Obra de Yasmin Guimarães, artista publicada na Amarello Sonho.

Em cada bolso, um universo de possibilidades e distrações. Na sala de aula, e em tudo quanto é lugar, o celular, esse pequeno artefato tecnológico, se transforma em ponte e abismo, a um só tempo conectando e dispersando. E, assim, pais e professores enfrentam um dilema moderno: abraçar ou combater? 

“O Brasil é o segundo país no mundo com maior uso compulsivo de celulares. Pesquisas mostram que o uso excessivo pode causar impactos cognitivos.”

O debate sobre o uso de celulares na infância e adolescência, em especial na sala de aula, é um dos temas mais fervorosos na educação contemporânea. Enquanto alguns defendem o potencial educativo e de abrangência de visões de mundo desses dispositivos, que podem facilitar o acesso a informações e a diversas realidades, outros apontam para as distrações constantes e a dificuldade de manter a atenção por mais de alguns minutos. 

Segundo dados apresentados na Comissão de Assuntos Sociais (CAS), o Brasil é o segundo país no mundo com maior uso compulsivo de celulares, refletindo um alto nível de engajamento digital na vida cotidiana. Segundo a ComScore, empresa de análise de dados na internet, mais de 170 milhões de brasileiros, quase 80% da população, participam regularmente das redes sociais. E pesquisas mostram que o uso excessivo de celulares e tablets pode causar impactos cognitivos e afetar o desenvolvimento psicomotor, levantando preocupações sobre os efeitos de longo prazo dessa intensa exposição à tecnologia desde a infância. 

Diante disso, fica a pergunta: deve-se preservar os jovens de uma exposição tão precoce e intensa às telas?

Ohana Luize*, coordenadora de Educação da COAR Notícias, acredita que “é uma preocupação legítima que merece destaque, pois sabemos como o excesso de telas e conexões pode impactar negativamente, gerando ansiedade e afetando a qualidade das interações pessoais. Observamos isso em nossas próprias famílias, sem necessidade de pesquisas, apenas ao observar nossa realidade. Muitas vezes, a qualidade das interações face a face entre crianças e adolescentes é comprometida pela constante presença dos celulares.”

Mas também salienta que “ao mesmo tempo, não podemos privar as crianças do acesso à informação, à tecnologia e aos aprendizados próprios de seu tempo. Precisamos acompanhar seu desenvolvimento de forma positiva, integrada e produtiva em relação às tecnologias e ferramentas digitais. Isso implica desenvolver um olhar crítico que não desvalorize a presença diária dessas ferramentas na vida das crianças, mas que as incentive a serem cada vez mais elaboradas e benéficas para o desenvolvimento educacional e digital das crianças.”

O Movimento Desconecta, iniciado por um grupo de mães em São Paulo, propõe uma reflexão sobre o uso de smartphones por crianças e adolescentes. Defendendo o adiamento do acesso aos dispositivos até os 14 anos e a restrição ao ingresso nas redes sociais até os 16 anos, o movimento destaca preocupações com o impacto negativo dessas tecnologias na saúde mental e no desenvolvimento social dos jovens. A iniciativa visa criar um ambiente mais seguro e saudável para o crescimento das crianças em uma era digital cada vez mais dominante. As pessoas envolvidas se preocupam com a exposição precoce a conteúdos nocivos e altamente viciantes que podem prejudicar a cognição, memória, saúde mental e relacionamentos das crianças. 

O movimento visa devolver a decisão aos pais, incentivando ações coletivas para minimizar essa pressão. “Queremos trazer a decisão de volta aos pais para iniciar essa transformação. Acreditamos no poder de ações coletivas e queremos inspirar família a família, escola a escola, a se juntarem a nós nessa missão”, afirma o manifesto do movimento.

Enquanto educadores enfrentam desafios para integrar tecnologias de maneira educativa, mães, como as fundadoras do movimento, buscam equilibrar os benefícios e os riscos associados ao uso precoce de smartphones por seus filhos. “Os smartphones”, diz o manifesto, “expõem crianças e adolescentes a conteúdos nocivos e altamente viciantes, acarretando prejuízos individuais na cognição, memória, saúde mental, relacionamentos e prejuízos coletivos como cyberbullying, desinformação, polarização e extremismo”.

Além disso, o movimento sublinha que a pressão social coloca os pais em uma posição desafiadora: “Ou damos aos nossos filhos acesso a algo que abre portas para vários perigos ou corremos o risco de excluí-los socialmente”. A iniciativa busca devolver a decisão aos pais e promover ações coletivas para minimizar a pressão social, inspirando famílias e escolas a se unirem nessa missão de proteger a infância.

“Os dispositivos facilitam a socialização, a expressão criativa e o desenvolvimento de habilidades digitais essenciais para o futuro”

Por outro lado, críticos argumentam que os smartphones são essenciais para a construção da identidade dos jovens — e não só a identidade digital. Os dispositivos facilitam a socialização, a expressão criativa e o desenvolvimento de habilidades digitais essenciais para o futuro dos jovens. A integração precoce às tecnologias digitais também pode preparar os jovens para um mundo cada vez mais digitalizado, onde competências digitais são essenciais para o sucesso acadêmico e profissional.

Especialistas em educação defendem que a chave está em ensinar os jovens a usar essas tecnologias de maneira responsável e produtiva, ao invés de simplesmente restringir seu acesso. Proibir o uso de smartphones pode privar os estudantes de oportunidades de aprendizado e interação social que são vitais para o desenvolvimento de habilidades importantes para o século XXI.

Ohana Luize chama a atenção para outro aspecto da discussão: as diferenças socioeconômicas dos usuários. Ela comenta:

“No final do ano passado, o estudo TIC Kids Online Brasil revelou que 24% das crianças até 6 anos de idade já começavam a se conectar à internet. Esse número aumenta para 95% entre os brasileiros de 9 a 17 anos, mostrando um crescimento significativo na utilização da internet.

O celular é o dispositivo principal para acesso à internet, especialmente nas classes menos favorecidas. Isso cria um fenômeno complexo: enquanto a tecnologia continua a se desenvolver, especialmente no ambiente educacional, proporcionando maior qualidade e robustez, a maioria dos usuários, especialmente os mais vulneráveis social e economicamente, acessa a internet exclusivamente pelo celular. No entanto, essa conexão via celular tem suas limitações de qualidade.

Essas limitações tornam as classes menos favorecidas ainda mais vulneráveis em termos de acesso à informação de qualidade. Muitos estudiosos e pesquisadores defendem um equilíbrio necessário: reconhecer os desafios dos excessos tecnológicos enquanto aproveitam os benefícios que as tecnologias podem oferecer para melhorar o aprendizado, diversificar os métodos educacionais e facilitar o trabalho dos educadores e o processo educativo familiar.”

A Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda limites de tempo para o uso de telas: para menores de dois anos, o indicado é nenhum contato com telas ou videogames; dos dois aos cinco anos, o recomendado é até uma hora diária; dos seis aos 10 anos, recomenda-se entre uma e duas horas; dos 11 aos 18 anos: entre duas e três horas. Essas diretrizes, e a necessidade delas, refletem o desafio de equilibrar os benefícios educacionais das tecnologias com os riscos à saúde mental e socialização dos jovens.

O debate sobre o uso de smartphones nas salas de aula e além delas continua a evoluir. Enquanto o Movimento Desconecta destaca a importância de proteger os jovens, a sociedade enfrenta o desafio de encontrar um equilíbrio entre promover um uso responsável das tecnologias e garantir um desenvolvimento saudável e equilibrado.

Refletindo sobre o slogan do Movimento Desconecta — A infância e a adolescência são muito curtas para serem vividas em um smartphone —, somos convidados a considerar profundamente o impacto das telas na jornada de crescimento de nossos filhos. A reflexão poética nos lembra da fragilidade intrínseca da essência da infância e adolescência e, com os avanços tecnológicos que moldam nosso mundo moderno, essa essência parece ainda mais quebradiça.

Para Ohana, “o caminho para o equilíbrio parece ser o mais sensato: promover reflexões contínuas e discussões desde o núcleo familiar até propostas mais amplas. Essa abordagem visa não apenas garantir o bem-estar e o desenvolvimento saudável das crianças e jovens, mas também reconhecer e aproveitar os benefícios que a tecnologia pode oferecer para o avanço e crescimento educacional.”

A busca por um equilíbrio adequado entre a proteção e a integração tecnológica há de seguir. Prepare-se para os novos capítulos: ela promete moldar o futuro das próximas gerações.

*Ohana Luize é jornalista, mestra em Comunicação e pós-graduanda em Educomunicação e Tecnologia.

Obra de Yasmin Guimarães, artista publicada na edição Amarello Sonho.

A discussão sobre o tabelamento dos preços de livros no Brasil tem gerado debates acalorados, dividindo opiniões entre defensores e críticos. O Projeto de Lei 49/2015, conhecido como Lei Cortez, busca regular o preço dos livros no mercado nacional, impondo um preço fixo para os lançamentos durante os primeiros 12 meses. O projeto, que recentemente avançou no Senado, foi originalmente apresentado pela ex-senadora Fátima Bezerra (PT-RN) e ressuscitado pela senadora Teresa Leitão (PT-PE). Inspirado na bem-sucedida Lei Lang, em vigor na França há mais de 40 anos, tem como intenção fomentar a leitura e proteger as livrarias independentes, permitindo que estas possam competir com grandes varejistas, especialmente as plataformas de venda online. Não à toa, a gigante Amazon é o principal alvo da Lei Cortez. 

Atualmente, as grandes redes exigem descontos das editoras sobre o preço sugerido dos livros, podendo praticar um valor final mais baixo para o consumidor. Em contrapartida, as pequenas livrarias não conseguem obter os mesmos descontos e acabam cobrando preços mais altos do consumidor. Órgãos públicos federais, estaduais ou municipais, bem como feiras de livros, também podem obter descontos.

o desconto não poderá exceder 10% do preço fixado pela editora durante 12 meses após seu lançamento”

Se a Lei Cortez for aprovada, o desconto de qualquer livro não poderá exceder 10% do preço fixado pela editora durante 12 meses após seu lançamento. A partir da segunda edição, o prazo de validade do teto do desconto será reduzido para seis meses. Após esse prazo, a política de descontos fica liberada. Órgãos públicos federais, estaduais e municipais, e feiras de livros serão excluídos da regra geral, podendo obter descontos maiores, desde que a compra seja feita diretamente com as editoras.

As principais argumentações de ambos os lados são:

Contra o Projeto de Lei

Os críticos da Lei Cortez defendem que a fixação de preços para livros prejudica tanto as editoras quanto os consumidores. Argumenta-se que o alto custo dos livros no Brasil se deve às baixas tiragens, resultadas diretamente da baixa demanda. Como efeito, os preços elevados dos livros desestimulam a compra, criando um ciclo vicioso: poucos leitores compram livros, o que mantém as tiragens baixas e, consequentemente, os preços altos.

As editoras — negócio que, como qualquer outro, precisa ser lucrativo — se beneficiariam de uma maior liberdade para ajustar os preços conforme a demanda. Descontos estratégicos, especialmente em plataformas como a Amazon, ajudam a impulsionar as vendas, tornando os livros mais acessíveis ao público e permitindo que editoras e livrarias aumentem sua receita total, mesmo com preços unitários menores.

O jornalista Elio Gaspari, em matéria que leva o título A volta da tunga dos livreiros e o subtítulo Querem tabelar para proibir os descontos, argumenta que:

“É um caso especial de tabelamento, pois enquanto o costume é tabelar uma mercadoria para impedir que se cobre a mais, nessa girafa pretende-se impedir que o comerciante cobre menos. (…) Os livreiros têm uma aura apostolar. Afinal, um livro não seria um sabonete. Ilusão. Livros, sabonetes e caminhões são mercadorias. Tanto é assim que, há muitos anos, quando era mais barato imprimir um livro na China, algumas editoras passaram a rodá-los em Xangai, trazendo os volumes para o Brasil. As duas maiores redes de livrarias nacionais quebraram, muito mais por causa de suas acrobacias financeiras do que pela concorrência. Quando as grandes redes afogavam as pequenas livrarias, ninguém falava em tabelamento.”

A principal crítica ao PL 49/2015, portanto, é que ele impediria preços mais acessíveis ao proibir descontos superiores a 10% durante o primeiro ano de lançamento do livro. A restrição é comparada a políticas de controle de preços do passado, como os infames “fiscais do Sarney”, que muitas vezes resultaram em fracassos econômicos. A preocupação é que o tabelamento levará a uma redução nas vendas, obrigando editoras a diminuir ainda mais as tiragens e, consequentemente, aumentar os preços, criando uma situação insustentável para todo o mercado e ferindo quem já está bem combalido: o leitor.

Gaspari arremata: “Reclama-se que o freguês vai a uma livraria, consulta os volumes e, ao voltar para casa, encomenda-o eletronicamente. Os comerciantes que fazem essa reclamação fazem compras online e não pensam em tabelar os sanduíches. Ademais, todas as grandes editoras têm operações de venda eletrônica. Se cobram mais caro ou forçam a venda de livros físicos em detrimento dos e-books (mais baratos), o problema é delas.”

A favor do Projeto de Lei

Por outro lado, os defensores da Lei Cortez veem nela uma forma de proteger as pequenas livrarias e editoras da concorrência predatória das Amazons da vida. Eles argumentam que as grandes redes conseguem oferecer descontos significativos devido ao seu poder de negociação, o que prejudica as pequenas livrarias que não conseguem competir com esses preços.

O objetivo da Lei Cortez, segundo seus proponentes, é garantir uma maior diversidade no mercado livreiro, permitindo que livrarias de diferentes portes coexistam. Isso criaria uma tapeçaria de opções muito mais diversificada e abrangente, fugindo do monopólio que reduz as possibilidades de todos os envolvidos. Leis similares em países como França, Espanha e Argentina têm sido citadas como exemplos de sucesso, onde a regulação de preços ajudou a diminuir o preço médio dos livros e a preservar a biodiversidade cultural representada por pequenas livrarias.

Alexandre Martins Fontes, diretor-executivo da Editora WMF Martins Fontes e da Livraria Martins Fontes Paulista, rebateu diretamente os argumentos de Gaspari:

“A ideia dessa lei é impedir que empresas gigantescas (…), sem nenhum compromisso com a cultura do nosso país, tratem o livro como isca e deem descontos abusivos.”

A preocupação central dos defensores da lei é que, sem essa regulamentação, o mercado livreiro se tornará um oligopólio dominado por poucas grandes empresas, reduzindo a diversidade de oferta e centralizando o poder de precificação. Eles acreditam que a lei ajudará a manter as livrarias físicas nas cidades, que são importantes espaços culturais e sociais.

“A lei”, escreve Martins Fontes, “limita-se apenas a livros lançados nos últimos 12 meses, que teriam um desconto máximo de 10%. Ou seja, não atinge sequer 5% do total das obras disponíveis no mercado nacional e vale por um período que dará às pequenas livrarias a chance de uma concorrência mais leal, em produtos que atraem clientes e geram um movimento fundamental para as lojas menores. Ao garantir isso, a lei permite que mais livrarias possam coexistir e que mais livros, dos mais variados temas, possam ser descobertos pelos mais variados leitores. Se ficarmos apenas nas mãos de uma empresa (digamos, a livraria Amazon), podemos até comprar livros pela metade do preço, mas serão apenas os livros que ela entender que valem a pena ser vendidos.”

Há quem concorde com Gaspari, há quem concorde com Martins Fontes — mas há quem concorde com os dois. 

a taxação de livros no Brasil reflete uma tensão clássica entre a liberdade de mercado e a intervenção regulatória”

A discussão sobre a taxação de livros no Brasil reflete uma tensão clássica entre a liberdade de mercado e a intervenção regulatória. De um lado, há a visão de que a regulação excessiva sufoca a inovação e a flexibilidade necessárias para um mercado dinâmico. Do outro, há a preocupação com a proteção das pequenas empresas e a preservação da diversidade cultural.

Ambos os lados apresentam argumentos válidos que merecem consideração. A decisão final sobre a implementação da Lei Cortez deverá levar em conta os impactos econômicos e culturais de longo prazo, buscando um equilíbrio que favoreça tanto o acesso aos livros quanto a sustentabilidade do mercado livreiro no Brasil.

Países como Alemanha e Espanha são exemplos que deixam claro que o projeto pode, sim, ser benéfico não somente às livrarias independentes, mas também aos consumidores. No Reino Unido, no entanto, onde a lei do preço fixo vigorou de 1996 a 2018, houve aumento de cerca de 80% no preço dos livros. 

Com a lei em prática, seríamos um caso que penderia mais para o lado da Alemanha e Espanha, ou para o Reino Unido? Difícil dizer. O contexto brasileiro, afinal, é o contexto brasileiro. Sem a Lei Cortez, o cenário também não é animador, já que o número de leitores no país é baixo. Segundo o Panorama do Consumo de Livros, pesquisa encomendada pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) em 2023 e realizada pela Nielsen BookData, mostra que 84% dos brasileiros acima de 18 anos de idade não compraram livros nos últimos 12 meses.

Em outras palavras, que se seja contra ou a favor da Lei Cortez — não é de hoje, mas a maré parece pouco favorável à leitura

Ao término dos primeiros 100 dias do novo governo Lula, completados no último 10 de abril, é natural que se faça um levantamento mais detalhado do que foi e do que não foi feito ao longo desse período. É, afinal, um marco temporal significativo, em especial por se tratar de uma transição aprofundada do Brasil-catástrofe que aconteceu de janeiro de 2019 a dezembro de 2022. Entre as inúmeras mudanças que se fazem necessárias, dentro do tanto que se esperava mudar, um aspecto em particular arrepiava o cabelo de muita nuca por aí: para mandar uma mensagem clara e categórica à população brasileira, e ao restante do mundo, era urgente que o campo das políticas públicas passasse por um processo ardente de renovação. Isso, felizmente, se confirmou no trimestre que passou e vê-se no horizonte um punhado bem servido de propostas — em sua maioria, relançamentos de programas desmontados — que visam o combate à fome, a preservação do meio-ambiente, a luta contra o racismo e mais um mar de outras finalidades político-sociais. 

Foto: Getty Images

A despeito do hiato recente, no século XXI o Brasil segue a tendência progressista ocorrida na América Latina. Como conta Suzana Maria Loureiro Silveira1, advogada popular e mestra em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, desde o fim dos anos 1990 os países do continente vêm, no geral, valorizando a gestão democrática — de Hugo Chávez, na Venezuela, até Fernando Lugo, no Paraguai —, universalizando condições de vida mais adequadas àqueles situados em vulnerabilidades socioeconômicas causadas por problemáticas históricas. 

“Desde seu primeiro mandato como Presidente, Lula tem buscado construir uma agenda política voltada ao reconhecimento das desigualdades sociais e históricas. No mesmo sentido, tem buscado alinhamento internacional sobretudo com países vizinhos. Esse movimento também ocorreu nos anos 2000 com a chamada ‘Onda Progressista’ ouOnda Rosa’ que representou uma base de sólidas articulações entre Estados latino-americanos por ocasião de vitórias presidenciais na virada do milênio. Em termos de integração houve um sentido de identidade para formulações de políticas voltadas à realidade regional. Esse recorte histórico não está alheio às políticas institucionais tomadas em cada país.”

As políticas públicas, então, dão as caras para promover o fortalecimento da participação social e a garantia de não retrocesso. O programa relançado que mais ganhou destaque nos noticiários brasileiros foi o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), uma iniciativa que garante compra de produção de pequenos produtores e oferece para pessoas em situação de insegurança alimentar. A mensagem por trás do programa e de toda a sua planejada repercussão? O combate à fome volta a ser uma das prioridades do governo. 

Evidentemente, uma política pública não se faz tão somente de boas intenções e posicionamento humanista. De tais discursos, a gaveta de projetos descontinuados ou ineficazes está cheia. Políticas públicas nada mais são do que ações governamentais para assegurar os direitos previstos na Constituição Federal, além de, com uma construção macro que se faz a cada programa, estabelecer uma linha geral de como fazer valer os valores que deveriam tocar a sociedade e servir, assim, de ferramenta para implementar mudanças progressivas. É por meio dessas políticas que o governo aborda algumas questões como a equidade de gêneros, estabelece diretrizes nacionais e providencia recursos necessários para alcançar tanto objetivos específicos quanto amplamente definidos. Se bem planejadas, podem fazer toda a diferença tanto para o presente quanto para o futuro. Com a ajuda de pesquisas científicas, por exemplo, as políticas públicas podem levar o Brasil a se tornar referência em energia limpa.

Como elas são feitas no Brasil?

O processo de elaboração de uma política pública é sempre complexo e multifacetado — dois adjetivos que, apesar de enclichezados, seguem sendo palavras-chaves para a compreensão do panorama brasileiro. De acordo com Suzana,

No Brasil, para que haja um mínimo de legitimidade das ações estatais, reveste-se no discurso das políticas públicas a necessidade da criação de instrumentos pelos quais serão promovidas as prestações que induzam ao ‘trajeto’ previsto pelo programa ou meta, previamente prescritos, sujeitos, inclusive, à intervenção de órgãos de controle (legalidade, constitucionalidade e orçamentário) como é o caso do Poder Judiciário e tribunais de contas. Pragmaticamente, as políticas públicas enquanto essas ações estatais funcionariam como um meio. Nesse contexto, as políticas públicas atuam como instrumentos necessários à efetivação de direitos fundamentais, refletindo-se em uma ação do Poder Público tendente à realização gradativa de programas ou metas definido em norma jurídica, sob a qual pode recair controle jurisdicional quanto à eficiência relativa entre os meios utilizados e os fins ou resultados, produto da atuação estatal. Assim, toma-se como uma peregrinação em que é inerente percorrer um caminho, compreendido, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, como imprescindível à prestação estatal, isto é, é essencial que haja a definição de uma política pública dentro de uma previsão orçamentária (votada e aprovada) e a execução do programa social aos moldes de sua definição. 

Presentes no Brasil, podemos pensar em 4 tipos de políticas públicas: a política pública distributiva, construída com o orçamento público contemplando ações que fornecem serviços para a população (ou parte dela) por meio do Estado; as políticas públicas redistributivas visam reduzir a disparidade social (um bom exemplo atual é a isenção do imposto de renda, que, a partir do ano que vem, aumenta a sua régua e passa a ser aplicada a quem recebe até R$2.640); as políticas públicas regulatórias estão diretamente relacionadas com as leis, criando, aprimorando ou fiscalizando o cumprimento de leis que asseguram direitos e o bem da sociedade; já as políticas públicas constitutivas têm como objetivo estabelecer as responsabilidades das esferas de poder, distribuindo e determinando se a responsabilidade sobre algo é do governo municipal, estadual ou federal. 

Na primeira etapa para a elaboração de uma política pública, identifica-se problemas e desafios que precisam ser abordados. Esses problemas podem surgir de diversas fontes, incluindo demandas da sociedade civil, diagnósticos técnicos e avaliações de resultados de políticas existentes. Como a educação é pouco, ou quase nada, democratizada, um ProUni (conhecido também como Programa Universidade Para Todos) se faz necessário para ampliar o acesso ao ensino público. Como a violência contra mulher atinge números cada vez maiores, uma Lei Maria da Penha precisa existir.

Com base na identificação dos problemas, as propostas são desenvolvidas por meio de consulta, negociação e articulação com diferentes atores sociais e institucionais. Essas propostas podem ser elaboradas por grupos de trabalho, comissões ou ministérios especializados. Depois que são formuladas, elas precisam ser implementadas por meio de ações concretas. Isso geralmente envolve a alocação de recursos financeiros, humanos e materiais, a definição de marcos regulatórios e a criação de instituições e mecanismos de gestão. Por fim, as políticas públicas precisam ser monitoradas e avaliadas para avaliar sua eficácia e efetividade. Isso envolve a coleta de dados, a análise de resultados e a revisão das políticas existentes para garantir que elas estejam alcançando seus objetivos.

Mas há alguns problemas na simplificação de processos que muitas vezes ocorre por aqui. O que fazer se, digamos, uma política pública não vingar? Não é difícil de acontecer, principalmente em um país gigantesco como o Brasil, que naturalmente impõe um sem-fim de obstáculos na implementação de qualquer medida ou programa. Como diz o economista Marcos Lisboa, inovações fracassadas do setor privado duram pouco no mercado, já as estatais perduram. Isso, por si só, levanta uma outra questão: o que é o sucesso ou o fracasso de um projeto? É comum que isso não seja definido de antemão, o que dificulta a tomada de decisões lá na frente, diante dos resultados. A política pública no Brasil por vezes não embasa suas ações em evidências disponíveis.

Mas, então, como deveriam ser feitas?

No mundo ideal, as políticas públicas deveriam ser feitas com base em princípios de transparência, participação, fiscalização e efetividade. Ou seja, as políticas públicas deveriam ser desenvolvidas em um processo aberto e participativo, com o envolvimento ativo de diferentes atores sociais e institucionais. Deveriam, também, ser avaliadas regularmente, e de maneira efetiva, para garantir que estão atingindo seus objetivos e contribuindo de fato para o bem-estar da população.

Nesse mesmo mundo ideal, a promoção da equidade e da justiça social deve ser o objetivo-mor, mas sempre com a adoção de políticas baseadas em evidências e a busca pela eficácia na implementação. As políticas públicas devem ser desenvolvidas de maneira estruturada e consistente, levando em consideração as necessidades da sociedade e as condições políticas, econômicas e sociais do país, incluindo possíveis barreiras. 

Há diversos elementos limitadores da ação, elementos jurídicos que atuam de modo a justificar as limitações de outras ordens (econômica, política etc.). As leis e planos orçamentários determinam a formulação e o alcance das políticas públicas. As alternâncias políticas e de projetos de governos impõem à população incertezas, uma vez que é suficiente que se altere a posição de um governante com relação a outro para que o cenário de formulações públicas em seu caráter progressista e mais social seja alterado. A universalização de garantias sociais tomada enquanto política de Estado representaria maior garantia aos grupos sociais subalternizados.

No entanto, a todo momento estamos trabalhando em nossa narrativa no âmbito do dever ser. No espaço amistoso e confortável do Direito, o de suas ficções e abstrações. Temos tantos e vários direitos reconhecidos, ratificados, internalizados, positivados, contudo sem muita garantia. Ironicamente, direitos que apesar de fundamentais parecem não ser encarados como tão fundamentais assim. Basta lermos o artigo 7º, 6º e 5º da Constituição.” , nos lembra Suzana.

Com isso em mente, o caminho básico deveria ser mais ou menos o seguinte:

Identificação do problema sempre em primeiro lugar. Pode parecer uma obviedade, é válido apontar que essa identificação sempre deve ser baseada em pesquisas e isso quer dizer que nada adianta se essas pesquisas só buscarem evidências que dizem respeito aos fins específicos daquele projeto e fechem os olhos para boa parte da população. 

Definição de objetivos: como saber se foi ou não foi bem-sucedida? A partir da identificação do problema, é indispensável definir os objetivos que a política pública deve alcançar. Esses objetivos devem ser claros, mensuráveis e, claro, realistas.

Elaboração de alternativas. Com os objetivos definidos, é hora de desenvolver alternativas para atingi-los, considerando o corpo de elementos que constituem nosso sistema jurídico. Essas alternativas podem incluir diferentes estratégias, programas, ações e investimentos.

Análise de custo-benefício. Antes de escolher a alternativa mais adequada, para fins de viabilidade é importante realizar uma análise de custo-benefício. Isso significa avaliar os custos e os benefícios das diferentes opções e escolher aquela que oferece a melhor relação custo-benefício.

A implementação da política talvez seja o ponto mais complicado. Pensar fora do papel, mas, ao mesmo tempo, fazer isso com o pé no chão para visualizar as viabilidades do Brasil real. Depois de escolhida a alternativa mais adequada, é hora de implementar a política pública. Isso pode envolver a criação de leis, regulamentos, programas e outras ações.

Monitoramento e avaliação: por fim, é importante monitorar e avaliar os resultados da política pública. Isso permite que os responsáveis possam identificar o que está funcionando bem e o que precisa ser ajustado ou modificado para que a política possa ser ainda mais efetiva e longeva.

Nada disso é necessariamente linear, tudo pode ser adaptado de acordo com o contexto e a natureza da política pública em questão. A participação e o diálogo com a sociedade civil e os grupos afetados pela política são fundamentais para garantir que ela seja efetiva e atenda às necessidades da população.

Devemos ser otimistas?

Quando comparamos o Brasil com outros países, temos ao nosso favor uma Constituição progressista que garante direitos sociais e trabalhistas, além de políticas públicas importantes que têm contribuído para a redução da pobreza e da desigualdade; por outro lado, o Brasil também enfrenta desafios significativos, como a corrupção, que afeta a efetividade e a transparência das políticas públicas, e a desorganização política, que implementa medidas de maneira descoordenada e sem uma avaliação adequada de resultados, o que pode levar ao desperdício de recursos e a um cenário de ineficiência.

O impulsionamento de um conjunto de condições materiais de existência (categoria podemos inserir os direitos fundamentais positivados na Constituição de Federal de 1988) às necessidades do capitalismo se dá independentemente da base ideológica do governo ou da plataforma política do momento em que as decisões são tomadas, que posteriormente decorre na definição de agenda, implementação de políticas públicas, pois a forma do Estado representa a forma social desta determinação histórica e não de outra. As políticas públicas experimentam variações com base nas vocações político-ideológicas no grupo que ocupa as mais altas cúpulas. Não se trata apenas de seu funcionamento, mas da essência da política pública que se almeja em um determinado recorte histórico. 

A eficácia das políticas públicas de um país é algo complexo de se avaliar e depende de diversos fatores, como o contexto político, social e econômico do país em questão. Um país frequentemente citado como exemplo de eficácia das políticas públicas é a Noruega. Mas como comparar a Noruega ao Brasil? 

Enquanto um é um país latino-americano emergente de 8.516 milhões de km², o outro é um país nórdico consideravelmente menor que a Bahia, cujo IDH é o segundo melhor do mundo. De maneira geral, a Noruega é conhecida por suas políticas públicas progressistas e bem-sucedidas, com um sistema de bem-estar social abrangente, que oferece saúde, educação e assistência social universais e de alta qualidade; políticas ambientais rigorosas, que visam reduzir as emissões de gases do efeito estufa e promover a transição para uma economia de baixo carbono; investimentos significativos em pesquisa e desenvolvimento, que têm ajudado a impulsionar a inovação e o crescimento econômico; políticas de igualdade de gênero, que têm levado a uma maior participação feminina no mercado de trabalho e em posições de liderança. Talvez isso pareça um verdadeiro oásis quando posto ao lado do país que ocupa somente a 87ª posição no ranking de desenvolvimento. Porém, lembremos das diferenças.

Para analisar criticamente qualquer assunto sobre a realidade do Brasil e da América Latina, devemos considerar alguns determinantes históricos que ainda continuam a produzir efeitos na forma pelas quais as condições de vida de diversos grupos sociais são construídas. Tais determinantes decorrem de eventos históricos como colonização, que implicou na condição de periferia suportada na região, por exemplo. De certa forma, toda problemática que envolve a temática de escolhas, decisões e elaboração de mecanismos que operem em um mínimo de alteração na realidade social de pessoas historicamente excluídas possuem um denominador comum: a especificidade histórica do direito no capitalismo. 

Em outras palavras, as demandas são diferentes, as realidades são diversas. A adoção por relativização de problemas sociais se realiza sob duas racionalidades distintas, em momentos históricos e conjunturais que não se confundem, ou deveriam ser confundidos. O que dá certo para um específico problema em uma localidade, não deve ser utilizado como modelo à outra.

Ainda que a comparação não seja o caminho indicado, a taxa brasileira de desenvolvimento humano relativamente baixa indica que há espaço para melhorias em áreas como saúde, educação e segurança pública. Não é de hoje que o país tem potencial para avançar e melhorar suas políticas públicas. À semelhança das próprias políticas públicas, tão limitadas pelo contexto jurídico-institucional, sendo muitas vezes incapazes de promover as mudanças pretendidas, perdura a sensação de que o Brasil é o Brasil que consegue ser e não o que deveria ser. Um país do futuro demasiadamente preso às agruras tanto do passado quanto do presente. 

No entanto, um certo otimismo pode subsistir sob tudo isso. Não chegaremos ao IDH da Noruega tão cedo, é verdade, mas estamos mais perto disso em 2023 do que estávamos nos quatro anos que vieram antes. Agora, finaliza Suzana, é tempo para que nós, sobreviventes de uma gestão de extermínio, organizemo-nos politicamente e pautemos as nossas lutas e bandeiras. A saída é pelo povo.

O mundo, e os muitos mundos que cabem no Brasil, precisam que a eterna promessa vire realidade.


1Suzana Maria Loureiro Silveira é Mestra e Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PPGD/PUCC). Doutoranda em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo (PROLAM/USP). Integrante do Grupo de Pesquisa Crítica do Direito e Subjetividade Jurídica (USP). E-mail: [email protected]

O descontentamento da população brasileira com a educação do país não é novidade. É desses problemas históricos, tomados quase como aspecto da identidade nacional, que se agravaram nos 4 anos de governo Bolsonaro. Para além das pesquisas que mostram essa insatisfação — como, por exemplo, o estudo Retratos da Sociedade Brasileira – Educação Básica, realizado anualmente desde 2006 pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) em parceria com o Ibope Inteligência —, a descrença nas instituições que cuidam do setor pode ser sentida nos mais distintos contextos sociais, sendo palpável em diálogos rotineiros, dos que acontecem enquanto se chucha o pãozinho ou a bolacha no café. A maioria, mesmo a parcela que desfruta dos privilégios de bancar o ingresso dos filhos em instituições que dispõem de mais recursos, concorda que algo precisa mudar. Mas, no Brasil, o que isso significa? As mudanças, afinal, podem acontecer em diversas frentes. Qual seria a principal ordem do dia? Equipar melhor as escolas, aumentar a segurança, estimular a participação dos pais, melhorar a gestão…? Ou a melhor pedida seria, então, uma reforma dos métodos de ensino?

Nos últimos anos, com a aprovação de um Novo Ensino Médio, essa última abordagem virou motivo de celeuma. 

O que é o novo ensino médio?

A Reforma do Ensino Médio Brasileiro é um conjunto de mudanças para o sistema educacional do país, propostas pelo Governo Federal. Aprovada em 2017, com Michel Temer na presidência, a reforma teria como objetivo modernizar o currículo escolar, tornando-o mais flexível e permitindo que os estudantes pudessem escolher as disciplinas que desejam estudar de acordo com suas preferências e interesses. Entre as principais mudanças propostas, estão a ampliação da carga horária anual, a possibilidade de escolha de itinerários formativos, a inclusão de disciplinas importantes — lê-se Filosofia, Sociologia, Educação Física e Artes — como obrigatórias e a flexibilização dos horários para que os alunos possam estudar em tempo integral.

A Reforma, claro, tem gerado debates e controvérsias desde sua aprovação, com críticos apontando que as mudanças foram implementadas sem a devida discussão com a sociedade e com a comunidade escolar, além de questionarem a falta de recursos para sua implementação efetiva. A implementação tem sido um processo bastante complexo e desafiador, em especial pela adaptação das escolas e dos professores. Muitos deles relatam a falta de formação específica para lidar com algumas mudanças propostas, isso para não falar da falta de recursos para a elaboração de novos materiais didáticos e a realização de atividades extracurriculares.

Alguns estados, como São Paulo, já têm pensado em fazer mudanças. O governo paulista estuda reduzir as opções de formação específica para poder dar mais apoio às escolas. 

O Novo Ensino Médio começou a ser implementado no Brasil a partir de 2019, quando foram definidas as primeiras diretrizes curriculares para as escolas. Desse momento adiante, as escolas começaram a elaborar seus projetos pedagógicos de acordo com as novas orientações curriculares. A implementação é gradual e está sendo feita de forma escalonada, de acordo com as condições de cada escola e rede de ensino. Isso significa que, em alguns casos, a implementação do novo ensino médio leva mais tempo para acontecer completamente.

Milan Puh, docente da Faculdade de Educação (USP), acredita no efeito negativo que isso pode ter:

“Os estados e municípios têm limitações orçamentais e, também, de recursos humanos para oferecer uma gama maior de disciplinas e itinerários formativos, pode se esperar um efeito adverso à expectativa de ter jovens adultos preparados para o mundo altamente mutável e instável, uma vez que lhes pode faltar uma visão panorâmica e estrutural de como o mercado e a sociedade funcionam.”

Faculdade de Educação da USP.

A pandemia trouxe desafios adicionais para a implementação, uma vez que muitas escolas tiveram que adotar o ensino remoto e precisaram adaptar seus projetos pedagógicos às circunstâncias. Mesmo assim, apesar das dificuldades adicionais, as escolas e redes de ensino continuaram trabalhando para implementar as novas diretrizes curriculares e tornar o ensino médio mais adequado às necessidades e interesses dos estudantes.

Uma reforma como essa não acontece da noite para o dia. Ela ainda está em curso e enfrenta muitos desafios. É necessário que sejam tomadas medidas efetivas para garantir que as mudanças propostas sejam implementadas de forma adequada e com qualidade.

OS PRÓS E OS CONTRAS

O caso demonstra toda a complexidade do sistema educacional brasileiro. Há muitas nações dentro do país que chamamos de Brasil, com uma infinidade de realidades e subjetividades. Cada medida de escala nacional, portanto, deve estruturar diretrizes para possibilitar a melhor implementação possível. Ainda que bem intencionada e visando melhorar um problema latente, se não for pensada nos mínimos detalhes, uma reforma pode se virar contra si mesma. O Novo Ensino Médio é uma solução ou um tiro no pé?

Ele, de fato, responde a algumas angústias clássicas. Para começar, ele permite uma maior flexibilidade do currículo, fugindo daquele esquema tão engessado, e possivelmente traumatizante, que conhecemos. Um dos principais objetivos da proposta é dar aos estudantes alguma autonomia para escolher as disciplinas que desejam estudar, indo de acordo com suas preferências e interesses. O processo de aprendizagem, assim, fica bem mais atraente e significativo para eles, podendo até dar uma visão mais abrangente de suas atividades no mercado de trabalho.

Outro ponto é a ampliação da carga horária, com a qual abre-se a porta para um maior aprofundamento nos conteúdos estudados e contribuir para uma formação mais completa dos estudantes e a inclusão de disciplinas importantes, que contribuem para uma formação mais ampla e para o desenvolvimento de habilidades socioemocionais.

Mas, é bem verdade, ela também esbarra em questões que são igualmente clássicas. 

Uma delas, talvez a principal, é a falta de diálogo com a sociedade e a comunidade escolar. A discussão não incluiu os principais partícipes da história, de maneira tal que a elaboração das mudanças acaba sendo consideravelmente menos efetiva do que poderia ser. A ausência quase ingênua de reconhecimento das desigualdades regionais é um exemplo disso. Caso o diálogo fosse tão abrangente quanto deveria, isso logo seria reconhecido e aplicado de maneira prática nas medidas. A flexibilização do currículo, por exemplo — a priori, um ponto de mudança que soa positivo —, pode acabar ampliando a desigualdade social, uma vez que nem todas as escolas possuem a infraestrutura necessária para oferecer as diferentes disciplinas e áreas de concentração. Mais uma vez, reverberando o que já acontece na sociedade de uma maneira geral, a mudança benéfica se restringe principalmente às camadas mais abastadas. 

A implementação da reforma demanda recursos financeiros e formação específica dos professores para lidar com as mudanças propostas, o que nem sempre tem sido garantido pelo poder público.

“O que a discussão sobre o ‘Novo’ Ensino Médio nos lembra”, comenta Milan Puh, “é a dificuldade de implementação de determinadas políticas para o contexto das vastas diferenças e desigualdades brasileiras, fazendo com que a não-implementação seja razão de novas reformas para ‘corrigir’ aquilo que nem chegou a ser efetivamente implementado. Esse tipo de ocorrência não é nova, pois tivemos propostas semelhantes, dentro do seu momento histórico, nos anos 1940 e 1970, sendo essa uma tendência cíclica no nosso país. Querer reformar um sistema que ainda não consegue se consolidar, tende a aprofundar os problemas duplamente, tanto pela dificuldade de ‘resolver’ os problemas antigos quanto por acarretar novas questões que podem se transformar em empecilhos para a efetivação de um bom ensino.” 

“As reformas que se pretendem ‘universais’, ‘atuais’ ou ‘inovadoras’, muitas vezes costumam padecer de dificuldades em entender a particularidade de cada instituição escolar e espaço que atende; circunstâncias históricas que afetam o modo como o novo modo de ensino se concretizará; e reciclagem de ideias já testadas que ocorre ao pensar propostas que se estabelecem em oposição ao que vinha anteriormente.” 

O governo Bolsonaro e o descaso com a educação

Jair Bolsonaro sempre demonstrou que o investimento na educação não era uma de suas prioridades. De acordo com o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em 2021 o gasto público com a educação atingiu o menor patamar desde 2012. Seus esforços, na verdade, pareciam mais direcionados à desvalorização do Magistério Público e da estrutura educacional. As retiradas sistemáticas de dinheiro no ministério desde 2019 reduziram em 80% o gasto federal com a construção de creches e pré-escolas. A lista que explicita o viés anti-educação é longa: escândalos de corrupção, ataques às universidades públicas, cortes de recursos, corrupção no Ministério da Educação (MEC), guerra ideológica nas escolas, abandono da educação do campo, o orçamento secreto… Chega a ser impressionante constatar que esses são apenas alguns dos desastres da política educacional da gestão do ex-presidente. 

E nada poderia representar melhor esse desleixo — algo que, somado ao período de pandemia, levou a educação do Brasil aos piores índices dos últimos anos — do que a troca não de um, não dois, não de três, mas de cinco ministros da educação. Lembra deles? 

  1. Ricardo Vélez Rodríguez (1º de janeiro de 2019 a 8 de abril de 2019) — Filósofo colombiano naturalizado brasileiro, foi o primeiro ministro da educação do governo Bolsonaro. Sua gestão foi marcada por controvérsias e polêmicas, como a tentativa de retirada de trechos sobre ditadura militar nos livros didáticos.
  2. Abraham Weintraub (8 de abril de 2019 a 20 de junho de 2020) — Economista e professor universitário, assumiu a pasta em abril de 2019. Sua gestão também foi conturbada, marcada por declarações polêmicas e críticas a universidades públicas. Ele deixou o cargo para assumir um posto no Banco Mundial.
  3. Carlos Decotelli (25 de junho de 2020 a 30 de junho de 2020, se formos generosos) — Economista e professor universitário, foi nomeado em junho de 2020, mas acabou deixando o cargo antes mesmo de tomar posse. Isso ocorreu após denúncias de que ele teria incluído informações falsas em seu currículo.
  4. Milton Ribeiro (10 de julho de 2020 a 28 de março de 2022) — Teólogo e pastor presbiteriano, buscou implementar medidas voltadas para o ensino técnico e a educação básica, além de ter anunciado a criação de um novo programa de inclusão de estudantes em situação de vulnerabilidade. Em 2022, pediu exoneração após denúncias de envolvimento no esquema de corrupção chamado de “Bolsolão do MEC”.
  5. Victor Godoy (29 de março de 2022 a 31 de dezembro de 2022) — Engenheiro e servidor público, ficou marcado pelos cortes substanciais na verba do MEC.

Contabilizar os cortes somente de 2022, ocorridos sob a batuta de Victor Godoy, é assustador. Com a justificativa de atender ao teto de gastos, o governo federal determinou em maio o corte de 3,2 bilhões do orçamento do MEC, o que afetou 14,5%  das políticas da pasta, universidades, institutos federais e órgãos como o Inep. Em outubro, mais 2,4 bi foram cortados do MEC.

Métodos de ensino ao redor do mundo

Existem diferentes formatos de ensino médio ao redor do mundo, que variam entre si. Em muitos países, o ensino médio é focado na preparação dos estudantes para o ingresso na universidade, com um currículo bastante rigoroso e exigente. Já em outros, ele é voltado para a formação profissional, incluindo disciplinas técnicas e práticas que visam preparar os estudantes para o mercado de trabalho. Mesmo as habilidades socioemocionais também servem de foco para alguns métodos, que trabalham com um currículo que inclui disciplinas como Filosofia, Psicologia e Educação Física, uma combinação que pretende desenvolver a liderança, a empatia e a resolução de problemas. 

Se a tapeçaria político-social de uma nação se voltar para ideias que valorizem a formação humana por meio da arte, o desenvolvimento das habilidades artísticas e culturais dos estudantes será prioridade. Nesses casos, o currículo pode incluir disciplinas como Artes, Dança e Teatro. Em alguns países, o ensino médio é organizado em torno de projetos interdisciplinares, que permitem aos estudantes explorar diferentes áreas do conhecimento de forma integrada. Nesses casos, o currículo é bastante flexível e permite aos estudantes escolher os projetos que desejam desenvolver. É tudo uma questão de abordagem e encaixe. 

E quanto aos cinco maiores PIBs do mundo? Nos Estados Unidos, o currículo é definido pelos governos locais, com estudantes tendo a opção de escolher disciplinas eletivas, que variam de acordo com a oferta da escola. Na China e no Japão, o ensino médio obrigatório dura três anos e tem um currículo bastante rigoroso, mesmo que os estudantes também tenham a opção de escolher algumas disciplinas eletivas, como Música e Arte. Já na Alemanha, o ensino médio é dividido em dois tipos: o Gymnasium, voltado para a preparação dos estudantes para o ensino superior, e a Hauptschule, voltada para a formação profissional dos estudantes. O currículo inclui disciplinas como Matemática, Ciências, Línguas e Estudos Sociais. No Reino Unido, o ensino médio é dividido em duas etapas: o GCSE (General Certificate of Secondary Education), que dura cinco anos e é obrigatório, e o A-level (Advanced Level), que é opcional e prepara os estudantes para o ensino superior. O currículo inclui disciplinas como Matemática, Ciências, Línguas e Estudos Sociais.

É interessante, e importante, notar que cada país segue diretrizes de ensino que vão de acordo com suas próprias tradições e realidades, como aponta Milan pensando sobre o panorama brasileiro.

“Chama-me bastante atenção a falta de uma perspectiva histórica do atributo popular que se deu à reforma educacional, chamando-a de ‘nova’, uma vez que já se fez reformas no passado e que foram amplamente estudadas, mostrando que redução e flexibilização de currículo em escolas brasileiras, principalmente públicas, não costuma resultar em melhorias. Currículo ‘mínimo’ flexível é uma característica de países com políticas chamadas liberais, acreditando que os jovens, isto é, adolescentes são inteiramente capazes de decidirem que caminho profissional-pessoal tomar e em área se especializar, algo a se almejar, porém difícil de se cobrar com quem ainda está longe de se tornar adulto.”

“Essa lacuna na formação geral, considerada ‘clássica’, e até certo ponto antiquada, é o que eu diria que é mais essencial para criar um trabalhador e um cidadão mais proativo e empreendedor da própria vida, o que estudos em historiografia educacional confirmaram, observando a nossa realidade e dialogando com outros países que perceberam que, se não oferecerem amplitude no ensino obrigatório, terão que fazer no complementar.”

E agora, o que fazer?

Em meio à pressão pela revogação do Novo Ensino Médio, o atual ministro da Educação, Camilo Santana, afirmou recentemente que um grupo com representantes de diferentes setores da educação será formado pela pasta para “corrigir” os problemas da reforma criada há alguns anos. A intenção do ministro não é revogar. Ele defende apenas que certos pontos sejam aperfeiçoados, mas, considerando o histórico recente, é difícil não ter ressalvas com o que quer que aconteça daqui adiante.

“Os custos de uma ‘revogação’ de reforma desse porte serão altos provavelmente inviabilizando a sua execução, restando a possibilidade de revisar o que já foi feito, tentando adequar melhor a todos os interesses em jogo, até que uma novíssima reforma aparecer, novamente se apresentando como necessária e urgente para a nossa educação.”

Ao menos, estamos pensando e falando sobre o assunto — e espera-se que Santana faça o mesmo, envolvendo no diálogo pedagogos, professores e alunos. 

Seguimos na empreitada para, quem sabe algum dia, aprendermos a fazer com que se goste de aprender.

1. 

Antes de sair da academia, eu entrei, passei pelo pórtico do Campus do Vale, UFRGS, dentro da mochila a Filosofia do Direito, G. W. F. Hegel, Professor de Berlim do século XIX, cujas ideias alcançaram o século XXI e o bairro da Agronomia, grande Porto Alegre. Lá ia eu, com o Espírito Objetivo nas costas, história da razão impressa e apresentada em páginas hoje ameaçadas por traças e por estudos pós-coloniais. Eu entrei na Academia procurando saber. Comecei por saber que nada sei. E tropecei em livros, conceitos, fatos, lendas. 

2. 

Tales de Mileto, conta a lenda, olhou as estrelas e tropeçou num buraco. Alguém riu, chamou-o de lunático: não adianta contemplar os astros e esquecer o chão onde se pisa. Num fato mais prosaico e recente, lembro um Professor de Metafísica esperando, inerte, a metros do meio-fio da calçada, os carros pararem na faixa de segurança. Os carros não paravam. O professor, em indecisão comovente, não atravessava. Nada acontecia. Era como se o Professor estivesse transmutado do plano físico ao transcendente. Eu segui, arrastado pelo tempo. Fui a um Congresso de Filosofia. No hotel, um colega abriu a mala e mostrou o que trouxera: rolo de papel higiênico. Eu disse que o hotel provinha papel higiênico. “Nunca se sabe”, ele respondeu.  

A tradição filosófica começa com o desajeito do intelectual nas ruas da realidade (ele que diz entender a realidade) e culmina nos versos de Heinrich Heine sobre o Professor alemão, que, “com touca de dormir / (…) tapa os buracos do mundo”.  

Tropeçante, paralisado frente à rua a ser atravessada, papel higiênico e pijama, seria o intelectual, assim, apto a tapar os buracos do mundo?  

“O pensador reconciliado com a realidade não tapa buracos – ele suja as mãos para estudá-los.”

3. 

Na Crítica da Razão Acadêmica, deve constar defesa da excentricidade intelectual. O pensador deve, isso mesmo, ser “ex-cêntrico”, “fora do centro”, posicionado nas margens, de onde olha e medita.  

Um passo atrás, antes de Tales cair no buraco: só um lunático compreende a lua. O passo atrás, longe do centro, significa olhar deslocado do imediato ao mediado por realidades esquecidas no passado, no abstrato, no céu, no microscópio, em fórmulas matemáticas, categorias sociais, princípios políticos. Hegel diria a Heine: mesmo um mundo esburacado precisa de conceitos (o conceito de “buraco”). O pensador reconciliado com a realidade não tapa buracos – ele suja as mãos para estudá-los.     

Um passo adiante, depois de Tales, não encontramos filósofos apenas em buracos e em cavernas. Sócrates está no centro da praça. Ele pede respostas consistentes aos concidadãos. O que é justiça? O que é virtude? Sócrates evita cair no buraco de opiniões sem fundamento. Ele está na realidade. Quer pensá-la com outros. Mas a cidade não quer pensar com ele – e condena o fazedor de perguntas à morte.   

4. 

Das colinas quentes de Atenas, a Academia, em gêneses histórico-sociais, metamorfoseou-se nas universidades de hoje, departamentos e comitês multidisciplinares, que poderiam ser imaginados como:    

Castelo, e digo como elogio, castelo protegido por muros e arqueiros conscientes de sua tarefa: defender a pesquisa contra pressões sociais, humores coletivos, lobbies econômicos, contra o que vem “do centro” e ameaça a autonomia universitária.  

Armazém, com depósitos, prateleiras, potes e caixas, limpas ou empoeiradas, onde se estocam objetos do saber em várias formas temporais, geopolíticas, metodológicas.     

Fábrica, onde ideias são produzidas. Deixemos para depois a pergunta: produzidas por quem, para quem, por quê?  

5. 

Na pólis pós-moderna, a Fábrica ameaça o Castelo, sobretudo se pensarmos na linha de montagem da fábrica. Os arqueiros viraram mecânicos com funções específicas, em disciplinas e subdisciplinas. O Castelo se desencantou. Dentro dele, se instalou complexo de racionalizações e sistemas de explicação (ou “discurso”) interminável. São tantos saberes, que se volta a saber que nada se sabe, ou se produz conceito para a nova realidade: alienação. O professor tem título, tem crachá, tem sala compartimentada de conhecimento específico. Da sala, ele sai quando tem conferência com outros técnicos que sabem tanto quanto ele – muito sobre pouco.    

6. 

A Fábrica significa, ainda, entrada do capital e metamorfose do “padre, poeta, intelectual…em seu trabalhador remunerado”. Estudantes de pós-graduação imaginam entrar num Castelo protegido contra as forças do mercado. Mas então descobrem que tem pouca bolsa, pouca vaga, tem competição, carreirismo e burnout. Professores recém-ingressados em universidades privadas descobrem que tem pouca turma com muito aluno. O desempenho pedagógico é medido em consumer ratings. É preciso muito mérito para criticar o mérito.  

7. 

Se a universidade for Armazém abastecido por atualidades brasileiras, a pergunta é como ter espaço para tanta autoimagem, conceito, conceito defasado, interpretações, sons, como dar conta de tanta “bagunça transcendente”, “mestiçagem”, “bovarismo”, elitismo, racismo, tanto “carnaval sem nenhuma alegria”, cordialidade e violência, tanta mistura e tanta área VIP, tropicalismo e meridionalismo, Gonçalves Dias e Jojo Todynho, tanto Deus, tantos falsos Messias, tanta dúvida? Seriam vastas prateleiras brasileiras em vastíssimos departamentos de estudos culturais humanos.  

A filósofa Hannah Arendt, na Universidade de Wesleyan (1961-62).

“não é contraditório que falem em empiria e entreguem ficção?”

8. 

Na pós-graduação, estudei a obra de Hannah Arendt. Pensadora no limite de uma tradição arrasada, Arendt se confrontou com o fato de o “povo mais teórico da Europa” (palavras de Engels) vestir a “camisa-de-força” da lógica totalitária, apoiando projeto de destruição e autodestruição, porque “assim deve ser” (palavras de um oficia da SS, em carta, à esposa). Não, não devia ser, não podia ter acontecido, Arendt respondeu. Ela defendeu o pensar – “fora de ordem” – como antídoto contra ideologias, teorias, ideias que funcionam como “escudos contra a realidade”. E recomendou pensar “com outros”, pensar condicionado por people, na ambiguidade do inglês – “pessoas”, personalidades únicas, e “povo”, entidade política em formação. 

9. 

People, not concepts”, Fred Dewey repetia no grupo Portable Polis, em Berlim, 2017, meu pós-doutorado pós-acadêmico. Todo sábado, sempre em lugar diferente (livraria, jardim coletivo, centro de refugiados, sala de estar privada), líamos Arendt sem pré-requisitos técnicos. Escutávamos o que as frases e pensamentos nos diziam, e o que dizíamos uns aos outros. Pensávamos juntos, concordando, discordando, mas no mesmo “mundo”, na mesa e no texto compartilhados. Como “desafiar, responder, refazer”? Como governar nossas vidas, sobretudo vidas públicas? A resposta de Fred Dewey era sentar, ler, falar e escutar. Essa “universidade”, chamada por ele de Escola da Vida Pública, não era castelo, nem fábrica, mas assembleia democrática informal. 

10. 

Certa vez, lendo a crítica de Arendt às ciências humanas de métodos estatísticos, uniformidade “sem desvios”, e “tipos puros” sem impurezas individuais, Dewey me perguntou: “não é contraditório que falem em empiria e entreguem ficção?” Ler Arendt com Dewey era, como ela dissera na abertura de Origens do Totalitarismo, compreender e resistir à realidade que se compreende. 

E era recolocar a questão do bisavô, John Dewey, em Experiência e Educação. Como educar para emancipar? Como demarcar disciplinas preservadoras, voltadas ao passado, das orientadas ao futuro? A resposta do bisneto havia se emancipado da resposta do bisavô, e, buscado nas categorias políticas de Arendt – pensar, julgar, agir – princípios constituintes de uma pólis em miniatura, atualizada a cada sábado, por três horas, no verão berlinense.   

E era, ainda, volta à questão entre “interpretar” ou “mudar” a realidade, cravada no peito da tradição filosófica pelo intelectual (jornalista, agitador, orador) de Trier. No debate sobre o papel do intelectual frente ao “povo”, Rosa Luxemburgo falaria depois em “escola da vida”, sem, contudo, resolver a tensão entre dogmatismo e “oportunismo” solto, sem princípios. O debate permanece aberto: cabe ao intelectual dirigir as massas a um fim ou, quase o contrário, deve a teoria se abrir mais ao “espontâneo” e aos buracos dos acontecimentos humanos e naturais?   

11. 

Essas perguntas nos levam a outra, mais elementar. Como falar com o “povo”? Para afirmar o valor do pensamento conceitual, o acadêmico precisa comunicar e, em sentido socrático, entrar no espaço público. Mas como falar em público de “traços putativos” e “modalidades enunciatórias”? Como evitar a fuga do leigo, assustado com substantivos zumbis e com linguagem em que “knowhow” e pensamento se estranharam? Eu, acadêmico ex-acadêmico, não proporia síntese, muito menos solução, aos problemas da universidade atual. Mas, pensando em Sócrates, Arendt, Dewey, em castelos e em assembleias, proponho que se ensine, junto com Método Científico e Introdução à Pesquisa, dois cursos básicos – Escrita e Oratória. Para interpretar, ou para mudar, é preciso se fazer entender.   

O homeschooling é uma das bandeiras do presidente Jair Bolsonaro, mas o método é mesmo possível ou não passa de ilusão? Em maio deste ano, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que autoriza a modalidade de ensino, atualmente proibida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O texto, que ainda será avaliado pelo Senado, altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) para que o ensino domiciliar seja admitido na educação básica — pré-escola, ensino fundamental e médio. Desde já, portanto, é importante entender os seus impactos. 

“Capitão Fantástico” (2016), de Matt Ross

Há muito se critica o ensino formal, condenado por ser engessado e pouco atrativo para muitas crianças, além de apresentar uma estrutura que até hoje não consegue blindar os estudantes do bullying. As práticas convencionais, é verdade, às vezes soam ultrapassadas: carteiras enfileiradas, aulas verticalizadas, conteúdos nada convidativos… Isso tudo nos leva a aventar novas possibilidades de educação que repensem o modelo rígido que conhecemos bem.  

Arte: Michelle Mildenberg/New York Times

Evidente que há muito a ser feito pela educação brasileira, muito embora somente sejamos lembrados disso a cada dois anos, quando o assunto ganha respiro momentâneo nos meses que antecedem a ida às urnas. Mas, dentre os muitos possíveis caminhos para melhorarmos, o ensino domiciliar representa um passo à frente ou um passo atrás? Estamos diante duma quebra de paradigmas positiva ou tão somente da edificação de mais e mais muros? E a educação pública, como fica nisso tudo? O preparo técnico do homeschooling é minimamente similar ao das escolas? E quanto ao contato das crianças com outras realidades para além da sua própria, vai parar de acontecer?

Primeiro, analisemos o contexto mundial do ensino domiciliar. A modalidade surgiu, da forma como a conhecemos, há pouco tempo. Foi só no final do século XX que sua aplicação ficou mais estruturada e comum, especialmente nos Estados Unidos  — não à toa o termo inglês homeschooling é de longe o mais popular. “Comum”, claro, é relativo: sua situação atualmente varia bastante conforme o país em que se dá, sendo proibido em potências como Alemanha e Suécia, mas amplamente aceito em países como Austrália e EUA, os dois que mais abraçam o método de ensino. Em outros casos, embora não seja proibido, é restrito a crianças que não podem ir à escola por razões distintas. 

No fim, é notável que, no pouco tempo de vida respirando por intermédio de moldes mais definidos, o ensino domiciliar já tenha recebido acolhimento (dentro e fora de territórios norte-americanos).

Pensando no Brasil, é sabido que, desde que o samba é samba, um dos principais problemas da educação é a escassez de recursos financeiros. Mesmo com o aumento de investimento ocorrido nas últimas décadas, as escolas públicas ainda não têm infraestrutura para atender adequadamente os estudantes, muitas vezes sobrecarregando professores com proporções descabidas de turmas e cargas horárias — tendo a sub-remuneração como a cereja podre do bolo. Por essas e outras, é um dos países da América do Sul com os piores indicadores educacionais. 

Para Jair Bolsonaro e apoiadores do governo, a educação domiciliar é uma forma de pais e responsáveis legais blindarem seus filhos de supostas ideologias transmitidas dentro da sala de aula. A lógica é a de que valores tradicionais de família e religião são passados com mais facilidade se os arredores são mais controlados. No entanto, numa visão diametralmente oposta e mais abraçada pelos especialistas em pedagogia de todo o mundo, Paulo Freire dizia que “o educador tem o dever de não ser neutro“. Ou seja, o papel do educador não é colocar o estudante num ambiente hermético e protegido, é desenvolver seu conhecimento e pensamento crítico a partir de uma escola emancipadora voltada para a promoção da cidadania e do desenvolvimento social-cultural.

De acordo com as regras previstas no texto-base da nova lei, o ensino domiciliar vem acompanhado de algumas condições — que, por sua vez, não são tão simples assim, por demandarem um nível de fiscalização improvável. Antes de tudo, os responsáveis deverão fazer matrícula anual em uma escola regular, onde também devem formalizar a escolha. Feito isso, será necessária a comprovação de escolaridade de nível superior, por pelo menos um dos pais ou responsáveis legais, além do envio de relatórios trimestrais com a relação de atividades pedagógicas e avaliações anuais de aprendizagem.

A ala da “não-doutrinação”, composta em sua grande maioria pela parcela mais conservadora, argumenta que algumas milhares de crianças já vivem o homeschooling e a lei viria, portanto, para regularizar a prática; enquanto que a contra argumentação alega que o projeto, na verdade, visa a individualizar o processo educacional e diminuir a força já exígua da escola pública. Isso garantiria a reprodução das ideias da classe dominante e a inibição da formação de pessoas cujas ideias nasçam de outras perspectivas e subjetividades. 

“Dente Canino” (2009), de Yorgos Lanthimos

De acordo com o artigo 207 Constituição Federal, “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Com isso em mente, tomemos algum tempo para refletir sobre a palavra “liberdade” — ela é a principal justificativa de quem defende o Projeto de Lei que autoriza o homeschooling, sob a ótica de que é uma forma mais livre de ensino; mas, ironicamente, a mesma palavra também é o conceito-chave para quem é terminantemente contra a ideia de ensino domiciliar, com o entendimento de que a libertação insuspeita só vem por meio da educação plural oferecida em escolas. 

Deixando toda a maleabilidade teórica de lado, parece claro que, desde o começo da pandemia da Covid-19, quando o ensino domiciliar angariou força junto ao contexto de quarentena, está cada vez mais premente pensarmos sobre como os métodos de ensino vigentes se encaixam na atualidade. 

Que os tempos mudem, mas a educação siga acontecendo como prática da liberdade.