Sociedade

A crise da monogamia: o poliamor e as novas formas de afeto

Estamos em pleno 2024 e, para a surpresa de alguns e incredulidade de outros, os ventos parecem soprar a favor do barco das relações não-monogâmicas. Esqueça o clichê do amor livre hippie que costumava vir à mente quando se pensava em conceitos que gravitavam em

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Sumário de plantas oficiosas: um ensaio sobre a memória da flora, do escritor e crítico colombiano Efrén Giraldo, combina uma rica iconografia a memórias pessoais, comentários literários e análise social para se debruçar sobre o papel e o poder curativo das plantas em nossas vidas.

Além de escritor, o autor nascido em Medellín é curador de arte, crítico, professor e pesquisador da Universidade Eafit. Com uma atuação ativa no debate sobre artes, literatura e cultura na Colômbia, já publicou outros trabalhos, incluindo Los límites del índice (2010), Entre delirio y geometría (2013) e La poética del esbozo (2014). Agora, com este que é seu primeiro trabalho traduzido para o português e lançado em solos brasileiros, foi vencedor do Prêmio de Não Ficção Latinoamerica Independiente. 

Capa de Denise Yui para a edição brasileira, lançada pela Editora Fósforo.

Diga a verdade: você já parou e pensou, de fato, sobre as plantas? Tudo bem se a resposta for “não”, pois Efrén Giraldo felizmente já pensou. Em uma mistura bem encontrada entre erudição e irreverência, o autor propõe esse olhar raro, mais aprofundado sobre a flora, fazendo com que as aulas de biologia se somem às aulas de sociologia e filosofia. A onipresença das plantas em nossa existência comumente é tomada com certa indiferença, no sentido de que tomamos tal existência como algo natural, partindo do pressuposto de que as plantas que estão nos circundando o fazem porque, bem, é aqui que elas deveriam estar. Onde mais estariam? Mas, se partirmos para uma proposta mais reflexiva — algo que se assemelha à perspectiva sociológica dos povoados de uma determinada terra, por exemplo —, concluímos que elas têm muito a nos ensinar sobre as andanças que espalham espécies e a superação de traumas coletivos (incluindo a pandemia de COVID-19, que estava no seu auge no período em que o livro foi escrito). 

Giraldo, assim, apresenta uma mescla inusitada de registros, saberes e emoções, destacando a resiliência da natureza diante da ação humana e convidando os leitores a repensarem suas ações em relação ao meio ambiente.

O livro é um tratado sobre plantas, tanto reais quanto imaginárias, sendo uma obra que pensa o fascínio que elas exercem. No entanto, a coisa toda vai além, ao abordar a importância crucial da ficção, especialmente em tempos em que violência e política parecem indissociáveis. Os capítulos do livro buscam reunir uma constelação de ornamentos, árvores, comidas, venenos e seres vegetais conhecidos e desconhecidos, provenientes da memória, experiência e diversas representações literárias, científicas e artísticas.

Juan Manuel Echavarría, elemento da série “Corte de florero”, (1997)

A nota do autor, que serve como preâmbulo para o livro, destaca que os textos exploram temas como transplantes, extinções e invasões, contribuindo para o inventário de ficções e iconografias das plantas. Escritos durante o confinamento pandêmico, eles formam um diário imaginário sobre presenças e ausências, representações e perplexidades da flora em um momento de dificuldade extrema.

Para quem lê essas linhas descritivas, talvez seja até difícil de visualizar o que, afinal, é este Sumário de plantas oficiosas. Um exemplo vem a calhar. 

No início da jornada literária proposta pelo colombiano, o autor apresenta as bases do livro com o capítulo inaugural, cujo título é Das árvores peregrinas às floras narradas – Uma invasão da beleza. O conceito floresceu durante o septuagésimo quinto aniversário do devastador bombardeio de Hiroshima, ocorrido em 2020, marcando o ponto de partida para uma reflexão profunda sobre a resiliência das árvores no pós-tragédia. Com habilidade, o autor tece uma teia de conexões entre o reino vegetal e a consciência humana, indagando sobre a origem das plantas e explorando minuciosamente o impacto da história, cultura e política na paisagem, muitas vezes relegada ao simplório “o que está aí”. Nessa narrativa perspicaz cheia de insights valiosos, ressalta-se a imperiosa necessidade de reconhecer não apenas a presença das plantas, mas também a intrincada relação que elas mantêm com a tapeçaria histórica e cultural. Linha após linha, começamos a olhar com atenção para os seres que estão do nosso lado e entender que há maravilha no pequeno e no cotidiano.

Mas Giraldo não se limita a contemplar apenas o mundo vegetal. Ele adentra o domínio da neurobiologia das plantas, valendo-se das palavras de seu pioneiro, Stefano Mancuso, para destacar a incrível capacidade das plantas de se moverem e adaptarem, desafiando a preconcebida noção de sua estaticidade — “Se os extraterrestres nos visitassem”, escreve ele, “buscariam as plantas como interlocutores, não os humanos.” Se com Cosmos, de Carl Sagan, e Uma breve história do tempo, de Stephen Hawking, a astrofísica ganhou um destaque sem precedentes como o ponto de partida para reflexões maiores, Mancuso nos últimos anos vem fazendo o mesmo com a biologia. E Efrén ajuda, e muito, nessa reafirmação da área. Ao explorar a difusão do conhecimento botânico através de correspondências entre ilustres cientistas como Carlos Lineu, José Celestino Mutis, Francisco José de Caldas, Alexander von Humboldt e Jules Émile Planchon, cria no leitor a necessidade de abaixar o olhar para esquecer um pouco das estrelas, planetas e galáxias. É certo: as plantas estão aqui e têm muito a nos dizer. 

A narrativa ganha vivacidade e ainda mais palpabilidade ao se dedicar também a esclarecer a importância crucial das ilustrações botânicas, delineando a sutil diferença entre representação artística e captura realista das plantas. Com a apreciação de ilustrações antigas, evidencia-se o impacto singular que o estilo realista e analítico das composições botânicas exerce na representação das plantas. A partir desse capítulo inaugural, começamos a questionar, a exemplo do que Mancuso escreve, se há uma maneira estritamente vegetal de compreender. 

Sumário de plantas oficiosas emerge como uma obra singular e poliédrica que desvela a presença das plantas em nossas vidas, estabelecendo eloquente conexão entre a natureza e os intrincados fios da cultura, história e experiência pessoal do autor. Do começo ao fim, é uma experiência de leitura enriquecedora e instigante da interseção entre a flora e a condição humana.

Deu para visualizar o que é a obra premiada de Efrén Giraldo ou ainda estamos no campo da abstração? Se a segunda opção ressoar, uma nova perspectiva de mundo se apresenta como a solução, que é, com a mente aberta, ler Sumário de plantas oficiosas.

#47Futuro AncestralCulturaSociedade

As ruas são da gente negra: uma conversa com o livro Cidades Negras

O ano era 2012. Só agora percebo que já se passaram mais de 10 anos do momento em que conheci o professor Flávio dos Santos Gomes no Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Talvez soe estranho começar uma resenha assim em

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MPB ou Música Preta Brasileira: muita treta pra Vinícius de Moraes

A MPB, sigla para Música Popular Brasileira, sempre foi um lugar de disputas, discussões e teorizações, talvez sem nunca ter se chegado a uma unanimidade sobre uma definição final referente a sua forma e conteúdo. Seria um movimento, uma categorização musical ou uma época de

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A filosofia puramente grega é um mito, para além de uma construção mitológica é uma grande pirataria de conhecimentos científicos africanos, mais precisamente de Kush e Kemet (territórios conhecidos como terras pretas, atualmente Etiópia e Egito). É contundente a afirmação anterior, embora coloque em xeque os cânones da história das filosofias ocidentais. 

George James afirma, em Legado Roubado: filosofia grega é a filosofia egípcia roubada, que os gregos foram proibidos de entrar em instituições africanas até 670 a.c. Os jônicos eram conhecidos como piratas do conhecimento, pelo fato de não mencionarem suas fontes e seus verdadeiros mestres (os africanos antigos). Além da influência africana na cultura grega, de acordo com James houve o roubo do legado africano de kush-kemet.

Numa perspectiva geopolítica, os gregos construíram suas filosofias a partir do que antigos africanos chamavam de “sistema de mistérios”. Segundo James, a filosofia grega é fruto deste conhecimento. Este pensamento investigava o que mais tarde na história do Ocidente (na Idade Média) irão chamar de sete artes liberais (trivium e quadrivium) como algo “inovador” no ensino. No entanto, os africanos antigos já haviam sistematizado estas artes no interior das Per Ankh (instituições) muito antes até mesmo da existência greco-romana.

As instituições da vida (Per Ankh), como eram conhecidas, receberam estudiosos e pesquisadores de todas as terras. Inclusive os pré-socráticos, os próprios Sócrates e Platão. Este fato demonstra a falsificação do pensamento puramente grego. Até mesmo Homero indica de forma minuciosa, em suas obras Odisseia e Ilíada, as viagens de Platão à Kemet (Egito antigo) e a influência africana na cultura grega. Os pensadores ocidentais sucessores fizeram esforços para inferiorizar os conhecimentos africanos, os quais serviram de fonte para diversas perspectivas da humanidade. 

O discurso do Logos (razão) como fundamento da filosofia ocidental é o demarcador da universalidade e consequentemente do racismo epistêmico na antiguidade e no desenrolar da história da filosofia. O filósofo sul-africano Mogobe Ramose (2011) defende a pluriversalidade como um dos fundamentos das filosofias africanas, pois nas realidades do continente todos os povos produzem conhecimento, portanto, o pensamento racional não inicia com os gregos. 

Nesse sentido, o conhecimento é atemporal, pois não somente a filosofia como também o pensamento científico não surgem com os helênicos, mas sim às margens do rio Nilo com os africanos. A universalidade induz à centralidade numa só cultura, de uma só terra, logo, apenas uma única comunidade é demarcadora de uma sistematização de conhecimento, o que na verdade é uma tautologia (uma falsa verdade). Tal discurso intelectual inclina-se à dissimulação, apagamento e homicídio de outras filosofias e outras humanidades. 

O discurso filosófico hegemônico da atualidade tem como estratégia a manutenção do poder centralizado em apenas um modelo de sujeito e este modelo deve atender aos requisitos básicos, como utilizar referências gregas e sucessoras, usurpar outras culturas para legitimar seus conhecimentos, disputar com outros discursos com o objetivo de ser superior e universal. O filósofo Renato Nogueira argumenta que o conhecimento é um elemento-chave na disputa e na manutenção da hegemonia. 

Portanto, qual o objetivo em apagar a fonte de inspiração dos gregos? Por que filósofos e intelectuais fazem esforços para menosprezar as contribuições do continente africano na cultura da humanidade e no desenvolvimento científico? O discurso filosófico impacta na construção subjetiva da ideia de humanidade. Logo, o racismo na filosofia moderna solidifica um projeto hegemônico e racista nas produções filosóficas futuras, ou seja, quais serão os novos cânones para o desenvolvimento de um futuro da humanidade sendo que a ideia vigente desumaniza corpos inferiorizados racialmente? 

Kant e Hegel, “filósofos” iluministas, conduzem discursos, ditos filosóficos, que desumanizam e visam à negação da capacidade cognitiva da produção filosófica dos africanos e seus descendentes. Érico Andrade, no texto “A opacidade do Iluminismo: o Racismo na filosofia moderna”, dimensiona tais discursos. Neste ponto, percebe-se que o conceito de humanidade ou cidadania envolve a grande questão: onde “nasceu” a filosofia? 

A grande analogia atribuída a Sócrates como parteiro de ideias é muito semelhante às narrativas filosóficas africanas do processo de conhecer a natureza das coisas. A linguagem figurativa é algo presente nos discursos filosóficos africanos. Por exemplo, Amen-om-ope, filósofo da 21ª dinastia, quando fala sobre a ética da serenidade ou virtude do silêncio carrega em seu discurso a figura da barca como degustação, experimento ou imersão. Logo, a barca se refere ao discernimento junto com outros elementos como o rio, que simboliza as adversidades da vida, da dúvida e do mistério. 

O processo de conhecer ou o “parto da ideia” é um fenômeno presente nas Per Ankh. Veja bem, o processo de conhecimento na antiguidade africana continha etapas que eram extremamente profundas, a primeira etapa que muitos dos gregos antigos sequer alcançaram era chamada de “mortais” (como chamavam os africanos), que se refere à frase atribuída a Sócrates: “conhece-te a ti mesmo”. Nessa perspectiva, conhecer a si era o objetivo maior. Além disso, era o momento de instrução, introdução e experimento.

A segunda etapa do acesso aos “sistemas de mistérios” era chamada de Nous, ou inteligência, ou seja, o momento em que o estudioso conhece a si e inicia o parto da ideia. Já a terceira etapa se refere à grande atribuição socrática, o que na verdade é um processo de aprendizagem africano antigo (a maiêutica). Pois na etapa chamada de “filho da luz” é justamente quando nasce o conceito e a ideia, ou seja, a sistematização da produção de conhecimento. Então, quem são os verdadeiros parteiros da humanidade? 

Homens e mulheres africanos da antiguidade são os verdadeiros parteiros da ideia da humanidade, pois além de sistematizar um complexo método de investigação filosófica ensinavam as sete artes liberais que direcionam o sujeito a uma moralidade justa e equilibrada em Maat (verdade) e com o Cosmos (universo). Algumas narrativas desonestas carregam consigo o discurso de que os africanos colonizaram os gregos, o que de fato é uma falsa verdade, justamente porque a colonização é um fenômeno que guarda uma herança nórdica ocidental.

Outra falsa verdade é a inferiorização do corpo entre os africanos. Ao contrário de Platão, que sustenta a inferiorização do corpo com relação ao conhecimento verdadeiro, os africanos antigos acreditam na harmonia entre as dimensões do Ser e o conhecimento de si. Ou seja, há uma tentativa de assimilar conhecimentos africanos aos conhecimentos gregos de maneira integral por conta do legado africano roubado, porém muitas produções filosóficas não são integralmente africanas em territórios gregos. O que isso quer dizer?

Quer dizer que o alicerce das comunidades africanas antigas (Camítica) é ntr (espírito divino), o que mantém a dialética e integridade entre corpo, mente e espírito, segundo Afua (2021). O corpo faz parte do fazer filosófico, nesta perspectiva o parto é, de certa forma, mitológico e isso não descaracteriza a sua fonte e profundidade filosófica. Uma análise de maneira geral do nascimento de Heru (Hórus), por exemplo, mensura a tese. 

Segundo Emanoel Araújo (2000), na literatura dramática, Isis, para salvar seu filho da perseguição de Seth (que matou Osíris em 14 pedaços), invoca a proteção divina a Atum. Então, Isis proclama a sentença de proteção e por fim instrui seu filho prestes a nascer. De maneira analítica, na perspectiva filosófica africana, Hórus seria o conhecimento e foi sentenciado pela proteção divina. O pai de Hórus (Osíris) carrega consigo a simbologia da restituição ou renovação da vida, percebemos que Osíris renasce, além disso, seu filho (conhecimento) nasce a partir da atitude de Isis (a portadora da cultura). Compreendemos então, que o conhecimento surge com o renascimento. Isis carrega consigo o título de portadora da cultura, o símbolo matrilinear. Por fim, Seth simboliza a escuridão, a desordem e a irracionalidade. 

Contudo, o processo de parir uma ideia é tão complexo quanto o significado de filosofia, que segundo Obenga (2004) é uma espécie de pedagogia. O processo filosófico é desconfortável e requer o renascimento, ou seja, a reinterpretação ou reelaboração do conhecimento instruído pela cultura. A não sistematização de conhecimentos leva à não compreensão da natureza das coisas e impacta no futuro da humanidade gerando o caos e a desordem. Portanto, o reconhecimento da influência e contribuição das filosofias e culturas africanas na cultura da humanidade possibilita a reinterpretação e reelaboração da pergunta “o que é a humanidade?”, assim legitimando e garantindo a qualidade de vida e intelectualidade africana e de seus descendentes na produção filosófica e científica no presente e no futuro.