Chuva de Verão Santo Antônio, de Luiz Zerbini, em Paisagens Ruminadas, retrospectiva do artista no CCBB Rio. Foto de Pat Kilgore.

O cineasta Werner Herzog, de filmes do calibre de Aguirre, a cólera dos deuses (1972) Fitzcarraldo (1982) e O Homem-Urso (2005), galgou um lugar muito específico no ideário contemporâneo. Para muitos, ele transcende a figura do diretor, tornando-se um ícone pela força de seus filmes, mas, curiosamente, também por sua persona excêntrica e intransigente. É como se ele não fosse apenas um dos cineastas vivos mais influentes, mas um personagem em si mesmo (ou, para alguns, de si mesmo). É mais do que ser famoso ou não ser, mais do que ser um diretor importante ou não. Wim Wenders, outro alemão com status de lenda, para bem ou para mal, não evoca essa aura sobre si mesmo. O caso de Herzog é único. Cabelos (hoje ralos) frequentemente despenteados, sotaque bávaro robótico, dizeres sobrecarregados de um gravitas que ninguém mais conseguiria proferir e sair incólume — todas essas características são inconfundivelmente herzoguianas. 

Klaus Kinski em Fitzcarraldo. Reprodução.

E é nesse espectro de mitologia fílmica-sobrenatural que se encaixam suas memórias, Cada um por si e Deus contra todos: memórias, lançadas no Brasil pela editora Todavia. 

Não. É claro que não. Essa não é a autobiografia padrão de uma figura pública, de um artista, de alguém que transitou, e ainda transita, pelos corredores de grandes festivais de cinema. Não há muitos vislumbres do que constitui o âmago do diretor, as descrições que ele oferece nesse estágio da vida, octogenário, são ainda mais do que se vê e até do que se sente, mas nunca por que se sente. A palavra “incorrigível” talvez venha a calhar. Há muito da alquimia presente em fatos e questionamentos arrebatadores do mundo — e, para Herzog, nada é mais exuberante que isso. Os lugares e não-lugares, as perguntas respondidas com perguntas, os impulsos animais que são humanamente dignos de atenção. 

“Tenho uma profunda aversão à introspecção em excesso, à contemplação do próprio umbigo. Eu também preferiria estar morto a ir a um psicanalista, porque sou da opinião de que ali ocorre algo fundamentalmente errado. Se uma casa tem uma iluminação muito clara até o último canto, ela se torna inabitável. É o mesmo com a alma, iluminá-la até sua sombra mais escura torna as pessoas inabitáveis.”

Werner Herzog. Getty Images.

Pensando em obras memoriais de outros diretores de cinema, chega a ser difícil traçar comparação. Não há o compasso cronológico que vai de filme a filme, detalhando um ou outro aspecto da produção e salpicando curiosidades interessantes para quem ama aquele corpo de trabalho. Esqueça, por exemplo, as memórias de Sidney Lumet, o ótimo Making Movies (1995), que segue essa lógica e satisfaz ao entregar bastidores de filmes como 12 homens e uma sentença (1957) e Um dia de cão (1975). Herzog encara sua história como encara seus temas, narrando-a com lentidão e tiradas grandiloquentes, mas com a peculiaridade de fugir das perguntas essenciais que ele próprio faria caso não fosse o objeto de estudo. 

 O resultado? Algo sui generis. “À Herzog”. Por vezes indiferente e distante, por vezes mágico e sedutor — sem nunca deixar de surpreender.

Joana do Prado*, diretora, roteirista e professora de roteiro que criou e dirigiu a série Sociedades Matriarcais, fala sobre a influência de Werner Herzog: “É, sem dúvida, uma das maiores influências no meu trabalho. Além de admirar sua alta produtividade, o que mais me liga a ele são o recorte e o tom que ele dá aos seus filmes. A forma como ele conta histórias com uma curiosidade existencialista, investigando a condição humana em diferentes lugares e situações do mundo, é extremamente potente.”

Assim como em seus filmes, Herzog estabelece uma poderosa relação entre o humano e a natureza. Em Cada um por si e Deus contra todos fica claro de quais experiências vieram a vontade de tratar com essa dualidade. “Minha mãe”, escreve ele sobre a agonia materna depois de um ataque dos Aliados, “me encontrou no berço coberto por uma camada espessa de cacos de vidro, telhas e entulho. Eu saíra totalmente ileso, mas minha mãe, em seu medo, pegou a mim e a meu irmão mais velho, Tilbert, e deixou a cidade fugindo para as montanhas até Sachrang, a mais remota de todas as aldeias na Baviera.” Nesse refúgio remoto, encontrou um terreno fértil para sua imaginação juvenil. A partir daí, Herzog começou a forjar sua visão do mundo, que viria a definir seu trabalho criativo ao longo dos anos. Esses e outros relatos sobre sua infância, especialmente evocativos, falam de um tempo em que o cotidiano se mesclava com o extraordinário. O mundo ali era tão fantástico quanto inventado.

“A filmografia de Herzog é uma celebração da complexidade humana e da luta contra as forças naturais e sociais.”

Pensar nas linhas de força do cinema de Werner Herzog é imergir em um vulcão de complexidade e singularidade. Com uma carreira de meio século (e contando) que já soma mais de cinquenta filmes, Herzog intimida historiadores e críticos com suas variações de registro desde os primeiros passos na direção. Ele diz que, no começo de sua carreira, ficou claro que “por conta do meu quase total desconhecimento do cinema, eu teria que inventá-lo à minha maneira.” Por falta de conhecimento ou não, seguia seus instintos — e esses sempre pareciam acertados. O reconhecimento veio rápido, mas muito mais foi sendo alcançado com o tempo. Não demorou a passar de um cineasta respeitado a uma espécie de evento a ser contemplado, uma presença que transcende seu próprio trabalho para se tornar um fenômeno cultural por direito próprio.

“Seu olhar e o destaque que ele dá à força das imagens”, comenta Joana, “são minhas maiores inspirações em suas obras. Como ele mesmo disse há alguns anos, como diretor ele teve a pretensão de formar uma gramática, uma enciclopédia de imagens do nosso mundo. E conseguiu: ele é o único diretor que filmou em todos os continentes. Mais do que simplesmente colecionar imagens, ele dá protagonismo a elas, posicionando-as sempre em primeiro plano e no centro da narrativa, com o uso da música e de sua narração como suportes. Muitas vezes, ele retira a narração e ficamos apenas com a imagem, que adquire vida própria, um estrelato místico.” 

Junto com a postura espectral de sua voz, e em alguns casos a fantasmagoria de sua presença física, seus documentários foram os principais responsáveis por criar a mitologia herzoguiana. Os exemplos de bons filmes que contam com o próprio Herzog são muitos: Little Dieter needs to fly (1997), A caverna dos sonhos esquecidos (2010), Lições da escuridão (1992), Meu melhor amigo (1999) e tantos outros. Em um relato raro do livro — “raro” porque entendemos, a partir de uma relação causal direta, o início de uma característica marcante de sua obra —, o diretor conta que criou sua persona audiovisual ao ser forçado pelo amigo e jornalista Gerhard Konzelmann a aparecer em sua série de documentários, já que a voz em off não era permitida ali. Isto é, cada cineasta participante tinha que aparecer. 

“Esse foi um passo cujo alcance não pude reconhecer totalmente na época, mas que teve grandes consequências.”, relata Herzog. “Eu havia encontrado a minha voz, a minha voz de palco, por assim dizer.”

Certa feita, François Truffaut chamou Herzog de “o diretor vivo mais importante”. É sintomático que alguém tão influente quanto o francês tenha louvado o trabalho do alemão: grandes obras encantam pessoas planeta afora, pois têm o poder de quebrar barreiras geográficas e temporais. É como conta Joana:

“Ao desenvolver a série documental Sociedades Matriarcais, que foi ao ar no ano passado pelo GNT, inspirei-me muito em dois filmes de Herzog, Happy People: A Year in the Taiga (2010) e Visita ao Inferno (2016), tanto na plasticidade das imagens quanto na presença marcante da narrativa. Esses dois elementos guiaram a concepção do projeto, desde os roteiros até as filmagens. Durante os encontros com as matriarcas e com outros personagens dessas sociedades, refinei não apenas meu olhar para a realidade dessas culturas nas escolhas das imagens que as representam, mas também para a mensagem que gostaria de transmitir sobre elas e como fazê-lo. Assim como nas obras de Herzog, a narração permitiu minha participação como personagem, um espaço fundamental para a reflexão sobre essas sociedades sob a perspectiva de uma mulher que cresceu em uma sociedade patriarcal.”

O menino que morava no ponto mais remoto de toda a Baviera, em condição de miséria, realmente conquistou o mundo.

Nas memórias de Herzog há, sim, relatos sobre a produção de filmes icônicos e os atritos com figuras como o escritor de viagens Bruce Chatwin e o alpinista Reinhold Messner. No entanto, isso não parece ser o centro do livro. Esses relatos, claro, oferecem uma janela para espiar a mente do diretor, mas isso não é suficiente para levar um inquieto como ele a se dedicar à escrita memorial. O que de fato fez com que ele se sentasse em uma cadeira para escrever esse material advém de um desejo sedutor de tergiversar, um prazer incontornável de temperar as bordas de um prato já aquecido com a magma da própria lava.

Aliás, um pensamento que ressoa no fundo da mente de quem lê Cada um por si e Deus contra todos: memórias, quase como um subtexto proposital, é: certo… mas será que é verdade? Isso, talvez, seja um dos resultados do enigma que Herzog conjurou sobre si mesmo ao longo dos anos, mas, sobretudo, é fruto de uma escrita que ressoa como um sonho fabricado, apesar de ou talvez por conta de seu distanciamento autoimposto. 

Se isso soa familiar, é porque seus filmes carregam uma aura similar. Ou seja, ao desafiar as convenções da autobiografia tradicional, optando por uma abordagem mais poética e fragmentada, ele encolhe os ombros e se cobre com o lençol da coerência. Em sua prolífica carreira, sempre foi assim. Aqui, por se tratar de um livro de memórias do autor de O Enigma de Kaspar Hauser (1974), o esperado era o inesperado. Isso é, em sua essência mais pura, Werner Herzog, obcecado pelos misticismos que tornam o planeta um lugar tão interessante de se explorar (sendo ele próprio uma figura mítica desse caldo).

A filmografia de Herzog é uma celebração da complexidade humana e da luta contra as forças naturais e sociais. A escrita contida em suas memórias, por sua vez, é uma batalha particular, não contra a natureza (ainda que essa batalha esteja presente) e nem muito menos contra si mesmo, mas contra o tédio para com o mundo e as pessoas que o circundam. 

“Ele celebra a espontaneidade dos acontecimentos que testemunha ou que são testemunhados por terceiros”, sintetiza Joana. “Está em um constante estado de encantamento pela nossa capacidade, enquanto seres humanos, de criar interações complexas com o ambiente ao nosso redor. No documentário The Fire Within (2022), Herzog presta uma linda homenagem às imagens produzidas pelos Krafft, e faz isso de forma solene e muito poética. No curso que dou sobre roteiros de documentários na Roteiraria, uso este filme como exemplo da forma minuciosa com que Herzog constrói não apenas histórias, mas sensações. Nunca é a imagem pela imagem, mas sim a dialética que ele constrói entre o que tangencia nossa realidade e o que está além do tangível, conferindo um significado mais profundo ao que retrata e aos encontros que narra com seus personagens. Ele convida o espectador a dar um giro no olhar, a ir além da superfície e a ver e sentir o mundo junto com ele em uma nova e mais ampla perspectiva.”

Cada um por si e Deus contra todos é um passeio desafiador e saboroso pela sua filosofia pessoal e artística, à semelhança das romarias de muitos de seus personagens. E vale adiantar que, considerando tudo isso — a inquietude incontornável, a vontade de quebrar paradigmas, a obsessão em fazer com que sua história seja maior que si próprio —, o final do livro é perfeito. 

Dá para se perder nas paisagens interiores de um dos cineastas mais originais e controversos de nosso tempo, um homem cuja vida e obra continuam a desafiar e a intrigar, abrindo novos caminhos no cinema e além dele. 

Mas, se alguém se perder, esse alguém que se vire. Lembre-se: é cada um por si. Cada um por si e Herzog contra todos.

*Joana do Prado é diretora, fotógrafa e roteirista. Dirigiu três séries de TV, uma delas ganhadora do prêmio TelaViva. Em 2023, lançou a série documental ‘Sociedades Matriarcais’ no GNT/ Globoplay. Atua também como professora de roteiros na Roteiraria.

Obra de Yasmin Guimarães, artista publicada na edição Amarello Sonho.

A discussão sobre o tabelamento dos preços de livros no Brasil tem gerado debates acalorados, dividindo opiniões entre defensores e críticos. O Projeto de Lei 49/2015, conhecido como Lei Cortez, busca regular o preço dos livros no mercado nacional, impondo um preço fixo para os lançamentos durante os primeiros 12 meses. O projeto, que recentemente avançou no Senado, foi originalmente apresentado pela ex-senadora Fátima Bezerra (PT-RN) e ressuscitado pela senadora Teresa Leitão (PT-PE). Inspirado na bem-sucedida Lei Lang, em vigor na França há mais de 40 anos, tem como intenção fomentar a leitura e proteger as livrarias independentes, permitindo que estas possam competir com grandes varejistas, especialmente as plataformas de venda online. Não à toa, a gigante Amazon é o principal alvo da Lei Cortez. 

Atualmente, as grandes redes exigem descontos das editoras sobre o preço sugerido dos livros, podendo praticar um valor final mais baixo para o consumidor. Em contrapartida, as pequenas livrarias não conseguem obter os mesmos descontos e acabam cobrando preços mais altos do consumidor. Órgãos públicos federais, estaduais ou municipais, bem como feiras de livros, também podem obter descontos.

o desconto não poderá exceder 10% do preço fixado pela editora durante 12 meses após seu lançamento”

Se a Lei Cortez for aprovada, o desconto de qualquer livro não poderá exceder 10% do preço fixado pela editora durante 12 meses após seu lançamento. A partir da segunda edição, o prazo de validade do teto do desconto será reduzido para seis meses. Após esse prazo, a política de descontos fica liberada. Órgãos públicos federais, estaduais e municipais, e feiras de livros serão excluídos da regra geral, podendo obter descontos maiores, desde que a compra seja feita diretamente com as editoras.

As principais argumentações de ambos os lados são:

Contra o Projeto de Lei

Os críticos da Lei Cortez defendem que a fixação de preços para livros prejudica tanto as editoras quanto os consumidores. Argumenta-se que o alto custo dos livros no Brasil se deve às baixas tiragens, resultadas diretamente da baixa demanda. Como efeito, os preços elevados dos livros desestimulam a compra, criando um ciclo vicioso: poucos leitores compram livros, o que mantém as tiragens baixas e, consequentemente, os preços altos.

As editoras — negócio que, como qualquer outro, precisa ser lucrativo — se beneficiariam de uma maior liberdade para ajustar os preços conforme a demanda. Descontos estratégicos, especialmente em plataformas como a Amazon, ajudam a impulsionar as vendas, tornando os livros mais acessíveis ao público e permitindo que editoras e livrarias aumentem sua receita total, mesmo com preços unitários menores.

O jornalista Elio Gaspari, em matéria que leva o título A volta da tunga dos livreiros e o subtítulo Querem tabelar para proibir os descontos, argumenta que:

“É um caso especial de tabelamento, pois enquanto o costume é tabelar uma mercadoria para impedir que se cobre a mais, nessa girafa pretende-se impedir que o comerciante cobre menos. (…) Os livreiros têm uma aura apostolar. Afinal, um livro não seria um sabonete. Ilusão. Livros, sabonetes e caminhões são mercadorias. Tanto é assim que, há muitos anos, quando era mais barato imprimir um livro na China, algumas editoras passaram a rodá-los em Xangai, trazendo os volumes para o Brasil. As duas maiores redes de livrarias nacionais quebraram, muito mais por causa de suas acrobacias financeiras do que pela concorrência. Quando as grandes redes afogavam as pequenas livrarias, ninguém falava em tabelamento.”

A principal crítica ao PL 49/2015, portanto, é que ele impediria preços mais acessíveis ao proibir descontos superiores a 10% durante o primeiro ano de lançamento do livro. A restrição é comparada a políticas de controle de preços do passado, como os infames “fiscais do Sarney”, que muitas vezes resultaram em fracassos econômicos. A preocupação é que o tabelamento levará a uma redução nas vendas, obrigando editoras a diminuir ainda mais as tiragens e, consequentemente, aumentar os preços, criando uma situação insustentável para todo o mercado e ferindo quem já está bem combalido: o leitor.

Gaspari arremata: “Reclama-se que o freguês vai a uma livraria, consulta os volumes e, ao voltar para casa, encomenda-o eletronicamente. Os comerciantes que fazem essa reclamação fazem compras online e não pensam em tabelar os sanduíches. Ademais, todas as grandes editoras têm operações de venda eletrônica. Se cobram mais caro ou forçam a venda de livros físicos em detrimento dos e-books (mais baratos), o problema é delas.”

A favor do Projeto de Lei

Por outro lado, os defensores da Lei Cortez veem nela uma forma de proteger as pequenas livrarias e editoras da concorrência predatória das Amazons da vida. Eles argumentam que as grandes redes conseguem oferecer descontos significativos devido ao seu poder de negociação, o que prejudica as pequenas livrarias que não conseguem competir com esses preços.

O objetivo da Lei Cortez, segundo seus proponentes, é garantir uma maior diversidade no mercado livreiro, permitindo que livrarias de diferentes portes coexistam. Isso criaria uma tapeçaria de opções muito mais diversificada e abrangente, fugindo do monopólio que reduz as possibilidades de todos os envolvidos. Leis similares em países como França, Espanha e Argentina têm sido citadas como exemplos de sucesso, onde a regulação de preços ajudou a diminuir o preço médio dos livros e a preservar a biodiversidade cultural representada por pequenas livrarias.

Alexandre Martins Fontes, diretor-executivo da Editora WMF Martins Fontes e da Livraria Martins Fontes Paulista, rebateu diretamente os argumentos de Gaspari:

“A ideia dessa lei é impedir que empresas gigantescas (…), sem nenhum compromisso com a cultura do nosso país, tratem o livro como isca e deem descontos abusivos.”

A preocupação central dos defensores da lei é que, sem essa regulamentação, o mercado livreiro se tornará um oligopólio dominado por poucas grandes empresas, reduzindo a diversidade de oferta e centralizando o poder de precificação. Eles acreditam que a lei ajudará a manter as livrarias físicas nas cidades, que são importantes espaços culturais e sociais.

“A lei”, escreve Martins Fontes, “limita-se apenas a livros lançados nos últimos 12 meses, que teriam um desconto máximo de 10%. Ou seja, não atinge sequer 5% do total das obras disponíveis no mercado nacional e vale por um período que dará às pequenas livrarias a chance de uma concorrência mais leal, em produtos que atraem clientes e geram um movimento fundamental para as lojas menores. Ao garantir isso, a lei permite que mais livrarias possam coexistir e que mais livros, dos mais variados temas, possam ser descobertos pelos mais variados leitores. Se ficarmos apenas nas mãos de uma empresa (digamos, a livraria Amazon), podemos até comprar livros pela metade do preço, mas serão apenas os livros que ela entender que valem a pena ser vendidos.”

Há quem concorde com Gaspari, há quem concorde com Martins Fontes — mas há quem concorde com os dois. 

a taxação de livros no Brasil reflete uma tensão clássica entre a liberdade de mercado e a intervenção regulatória”

A discussão sobre a taxação de livros no Brasil reflete uma tensão clássica entre a liberdade de mercado e a intervenção regulatória. De um lado, há a visão de que a regulação excessiva sufoca a inovação e a flexibilidade necessárias para um mercado dinâmico. Do outro, há a preocupação com a proteção das pequenas empresas e a preservação da diversidade cultural.

Ambos os lados apresentam argumentos válidos que merecem consideração. A decisão final sobre a implementação da Lei Cortez deverá levar em conta os impactos econômicos e culturais de longo prazo, buscando um equilíbrio que favoreça tanto o acesso aos livros quanto a sustentabilidade do mercado livreiro no Brasil.

Países como Alemanha e Espanha são exemplos que deixam claro que o projeto pode, sim, ser benéfico não somente às livrarias independentes, mas também aos consumidores. No Reino Unido, no entanto, onde a lei do preço fixo vigorou de 1996 a 2018, houve aumento de cerca de 80% no preço dos livros. 

Com a lei em prática, seríamos um caso que penderia mais para o lado da Alemanha e Espanha, ou para o Reino Unido? Difícil dizer. O contexto brasileiro, afinal, é o contexto brasileiro. Sem a Lei Cortez, o cenário também não é animador, já que o número de leitores no país é baixo. Segundo o Panorama do Consumo de Livros, pesquisa encomendada pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) em 2023 e realizada pela Nielsen BookData, mostra que 84% dos brasileiros acima de 18 anos de idade não compraram livros nos últimos 12 meses.

Em outras palavras, que se seja contra ou a favor da Lei Cortez — não é de hoje, mas a maré parece pouco favorável à leitura

Arte de Alvaro Seixas, capa da Amarello Erótica.

Por que as pessoas se importam tanto com a vida dos outros? Não que elas estejam realmente interessadas em você, mas nunca deixam passar algo que lhes incomoda. Uma mulher de meia-idade dormindo de pijama no carro com a boca suja de iogurte. Isso é algo tão perturbador assim? Elas poderiam simplesmente seguir seus caminhos e cuidar das próprias vidas ao invés de fingir que se importam. E eu, sinceramente, não tenho escolha; preciso me justificar, inventar qualquer história, ou as coisas podem ficar bem complicadas.

Todos os dias crio relatos variados. Eu já disse pra um policial que bebi martínis demais depois de um vesperal com velhas amigas da faculdade, por isso acabei pegando no sono dentro do carro. Pra um homem que se dizia padre, expliquei que briguei com meu marido e que preferia morrer a ter que voltar pra casa. Já contei pra uma advogada bem-disposta a me ajudar que, na verdade, eu gostava de me esconder no banco do carro pra ter um pouco de privacidade, já que a minha filha tinha muitas crianças em casa e minha novela era sagrada. No geral, todos acreditavam em qualquer coisa que eu dizia.

E o iogurte? A gosma branca escorrendo em meu rosto era um ponto bem difícil de encaixar nas minhas explicações estapafúrdias, mas ninguém estava realmente interessado em boas histórias. No geral, todos apontavam para a própria boca, usando o indicador no canto dos lábios bem arreganhados em o — um sinal para que eu pudesse perceber a sujeira no meu rosto. Eu fingia espanto e me limpava rapidamente usando o antebraço. Era suficiente. Todos, absolutamente todos, partiam depressa depois disso. Eu colocava as mãos no volante e fingia que ia ligar o carro.

Se não estavam realmente interessados, por que eles simplesmente não passavam pelo meu velho Celta com seus narizes empinados e seus tênis esportivos e seguiam, saudáveis e indiferentes, com suas vidas? Seria mais fácil pra mim. Mas era sempre isso, alguém sempre queria ajudar a pobre senhora sozinha e em apuros. Depois que partiam e eu podia ter certeza de que não havia mais ninguém por perto, começava o meu dia. Eu saía do carro, me espreguiçava bem e, antes de fazer qualquer coisa, descia para um mergulho no mar.

Pular sete ondas era sagrado, além de me benzer com um ramo — o dia de ramos era sagrado pra mamãe. Sem isso eu não era capaz de prosseguir. Morar em um pequeno carro estacionado em uma avenida à beira-mar pode parecer algo idílico pra alguns, mas, no geral, é bem perigoso. Por isso fiz amizade com Fumaça, um mendigo já acostumado a dormir no calçadão da praia e que sempre me ajudava a tirar o mato que crescia em torno dos pneus em troca de um pacote de salgadinhos. Essa pequena vida tão delicada que se insinuava em um objeto feito de petróleo e aço poderia colocar tudo a perder. Ele também ficava de olho no Celta enquanto eu ia fazer o meu trabalho na loja de conveniências que ficava a apenas trinta passos de onde meu carro estava estacionado.

Fumaça era conhecido e temido. O corpo coberto de fuligem dos carros que passavam furiosos na avenida davam a ele uma aparência fantasmagórica. Ninguém se atrevia a mexer com ele, nem os policiais. Louco! Quando ele tentava se aproximar, davam algum dinheiro e deixavam pra lá. Como eu precisava passar o dia inteiro dentro da conveniência, a minha amizade com ele foi fundamental pro meu novo estilo de vida. Pra ele também: nos últimos anos, ninguém mais andava com moedas no bolso, tudo virou pontos acumulados em um cartão de plástico e transferências online.

No começo, quando eu ainda atuava sozinha, meu veículo foi diversas vezes saqueado, e viaturas locais tentaram rebocar o que eles chamavam de lataria esquecida. Mas depois da minha parceria com o fantasma as coisas começaram a dar certo: o meu Celta ocupava eternamente a mesma vaga sem maiores problemas, e Fumaça sempre dava um jeito para que não parecêssemos assombrações ocupando um automóvel em ruínas.

O dia ia ser longo. Eu precisava ganhar dinheiro suficiente pra comer durante duas semanas. Fumaça ia fazer um pequeno procedimento cirúrgico, e eu prometi ajudá-lo. Ele iria dormir comigo no carro enquanto se recuperava, só assim eu poderia cuidar dele. Eu já produzia conteúdo pras redes sociais há mais de um ano, e tinha pegado a manha de como conseguir mais grana, caso fosse necessário parar por uns dias. Estava disposta a pular o almoço para bater a minha meta de pontos.

Fazer dancinhas na internet. Foi o próprio Fumaça que me deu a ideia quando viu o celular na minha mão. Dava algum dinheiro. No começo achei que seria humilhante, mas me acostumei rápido e até peguei gosto pela coisa. Meu conteúdo era basicamente sobre nutrição para idosos, e o meu forte era propaganda de iogurte. Nos últimos dias com a minha mãe, isso era praticamente tudo o que ela podia comer, então eu tinha me tornado especialista em sabores, marcas e detalhes nutricionais: desnatado, integral, saborizado, sabor idêntico ao natural, kefir de leite, sem açúcar, vitaminas adicionadas, sem lactose, com pedaços de frutas.

Na conveniência da praia, era o produto que mais vendia, junto com algumas modalidades de frozen, e eu combinei com o dono uma parceria de divulgação em troca da utilização dos seus produtos e do cenário da loja pra fazer os meus conteúdos. Comecei o vídeo da manhã com um boomerang de um desnatado de morango com trilha sonora de Sidney Magal. O meu sangue ferve por você! ativava a libido da mulherada, e as vendas iam muito bem. Durante minhas performances, era bem comum juntar uma roda de clientes empolgados com o meu pequeno espetáculo, e, às vezes, eles até participavam da dança. Ajudava muito no engajamento. Eu mal sabia que meu quadril podia se movimentar, mas, fazendo as dancinhas todo santo dia, não só aprendi a rebolar como compreendi os diferentes gostos musicais do meu público, e até alguns passos que eram sucesso na rede, como desenrola, bate e joga de ladinho.

Eu tinha consciência de que todo o sucesso vinha do ridículo de uma mulher da minha idade dançar para ensinar componentes nutricionais de produtos alimentícios pra idosos. Mas funcionava. Eu batia os pontos necessários e conseguia boas transferências pra minha conta. Tudo o que eu precisava era comer e dormir em paz no meu Celta. Até o fim dos meus dias. Era pedir muito? Mas a doutora Glória tinha que aparecer justamente naquela avenida, naquela praia, naquela loja de conveniência com seus insuportáveis tênis de corrida:

— Doutora Thereza?! — Eu fingi que não era comigo e continuei firme no Ooohhhh eu te amo! Eu te amo, meu amor! Iogurte no alto, derrama um pouco na boca. — Sim! É ela! Eu tenho certeza! — ela comentou com o marido, que analisava algumas opções de energéticos. O homem me encarou com um olhar de repulsa e continuou indiferente na análise de uma opção de pêssego com morango que tinha nas mãos. — Doutora Thereza?

Eu continuei firme. Tinha esperança de que a pequena multidão ao meu redor a impedisse de continuar a investigação, mas ela não se intimidou. Afastou algumas pessoas e ficou bem na minha frente. Eu não parei. O iogurte escorria pelo meu corpo. Caprichei no rebolado. Alguns aplaudiam, outros gritavam vai, vadia!, e eu dançava enquanto parodiava a canção: fonte de proteínas de alto valor biológico, cálcio, fósforo, vitaminas do complexo B. Glória estava em choque.

Ela tinha sido minha chefe, mas isso já fazia uns dez anos. Uma mulher silenciosa e de uma gentileza agressiva. Conhecida e importante executiva no ramo da indústria alimentícia local. Da última vez que a vi, ainda não tinha rugas tão profundas nos olhos e seu bigode chinês não era perceptível. Ela jamais faria procedimentos no rosto, era do tipo que acreditava na discrição absoluta. Quando fui conversar com ela sobre a licença para acompanhar o tratamento da minha mãe, ela sorriu levemente, disse claro! e retomou a atenção na tela do computador. Fala com a Susana do RH e não esquece de entregar todos os arquivos. Nós trabalhávamos sob a pressão de um rigoroso e detalhado contrato de sigilo, e em mais de vinte anos de casa eu jamais havia deixado qualquer informação vazar. Entreguei tudo. Ao final da licença a que tinha direito já sabia que seria demitida.

Eu preferi acompanhar os últimos dias da minha mãe. Erámos só nós duas. Papai morreu jovem, de infarto, pra completo alívio de mamãe, que pode usufruir ainda de alguns anos de liberdade. Eu nunca quis me casar, focada no trabalho e na minha independência, como ela havia me ensinado. Mamãe até tinha uma pequena poupança, que fez escondida por segurança, e gostava de costurar, mas nos últimos tempos as pessoas preferiam comprar roupas prontas em um famoso site chinês. Eu também tinha minhas economias, então poderíamos ficar confortáveis durante anos, mas a doença foi longa e agressiva. Não quis que ela sofresse um único dia. Quando tudo acabou, só me restou o Celta. Mamãe adorava esse carro. Nós passeamos e viajamos muito nele pelo interior do país. Foram dias felizes.

Quando o grupo de pessoas se dispersou e eu pude guardar meu equipamento — luz, um pequeno microfone de lapela e tripé do celular —, ela se aproximou de mim e, com a sua costumeira gentileza, me intimou:

— Você precisa parar com esses vídeos.

O marido a observava de longe, no caixa, com uma sacola de energéticos variados e dois frozen, um de morango e outro de kiwi.

— Você devia levar um iogurte natural — respondi. — Esses frozen são só química, como você bem sabe.

Ela olhou para o marido com ar de reprovação. Ele passava o código de barras dos produtos no autoatendimento; acrescentou ainda duas barras de chocolate com amendoim.

— Você sabe que o nosso trabalho exige sigilo absoluto. Por que você está fazendo esses vídeos? — ela questionou.

— Nosso trabalho? Vocês me demitiram. Há anos!

— Você não estava mais batendo as metas da empresa… E faltava muito às reuniões presenciais.

— A minha mãe ficou doente. Vocês sabiam disso. Em vinte anos de casa eu nunca falhei com a empresa. — Me virei, peguei a sacola com meus equipamentos e continuei: — E os vídeos são só iogurtes. Só venda de iogurtes! Afinal, todos precisamos vender, não é?

Pensei em levar alguma comida pro Fumaça enquanto aquela mulher desagradável ia embora. Peguei dois pacotes de salgadinhos de milho, dois refrigerantes e dois copos com macarrão instantâneo. Decidi almoçar. Depois voltaria para bater as minhas metas do dia.

— Agora você come essas coisas? Nem parece que conhece de perto a indústria.

— O que é que você tem a ver com a minha vida? Eu como o que eu quiser! Trabalho com o que quiser! Agora sou dançarina e como comida de pacote! Não tenho mais relação alguma com vocês! Vocês me demitiram! Quando a minha mãe estava com câncer! Câncer, porra! — Todos da conveniência me olharam depois do xingamento, e Glória, que detestava escândalos, me puxou para fora da loja. Ficamos na calçada, encerrando a discussão no sol quente.

— Você sabe que não pode fazer esses vídeos. Está no seu contrato! Discrição! É a reputação da empresa que está em jogo. Você foi uma de nossas analistas mais influentes durante anos! Vai manchar a imagem da empresa.

— Problema de vocês! — De longe eu já avistava o meu Celta e só pensava em entrar no carro e dividir os salgadinhos com Fumaça.

— Nós vamos te processar!

— Pode processar!

Eu saí andando e ela veio atrás de mim. Chegamos as duas em frente ao meu carro. Ela não queria largar do meu pé. O marido estava logo atrás dela, a uns cinco passos largos de distância, esperando a confusão terminar. Ele mordia um pedaço da barra de chocolate e olhava firme para o mar. O pescoço rígido.

— Quanto você precisa pra parar de fazer os vídeos?

— Eu não quero nada de vocês! — Eu abri a porta do carro e entrei. Ela fez que ia entrar junto, mas hesitou e tapou o nariz.

— Você mora aí agora?

— Olha só, o que é que você quer de mim? Diz logo e vai embora.

— Se o seu problema é dinheiro, eu posso te ajudar. Você só não pode mais ficar fazendo esses vídeos.

— Ah! Santa doutora Glória! Vai me ajudar! Que amor! Mas quando a mãe da funcionária mais produtiva da empresa estava com câncer, quem pensou em ajudar? Ninguém! Demissão! Na lata!

— Olha só, Thereza, foi um erro nosso, mas agora estamos dispostos a corrigir. Vamos te pagar uma indenização por tudo o que você passou…

— Eu não quero nada de vocês! Nada! — Eu gritei com tanta força que Fumaça, que estava ao meu lado no banco, ficou assustado. Glória continuava na beira da calçada. A testa suada, as sobrancelhas arqueadas. Ela realmente estava preocupada com a repercussão dos vídeos. A doutora Thereza compartilhando segredos industriais com dancinhas na internet. O marido parecia impaciente, mas continuava aguardando sem reclamar. Apenas olhava para o mar.

— Já sei! Tem algo que você pode fazer por mim. — Vi os olhos da minha ex-chefe ficarem cheios de esperança. Ela se aproximou do carro, colocou o rosto na janela do carro e conteve o impulso de tapar o nariz.

— Você pode dar um beijo no Fumaça!

— Você tá de sacanagem? — ela perguntou, surpresa, e revirou os olhos.

— É brincadeira! Mas, falando sério, se você conseguir um emprego pro Fumaça eu paro com os vídeos.

— Não… — Fumaça murmurou logo atrás de mim.

— Eu dou um beijo nele! — Glória sussurrou e olhou para o marido, que seguia aguardando sem virar o rosto em nossa direção e comendo o chocolate.

— Hahaha! Eu sabia! — Abri a porta do Celta. Ela pulou por cima do meu colo e ficou ao lado de Fumaça. O marido indiferente.

— Se você queria a sua vingança… — Ela me encarou com o seu sorriso gentil de sempre. — Vai ter! Mas depois, nada de vídeos. Combinado?

— Combinadíssimo! — respondi, empolgada.

Fumaça abriu a boca, e Glória quase vomitou no banco do carro. Além do cheiro, ele tinha estranhos pontos esverdeados nos poucos dentes que lhe restavam. Ele não hesitou e lhe deu um longo e molhado beijo. Quando ela saiu do Celta, vomitou.

— Espero que você cumpra sua parte no nosso acordo. Eu vou ficar de olho — ela disse, e saiu apressada, limpando a boca com a barra da blusa. Pegou a sacola do marido com violência e partiu, não sem antes tomar uma golada generosa de energético e cuspir tudo logo em seguida.

Fumaça me olhou espantado. Ele não era de falar muito, mas eu sabia que estava preocupado. Como eu iria conseguir dinheiro agora? O cheiro da purulência de seus pés estava cada vez mais forte.

— Não se preocupa. Ela nunca vai me achar. A internet é um mundo, e eu conheço os algoritmos. É tudo uma questão de ser recomendada para a pessoa certa.

Depois do incidente, decidi mudar o meu Celta de lugar e Fumaça, meu fiel fantasma, quis vir junto comigo. Achamos um lugar perfeito logo no fim da praia. Distante, solitário e perto das estrelas. Como sempre, havia muitas lojas de conveniência ao redor.

Hambagu, de Luísa Matsushita (2023). Cortesia Galeria Luisa Strina.

O jogo da amarelinha não é apenas a realização literária mais célebre de Julio Cortázar (1914-1984), mas também, ao lado de Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez (1927-2014), é um dos romances mais importantes e influentes tanto do boom literário latino-americano da década de 1960 quanto de toda a literatura moderna. Ou melhor… Seria a obra de Cortázar um único romance? Um único livro talvez sim, se pensarmos em termos físicos (ou de arquivos digitais), mas é mais preciso dizer que, neste livro, na verdade existem alguns romances. 

Julio Cortázar. Foto: Ulf Andersen.

Como o próprio Cortázar explica (aqui na tradução de Eric Nepomuceno) com sua “tabela de leitura”, uma breve instrução que precede o capítulo de abertura, “Este livro é, à sua maneira, muitos livros, mas é acima de tudo dois livros. O leitor está convidado a escolher uma das duas possibilidades seguintes: O primeiro livro se deixa ler na forma comum e corrente, e termina no capítulo 56(…) O segundo livro se deixa ler começando pelo capítulo 73 e depois na ordem indicada ao pé de cada capítulo.”

Em pleno 2023, ano que marca o aniversário de 60 anos da obra, a proposta ainda soa com frescor. A ideia de um leitor ativo que toma as rédeas da história se popularizou nas décadas seguintes no formato de livros infantis, nos quais as escolhas do leitor são feitas do jeito mais simples e didático possível, e também na forma de videogames e jogos que não necessariamente caminham de maneira linear, mas conforme as opções feitas por quem está jogando. Recentemente, usaram o formato na série Black Mirror, da Netflix. No caso dos romances, porém, isso nunca virou mainstream. Por incrível que pareça, a audácia do magnum opus de Cortázar ainda chama a atenção — e isso diz muito sobre duas coisas: sobre a literatura contemporânea e a força d’O jogo da amarelinha. 

As muitas promessas e projeções feitas em cima da literatura latino-americana talvez não tenham se concretizado. Ou talvez tenham, mas não pela brecha radical, revolucionária e anti-establishment aberta principalmente por Cortázar e Amarelinha, mas também por Vargas Llosa e Conversa na Catedral, García Márquez e Cem Anos de Solidão. Não virou moda quebrar as estruturas nessa escala, pelo menos não no nível de modificar tanto a experiência da leitura, pois, se o boom da literatura latino-americana se deu pelos leitores e não pelos editores (como, aliás, costuma acontecer com movimentos realmente importantes), quando essa lógica voltou ao seu estado natural de mercado ditando a produção, logo as ideias mais vanguardistas foram sendo estruturalmente cerceadas. 

Mas, de toda forma, a revolução foi televisionada (ou, no caso, impressa) e o caminho foi aberto, causando grande impacto. É como escreve Carlos Fuentes (1928-2012), outro autor de mão cheia que também fez parte desse momento de globalização da literatura latino-americana, em sua resenha de 1966:

Em suma, O jogo da amarelinha, na sua profundidade de imaginação e sugestão, no seu labirinto de espelhos negros, na sua irônica potencialidade através da destruição do tempo e das palavras, marca a verdadeira possibilidade de encontro entre o imaginário latino-americano e o mundo contemporâneo.

O jogo da amarelinha tem grande sucesso: é o equivalente latino-americano de livros como As Asas da pomba [romance de Henry James] e Suave é a noite [romance de F. Scott Fitzegeral].

Carlos Fuentes, 1966

O primeiro romance que existe em O jogo da amarelinha é lido de ponta a ponta, seguindo a tradição. Já o segundo, vai se formando pela leitura dos capítulos fora de sequência, de acordo com as instruções do autor. Os outros, podem ser montados a bel prazer por quem estiver lendo. Embora esse tipo de conceito estrutural e narrativo seja mais facilmente digerido pelos leitores do século 21, mais familiarizados com os experimentos literários pós-modernos, o alvoroço foi altamente positivo para o público que inicialmente recebeu Amarelinha. Era um abandono bem-vindo das regras rígidas de antes, uma fuga que exigia que o leitor saísse de qualquer zona de conforto. Assim, entre a polêmica e a apreciação, tanto o livro quanto o seu autor alcançaram imediatamente a fama e infâmia internacionais. Julio Cortázar, é verdade, já havia consolidado sua reputação como um escritor talentoso e inovador com tour de forcées como Bestiário (1951) e As armas secretas (1959). Sua escrita anterior, repleta de contos curtos e narrativas desafiadoras, sinalizava sua inclinação para a experimentação literária e sua capacidade de lidar com temas complexos. Mas O jogo da amarelinha foi sua grande catapulta para o reconhecimento global.

Na primeira leitura, o livro é dividido em duas seções principais, “Do lado de lá” e “Do lado de cá”, com uma terceira, “De outros lados”, que o autor afirma que o leitor “dispensará, sem remorsos”. O protagonista de O jogo da amarelinha é o boêmio Horacio Oliveira, escritor argentino radicado em Paris, desanimado com o fim de seu relacionamento com Maga. No início do romance, Oliveira é mostrado como uma alma perdida. Ele vaga pelas ruas de Paris procurando em vão a visão de Maga, torturado pela lembrança dela. Grande parte de seu tempo é passado com seus amigos, artistas fracassados e descontentes como ele. Essa convivência, no entanto, oferece pouca clareza ou paz e, assombrado pela memória de suas próprias falhas, Oliveira é incapaz de conciliar as peças do seu passado e presente. Na segunda seção, “Do lado de cá”, o pobre-diabo retornou a Buenos Aires, deportado, e foi morar com uma ex-namorada, ainda longe de resolver sua dor pela perda de Maga. Suas obsessões começam a ter terríveis consequências.

Embora a leitura deste primeiro romance seja linear, a narrativa não é nada simples, alternando entre capítulos na primeira e terceira pessoa. A primeira, no presente; a terceira, no passado. Dessa maneira, Cortázar desenvolve o personagem através de um processo de agregação e justaposição, com capítulos que nem sempre se prefiguram ou respondem diretamente uns aos outros e mudam no tempo, no espaço e na voz. Como Oliveira é um homem fragmentado, os recursos aos quais o autor lança mão são importantes para o desenvolvimento do personagem. É quando a inovação se preza a ir adiante, bem além do que somente sua proposta de rearranjar as bases sobre as quais se erigiam as fundações literárias, agregando não só exuberância à técnica mas também camadas metafóricas ao retrato. Toda a complexidade estrutural não tem a ver com um escritor que quer provar que pode escrever algo assim, que tem o desejo de se estabelecer contra alguém que dita as regras. Tem a ver, na verdade, com a experiência do personagem principal e do ensejo revolucionário de seu autor. Entre as idas e vindas de leitura, experiencia-se um pouco da irresolução de Horacio e um outro tanto da insatisfação de Cortázar, além de uma peregrinação profunda pelos estados mentais de ambos.

Oliveira mira no futuro mas inevitavelmente acerta o passado e, como resultado, não encontra um sentido unificador do presente ou de si mesmo. Nesse sentido, a primeira leitura do livro talvez prepare o leitor, tanto estruturalmente quanto tematicamente, para a suposta disjunção da segunda. O Oliveira da segunda leitura, ao contrário do primeiro, reflete não só sobre o sofrimento, mas sobre a capacidade de cura da arte e, em particular, da linguagem. Ou seja, o Oliveira da segunda leitura revela-se como um homem em busca — e, se alguém procura por algo, em algum nível existe a expectativa verdadeira de que, algum dia, não importa o quão distante ele esteja, se encontre o que está sendo procurado. O enfoque metafísico e metalinguístico da segunda leitura é favorecido pelo enigmático Morelli, personagem de filosofias similares às de Oliveira e Cortázar. Escritor, ele defende um novo tipo de arte literária, uma “narrativa que atuará como coagulante de experiências”, que criará, por sua vez, um novo tipo de homem ao criar um novo tipo de leitor, tornando-o “um cúmplice”, um companheiro de viagem.” Assim, o metafísico torna-se metaficcional, e o tipo de romance que o personagem defende é aquele que está nas mãos do leitor. Na superfície, portanto, o livro pode até parecer pessimista, mas, ainda que elenque frustrações e exaspere desesperos, a busca constante lida em qualquer versão denota a existência de uma esperança incorrigível.

Mas Cortázar, no fim, é um artista que prefere a provocação ao pronunciamento, então a busca de Oliveira na segunda leitura permanece sem solução. Melhor assim. Melhor ficar dentro do labirinto. O jogo da amarelinha não oferece conclusões definitivas ou delineadoras, apenas possibilidades.

Tudo em O jogo da amarelinha é um duplo fantasmagórico de si mesmo: cidades, personagens, culturas, até o próprio autor. Mas, na América Latina, a fantasia é história. A história como mudança não existe, há apenas a repetição compulsiva de atos rituais. Como Borges, Cortázar tenta pôr em movimento o tempo latino-americano através do fantástico. A Argentina, diz Cortázar, tem todo o futuro pela frente, e esta é a mais pobre das riquezas: eis a América Latina, em poucas palavras. Continuamente referidos às promessas do futuro, só poderemos responder com ficções se quisermos fixar o presente e sentir-nos vivos.

Carlos Fuentes, 1966

Publicado em 1963, o romance teve um impacto profundo. Além de suas inovações estruturais, também abordou questões políticas e sociais da época, lançando um olhar crítico sobre a realidade da América Latina. O livro foi publicado em um momento de agitação política da Argentina, que estava sob o regime autoritário do general Juan Domingo Perón (1895-1974). A atmosfera repressiva da época foi incorporada ao romance, e Cortázar, que era um crítico feroz do governo peronista, usou a literatura como uma forma de expressar o seu descontentamento. Com suas questões existenciais, filosóficas e culturais, O jogo da amarelinha refletiu a sensação de alienação e desilusão que muitos sentiam na época. A busca de Horacio Oliveira por sentido em sua vida é um reflexo da busca por sentido em um mundo em constante mudança que é, muitas vezes, absurdo e violento.

O livro ganhou um lugar de destaque no cânone literário latino-americano e tornou-se um marco da literatura contemporânea, não apenas na América Latina, mas em todo o mundo. 60 anos mais tarde, O jogo da amarelinha permanece uma obra essencial. Em um mundo onde o facismo parece sempre ter vez, é importante oferecer novas visões e extrapolar limites impostos explícita ou implicitamente. Ao abordar questões importantes e pulsantes de uma maneira nunca antes vista, Cortázar queria dar o poder na mão das pessoas e deixar que elas dominassem a própria narrativa, negando tanto o poder ditatorial de um autor quanto a passividade de um leitor. O jogo da amarelinha era um ato revolucionário, um grito altivo por mudança. 

Mudar a literatura e, quem sabe, mudar o mundo.

No mundo artístico, o debate sobre as diferenças entre plágio e influência é uma constante. A humanidade vem produzindo arte há um bom tempo, então é natural que fórmulas se repitam e semelhanças ocorram aqui e ali, seja em qual for a manifestação analisada.

Quando acusações de plágio acontecem, reputações são abaladas, questionamentos éticos surgem e a obra em questão é submetida a um escrutínio público. O processo é complexo para todas as partes envolvidas. Como, afinal, definir o que é e o que não é plágio? Há formatos que permitem uma inspeção mais objetiva (a progressão similar de acordes similares, as mesmas palavras usadas numa frase, etc.), mas, mesmo nesses casos, é preciso refletir sobre os limites tênues entre a cópia e a influência, além de pensar em como aplicar quaisquer que sejam os parâmetros de maneira equânime — se isso for, de fato, possível. E em um mundo como o nosso, onde as narrativas canônicas costumam vir de um mesmo lugar, seria ingenuidade pensar que é. 

Como um ótimo adendo à discussão, chegou ao Brasil, pela editora Fósforo, o livro A Mais Recôndita Memória dos Homens, do escritor senegalês Mohamed Mbougar Sarr. Vencedora do prestigiado prêmio Goncourt, a obra nos convida a ponderar sobre um punhado de questões fundamentais a partir de um ponto de vista histórico, que volta o nosso olhar para trás, mas que, ao mesmo tempo, nos empurra na direção de episódios recentes, como o infelizmente sempre atual silenciamento de vozes africanas e algumas acusações ocorridas no mundo da música.

O escritor senegalês Mohamed Mbougar Sarr | Foto: Richard Dumas para La Croix L’Hebdo.

Em 2018, na sempre movimentada e bela Paris, Diégane Latyr Faye, um jovem escritor do Senegal — autor cujo último romance, tido como um fracasso pelo protagonista, vendeu “setenta e nove exemplares nos primeiros dois meses” —, enfim encontra o livro que sempre procurou, O Labirinto do Inumano. Seu autor, o lendário T.C. Elimane, em resposta a uma escandalosa acusação de plágio que mobilizou a comunidade literária francesa dos anos 1940, desapareceu do mapa. Fascinado pelo silêncio ao qual se resumiu a vida desse mito, Diégane — um claro alter ego do próprio Sarr — inicia então seu percurso para desvendar os enigmas por trás do desaparecido, e tão promissor, autor, que chegou a ser chamado de “Rimbaud negro” em uma resenha pelo jornal L’Humanité

É importante dizer que, muito embora seja fictício (assim como a resenha do L’Humanité), Elimane é baseado em um autor real: o malinês Yambo Ouloguem (1940-2017), que em 1968 ganhou o prêmio Renaudot com Le devoir de violence (O dever de violência) e, depois de acusações de plágio, sumiu sem deixar vestígios. Por que isso é importante? Ouloguem era um escritor negro, de Mali, e foi escorraçado não só dos círculos acadêmicos da França, mas da vida social como um todo. Esse caso real respinga pelas páginas de Sarr e tudo que seu livro tem a dizer sobre muitas das problemáticas do mundo da cultura.

Capa de Flávia Castanheira e Zansky.

Num labirinto literário e geográfico empolgante que não deixa escapar nenhuma oportunidade de crítica, o autor de Senegal rebate cada fascínio com uma ressalva e cada pé atrás com um encantamento. É um equilíbrio que se deixa pesar para cá e para lá pela gravidade da História, sem que a verborragia se sobreponha ao prazer da narrativa.  

Mohamed Mbougar Sarr mergulha nas profundezas da memória coletiva africana, explorando temas como identidade, história, colonialismo e resistência. O laureado romance oferece uma perspectiva única e poética sobre a experiência africana, trazendo à tona narrativas e vozes que muitas vezes foram marginalizadas e silenciadas (ou até mesmo apagadas). Os ecos de Roberto Bolaño, que também salpicou suas visões de mundo escrevendo sobre perambulações obstinadas em busca de um mistério literário, são claros. Eles são, inclusive, explicitados na epígrafe de A Mais Recôndita Memória dos Homens.

“Por algum tempo, a Crítica acompanha a Obra, depois a Crítica se desvanece e são os leitores que a acompanham. A viagem pode ser comprida ou curta. Depois os leitores morrem um a um, e a Obra segue sozinha, muito embora outra Crítica e outros Leitores pouco a pouco se ajustem à sua singradura. (…) E um dia a Obra morre, como morrem todas as coisas, como se extinguirão o Sol e a Terra, o Sistema Solar e a Galáxia e a mais recôndita memória dos homens.”

Trecho da epígrafe de A Mais Recôndita Memória dos Homens, extraída de Os Detetives Selvagens, de Roberto Bolaño

O enredo do livro se desenrola em linhas temporais distintas, entrelaçadas com um liga-pontos novelesco de saltar aos olhos: para além da contemporaneidade que acompanha um jovem africano em busca de sua própria voz e de respostas indigestas sobre o mercado literário, a Argentina pós-guerra também serve de cenário, assim como a região do Sahel, onde um soldado africano se vê envolvido em uma trama que envolve o exército colonial francês. Esse tipo de costura, na verdade, incute no leitor uma noção praticamente palpável de que o passado e o presente são tão somente nomes diferentes dados para as mesmas realidades — e isso vale para a Europa, para a América Latina, para a África. Politicamente falando (quiçá, emocionalmente também), há muita força numa contraposição bem feita de épocas, ainda mais quando esta se sustenta sobre bases que fogem das exposições batidas, por vezes desnecessariamente complexas, com as quais estamos acostumados. 

Ao incorporar elementos mágicos e mitológicos que alcançam decibéis ainda mais altos por terem o frescor da especificidade, Sarr desafia as convenções narrativas tradicionais de um cânone que, sabemos, é tanto elitista quanto branco, masculinizado e eurocentrista, conseguindo assim explorar as profundezas da psique africana e trazer à tona uma história coletiva complexa e rica. É por essas e outras que A Mais Recôndita Memória dos Homens é uma obra que se conhece e se assume profundamente, sem demonstrar qualquer medo de colocar o dedo em muitas feridas, nem mesmo que isso signifique críticas duras contra o mundo da literatura francófona, que, curiosamente, abraçou a obra.

Não foi um acaso que o trabalho de Sarr ganhou o prestigiado prêmio Goncourt de 2021, chancelando mundialmente um autor senegalês de 31 anos (hoje, com 33 anos) e, pela primeira vez em mais de cem anos de história, fazendo isso com alguém da África subsaariana. É um dos prêmios literários mais importantes do mundo, o que torna tudo ainda mais instigante e digno de comemoração.

Edmond Goncourt (1822-1896), que dá nome à premiação, foi um escritor e crítico literário francês. O primeiro Prêmio Goncourt foi concedido, em 1903 — sete anos após a morte de Edmond. Desde então se tornou um dos prêmios literários mais prestigiados da França e, consequentemente, do mundo, sendo conhecido por impulsionar a carreira de muitos escritores. O Goncourt é concedido anualmente, sempre no início de novembro. O vencedor recebe um prêmio em dinheiro e uma grande quantidade de atenção da mídia, o que muitas vezes leva a um aumento significativo nas vendas e na visibilidade da obra premiada. 

Ao longo dos anos, o Prêmio Goncourt tem sido um importante indicador de tendências literárias e tem ajudado a impulsionar muitas carreiras notáveis na França. A história do prêmio é marcada por uma lista de vencedores que inclui alguns dos maiores nomes da literatura francesa e mundial — sem exageros. Dentre os laureados, pode-se mencionar Marcel Proust (1871-1922), que recebeu o prêmio em 1919 por Em Busca do Tempo Perdido, Albert Camus (1913-1960), premiado em 1957 por A Queda, e Marguerite Duras (1914-1996), agraciada em 1984 por O Amante.

Marguerite Duras (1914-1996)

Ou seja, ter Mohamed Mbougar Sarr nesse hall impressionante de autores e autoras representa um marco significativo na história do prêmio e da literatura mundial, quebrando barreiras e ampliando a diversidade de vozes reconhecidas e valorizadas. A vitória de Sarr não apenas colocou a África Subsaariana no centro do cenário literário mundial, mas também serviu como um lembrete poderoso de que a literatura é um espaço onde as vozes marginalizadas podem e devem ser ouvidas. Essa conquista histórica abre caminho para que mais autores africanos e de outras partes do mundo tenham suas histórias compartilhadas e celebradas, contribuindo para a diversidade e o enriquecimento do panorama literário global.

É de se pensar também, como o próprio Sarr faz, que receber esse convite pomposo para fazer parte de um clube tão restrito pode ter lá suas razões escusas. Mantenha seus amigos próximos e seus inimigos mais próximos ainda, talvez? “Não sei exatamente como interpretar”, disse ele em uma entrevista. “Isso significa que o senso de humor deles é melhor do que se acredita? É uma forma de me silenciar ou de me endossar com o prêmio? Mas, no fim, eu realmente espero que a premiação tenha acontecido porque este é, acima de tudo, um bom livro.”

Em outra entrevista, endereçou o tema do plágio, que, aliás, é uma das principais questões do romance. Onde está a linha que demarca o que é plágio e o que é influência, colagem ou o que os acadêmicos chamam de intertextualidade? Sarr afirma que um dos critérios para definir isso é a cor da pele.

“Quando você escreve, diante de toda a biblioteca escrita antes de você pelos grandes autores, você se pergunta: ‘O que eu posso trazer de novo?’ A resposta é simples: ‘Nada.’” Segundo ele, é possível reinventar narrativas por meio de seu estilo pessoal, e isso pode gerar bons livros, mas dificilmente se escapará de tudo o que o cânone já produziu. “E o ponto é, quando você pertence a essa tradição literária, pode brincar com ela, mas quando você é de outro lugar, será que pode fazer isso sem ser acusado de plágio?”

Retrato de Mohamed Mbougar Sarr, em Besançon | Foto de Sophie Bassouls/Sygma via Getty Images

A Mais Recôndita Memória dos Homens faz uma acusação veemente à comunidade literária francesa, e do resto do mundo, dizendo com dedo em riste que narrativas que não pertencem à elite branca vêm sendo roubadas sem quaisquer tipos de consequências. As repercussões, muito pelo contrário, costumam ser positivas, enaltecendo a pessoa plagiadora por uma suposta criatividade. Quem irá questionar aqueles que detêm poder, aqueles que dominam a narrativa padrão? É por isso que Sarr afirma categoricamente que a cor da pele com certeza é um dos critérios que definem o plágio ou o não-plágio. É como o trecho de uma resenha do jornalista fictício Auguste-Raymond Lamiel (um dos muitas contidos no livro), escrevendo para o L’Humanité, que diz: “Toda a história da literatura não é a história de um grande plágio? Que seria de Montaigne sem Plutarco? La Fontaine sem Esopo? Molière sem Plauto? Corneille sem Guillén de Castro?”

A arte é um território fértil para a inspiração mútua, e é comum que obras sejam influenciadas por outras. No entanto, a linha que separa a influência legítima do plágio é tênue e muitas vezes subjetiva. Mohamed Mbougar Sarr, em sua obra, levanta essa discussão ao explorar a mais recôndita memória dos homens, em que a criação artística é enraizada em uma rede de influências que se entrelaçam ao longo do tempo.

Só quero escrever um bom livro, Stan, um livro que me dispense de fazer outros, que me livre da literatura, um livro como O labirinto do inumano, entende?

— Entendo, sim. Mas vocês, escritores e intelectuais africanos, bem que poderiam desconfiar de certos reconhecimentos. Mais dia, menos dia, a fim de apaziguar sua consciência, a França burguesa vai consagrar um de vocês”.

— Trecho do diálogo de A Mais Recôndita Memória dos Homens 

No final, é bem possível que os Les Dix do Goncourt, como são conhecidos os votantes do prêmio, perpetradores de uma forte herança, tenham tido o bom senso de aceitar que seus herdeiros, ao se apropriarem dessa herança pela qual eles vivem, podem tanto renunciar a ela quanto zombar dela.

Como toda grande obra e autor, nem Mohamed Mbougar Sarr nem A Mais Recôndita Memória dos Homens podem ser facilmente classificadas. E, depois do Goncourt, o vasto labirinto de criador e criatura parece ter ficado ainda mais complexo. Por anos a fio, essas paredes vão mudar ora para lá ora para cá. Ainda assim, seguirão despertando interesse, levando a caminhos que continuarão sendo desvendados. Justiça foi feita.

Imagine o espírito de Machado de Assis, um tanto confuso, esbarrando em discussões ensandecidas que, à luz do presente, problematizam um punhado de obras canônicas (como a dele próprio), sobretudo no que diz respeito à linguagem. Agora coloque ao lado de Machado o espírito de um José de Alencar igualmente aturdido — porém mais desgostoso —, olhando tudo com pavor e fascínio, como um acidente de carro do qual, mesmo enquanto uma entidade vinda de um plano superior, não se consegue tirar os olhos. Para finalizar o quadro com pinceladas sorridentes, pense num campus do Rio de Janeiro cheio de alunos e alunas em entusiásticos palavrórios, esbravejando opiniões e pronomes inclusivos. 

Esse é “A Vida Futura“, o bem-humorado e agradavelmente rocambolesco novo romance de Sérgio Rodrigues.  

O escritor e jornalista Sérgio Rodrigues. Foto: Bel Pedrosa

Autor de outros títulos como “O Drible” (2013), que abocanhou prêmios importantes há quase uma década, Rodrigues olha com bom espírito para as questões linguísticas hoje tão em voga — “Ser ou não ser?”, se perguntava Hamlet, no reino podre da Dinamarca; “Escrever ou não escrever todxs/todes?”, nos perguntamos nós, no reino esfumaçado da atualidade. Eis a grande questão, talvez uma das maiores dos nossos tempos.

Tudo começa com uma professora, dona orgulhosa de um projeto chamado “Luta de clássicos”, que visa a reformulação de certas obras clássicas, em especial as que costumam figurar nas listas de leitura das escolas, com o intuito da simplificação delas em prol da acessibilidade. O grupo de revisores, no entanto, parece pender com mais força para o lado da formatação moral de tais escritos. Aviltados, Machado de Assis e José de Alencar decidem baixar em solos cariocas na forma de espíritos — tudo para pegar no pé da docente. No meio disso, somos apresentados à Mar, personagem negra e não-binária que expressa opiniões fortes sobre as reverberações da literatura machadiana aos ouvidos da contemporaneidade. 

Para tratar do assunto espinhoso de forma inventiva, à guisa de um distanciamento das páginas vigentes da história, “A Vida Futura” tem o próprio Machado como narrador. Dessa opção pela primeira-pessoa, percebe-se de cara a proposta não-panfletária de Rodrigues, que se propõe a abrir um diálogo entre épocas se esquivando de antagonismos — sem fugir, contudo, de questões hoje centrais, como a negritude do autor. Ao dar o bastão de fala a Assis, coloca-se em perspectiva tudo aquilo que é feito de sua imagem no presente, seja pelo vozerio da militância política ou de qualquer fórum que corra pelas beiradas do que está escrito em seus livros.    

Um ponto marcante e relevante do romance recém-lançado é o retrato, construído a partir de uma situação sobrenatural um tanto quanto crível, do quão picaresco pode ser ficarmos ultra obcecados com algo e levarmos a contenda aos seus extremos, a ponto de sentirmos a necessidade de canetar obras canônicas, tamanho é o ensimesmamento com a nossa época e valores. A reavaliação de muito do que foi, e ainda é, dito, configura um passo significativo para um desprendimento benéfico do que tem de danoso no passado, mas aplicá-la a determinadas circunstâncias talvez não adicione muito ao pleito. 

É comum ouvirmos ou lermos por aí o bordão “a língua é um organismo vivo que está em constante transformação”. Seguindo essa linha, a comunicação sempre se dá dentro de um contexto, da época em que ela está inserida, e vai evoluindo conforme às mudanças dos panoramas das sociedades atuais. Novos momentos sociais, reparações históricas, valorizações atrasadas de culturas antes negligenciadas, acolhimento de termos que nasceram pejorativos… São muitos os porquês que acabam por alterar a maneira como falamos — ainda bem. Tendo em vista a história que nos precedeu, no Brasil e em qualquer lugar, melhor que seja assim. 

Machado de Assis

No registro informal, essas adaptações se naturalizam num tiro mais ágil; ao passo que, na norma culta, o processo se dá em marcha lenta e, muitas vezes, nem chega a ver a luz do dia. Claro que não devemos negar sua importância, mas que se tenha em mente que, muito embora dê certa estabilidade à língua e continue sendo um recurso de legitimação de discurso, ela reflete o mundo em que os mais privilegiados ditam as regras de acordo com o próprio umbigo.  

Rafael Julião, no texto Cuidado com a língua, para a edição Amarello Fagulha, diz com propriedade: “Os preconceitos linguísticos não são inerentes aos fenômenos linguísticos; eles são fruto de preconceitos culturais que, por sua vez, estão amparados em preconceitos sociais.”  

Ou seja, mais do que nunca, é necessário que se tenha dimensão e controle sobre o que falamos ou escrevemos. Cada vez mais, vem-se explicitando a origem problemática de muitas expressões, termos e adjetivos que moravam na ponta da nossa língua. Exemplo disso é o caso recente da cantora Beyoncé, cujo sétimo álbum, “Renaissance”, mal saiu e já teve letras trocadas duas vezes — uma delas, por ter sido acusada de capacitismo pelo termo spaz (de espasmo), o mesmo ocorrido com Lizzo, outra diva pop, há alguns meses. 

Caso Machado de Assis descesse do céu dos escritores para nos fazer uma visita, talvez tomasse um belo dum susto com a comunicação mais célere, empática e feroz de agora. José de Alencar, então, podia muito bem desejar uma segunda morte. As ponderações sobre isso estão bem representadas em “A Vida Futura”, mas, recorrendo novamente a Julião, “o fato é que a língua é sintoma e prenúncio, consequência e causa, acompanha as tensões sociais, traz dela questões novas e projeta futuros possíveis.”     

Trocando em miúdos — assim caminha a humanidade e, consequentemente, assim caminha a linguagem.