Composição em vermelho, de Anna Maria Maiolino (1983). A artista ítalo-brasileira é uma das homenageadas da 60a Bienal de Veneza (Divulgação)

A mobilidade urbana é uma ferramenta de inclusão social imprescindível. Oferecer acesso facilitado e acessível a diferentes regiões e serviços é desempenhar um papel fundamental na garantia dos direitos de mobilidade e oportunidade para todos os cidadãos, independentemente de sua condição socioeconômica. Como prova de que a mobilidade urbana sempre chegará em quaisquer futuros com um tanque de importância cheio, ela segue sendo extremamente relevante à sociedade contemporânea, ganhando novas camadas de relevância na medida em que a sociedade avança de maneira desembestada. Em um mundo cada vez mais interconectado e marcado por desafios — tais quais a urbanização acelerada, a poluição e o congestionamento excessivo —, transporte público e companhia surgem como uma solução eficaz para promover a sustentabilidade, a equidade e a qualidade de vida nas cidades. 

O trânsito em São Paulo impacta a vida dos seus habitantes.

Nesse contexto, a necessidade de um sistema de transporte público eficiente e abrangente é mais premente do que nunca. 

Das possibilidades exploradas atualmente, parece inevitável pensar na implementação de novas políticas, como a famigerada Tarifa Zero, que só se nacionalizou de fato por aqui com as chamadas Jornadas de Junho de 2013. Essa abordagem, com a qual o transporte público seria gratuito para a população, busca enfrentar desafios como a congestão de tráfego, a poluição do ar e a desigualdade no acesso ao transporte. No panorama brasileiro, as dificuldades para a implementação da Tarifa Zero são acentuadas, principalmente em cidades de grande porte como São Paulo, palco principal das manifestações do Movimento Passe Livre ocorridas há uma década. As cidades brasileiras enfrentam barreiras estruturais, como a falta de investimento adequado em transporte público, a deficiência na infraestrutura e a falta de integração eficiente entre os modos de transporte. Além disso, a dependência do automóvel particular e a resistência política à mudança também são obstáculos significativos.

Um dos principais argumentos contrários ao transporte público gratuito é o financiamento. A gratuidade do transporte público demandaria um substancial investimento público, que poderia ser encarado como um ônus para os cofres municipais. Há preocupações de que a falta de receita proveniente das tarifas possa levar a uma deterioração dos serviços e a uma sobrecarga financeira para as autoridades responsáveis pelo transporte público. Outra dificuldade é conseguir atender o esperado aumento de demanda, o que exige investimento não apenas no aumento de frota, mas em infraestrutura urbana — incluindo faixas exclusivas, eliminação de vagas de estacionamento em vias onde passam ônibus, criação de sistemas de integração e transferência.

Tarifa Zero é uma proposta que ganhou destaque no Brasil nas décadas de 1980 e 1990, e um dos nomes associados a ela é o da política Luiza Erundina, prefeita da cidade de São Paulo entre 1989 e 1992 e uma defensora ardente do transporte público gratuito. Durante seu mandato, que aconteceu com o Partido dos Trabalhadores, foram realizados estudos e debates sobre a viabilidade da Tarifa Zero em São Paulo, o que popularizou a questão e fez com que a ideia fosse vista como uma possibilidade pelas pessoas. Antes, pouco se pensava sobre soluções como essas, descartadas de partida por serem tidas como inviáveis. A proposta foi amplamente discutida e despertou tanto apoio entusiasmado quanto críticas acaloradas. No entanto, toda ideia que desafia forças maiores sofre forte resistência e, devido a questões financeiras e políticas — e, não para a surpresa de ninguém, até pressão midiática —, a Tarifa Zero não foi implementada integralmente na cidade durante o mandato de Erundina. 

Apesar disso, como a boa iniciativa que é, o debate sobre a Tarifa Zero continuou a ecoar no cenário político brasileiro. Espera-se, inclusive, que tenha forte impacto nas eleições municipais deste ano. 

Luiza Erundina, com seu apoio à Tarifa Zero e outras iniciativas relacionadas à mobilidade urbana, deixou um legado de discussão e conscientização sobre a importância do transporte público acessível e de qualidade. Sua contribuição ajudou a colocar a questão em pauta, estimulando a busca por soluções inovadoras para os desafios da mobilidade urbana. 

E ela não está sozinha nessa. Há tanto políticos quanto pesquisadores que fazem coro à Erundina.

Enrique Peñalosa é um político colombiano conhecido por sua veia urbanista. Foi prefeito de Bogotá entre 1998 e 2001, e novamente entre 2016 e 2019. Peñalosa defende fortemente a isenção de tarifas como uma medida para garantir a equidade social e promover cidades mais inclusivas e sustentáveis. Durante seus mandatos, ele implementou políticas para tornar o transporte público acessível a todos os cidadãos.

“Uma cidade avançada não é aquela em que até os pobres usam carros, mas sim aquela em que até os ricos usam transporte público.”
Peñalosa na Ted Talk Why buses represent democracy in action (2013)

Bogotá tem uma população de 7,181 milhões de pessoas (2018). Getty Images

Susan Shaheen é uma pesquisadora estadunidense especializada em mobilidade compartilhada e inovação no transporte. Ela argumenta que o passe livre pode ser uma estratégia eficaz para aumentar a utilização do transporte público, especialmente quando combinada com outras medidas, como o compartilhamento de veículos. Aprofundando-se no assunto, ela também chama a atenção para os cuidados que devemos tomar na automatização de processos, já que muitas vezes eles reproduzem imperfeições humanas.

“Precisamos pensar cuidadosamente sobre o que queremos dizer com equidade. (…) Se entrarmos em um futuro automatizado, onde temos aprendizado de máquina e inteligência artificial aprendendo com o motorista, preconceitos raciais podem ser incorporados aos algoritmos.”
Shaheen em entrevista para Iomob, em 2018

Judith Dellheim, que já esteve no Brasil algumas vezes em fóruns sobre mobilidade urbana, é uma pesquisadora alemã da Fundação Rosa Luxemburgo que aborda a questão da Tarifa Zero como uma forma de promover a justiça social e a sustentabilidade. Ela tem acompanhado as propostas de políticas de passe livre na Alemanha e estudado a dependência de seu país em relação à indústria automotiva.

“Na sociedade atual, com muita frequência, as cidades são planejadas de acordo com as necessidades dos proprietários de automóveis. E os poderes públicos – altamente endividados – investem anualmente muito mais por habitante em transporte individual motorizado do que em transporte público local.”
Delheim, no texto Tarifa Zero, a experiência europeia (2019)

No panorama global, aliás, a utilização do transporte público varia entre os países. Em algumas nações, como Alemanha, Suíça e Holanda, o transporte público é amplamente utilizado e bem integrado, com altos níveis de qualidade e eficiência. Em alguns casos, os sistemas de transporte público são parcialmente subsidiados pelo governo, o que reduz os custos para os usuários. No entanto, não existe uma abordagem única em relação à gratuidade do transporte público. Cada país adota diferentes modelos de financiamento e cobrança de tarifas, que vão de acordo com a viabilidade política, financeira e cultural daquela nação.

Na capital da Estônia, Tallinn, uma medida interessante foi implementada em 2013: os residentes da cidade podem usar o transporte público, incluindo ônibus, bondes e trens, mediante o pagamento de uma taxa de registro anual. Já a França, conhecida pela forte presença do Estado na vida prática dos seus cidadãos, tem o caso de Dunkirk: o transporte público na cidade, incluindo ônibus e trens regionais, tornou-se gratuito para todos os passageiros. Em um outro tipo de abordagem, a cidade de Bonn, na Alemanha, oferece um modelo híbrido de transporte público gratuito. Os estudantes e os passageiros com mais de 65 anos podem utilizar o transporte público gratuitamente, enquanto outros passageiros pagam uma tarifa reduzida. Essas abordagens têm como objetivo incentivar a utilização do transporte público e promover a sustentabilidade.

Um dos exemplos que mais chama a atenção, porém, é o de Estocolmo, capital da Suécia, que adotou uma abordagem diferente para tornar o transporte público mais acessível. A cidade introduziu um sistema de tarifas progressivas, em que o preço da passagem é calculado com base na renda dos passageiros. Dessa forma, aqueles com menor renda pagam menos ou até mesmo têm acesso gratuito ao transporte público.

O futuro da mobilidade urbana envolve a exploração de novas políticas, e cada caso deve ser pensado e planejado de maneira específica. Isso inclui a adoção ou não de novidades e tendências que estão moldando o futuro do transporte.

Veículos elétricos que produzem energia limpa são um exemplo: com a transição para veículos elétricos ganhando impulso em todo o mundo, as montadoras estão investindo pesadamente no desenvolvimento de carros elétricos e a infraestrutura de carregamento está sendo expandida. A mobilidade compartilhada é uma outra possibilidade: os serviços de compartilhamento de veículos, como carros, bicicletas e patinetes, estão se tornando cada vez mais populares. As pessoas estão optando por compartilhar veículos em vez de possuí-los individualmente, o que ajuda a reduzir o número de carros nas ruas e a diminuir a poluição. Além disso, estão surgindo plataformas que integram diferentes modos de transporte para oferecer soluções de mobilidade mais completas.

Mas, acima de tudo, a inteligência artificial é quem mais deve pesar nessas decisões e discussões. A tecnologia de veículos autônomos está progredindo rapidamente, e empresas de tecnologia e montadoras estão investindo nela para uso compartilhado de táxis autônomos e ônibus sem motorista. Essa tecnologia tem o potencial de melhorar a eficiência e a segurança do transporte, além de reduzir o congestionamento nas estradas. Da mesma maneira, a inteligência artificial está sendo aplicada ao gerenciamento de tráfego e ao planejamento urbano para otimizar o fluxo de veículos e melhorar a eficiência do transporte. Algoritmos avançados podem ajudar a prever padrões de tráfego, otimizar rotas de ônibus e sincronizar semáforos para reduzir o congestionamento e melhorar a fluidez do tráfego. 

Por essas e outras, as cidades estão investindo em infraestrutura conectada para melhorar a mobilidade urbana. Sensores e dispositivos inteligentes estão sendo usados para coletar dados em tempo real sobre o tráfego, qualidade do ar e uso de transporte público. Esses dados são usados para tomar decisões informadas sobre o planejamento urbano e melhorar a eficiência dos sistemas de transporte. À medida que a tecnologia avança e as demandas das cidades evoluem, é provável que novas inovações surjam, buscando criar sistemas de transporte mais sustentáveis, eficientes e acessíveis. 

Tomando os cuidados preconizados por Susan Shaheen, e sempre tendo a ética como fio condutor, a inteligência artificial pode levar a caminhos eficazes e mais abrangentes. 

No tecido intrincado das ruas urbanas, onde se cruzam sonhos, destinos e histórias, encontra-se a essência do direito de ir e vir do cidadão. Como cidade, tem-se o dever de tornar tangível essa aspiração, pavimentando caminhos que transcendam a mera mobilidade física. Nesse emaranhado de linhas, surge uma sinfonia de vidas em movimento, dançando em harmonia com o pulsar da cidade. 

Quando reconhecemos que a liberdade de deslocamento é mais do que uma necessidade prática, mas sim a própria poesia das nossas existências, somente então estaremos plenamente vivendo a verdadeira essência de uma mobilidade urbana inclusiva. Faz lembrar da frase da celebrada e saudosa Toni Morrison: “Eu sonho um sonho que me sonha de volta para mim.”

É possível. Mas é preciso fazer com que assim seja.

Uma pessoa na casa dos seus vinte ou trinta anos, de classe média, acorda. Com as redes sociais buzinando desde que ela abre os olhos, não demora a prorromper uma certa pressão — às vezes sutil, às vezes nem tanto — para que um senso generalizado de realização, num âmbito pessoal e profissional, seja vivido. Seis, sete, oito da manhã e já há quem tenha jogado na cara uma ida à academia e um sorriso indefectível no rosto para encarar os perrengues do dia. Tão logo, mesmo que ainda sob o cobertor, essa pessoa se vê imersa em um mundo regido pela diretriz de se ir atrás, alegremente, daquilo que “te faz feliz” e conseguir tirar uma vida disso — e olha que essa pessoa nem sequer teve tempo de abrir o LinkedIn. Durante toda a vida do arquétipo tratado aqui, de vinte/trinta anos e de classe média, essa pessoa foi incentivada a perseguir os seus sonhos e transformar as suas paixões em uma carreira viável. Se por um acaso, nos anos de formação, ela pensou em se dedicar à medicina ou, vá lá, à advocacia, foi mais por gosto pessoal e menos por pressão parental.

“Insecure”, série da HBO, aborda a complexidade do trabalho no mundo de hoje. Foto: Reprodução

No entanto, a expectativa de encontrar realização pessoal a partir da profissão pode trazer uma carga opressiva de pressão, o que acontece pela visão de que é inviável ter prazer na vida sem que se encontre o trabalho perfeito e se alcance o equilíbrio entre o que é a vida pessoal e o que é o trabalho. A impressão, muitas vezes, é a de que, sem isso, a felicidade real não vai ser possível e que a culpa, no fim, é sua. Se ao acordar para ir trabalhar a pressão já se faz presente, ao menos para martelar os ânimos, em algum nível, imagine então no trabalho propriamente dito. Neste contexto, esta pessoa se esgota fazendo um verdadeiro malabares mental para balancear suas expectativas pessoais, as demandas do mercado de trabalho e a realidade das oportunidades disponíveis, tudo isso enquanto busca construir uma relação saudável e significativa com o trabalho, além de quebrar a cabeça para fazer com que as finanças batam. É um prato cheio.

Será mesmo que aquele nove-às-cinco impessoal, bate-cartão-na-entrada e bate-cartão-na-saída, era tão ruim assim? 

O dia acaba e, veja só, ela não está necessariamente feliz, o que é algo natural na vida de qualquer um, mas, considerando a positividade profissional tóxica que o mundo circunscreve à ela, isso faz com que ela fique ainda pior, seja por não estar fazendo o que ama ou por estar fazendo o que em tese ama e mesmo assim não ter alcançado a tão almejada plenitude. Uma coisa leva a outra, feito a mais Millenial e Gen-Z das bolas de neve, e, agora com a cabeça deitada no travesseiro, os pensamentos não dão trégua. 

a expectativa de encontrar realização pessoal a partir da profissão pode trazer uma carga opressiva de pressão”

Eventualmente, dorme. E, então, para o bem e para o mal, o dia seguinte vem.

Parece exagero televisivo ou literário, coisa saída de uma ficção distópica de pouca imaginação, mas essa autocomparação que coloca o factual e o idílico lado a lado é uma dinâmica diária de muitas pessoas. A psicóloga Thais Andrade1, tomando como referência seus muitos anos de prática, reflete sobre a importância do trabalho para as pessoas:

“A partir da minha experiência, observo que o trabalho é não apenas central como também essencial na vida de grande parte das pessoas. Para uma vasta maioria significa sobrevivência e sustento; para outros, como deveria ser para todos, significa também a possibilidade de reconhecimento e satisfação pessoal. Por essa razão tantos caem em depressão quando, por exemplo, deixam de trabalhar ou se aposentam. Para muitos essa mudança é catastrófica, uma vez que inúmeras perguntas nunca questionadas começam a emergir: quem eu sou sem meu trabalho? O que faço comigo? O que faço com meu tempo? Do que eu realmente gosto? Como estão minhas relações pessoais? Além de, é claro, a preocupação em pagar as contas.”

A relação com o trabalho passou por transformações significativas ao longo das últimas décadas. Basta tomarmos os anos 1980 como parâmetro. Havia aquele grande culto ao trabalho, sendo praticamente inevitável que aquilo fosse o centro da vida de uma pessoa, que tinha uma mentalidade de dedicação e comprometimento total à carreira. E não era bem como vemos com mais frequência hoje, de “eu faço o que gosto, então é claro que me dedico”, mas uma lógica de “eu vou virar tudo o que me dá retorno, não importa o que seja”. Os engomados de Wall Street, tão bem vestidos quanto tão sem escrúpulos, vêm à mente, certo? De Michael Douglas a Leonardo DiCaprio, de Sigourney Weaver até Melanie Griffith. Aqui no Brasil, com o boom de agências de publicidade e o espírito empreendedor generalizado começando a florescer, não foi muito diferente. 

Aqui e lá — e em tantos outros “lás” —, foi a década dos yuppies, obcecados em fazer mais e mais dinheiro, independentemente do quanto isso fosse pesar na vida pessoal. Analisando em retrospecto, com os valores da sociedade atual em mente, isso pode soar como algo absurdo. De fato, houve uma mudança nessa perspectiva.

“A vivência da frustração, que nos acompanha desde o nascimento, é fundamental para o desenvolvimento do nosso psiquismo e para a constituição de quem somos”, diz Thais Andrade. “Wilfred Bion e Donald Woods Winnicott, psicanalistas ingleses, escreveram de forma muito profunda sobre o tema. Frustrar-se faz parte da natureza humana e a maneira como lidamos com a frustração desenhará nosso caminhar pela vida.

Agora, será que uma pessoa que nasceu no início dos anos 80 teria uma tendência a ter mais tolerância e capacidade de lidar com as frustrações do que, digamos, um nativo digital? Alguém que, ainda engatinhando, já teclava nos celulares e tablets? Acredito que já existam pesquisas nesse sentido. Talvez sim, talvez não (existem os aspectos da constituição de cada um). O fato é que a vivência da espera era outra e a percepção desta parece mudar a cada geração.”

O trabalho é visto atualmente de uma maneira diferente, como uma ideia que foi, ao mesmo tempo, expandida e reduzida.

Leonardo DiCaprio em O Lobo de Wall Street.

Expandida porque, na medida em que a gama de possíveis atividades profissionais vai se ampliando a cada dia, mais caminhos podem ser traçados — estamos na época em que jogar videogame pode dar dinheiro (imagine dizer isso a um menino dos anos 1980!). E reduzida porque, por mais importante que seja o trabalho, ele não deveria mais ter o poder de nos definir. “Eu não sou o meu trabalho” é um discurso recorrente. Há uma tendência crescente de enxergar o trabalho como uma parte importante da vida, mas não necessariamente como o único ou principal elemento definidor da identidade pessoal. 

A busca por propósito e satisfação pessoal no trabalho tornou-se mais evidente, e as pessoas estão cada vez mais dispostas a explorar suas paixões e interesses, transformando-os em carreiras viáveis. Bonito, não? Sim, bastante. Mas é justamente aí que as contradições começam a aparecer. Há pouco tempo, tanto em redes sociais de caráter profissional quanto em plataformas como o Instagram, rodou o seguinte desafio: “Diga quem você é sem citar o seu trabalho”. Isto é, não valeria dizer “comunicador”, “empresário”, “bartender”, nem nada disso. Difícil. Por mais que a vida pessoal hoje seja importante — talvez, sim, até mais importante do que a vida profissional —, ainda temos o costume de nos classificarmos a partir de nossas atividades profissionais. O que isso diz sobre nós? É um mero ricochete de outras gerações ou a coisa vai bem além? A reflexão ganha ainda mais camadas quando a digital pessoal é tão marcada na vida profissional, como ocorre amiúde na atualidade, na grande maioria de setores e até classes sociais. O trabalho, então, por mais que mudanças teóricas, e até práticas, tenham acontecido, segue tendo muitas vértebras em nossas espinhas dorsais. 

Será que, no fim, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais?

Uma mudança notável e inegável é que as atividades que antes eram consideradas apenas hobbies, como gostar de filmes ou de games, agora podem ser encaradas como opções reais de carreira. Essa mudança de mentalidade, e realidade de mercado, permite que as pessoas busquem caminhos profissionais que estejam mais alinhados com seus interesses e habilidades, o que resultaria em uma maior satisfação e realização no trabalho — isso, claro, quando o bailado é feito sobre o campo da teoria. Por mais positivo que esse novo aspecto possa ser, a busca por uma carreira baseada em paixões e interesses também pode trazer um sem-fim de frustrações. Não vai ser toda vez que aquilo que se deseja vai ser alcançado, e se porventura isso acontecer, as expectativas nem sempre são atendidas. É a velha máxima do “cuidado com o que deseja, pois você pode um dia conseguir tudo”. A discrepância entre a realidade e as expectativas têm o poder de levar a um constante estado de insatisfação, criando um inquietamente interno psicológico que faz as pessoas estarem sempre em busca de algo mais, em busca daquela sensação de plenitude profissional, e pessoal, que muitas vezes é difícil de ser alcançada.

“Um dos problemas do mundo atual, onde estamos com nossos pés fincados, é que com tanta demanda, tanto excesso de informação o tempo todo, fica difícil encontrar espaço para o sentir — incluindo a felicidade ou o processo de descobrimento do que despertaria tal sentimento. Como encontrar espaço dentro de nós, e em nosso dia a dia, para que os momentos de felicidade possam existir? Ou para percebê-los?”, questiona a psicóloga. “Outro ponto é que mesmo aquilo que nos faz feliz vai dar trabalho, vai ter perrengues, dificuldades, restrições, escolhas.”

Jesse Einsenberg em “A nova vida de Toby”, minissérie da Hulu/Disney Plus

Lembra da frase “trabalhe com o que você ama e nunca mais precisará trabalhar na vida”, atribuída a Confúcio? Ela reflete uma noção completamente idealizada de que se pudermos fazer o que amamos, o trabalho se tornará uma fonte contínua de felicidade e satisfação. Acordar vai ser fácil, enfrentar o trânsito não vai doer, passar horas infindas na labuta vai ser mole. Convenhamos que Confúcio, ainda que no auge de sua sabedoria, nada sabia sobre levantar cedo para trabalhar. Estima-se que o filósofo chinês viveu no mundo que antecedeu Cristo, séculos e mais séculos atrás. No entanto, essa perspectiva otimista segue sendo amplamente divulgada e incentivada, muito embora não responda mais ao que entendemos por mundo há um bom tempo.

Que justiça seja feita, há perfis por aí, populares e conscientes, que questionam tais platitudes, como o Obvious aqui no Brasil. No geral, transmitem mensagens empáticas sobre trabalho, autoestima, as dificuldades enfrentadas diariamente por mulheres e tantos outros temas importantes. É necessário que esse contraponto exista para que se enfrentem as visões idealizadas e crie nas pessoas a sensação de que está tudo bem caso alguma coisa dê errado nas suas respectivas buscas por satisfação pessoal e profissional. É uma questão de perspectiva: a frase de Confúcio, dependendo de quem a encara, pode ser vista como “trabalhe com o que você ama e, assim, você trabalhará 24 horas por dia”. Ela expressa um ponto de vista mais realista, destacando que se dedicar exclusivamente ao trabalho que amamos pode levar a uma imersão constante, onde a linha entre vida pessoal e profissional se torna tênue.

Enquanto a primeira versão da frase sugere que a paixão pelo trabalho elimina a sensação de estar trabalhando, a segunda versão aponta para a possibilidade de uma sobrecarga e de sacrificar outros aspectos importantes da vida. É importante reconhecer que, mesmo em uma carreira apaixonante, haverá tarefas menos agradáveis e pressões profissionais. E, acima de tudo, haverá o compromisso, a responsabilidade, que, por si só, já têm um peso diferente. Assistir a um filme é uma coisa, assistir a um filme e ter que escrever sobre ele é outra; ter uma banda é uma coisa, ter que compor um número razoável de novas canções dentro do prazo e fazer 25 shows ao mês é outra. E por aí vai. Nem mesmo seguindo as vocações que respondem ao mais espiritual dos ensejos, por exemplo, impedem que os burnouts aconteçam.

“Correr não adianta”, analisa Thais Andrade, “precisamos de pausas. É nessa brecha que podemos, quiçá, encontrar opções criativas e mais saudáveis para sairmos do lugar. Porém, descer da esteira que nos faz correr e não nos tira do lugar implicará em lidar com a realidade externa e com nós mesmos. Isso inevitavelmente vai gerar sofrimento, mas também será uma oportunidade de desenvolvimento pessoal. Quando nos olhamos, além de nos depararmos com nossas limitações, também podemos nos deparar com nossos potenciais, a depender do quanto é possível tolerar a dor que a realidade nos impõe.”

“Em complemento”, finaliza ela, “estamos na era da positividade excessiva, em tempos em que a Fake News do ‘tudo é possível e está a seu alcance’ circula das mais diversas formas pelas redes sociais. Se por um lado, a geração Z se opõe ao modelo de trabalho excessivo das gerações anteriores; por outro, também são estimulados a fazer aquilo que amam e a seguir seus sonhos. Cabe destacar, porém, que o véu do excesso de positividade pode turvar a visão e deixar o coração iludido.”

O pessimismo recorrente em algumas gerações pode ser atribuído em parte à percepção de que alcançar a felicidade plena no trabalho pode ser uma expectativa irrealista. É importante lembrar que a felicidade não é exclusivamente derivada do trabalho. Outras áreas da vida, como relacionamentos e tempo livre, obviamente também desempenham um papel significativo no bem-estar geral. Em vez de buscar incessantemente a perfeição e a felicidade total no trabalho, é mais realista e benéfico buscar um equilíbrio saudável, encontrar propósito nas atividades profissionais e também valorizar os momentos de descanso e cuidado pessoal. 

É como diz Issa, protagonista de Insecure (2016-2021), série que, dentre muitos temas, lidou muito bem com as complexidades do trabalho na vida atual, especialmente quando ele se mistura com a vida pessoal: 

“Eu sou uma bagunça. Mas uma bagunça que está aprendendo a lidar com os seus problemas.”

“Insecure”, série da HBO. Foto: Reprodução

1Thais Fonseca de Andrade, psicóloga clínica e psicanalista em formação pelo Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Mestre em Ciências (USP) e Especialista em Psicoterapia Psicanalítica (USP) ([email protected]).

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