendida pelas instâncias legitimadoras das classes mais abastadas e sua crítica cultural. E não poderíamos deixar de mencionar a bossa nova como ponto nevrálgico desses caminhos que levarão à MPB. 

Mas antes lembremos que o samba, aqui enquanto amalgamador de variadas expressões sonoras africanas em território local, apesar de sempre vilipendiado, perseguido e negado, mostrou-se como força imparável, mesmo diante do racismo brasileiro. Sendo inegável e irresistível, foi roubado e descaracterizado pelos cantores brancos famosos da Era do Rádio, mas, mesmo assim, prosperou. Assim sendo, foi até escolhido como fator de ligação nacional, na Era Vargas, que tentou unificar um país de tamanho continental e extremamente diverso, através desta sonoridade irrefutavelmente africana. Sem dúvidas, o samba teve que fazer concessões, e perdas significativas devem ter ocorrido nesse processo, além do embranquecimento, de aceitação e transformação em sinônimo de representação nacional. 

Observemos como a bossa nova, apesar de discursivamente defender o samba em falas publicadas pelas mídias nacionais, sempre teve uma visão extremamente racista sobre o samba e toda a música preta feita no Brasil. Além da já propagada definição de ser uma música branca de apartamento do Leblon, que muito lhe convém, diga-se de passagem, seu “maior maestro” afirmou isso de forma inquestionável numa entrevista resgata por, novamente, Spirito Santo. Tom Jobim fala para Gene Lees na Hifi/Stereo Review de 1963: 

O samba autêntico negro do Brasil é muito primitivo. Eles usam talvez dez instrumentos de percussão e quatro ou cinco cantores. Eles gritam e a música é efusiva e exuberante demais. Mas a Bossa Nova é leve e contida. Conta uma história, tentando ser simples, grave e lírica. […] Você pode chamar bossa nova de um samba limpo, lavado, sem perda do clima. (Do Samba ao Funk do Jorjão, Spirito Santo, 2016, p. 249).

Primeiramente nos salta aos olhos a fala extremamente racista, aos moldes de relatos de colonizadores ao se deparar com a música em solo africano ou até mesmo a “música de negros” aqui feita, mesmo estando em pleno século XX. Para Jobim, o samba é primitivo, gritado, exagerado, pesado, grotesco, sujo: visto por brancos que usaram dois gêneros negros para “criar” algo novo. As aspas estão muito bem colocadas, já que, como se falou, o samba sempre apresentou fusões com as mais variadas sonoridades da Améfrica e, de forma muito pontual, essa revolução de juntar jazz e samba já estava presente, pelo menos, desde a década de 1920, através dos Oito Batutas, grupo seminal para a música brasileira, que fora formado por, entre outros, Pixinguinha e Donga, esses sim, Maestros maiúsculos da música brasileira. 

O recalque da branquitude, em seu racismo por denegação (Gonzalez, 1988) produz “pérolas” que seriam quase inexplicáveis, quando em 1960, outro branco canonizado da MPB, autodenominou-se “capitão do mato” e o “branco mais preto do Brasil” na mesma canção: estamos falando de Samba da Bênção, de Vinicius de Moraes. Ele usa o execrável labor do capitão do mato, que perseguia escravizados fugitivos, para se definir, ao mesmo tempo que reivindica o título de branco de alma negra, aqueles que querem o bônus da nossa cultura, mas não o ônus de ser negro no Brasil. Como disse nossa outra ancestral, Beatriz Nascimento, em Por uma história do homem negro (1974), não podemos aceitar essa frase se queremos superar complexos, frustrações e escrever nossa própria história. Então, como disse um dos nossos maiores compositores de todos os tempos, Mano Brown, é “Muita treta pra Vinicius de Moraes”.

Outro frequentemente esquecido na lista dos maiores, mas tão grandioso quanto os anteriores, foi Moacir Santos, que, na mesma época do mito de origem do gênero, já unia jazz e samba com orquestrações da mais alta complexidade. Quem também foi pioneiro, e também preto, e também quase esquecido, foi o pianista Johnny Alf, que já criava algo do que viria depois a ser chamado de bossa, e que não era tão nova assim. Onde estava Alaíde Costa, mulher preta que ajudou a alavancar o gênero com sua voz profunda e marcante? Quem ainda fala da belíssima voz de Jair Rodrigues e da “bossa negra” de Elza Soares? Há inúmeros outros exemplos de experimentações afrossônicas nas bandas de cá, assim como de diferentes estilos de samba, nos lembra Spirito Santo, como os de Ataulfo Alves, Cartola, Heitor dos Prazeres, Ciro Monteiro e Geraldo Pereira, mostrando complexidade, assim como lirismo e “tranquilidade”.

A bossa nova é canônica na música popular brasileira, e a ela é atribuída a “modernização” desta linguagem, assim como sua sofisticação, a internacionalização e respeito à nossa música no estrangeiro, entre outras coisas. E também se lhe concede o título de geradora de outras musicalidades de igual prestígio, como o que veio a ser chamada de MPB. A partir da bossa e somente a partir dela, pôde-se gerar outros artistas que dividiriam os louros de estarem no topo desse lugar de prestígio, importância e legitimação. Poderíamos até discutir muitos nomes e sem dúvidas encontraríamos pretos e pretas nesse rol de importância, mas os primeiros que estão na boca da maioria, seriam Chico Buarque e Caetano Veloso. Gilberto Gil, Jorge Ben, Milton Nascimento, Luiz Melodia, Itamar Assumpção, Jards Macalé, Marku Ribas: uma lista heterogênea, de estilos e épocas diferentes, porém de grande importância. Uns mais populares que outros, alguns com mais aceitação de público e crítica, mas, reflitamos: algum desses nomes realmente foi tratado e alçado ao patamar dos artistas brancos já citados de forma equânime e com a devida profundidade de análise que mereciam? 

A MPB, como toda música brasileira, vai partir de uma base africana para se desenvolver, mesmo com todo o embranquecimento aplicado por parte de alguns artistas, e vai seguir o rumo de uma sociedade racista para sua aceitação e legitimação. O popular aqui é elevado a outro nível, para além de “cultura popular” — que estaria mais ligado ao “folclore” —, e propõe antes uma diferenciação com a referência do erudito, e reconhece em parte suas origens, mas de forma totalmente genérica e não afroreferenciada. Denominação que também, para existir enquanto “brasileira”, repete o mesmo processo, pois vai investir muito mais numa ideia capenga de nacionalidade, sustentada pelo mito do encontro das três raças e da consequente democracia racial. Precisaríamos então de toda uma revisão de nossa historiografia a partir de África, já em curso, mas ainda insuficiente, para projetarmos futuros possíveis através da nossa ancestralidade preta e assim pormos no altar aqueles que devidamente o merecem, assim como tantos que foram esquecidos. Pois o futuro é ancestral.

A filosofia puramente grega é um mito, para além de uma construção mitológica é uma grande pirataria de conhecimentos científicos africanos, mais precisamente de Kush e Kemet (territórios conhecidos como terras pretas, atualmente Etiópia e Egito). É contundente a afirmação anterior, embora coloque em xeque os cânones da história das filosofias ocidentais. 

George James afirma, em Legado Roubado: filosofia grega é a filosofia egípcia roubada, que os gregos foram proibidos de entrar em instituições africanas até 670 a.c. Os jônicos eram conhecidos como piratas do conhecimento, pelo fato de não mencionarem suas fontes e seus verdadeiros mestres (os africanos antigos). Além da influência africana na cultura grega, de acordo com James houve o roubo do legado africano de kush-kemet.

Numa perspectiva geopolítica, os gregos construíram suas filosofias a partir do que antigos africanos chamavam de “sistema de mistérios”. Segundo James, a filosofia grega é fruto deste conhecimento. Este pensamento investigava o que mais tarde na história do Ocidente (na Idade Média) irão chamar de sete artes liberais (trivium e quadrivium) como algo “inovador” no ensino. No entanto, os africanos antigos já haviam sistematizado estas artes no interior das Per Ankh (instituições) muito antes até mesmo da existência greco-romana.

As instituições da vida (Per Ankh), como eram conhecidas, receberam estudiosos e pesquisadores de todas as terras. Inclusive os pré-socráticos, os próprios Sócrates e Platão. Este fato demonstra a falsificação do pensamento puramente grego. Até mesmo Homero indica de forma minuciosa, em suas obras Odisseia e Ilíada, as viagens de Platão à Kemet (Egito antigo) e a influência africana na cultura grega. Os pensadores ocidentais sucessores fizeram esforços para inferiorizar os conhecimentos africanos, os quais serviram de fonte para diversas perspectivas da humanidade. 

O discurso do Logos (razão) como fundamento da filosofia ocidental é o demarcador da universalidade e consequentemente do racismo epistêmico na antiguidade e no desenrolar da história da filosofia. O filósofo sul-africano Mogobe Ramose (2011) defende a pluriversalidade como um dos fundamentos das filosofias africanas, pois nas realidades do continente todos os povos produzem conhecimento, portanto, o pensamento racional não inicia com os gregos. 

Nesse sentido, o conhecimento é atemporal, pois não somente a filosofia como também o pensamento científico não surgem com os helênicos, mas sim às margens do rio Nilo com os africanos. A universalidade induz à centralidade numa só cultura, de uma só terra, logo, apenas uma única comunidade é demarcadora de uma sistematização de conhecimento, o que na verdade é uma tautologia (uma falsa verdade). Tal discurso intelectual inclina-se à dissimulação, apagamento e homicídio de outras filosofias e outras humanidades. 

O discurso filosófico hegemônico da atualidade tem como estratégia a manutenção do poder centralizado em apenas um modelo de sujeito e este modelo deve atender aos requisitos básicos, como utilizar referências gregas e sucessoras, usurpar outras culturas para legitimar seus conhecimentos, disputar com outros discursos com o objetivo de ser superior e universal. O filósofo Renato Nogueira argumenta que o conhecimento é um elemento-chave na disputa e na manutenção da hegemonia. 

Portanto, qual o objetivo em apagar a fonte de inspiração dos gregos? Por que filósofos e intelectuais fazem esforços para menosprezar as contribuições do continente africano na cultura da humanidade e no desenvolvimento científico? O discurso filosófico impacta na construção subjetiva da ideia de humanidade. Logo, o racismo na filosofia moderna solidifica um projeto hegemônico e racista nas produções filosóficas futuras, ou seja, quais serão os novos cânones para o desenvolvimento de um futuro da humanidade sendo que a ideia vigente desumaniza corpos inferiorizados racialmente? 

Kant e Hegel, “filósofos” iluministas, conduzem discursos, ditos filosóficos, que desumanizam e visam à negação da capacidade cognitiva da produção filosófica dos africanos e seus descendentes. Érico Andrade, no texto “A opacidade do Iluminismo: o Racismo na filosofia moderna”, dimensiona tais discursos. Neste ponto, percebe-se que o conceito de humanidade ou cidadania envolve a grande questão: onde “nasceu” a filosofia? 

A grande analogia atribuída a Sócrates como parteiro de ideias é muito semelhante às narrativas filosóficas africanas do processo de conhecer a natureza das coisas. A linguagem figurativa é algo presente nos discursos filosóficos africanos. Por exemplo, Amen-om-ope, filósofo da 21ª dinastia, quando fala sobre a ética da serenidade ou virtude do silêncio carrega em seu discurso a figura da barca como degustação, experimento ou imersão. Logo, a barca se refere ao discernimento junto com outros elementos como o rio, que simboliza as adversidades da vida, da dúvida e do mistério. 

O processo de conhecer ou o “parto da ideia” é um fenômeno presente nas Per Ankh. Veja bem, o processo de conhecimento na antiguidade africana continha etapas que eram extremamente profundas, a primeira etapa que muitos dos gregos antigos sequer alcançaram era chamada de “mortais” (como chamavam os africanos), que se refere à frase atribuída a Sócrates: “conhece-te a ti mesmo”. Nessa perspectiva, conhecer a si era o objetivo maior. Além disso, era o momento de instrução, introdução e experimento.

A segunda etapa do acesso aos “sistemas de mistérios” era chamada de Nous, ou inteligência, ou seja, o momento em que o estudioso conhece a si e inicia o parto da ideia. Já a terceira etapa se refere à grande atribuição socrática, o que na verdade é um processo de aprendizagem africano antigo (a maiêutica). Pois na etapa chamada de “filho da luz” é justamente quando nasce o conceito e a ideia, ou seja, a sistematização da produção de conhecimento. Então, quem são os verdadeiros parteiros da humanidade? 

Homens e mulheres africanos da antiguidade são os verdadeiros parteiros da ideia da humanidade, pois além de sistematizar um complexo método de investigação filosófica ensinavam as sete artes liberais que direcionam o sujeito a uma moralidade justa e equilibrada em Maat (verdade) e com o Cosmos (universo). Algumas narrativas desonestas carregam consigo o discurso de que os africanos colonizaram os gregos, o que de fato é uma falsa verdade, justamente porque a colonização é um fenômeno que guarda uma herança nórdica ocidental.

Outra falsa verdade é a inferiorização do corpo entre os africanos. Ao contrário de Platão, que sustenta a inferiorização do corpo com relação ao conhecimento verdadeiro, os africanos antigos acreditam na harmonia entre as dimensões do Ser e o conhecimento de si. Ou seja, há uma tentativa de assimilar conhecimentos africanos aos conhecimentos gregos de maneira integral por conta do legado africano roubado, porém muitas produções filosóficas não são integralmente africanas em territórios gregos. O que isso quer dizer?

Quer dizer que o alicerce das comunidades africanas antigas (Camítica) é ntr (espírito divino), o que mantém a dialética e integridade entre corpo, mente e espírito, segundo Afua (2021). O corpo faz parte do fazer filosófico, nesta perspectiva o parto é, de certa forma, mitológico e isso não descaracteriza a sua fonte e profundidade filosófica. Uma análise de maneira geral do nascimento de Heru (Hórus), por exemplo, mensura a tese. 

Segundo Emanoel Araújo (2000), na literatura dramática, Isis, para salvar seu filho da perseguição de Seth (que matou Osíris em 14 pedaços), invoca a proteção divina a Atum. Então, Isis proclama a sentença de proteção e por fim instrui seu filho prestes a nascer. De maneira analítica, na perspectiva filosófica africana, Hórus seria o conhecimento e foi sentenciado pela proteção divina. O pai de Hórus (Osíris) carrega consigo a simbologia da restituição ou renovação da vida, percebemos que Osíris renasce, além disso, seu filho (conhecimento) nasce a partir da atitude de Isis (a portadora da cultura). Compreendemos então, que o conhecimento surge com o renascimento. Isis carrega consigo o título de portadora da cultura, o símbolo matrilinear. Por fim, Seth simboliza a escuridão, a desordem e a irracionalidade. 

Contudo, o processo de parir uma ideia é tão complexo quanto o significado de filosofia, que segundo Obenga (2004) é uma espécie de pedagogia. O processo filosófico é desconfortável e requer o renascimento, ou seja, a reinterpretação ou reelaboração do conhecimento instruído pela cultura. A não sistematização de conhecimentos leva à não compreensão da natureza das coisas e impacta no futuro da humanidade gerando o caos e a desordem. Portanto, o reconhecimento da influência e contribuição das filosofias e culturas africanas na cultura da humanidade possibilita a reinterpretação e reelaboração da pergunta “o que é a humanidade?”, assim legitimando e garantindo a qualidade de vida e intelectualidade africana e de seus descendentes na produção filosófica e científica no presente e no futuro.