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Komposition A XXI, de László Moholy-Nagy. Imagem de acervo do Museu Guggenheim.
DesignSociedade

O design pode realmente mudar o mundo?

por Revista Amarello

O design sempre transitou entre o prático e o simbólico, entre a solução de problemas e a expressão de identidades. Mas é possível que ele também se torne uma atitude e, impulsionado por uma missão, seja transformado em uma ferramenta efetiva em prol de um mundo melhor? Se sim, quando e como exatamente isso acontece? 

Alice Rawsthorn, ex-diretora do Museu de Design, em Londres. Foto de Michael Leckie.

Alice Rawsthorn, autora e crítica britânica, propõe e expande essas reflexões em seu livro Design como Atitude. Na obra, defende que o design, longe de se limitar à esfera profissional, está presente em respostas instintivas e criativas a desafios sociais, políticos e ambientais. Essas respostas, aliás, estão tão relacionadas às questões que tocam presentemente o mundo que o trabalho, originalmente lançado em 2018, passou por uma recente revisão da autora, que chegou até a escrever um novo capítulo para dar conta das problemáticas mais recentes que assolam o planeta. “O design é uma força onipresente em nossas vidas”, diz ela, ponderando sobre a motivação para reavaliar os próprios textos, “portanto, seus desafios são os desafios do nosso tempo. Uma das muitas razões pelas quais adoro escrever sobre design é que ele está em constante mudança, pois responde a novos fenômenos, me obrigando a reavaliar constantemente meu pensamento.” A nova edição, que conta com conteúdo revisado e textos adicionais, foi lançada pela editora Ubu neste ano. 

O conceito de design atitudinal começa a ser explicado por Rawsthorn com László Moholy-Nagy (1895-1946), artista húngaro que via o design não apenas como uma prática técnica, mas como um compromisso de intervir no mundo de maneira engenhosa. Pelo prisma de László, que estruturou alguns preceitos seminais em seu Vision in Motion, a coisa toda iria muito além da estetização de objetos ou da otimização de processos industriais — esses seriam somente os primeiros passos em uma direção mais ambiciosa. Sendo um dos pais do conceito, uma de suas frases gerou o título do livro: “Fazer design não é uma profissão, é uma atitude.” 

Tomando os exemplos que a própria autora usa, o design atitudinal se manifestaria, por exemplo, em projetos que enfrentam a poluição plástica nos oceanos, como o The Ocean Cleanup, uma organização holandesa sem fins lucrativos que visa enfrentar a poluição ao remover lixo plástico de rios e oceanos, ou em iniciativas como a Sehat Kahanique (“Relatório de Saúde” em urdu), que usa telemedicina para conectar mulheres médicas paquistanesas a pacientes de regiões carentes.

Para Rawsthorn, a interseção com outras áreas é um sinal de vitalidade. “O design sempre teve uma relação ambígua com a arte e a tecnologia. Agora, ele também se confunde com a ciência social e a política”, observa. Ao longo do livro, os textos exploram como o design atitudinal se manifesta na prática, por meio de projetos que, tal qual o holandês e o paquistanês, utilizam inovação e tecnologia com objetivos altruístas, além de seu papel como ferramenta de resistência e transformação. Sob essa ótica, o design emerge como um poderoso meio de empoderamento, oferecendo soluções inovadoras para as comunidades e indivíduos que buscam superar seus desafios.

Mas, se o design pode ser tudo, ele ainda é design? Não seria ativismo, filantropia, ou o que quer que seja? De acordo com a autora, “vivemos em uma cultura porosa, onde todas as disciplinas se intersectam de alguma forma, incluindo o design. No entanto, o design se beneficia por ter uma missão, função e identidade claramente definidas como um agente de mudança, capaz de garantir que transformações de qualquer tipo—sociais, políticas, culturais, científicas, tecnológicas ou ambientais—sejam interpretadas de maneira a nos impactar positivamente, em vez de negativamente.”

Design como Atitude discute como designers de diferentes áreas estão assumindo posturas atitudinais e redefinindo os limites da profissão. Lançando mão de outro exemplo citado no livro, os designers africanos têm desempenhado um papel importante no desenvolvimento de dispositivos médicos acessíveis, como o Cardiopad, um monitor cardíaco criado por Arthur Zang que permite que pacientes em regiões remotas recebam diagnósticos à distância. Da mesma forma, o coletivo Forensic Architecture usa ferramentas de design para reconstruir eventos e ajudar na investigação de crimes contra os direitos humanos. Ambos os casos demonstram que o design, em sua forma mais ampla, está se tornando cada vez mais um agente político e social. 

Da maneira como o diapasão do capitalismo vibra, porém, há a possibilidade que, com frequência, isso seja usado pelas empresas com os propósitos errados, meramente de forma simbólica e visando uma boa reputação, ou então que partam de pressupostos que nem sempre estejam no caminho mais certeiro. Quando ocorre, os danos são significativos. “Sempre existe o risco de fenômenos relativamente novos, como o design atitudinal, serem usados de forma simbólica”, explica Rawsthorn. “Isso é perigoso, pois esses projetos raramente funcionam, o que pode minar a confiança no design atitudinal. Por isso, é fundamental que os designers atitudinais aceitem que, à medida que seu trabalho se torna mais ambicioso, as consequências do fracasso serão muito maiores. Da mesma forma que cada projeto atitudinal inteligente e bem elaborado representará um avanço, cada falha mal planejada será um retrocesso.”

Em tempos de crises climáticas e sociais, a expectativa de que o design desempenhe um papel transformador é cada vez maior. Mas até onde vai essa responsabilidade? É mesmo positivo que designers sejam chamados a resolver problemas que antes eram vistos como políticos, econômicos ou mesmo filosóficos?

“Um dos principais benefícios do design atitudinal é que ele libera os designers das restrições impostas a eles na era industrial, quando o design era predominantemente um fenômeno comercial, executado sob a orientação de outras pessoas, fossem empregadores, clientes ou qualquer outro. O design atitudinal rompeu com esse modelo. Ele é um produto dos avanços da tecnologia digital, que proporcionaram aos designers ferramentas poderosas — para captação de recursos, comunicação, gestão de dados, alcance global e muito mais — permitindo que escolham atuar de forma independente e sigam seus próprios objetivos humanitários, políticos ou ecológicos. Trata-se de um complemento ao design comercial, e não de um concorrente.”

Um aspecto central do design atitudinal é a sua relação com a inclusão e a diversidade. Rawsthorn aponta como a tradição do design sempre foi dominada por homens brancos ocidentais, e como isso moldou suas direções e prioridades. A maior abertura a outras vozes pode redefinir não apenas o que se projeta, mas quem projeta. É uma ideia bonita, mas, de novo, com a selvageria do capitalismo diante de nós, é difícil não ter certo ceticismo. O mercado e as instituições estão mesmo dispostos a abraçar essas mudanças? 

Sendo realista, a autora responde: “Não vejo isso como uma questão de design comercial versus design atitudinal, mas sim como uma expansão da prática e das possibilidades do design, tornando-o mais eclético e aberto, abrangendo tanto o setor tradicional e comercial do design da era industrial quanto os projetos de design social, político, humanitário e ecológico promovidos pelo design atitudinal. Em teoria, o design comercial deveria se beneficiar dessa expansão, pois mais pessoas com habilidades, redes e agendas diversas passarão a se envolver com o design. Além disso, muitas das questões centrais abordadas pelo design atitudinal, como inclusão e ambientalismo, estão se tornando cada vez mais relevantes para o setor comercial.”

O design como atitude está em plena expansão, e seu sucesso dependerá menos de definições teóricas e mais da capacidade de seguir gerando respostas inovadoras para os desafios do nosso tempo. E esses desafios não param de surgir — o que, para bem ou para mal, apenas reforça o peso da responsabilidade por trás dessa abordagem.

“Revisei o texto de Design como Atitude a cada reimpressão e nova edição, adicionando novos textos sobre desafios globais emergentes, como as crises humanitárias causadas pela Rússia na Ucrânia e por Israel em Gaza, além de novas análises de desafios preexistentes que se agravaram. Pegue a crise global de refugiados, por exemplo. Quando a primeira edição foi publicada em 2018, a ONU estimava que havia 70,8 milhões de pessoas deslocadas à força em todo o mundo. Na época, isso já parecia horrível, mas, de forma ainda mais alarmante, no ano passado esse número chegou a 125 milhões, tornando o desafio do design para cuidar dessas pessoas ainda maior.”

Se por um lado ele amplia o alcance da prática do design, por outro demanda um compromisso maior. E uma coisa é fato: com tantas questões urgentes, sua efetividade será testada, assim como seu verdadeiro potencial de transformação. O design atitudinal não pode se dar ao luxo de adiar a prova de seu valor — e o mundo, sabemos, não tem tempo a perder.

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Arquitetura que cura: o legado humanista de Alvar e Aino Aalto

por Tomás Biagi Carvalho Revista Amarello

É no coração de uma floresta finlandesa, erguido, não por acaso, entre o verde intenso e o farfalhar suave de um conglomerado de árvores, que está o Sanatório de Paimio. Concebido por Alvar e Aino Aalto e inaugurado em 1932, esse projeto arquitetônico que transcende o tempo e as convenções é um símbolo indelével do potencial da arquitetura deimpulsionar cura e bem-estar. Numa época em que a tuberculose ainda ceifava muitas vidas ao redor do mundo, quando a luta contra a doença apenas começava a se articular de maneira eficaz, os Aalto vislumbraram um espaço onde a luz, o ar e o design se uniriam feito sinfonia para aliviar o sofrimento de pessoas enfermas.

Na década de 1920, a recém-independente Finlândia via na construção de hospitais, sanatórios e outras instituições públicas uma oportunidade de criar sua identidade nacional e incitar o orgulho patriótico, antes inviabilizado pelo grão-ducado Russo. O país buscava afirmar-se por meio de empreendimentos públicos ambiciosos, e o Sanatório de Paimio tornou-se um exemplo emblemático dessa estratégia, combinando funcionalidade com inovação estética. O processo que culminou na criação do sanatório teve início em 1929, quando o casal Aalto venceu o concurso público para projetar a obra, marcando um ponto de convergência entre a arquitetura moderna e a afirmação cultural finlandesa.

Desde o início, a inovação se fez presente, a começar por uma decisão aparentemente simples     , mas inegavelmente revolucionária: o edifício em si seria como uma extensão do tratamento médico. Para os Aalto, um sanatório não deveria ser somente um lugar de confinamento; na verdade, ele tinha tudo para ser uma ferramenta terapêutica ativa, projetada para maximizar os efeitos dos métodos conhecidos, na época, para tratar a tuberculose, como o repouso, o contato com a luz solar e a inspiração de ar fresco. Esses elementos, por mais triviais e pouco hospitalares que possam parecer, formavam o cerne da mentalidade que deu à luz uma das obras mais significativas do movimento modernista na arquitetura.

A cerca de três quilômetros da pequena cidade de Paimio e a quase trinta de Turku, as imensas árvores e os sons tranquilos da floresta criavam um ambiente de serenidade e isolamento, ideal para a recuperação dos pacientes, que muitas vezes passavam anos em tratamento. Estar perto de uma vegetação tão densa proporcionava uma transição suave e necessária do mundo exterior para um espaço inteiramente dedicado à cura e à introspecção. 

A estrutura principal do sanatório consistia em várias alas interligadas, cada uma dedicada a funções específicas, mas todas com o objetivo comum de promover a saúde por meio de um ambiente cuidadosamente planejado. A ala dos quartos, com seus sete andares, foi projetada para maximizar a exposição à luz solar. Cada quarto, voltado para o sul-sudoeste, captava o máximo de luz natural ao longo do dia. As amplas janelas, que se estendiam do chão ao teto, inundavam os espaços com luz e eram quase como pinturas barrocas, emoldurando o exterior com suas largas vistas panorâmicas da paisagem ao redor e estabelecendo uma conexão constante entre os pacientes e a natureza.

 Dentro dos quartos, os tetos escuros criavam uma atmosfera tranquilizante, enquanto as paredes em tons suaves refletiam a luz de maneira gentil para evitar brilhos mais intensos que poderiam incomodar a vista. As luminárias, com um propósito similar, foram posicionadas de maneira      a minimizar o desconforto visual, reconhecendo que a percepção sensorial poderia influenciar o estado emocional e físico dos pacientes. Até mesmo as pias foram projetadas com um ângulo específico para reduzir o ruído da água corrente, demonstrando uma atenção quase obsessiva aos detalhes que poderiam impactar o bem-estar.

 Áreas como a sala de jantar, a biblioteca e espaços de recreação foram concebidas para facilitar interações sociais saudáveis e criar um senso de comunidade e apoio mútuo. Terraços amplos e acessíveis permitiam que os pacientes desfrutassem do ar fresco e da luz solar em diferentes momentos do dia, o que promovia a mobilidade e o contato com o ambiente externo, mesmo durante os longos invernos finlandeses. Para os dias mais frios, sacos de dormir forrados de pele eram disponibilizados, tudo para garantir que o clima adverso não se tornasse um impedimento para a terapia ao ar livre.

 A colaboração entre Alvar e Aino Aalto foi além da arquitetura estrutural, estendendo-se ao design de interiores e de peças de mobiliário. Juntos, criaram ícones do design moderno, como a célebre Cadeira Paimio. Inspirada no assento Wassily de Marcel Breuer, a versão dos Aalto utilizava madeira laminada curvada, explorando as possibilidades do material para criar formas orgânicas e confortáveis que auxiliavam na respiração dos pacientes.

Tudo ali combinava uma rigorosa análise científica com uma sensibilidade artística e humanista profunda. O casal criador abraçou os avanços da produção industrial e os princípios do funcionalismo, apertando-os forte com ambos os braços, mas sem nunca perder de vista o elemento humano, que sempre foi o motivador central de todas as suas decisões. Alvar Aalto, sempre atento às inovações tecnológicas, introduziu o primeiro elevador panorâmico da Finlândia em Paimio, uma inovação que, além de funcional, servia também para proporcionar aos pacientes uma visão privilegiada da paisagem ao redor. Esse cuidado com os detalhes se estendia à disposição dos blocos de edificações, pensados para minimizar a propagação da doença e garantir a máxima privacidade e conforto aos doentes.

O sanatório e seu conjunto de peculiaridades foram idealizados como uma resposta a uma crise de saúde e como um espaço que reconhecia e valorizava a dignidade e a experiência individual de cada paciente.

A integração harmoniosa entre forma e função, natureza e tecnologia, individualidade e comunidade que os Aalto alcançaram há quase um século continua a oferecer um modelo aspiracional para o futuro da arquitetura e do design. O Sanatório de Paimio permanece como um dos maiores representantes da arquitetura que cura, caracterizada pela capacidade humana de criar espaços que nutrem o corpo e a alma através da luz, do ar e da beleza intencionalmente cultivada.

Ao longo dos anos, o sanatório passou por diversas transformações, adaptando-se a novas funções e necessidades. A descoberta de antibióticos contra a tuberculose reduziu drasticamente a necessidade de sanatórios, levando-o a se reinventar como hospital geral e, posteriormente, como centro de apoio para crianças com transtorno mental e deficiência. Apesar dessas mudanças, a essência do design dos Aalto permanece intacta, graças à preservação e ao reconhecimento do valor histórico e cultural do edifício.

Hoje, quase cem anos após sua construção, o sanatório faz parte do Hospital Universitário de Turku e há um movimento crescente para que o edifício seja reconhecido como Patrimônio Mundial da UNESCO, um reconhecimento que celebraria a convergência entre arte, ciência e humanismo que ele representa. Se um dos objetivos iniciais era forjar uma identidade finlandesa, essa missão foi plenamente alcançada, pois a Finlândia continua a se orgulhar do que foi, é e ainda será realizado ali.

Quando aspectos físicos, emocionais e sociais são considerados, surgem espaços que, além de atender às necessidades funcionais, também enriquecem a experiência humana de maneiras profundas e significativas. Mais do que isso, ao priorizar o ser humano, a arquitetura atinge sua máxima funcionalidade. No coração de cada estrutura bem-sucedida deve pulsar precisamente isso: um coração, junto com uma compreensão profunda das pessoas para as quais ela foi criada. Essa abordagem, muitas vezes subestimada, talvez seja a mais eficiente de todas.

O Sanatório Paimio permanece como um marco e uma voz poderosa na chamada healing architecture, mostrando que é possível transformar o mundo, construindo novos espaços e projetando possibilidades de cura.

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Amarello Visita: Anália Moraes e Fernanda Pompermayer

por Gustavo Freixeda

Na Rocha, ateliê em Perdizes, São Paulo, a matéria se transfigura em formas e texturas inusitadas sob a visão criativa de Fernanda Pompermayer, que usa a cerâmica para expressar uma linguagem em que arte e ciência se entrelaçam. Nesse espaço, a irregularidade é tida como primordial, abrindo caminho para o inesperado que foge à perfeição. Alejandro Jodorowsky já dizia que muita perfeição é um erro e, se estamos acostumados com padrões de beleza cravados em pedra, muitos dos quais prezam pela simetria antiquada e por apresentações indefectíveis, nada como sermos lembrados de que, na verdade (e ainda bem), esse espectro do que é capaz de nos encantar é muito mais amplo.

Enquanto isso, no litoral norte do estado, Anália Moraes cria peças que conectam hábitos e contemplações, esculturas e objetos, abstrações e concretudes. Inspirada pelos sistemas naturais, Anália estuda com atenção os processos da natureza, traduzindo-os em esculturas que remetem a estruturas celulares e transformações biológicas. Suas obras, quase como fósseis de um outro tempo, refletem a contínua regeneração e adaptação da vida, tensionando a ideia de finitude ao mostrar como o fim se transforma em um novo começo. E, como o fim que se amalgama ao início, uma silhueta se mistura ao âmago.

Anália Moraes (esq.) e Fernanda Pompermayer (dir.)

Quando artistas assim se juntam, sendo, ao mesmo tempo, tão parecidas e também tão levadas pelo compasso do próprio diapasão, qual é o resultado?

Fernanda, nascida em Curitiba, traz na bagagem uma larga experiência como fotógrafa de moda e designer gráfica. No entanto, foi na cerâmica que encontrou a liberdade criativa que seu espírito buscava. Como espelhos dos processos geológicos da Terra, suas peças evocam os tremores da erosão e das transformações tectônicas, o que permite que a imperfeição guie seu processo. No seu ateliê, cada criação é fruto de uma abordagem experimental que rejeita a padronização em favor de um fluxo orgânico.

Utilizando a técnica japonesa Nerikomi, Fernanda mistura pigmentos diretamente na argila, criando padrões que combinam o planejamento ao caos, formando uma paz turbulenta. A ênfase na irregularidade dá ao trabalho um aspecto pessoal e quase íntimo, que, com a argila assumindo formas em constante transformação e refletindo a influência dos elementos naturais, é tão revelador quanto instigante. As cores, misturadas de forma instintiva, resultam em tons pastel que nunca se repetem, fazendo de cada peça uma obra irreproduzível.

Anália — que reconhece o valor cultural da cidade grande, mas que prefere o respiro profundo da vida à beira-mar — utiliza cerâmica, vidro e minerais para criar uma espécie de “arqueologia ficcional”, explorando a memória, o tempo e a resistência dos materiais. Seus trabalhos, assim como os de Fernanda, revelam as reações químicas e as imperfeições desses materiais, desafiando o conceito de um processo “natural” e trazendo à tona as transformações inerentes ao processo artístico.

Equilibrando-se entre o utilitário e o artístico, Anália permite que a forma de seus objetos vá além da função, seja a contemplativa ou a prática. Sua mudança recente para um ambiente mais silencioso e natural intensificou sua conexão com a natureza, oferecendo uma nova perspectiva aos seus exercícios criativos. Para um trabalho que já continha muito do mundo natural, fugir do pulsar frenético de uma megalópole foi necessário para estreitar ainda mais a sua relação com o verdadeiro ecossistema da vida.

Da parceria entre as duas artistas, nasce a cadeira Docinho, uma peça-filha que reflete a união de suas abordagens criativas. Concebida com uma base garimpada e deformada, a cadeira incorpora celulose reciclada e cerâmicas inspiradas na técnica do terrazzo, o que destaca a importância da adaptação e inovação na materialidade criada por Fernanda e Anália. A celulose usada na cadeira é proveniente do projeto Flow Sustentável, liderado por Tatiana Araújo, que transforma bitucas de cigarro em celulose reciclada e promove, assim, a circularidade da matéria e a redução do impacto ambiental.

Na Docinho, portanto, há a culminação de duas trajetórias que se conversam e se complementam. Técnicas e ideais juntam forças para abrir valas ainda mais amplas de experimentação e comunhão de tudo aquilo que habita o coração e se manifesta pelas mãos.

Fernanda Pompermayer e Anália Moraes são ótimos exemplos da rica tapeçaria da criação brasileira contemporânea. Juntas, suas obras nos desafiam a reconsiderar o valor da imperfeição e a beleza do inesperado. Ao explorar essas interseções, elas abrem novas perspectivas sobre como a arte pode dialogar com o mundo natural e científico.

A escolha dos materiais e a experimentação com diferentes técnicas influenciam o resultado final das suas peças. Como isso acontece?
Anália Moraes: Exploro as propriedades elementares dos materiais — como a cerâmica, o vidro e os minerais — para criar uma arqueologia ficcional, e as obras são um convite à reflexão sobre o que seria um processo “natural”. Através da experimentação com diferentes materiais e técnicas, busco revelar as reações químicas ocultas e as fragilidades dessas interações. A cerâmica, como material ancestral, também me permite explorar noções de memória, tempo e resistência.

Fernanda Pompermayer: Sempre há uma surpresa no resultado final. Adoro o exercício de misturar e testar os limites do material, explorando o que funciona para o meu trabalho, sem me preocupar se vai “dar certo”, já que esse conceito é relativo. Gosto de trabalhar com bastante argila, de forma gestual, sem me importar se a peça vai quebrar. Se quebrar, aproveito os cacos e crio algo novo. Misturo corantes, faço diversas queimas de esmalte, adiciono vidro, óxidos, uso resina, espuma, taças que quebrei em casa, pedra, miçanga, um pouco de tudo. Essa mistura de técnicas faz com que meu trabalho cresça e se torne único — nunca consigo repetir a mesma peça. Essa experimentação constante é o que impulsiona o trabalho. Abrir o forno é sempre uma emoção, dá um frio na barriga. Ter que me desapegar de ideias e descobrir outras ao longo do processo me fascina todas as vezes.

Já que você mencionou diferentes técnicas, como as suas vivências com escultura, fotografia e design gráfico se refletem no processo de criação das suas cerâmicas?

FP: Minha formação é em design, e desde cedo exploro a colagem como um recurso. Acho fascinante juntar pedaços e texturas diferentes, criando algo totalmente inesperado e novo. Na fotografia, meu trabalho foca muito em cor, forma e objeto. Durante uma residência artística, comecei a fotografar objetos do meu dia a dia e criei a série Esculturas Invisíveis, na qual transformo e exploro composições com coisas do cotidiano. Essa de fotografar e compor com objetos despertou em mim o desejo de migrar do 2D para o 3D. Hoje, vejo muito dessas vontades que tinha quando mais nova se transformando em esculturas, misturando um pouco dessa visão de forma/cor/objeto/colagem. Eu encaro a Rocha como esse projeto experimental onde eu aplico tantas coisas, é uma simbiose de tudo que vi, vejo e sinto.

De que forma vocês equilibram a dualidade entre o utilitário e o puramente artístico em suas criações?
AM: A estética e a funcionalidade são igualmente interessantes para mim, por isso, gosto de navegar entre a escultura e o objeto, buscando esse encontro sem limitar a forma pelo seu fim, seja ele contemplativo ou utilitário. A argila, mesmo com as técnicas mais cuidadosas, carrega a memória de cada toque, de cada imperfeição do processo. As rachaduras que surgem durante a queima não são apenas falhas, mas testemunhas da transformação. Em paralelo, nossos objetos também são testemunhas, eles se desgastam com o tempo, acumulando as marcas dos nossos gestos.

FP: Nunca vi meu trabalho como utilitário. No início, tentei colocar flores e plantas nas peças ao fotografá-las, mas isso me incomodava. Hoje, entendo que as peças se bastam por si só, e não preciso buscar uma função para elas. Foi um processo muito importante deixar de tentar me ajustar à ideia de que tudo precisa ter uma função. Vindo do design, esse pensamento utilitário sempre esteve presente, mas agora deixo o processo fluir no ateliê. Estou cada vez mais focada na minha pesquisa, definindo as séries de trabalho, e entendendo o que se repete e o que realmente faz sentido.

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Especialmente na celeridade do mundo de hoje, qual é o desafio de lidar com a paciência necessária para trabalhar com materiais que demandam tempo?

FM: Olha, é realmente um desafio para mim, sou do tipo que quer mudar todos os móveis da casa às duas da manhã. Adoro começar uma tarefa e terminar ela, é um prazer. Com a cerâmica, tenho que esperar semanas ou até meses para ver tudo 100% pronto. Esse tempo me permite refletir, observar, testar e entender como cada trabalho se encaixa na minha produção. Às vezes, fico trabalhando meses na mesma peça, explorando tudo que posso sem pressa. No começo, eu era muito ansiosa e sofria, mas agora eu aprendi a aproveitar o processo e tomar o meu tempo.

AM: Sou porosa ao que me rodeia. Ver as arquiteturas da natureza todo dia me traz a nitidez necessária para dialogar com o mundo. Me sinto parte de algo maior, o que me permite viver o tempo de uma forma não linear e menos orientada pela lógica de produção constante. Morei 10 anos em São Paulo e, apesar de achar necessário os encontros culturais que [a cidade] fornece, não há silêncio. Me mudar foi uma decisão que impactou a logística do meu trabalho, a rotina e as relações, mas preciso estar fisicamente em contato com os temas que orientam meu trabalho e que reforçam a urgência de nos pensarmos parte da natureza para aprender com ela.

O processo de transformação das bitucas em celulose, aliás, envolve uma colaboração intensa com a comunidade de Ilhabela. Qual é a importância dessa parceria local para você, Anália, tanto em termos artísticos quanto sociais?
AM: Fui motivada pelos múltiplos esforços da Tatiana Araújo, fundadora do Flow Sustentável — que atua na área de compostagem, lixo zero e reciclagem de bitucas —, também moradora do litoral norte e que forneceu o material para usarmos. Transformar as bitucas em celulose reciclada, além de ser uma tecnologia que honra a circularidade da matéria, é um ato político. Ao transformar um material descartado em um objeto de design, celebramos a reutilização criativa através de uma iniciativa que reduz o impacto ambiental.

Como os conceitos de reutilização e transformação guiaram o design e o processo de criação da cadeira Docinho?
AM: Foram conceitos que guiaram todo o processo de criação e estão presentes tanto na base da cadeira, que foi garimpada e deformada, quanto na massa de celulose reciclada e nas cerâmicas que foram usadas com inspiração na técnica do terrazzo, a partir de peças que já não tinham uso e seriam descartadas.

FM: E a transformação foi até mais ampla, pois acredito que esse processo em que eu reutilizo os pedaços que eu tinha no ateliê ganhou força depois de criar a Docinho. Ultimamente, no ateliê, tenho desenvolvido a série Esculturas Pictóricas, onde, na maioria das vezes, utilizo esses fragmentos para criar novas esculturas.

Como vocês veem a relação entre o material reciclado e a cerâmica? Há paralelos na maneira como ambos os materiais são trabalhados?

AM: Com a cerâmica, gosto de pensá-la como um local de movimento. O que é cerâmica? É uma rocha fundida, manipulada, que existe exatamente como rochas formadas a partir da lava dos vulcões. O uso da celulose reciclada é uma solução sustentável, que também representa o poder de transformação dos materiais naturais, e que pode ser manipulado e esculpido, assim como o barro.

Vocês compartilham uma linguagem artística similar. Como essa sinergia se manifestou no desenvolvimento da Docinho? De que maneira essa peça reflete a união das suas duas abordagens criativas, que vêm de diferentes disciplinas, mas se encontram em um ponto comum?

FM: Convidar a Anália para colaborar neste projeto foi essencial. Há muito tempo queríamos trabalhar juntas e, além de amiga, sou fã do trabalho dela. Acho que há uma sinergia muito forte entre nossas pesquisas e estéticas, embora cada uma expresse isso de sua própria forma. O processo de criação da cadeira Docinho começou a partir dos materiais que queríamos explorar mais. A Anália me falou sobre essa massa de celulose reciclada que descobriu no ano passado e compartilhou sua vontade de trabalhar com mobiliário e ampliar a escala do trabalho. Com a argila, temos a limitação do tamanho do forno, o que restringe um pouco a escala das peças. Na época, eu tinha vários pedaços de cerâmica no ateliê e estava pensando no que fazer com eles. Ao juntar essa massa com os pedaços de cerâmica, criamos a Docinho.

AM: Docinho é o encontro da estética, mas também da importância da matéria como ponto de partida para as criações de ambas. É uma peça que convida à reflexão sobre a materialidade em constante transformação e adaptação.

Explorando novas fronteiras no mobiliário, como foi a transição do trabalho em cerâmica para o desenvolvimento de uma peça de mobiliário como a cadeira Docinho?

FM: Não senti muito essa transição. Foi super legal trabalhar com um material que não tem necessidade de ir ao forno, mas no fim foi um grande processo de colagem. O conceito de colagem/assemblagem/upcycling está sempre presente, acho que muito do que eu faço parte da colagem. E com a Docinho não foi diferente. Eu adoro ressignificar as coisas, e essa cadeira estava na minha casa esperando o seu momento. [risos]

AM: Tivemos uma abordagem experimental e aberta para a co-autoria do material no processo, e respeitar o tempo de cada fase foi essencial para atingir uma estrutura firme e durável. Inicialmente, pensamos em resinar a peça final, mas nos apaixonamos e decidimos manter aparente a textura da fibra natural da celulose reciclada, que nos lembrou uma lã, criando um contraste interessante com a cerâmica brilhante e rígida.

Quais são os próximos passos na expansão da expressão artística de vocês?

AM: Atualmente, estou animada com um novo projeto em andamento que aprofunda o diálogo entre natureza e tecnologia e, mesmo sendo fascinada pelo universo da cerâmica, continuo buscando soluções multidisciplinares para ampliar meu trabalho… É muito rico colaborar com um cientista da computação, por exemplo, um campo tão distante dos meus conhecimentos, mas que reforça a ideia de que diálogos diversos são cruciais para permitir novas expressões artísticas, descobertas e avanços.

FM: Para mim, estudar. Nesse momento, estou querendo aprender mais sobre arte, conhecer outros trabalhos, participar de grupos de estudo e, em breve, aplicar para residências artísticas… Acho que é importante. Esse ano tenho produzido um pouco menos e me dedicado mais à pesquisa, e sinto que, com isso, o trabalho mudou bastante. Estou animada para descobrir o que vem por aí!


A cadeira Docinho faz parte do projeto Eterno Design. Saiba mais aqui

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Um cafezinho com Camila Tariki

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Fotos de Derek Fernandes

Tomar café na casa de alguém é um convite para conhecer profundamente essa pessoa. Nossa casa é a casca que nos protege do mundo. Ela é parte importante de nossa cultura particular, e reflete a maneira como enxergamos e gostaríamos de nos inserir no mundo.

Aqui, dividimos casas de pessoas que gostam de casa. Que têm suas casas vivas, cheias de objetos que contam a história de uma vida, sem um lugar perene em seus espaços.

Camila Tariki é arquiteta e designer de interiores. Filha de mãe argentina e de pai neto de japonês, é mãe da Lis, do Ian, o grandão, e da Lila, a filhote. Morou em Nova Iorque por onze anos, onde estudou e trabalhou com o designer egípcio Karim Rashid. Atualmente, ela toca uma equipe de vinte e seis pessoas na Bernardes Arquitetura, escritório da qual é sócia, criando para seus clientes espaços em que as pessoas que moram naquela casa possam formar memórias e identidades.

Adorei muito a sua casa, tem a sua cara. Casa, pra mim, é assim, viva.

Acredito que casa é muito a nossa memória. Acho que é porque tem esses objetos que eu fui coletando durante a vida, e eles vão seguindo de casa em casa. Eu sou uma pessoa apegada, minha casa é o meu caracol. Já mudei muito. Em Nova Iorque, foram seis vezes em doze anos. Em São Paulo, esta é a minha quarta casa.

Me fala um pouco desta sua casa, como começou a sua história com ela?

Foi durante a pandemia. Estava todo mundo trabalhando online, e eu comecei a ir muito para a Bahia. Cheguei lá, aquele horizonte, aquela paz, e pensei “Nossa Senhora, acho que eu preciso disso na minha vida”, sabe? Em dois dias que estava lá, o meu corpo voltou pro sistema biológico normal, eu acordava às 6h, dormia às 21h30, estava com fome nas horas certas, a cabeça estava boa. Foi dessa maneira que escolhi esta casa, demos um tapa no imóvel, uma coisa muito rápida. Pintei uma sala duas vezes, porque não gostei da cor, depois pintei a sala inteira de amarelo e pensei “não estou conseguindo viver com essa parede tão colorida, com esses quadros”. Fiz uma casa feminina, com cortinas e cores claras. Como sou eu e a Liz aqui, fiz uma casa pra ela.

O que é uma casa feminina pra você?

A casa tem muito rosa, tem muito amarelo, acho que tem essa suavidade em tudo. As peças, as cores, os móveis são mais orgânicos. Criei também uma sala mais divertida, mais preto e branco.

O que você acha que essa casa te oferece, em termos de conforto e bem-estar?

Acho que ela tem passarinhos, natureza. Por mais que seja no meio de São Paulo, ela tem uma combinação de introspecção e alegria. Pra onde você olha, tem alguma bagunça. Morei em casas mais zen, essa tem mais vida.

Como você acha que seu gosto mudou com o tempo?

Tudo na vida é acumulativo. Às vezes, você está muito focado em uma coisa, depois “nossa, olha isso, que legal, deixa eu explorar”. É um olhar curioso para as coisas. Eu, por exemplo, prefiro não ver Pinterest de jeito nenhum. Tento manter meu olhar livre de tendências, mais intuitivo do que informativo. Parto muito de compreender, dentro daquela casa, o que funciona para determinada pessoa. O tempo inteiro, eu vou num lugar, eu olho, eu vejo, eu pego amostra, eu testo. Estou o tempo inteiro colocando muito a mão na massa. E viajar, eu amo viajar, a minha alma é viajante, não abro mão de viajar. Eu falo muito pra minha equipe que a gente não tá criando uma imagem, um projeto pra uma foto. A gente tem que pensar na experiência que o cliente vai ter dentro daquele espaço, como é que eu quero que as coisas pareçam, que tipo de materiais, etc.

Qual você acha que é o papel da arte numa casa?

A arte é uma coisa muito pessoal. Ao longo do tempo, fui conhecendo e me educando, com uma relação zero colecionista. Algumas coisas me tocaram, outras foram curiosidade. Quando vim pra esta casa, que montei de uma forma mais experimental, criei uma parede “dos estranhos”, como Da Silva, Leonilson, Marepe. Fui brincando com essas ligações invisíveis que eu achava entre os artistas. Mas é algo que eu amo. Hoje, inclusive, onde eu pesquiso e estudo muito, é nas artes. É exatamente dessa liberdade do pensar que eu gosto, porque, para o artista, ter um papel em branco pode ser uma coisa super assustadora. Acho esse processo muito inspirador e acabo me inspirando até pra minha vida, pro meu trabalho e pra como encaro certas questões. Uma parede toda forrada de quadros é muito divertida, e cria uma troca muito legal com a casa. A Liz é muito observadora, ela vai e fala dos quadros, eu explico quem é o artista, o porquê, do que é feito, o que gera curiosidade nela. Às vezes ela faz uns comentários super pertinentes, ela observa e depois muda de opinião. Então ela mesma já tem essa troca, que é muito bacana.

O que você acha que torna uma casa única?

Acho que o arquiteto, o designer de interiores ou o decorador cria um espaço para que as pessoas que moram naquela casa criem suas memórias, sua identidade. O que traz a personalidade da pessoa é a dinâmica de cada família, a ideia de como cada um quer viver. Não fazemos o projeto para nós, mas para quem vai ocupar e viver nesse espaço. Acredito muito nessa colaboração com os moradores, em personalizar a experiência desse viver.

O que torna uma casa brasileira?

A gente vive num país com um clima maravilhoso, que é generoso, tem a temperatura certa. Então acho que a casa brasileira é uma casa que tem essa oportunidade de estar muito mais integrada com o seu ambiente, seja natureza, seja um jardim ou uma vista. São casas mais extrovertidas, voltadas para fora. Temos a vantagem de ter, por exemplo, beirais longos para proteger do sol, de criar varandas. Podemos viver muito fora de casa. O brasileiro tem esse lado muito despojado de viver e de receber. É óbvio, cada região acaba ditando certas soluções e maneiras de vivência. Mas definiria como sendo generosidade e integração com o externo.

Vindo de uma mistura cultural rica, argentina, japonesa e norte-americana, qual é o papel da comida e da alimentação dentro da sua casa?

Eu vejo a comida muito como uma oportunidade de você estar fazendo bem pra você mesmo. Comida também é um posicionamento de como você quer impactar o meio ambiente. Eu consumo pouca carne vermelha, como mais peixe. Enfim, eu tento ser consciente não somente quanto à saúde, mas à procedência do alimento que eu estou ingerindo.

O que significa a casa pra você?

A casa é seu abrigo, seu espaço, sua referência, seu templo. A casa é o meu local de encontro, de descanso, de ver a minha história ao redor de mim. Gosto muito também de trazer gente, de receber, de estar com os amigos em casa.

Que tipo de projeto ainda não realizou?

Nossa, tantos que eu ainda nem sei. Mas espero realizar projetos cada vez mais diversos e diferentes. Estamos fazendo um museu agora. Era um grande sonho pessoal, preparar uma instituição cultural. Estamos fazendo três, o IMS, uma fundação em Portugal, um para o [Instituto] Burle Marx.

E o que significa falar pra você passar pra tomar um cafezinho com alguém?

É um momento de encontro. O café, o ritual, é o momento que simboliza a pausa no dia pra você simplesmente se conectar com alguém. Às vezes até se conectar com si mesmo. Às vezes paro em meio à correria e tomo meu cafezinho sozinha. Também é gostoso.

Objeto de carinho

Esses objetos ficam na salinha de brinquedos da Lis. Uma escultura do Véio [Cícero Alves dos Santos]; um vaso da Minco Y Turola e uma figura “a alma” (representando o bem nos festejos de Reisado), comprados na loja da Amarello e que eu amo; uma pombinha de artesanato brasileiro; um bowl do Gaetano Pesce; e um Talking Stick, da Tanzânia. As tribos utilizam esse objeto de madeira, todo feito de miçanga, durante as rodas de conversa, para indicar quem tem a vez da fala.

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Axel Vervoordt e o poder da imperfeição

Por mais que vivamos numa espécie de ditadura de “o passado nunca mais” – o que, sim, tem sua beleza, especialmente quando na voz de Belchior –, a verdade é que nem sempre devemos ignorar ou apagar as marcas deixadas pelo tempo. Lembrar é, numa só, um ato de coragem e afeto: coragem para reconhecer o valor e o poder de transformação que as lembranças têm; e afeto para enaltecer personagens e cenários, a ponto de, com eles, conseguir aprender. Em linhas gerais, é nisso que acredita o belga Axel Vervoordt, conceituado designer de interiores e criterioso colecionador de arte.

Wabi-Sabi é uma antiga filosofia japonesa que tem a imperfeição como paradigma do que é belo. Por “imperfeição”, entende-se: assimetrias, irregularidades, acanhamento, um punhado de características sucateadas nas sociedades modernas. “Wabi” vem da simplicidade, da elegância e do rústico, enquanto “Sabi” nos leva à galhardia da idade, do desgaste e das rugas do tempo. Isto é, o Wabi-Sabi enxerga a beleza de tudo – “falhas” e rachaduras inclusas.

Como alguém que está à cata desses encantos que de algum modo se escondem mesmo estando na frente dos nossos olhos, passando despercebidos e residindo nos detalhes, Axel Vervoordt vive e respira o Wabi-Sabi. É da sensibilidade atinada, portanto, que germina o seu maior talento: daqui do presente, notar e dar nova vida à graciosidade do passado.

Se o século passado foi de produção, consumo e descarte, a história agora é outra. A sensação atual predominante, literal e metafórica, é a de que tudo está se esvaindo – nossos recursos naturais, nossos lugares para despejar lixo, nossas relações pessoais. O século XXI, se tomado como um ensejo de mudança, caracteriza-se pela necessidade de recuperação. Com o resgate, o antigo torna-se atual novamente, e a verdade, como acredita Vervoordt, pode estar contida no paradoxo e na ambiguidade. Não à toa, os seus designs investigam os conceitos de tempo-espaço e a natureza do ser, duas instâncias que latejam contradições.

Para atribuir coesão e harmonia à tal complexidade, a humildade é imprescindível. Pensemos em alguém cuja percepção é sempre respeitosa e que não faz questão de se evidenciar no que produz, preferindo escutar os sussurros de um espaço para então compreender como amplificá-los ao máximo e transformá-los em uma voz própria. Com essa abordagem orgânica, até os elementos da natureza se fundem aos ambientes, combinando a austeridade do design moderno com uma aceitação humana dos efeitos do tempo.

“A simplicidade é a sofisticação máxima.”

Vervoordt, o designer, e Vervoordt, o colecionador, se amalgamam. O olhar apurado para identificar essências que emanam complementaridade é o que faz com que sua coleção priorize peças com espírito, descartando superficialidades e modismos. No fim, é a lógica dos seus designs aplicada ao próprio inventário: coleciona não para possuir, mas para fornecer um pedestal digno dos artigos em questão. Um desses pedestais é sua casa, onde a justaposição de obras e objetos formam um diálogo precioso. O designer-colecionador, que, aliás, projetou os interiores das residências de diversas celebridades – de Kanye West a Calvin Klein –,passa seus dias morando no campo em um castelo do século XII e, assim, a interlocução de épocas faz parte das minúcias do seu cotidiano. 

“Gosto de ser fascinado por algo antigo que parece muito contemporâneo e algo contemporâneo que parece muito antigo.” 

Falando em contemporâneo e antigo, agora jogamos o holofote sobre o projeto Kanaal, um complexo cultural e residencial em Antuérpia,charmosacidade belga. Originalmente construído em 1857, Kanaal funcionava como uma destilaria. Em 2017, porém, os armazéns industriais de tijolos e os silos de grãos de concreto viraram apartamentos de alto padrão e um hub de escritórios moderníssimo. 

A antiga destilaria foi restaurada e complementada com uma ou outra adição, de modo que os períodos se encontram de forma natural. Respeitando a história e dando um abraço caloroso nas características originais do edifício, todo o terreno recebeu uma nova perspectiva para o futuro. É assim que Vervoordt, já há algum tempo, é referência máxima.

Por que deveriam arranhões na madeira desvalorizar uma mobília? Abraçar imperfeições é uma maneira criativa de se reinventar. A filosofia por trás do Wabi-Sabi talvez não vá de encontro com os fundamentos de “o passado nunca mais”, nem mesmo se cantado por Belchior. Mas, partindo da sabedoria japonesa e de sua paixão pela contradição harmoniosa, Axel Vervoordt sabe que é no passado que está o futuro. E, como diria Belchior ajudado pelo coro do designer, “precisamos todos rejuvenescer”. 

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