Ilha Grande (2020), de Luiz Zerbini. Publicado em Luiz Zerbini: Sábados, domingos e feriados (Editora Cobogó).

“O agudo precisa de espaço. É preciso abrir o caminho para aquilo que exige um pouco mais de nossa voz. Abra bem a boca e deixe entrar o ar. Se acostume com esse outro som que sai de dentro de você. Expanda o peito para sentir. Não tema a força da nota, apenas se entregue a ela“ parecia interpretação de psicanalista, mas era, na verdade, um conselho de Roberta, a professora de canto.

Após 20 anos, a mulher decidiu retomar as aulas de canto. Foi preciso ganhar um mapa astral da prima de aniversário para que ela se lembrasse desse assunto.

“O que você faz de hobby?”, perguntou a  astróloga. “Seu ascendente precisa que você exercite seus hobbies”.

Achou aquilo uma bobagem, pois, no fundo, não acreditava em nada, e ao mesmo tempo acreditava em tudo. Mas a tal frase ficou rodando na cabeça da mulher como aqueles sabiás laranjeiras, que começam a cantar às três da madrugada no início da primavera.

Havia respondido à astróloga que seu hobby era fazer caminhadas. Mas ouviu como resposta: “Isso não é suficiente”. Então decidiu que era hora de voltar a cantar. Algo que tinha começado a fazer aos 19 anos, numa escola de bairro, quando saía da faculdade. Foi o que  a salvou de uma depressão, após um término de um namoro. Gostava de cantar a música Paralelas, de Belchior. “No Corcovado, quem abre os braços sou eu. Copacabana, essa semana o mar sou eu. Como é perversa a juventude do meu coração, que só entende o que é cruel, o que é paixão .”

Agora ela estava adulta, seu coração era definitivamente menos perverso com ela mesma e menos cruel. Além disso, tinha mercado para fazer, cartolina de filho para comprar, aniversário de criança para buscar, festa de tia avó para prestigiar. Mas não, ela não tinha um hobby.

Então se lembrou de como um dia gostou de cantar, procurou uma escola perto de casa, para não atrapalhar nem o trabalho, nem o almoço dos filhos.

Na primeira aula, a professora perguntou o que ela gostava de cantar. Sem pensar muito, respondeu: Joni Mitchell. E que sabia a letra de cor, como dizem os gregos, pelas cordas do coração. A professora achou ousada a nova aluna, mas topou tocar no piano para a A case of you: “I could drink a case of you and still be on my feet. I would still be on my feet”.

Quando reencontrou Joni em sua voz, ainda que fosse uma imitação barata, lembrou-se da moça que saía correndo da faculdade para as aulas de canto, ali perto da Rua Maria Antônia, lugar onde um dia, seu pai também foi jovem.

Na graduação, um professor costumava dizer que, quando criança, dormimos com os braços para cima, livres e entregues. É conforme apanhamos do destino, ao longo da vida, que vamos dormindo encolhidos, cada vez mais. Foi disso que se lembrou quando abriu o peito, dando espaço para o agudo. Ao cantar, não estava apenas dando espaço para a voz, mas para outra versão de si mesma – outras facetas que andavam perdidas, entre ondas interestelares do tempo e do espaço.

É preciso abrir o caminho e ressuscitar aquela que já fomos e que ainda habita dentro de nós. Certa vez, numa aula sobre Roma, ouviu que a cidade era uma mina de si mesma. Ou seja, a sua história sempre pode ser reencontrada dentro de si, basta cavar .

Somos minas de nós mesmos, não podemos desistir daquilo que um dia nos fez brilhar os olhos. Basta cavar.

Bendita astróloga. Bendita a Roberta. Salve Joni Mitchel.

*Dedico esse texto a Roberta, que nesse próximo mês estará dando a luz. Obrigada por me devolver minha majestade o sabiá.

Obra de Aislan Pankararu, capa da edição Amarello Futuro Ancestral.

Não sei exatamente quando os insetos chegaram, mas lembro do nó que surgiu enlaçando meu peito, minha boca e meus ouvidos. Os insetos faziam muito barulho e parei de escutar minha voz. Eu já não era muito de falar. Não por falta do que dizer, mas por excesso de palavras na cabeça e de amor no coração. “Não tem como não te amar”, me diziam. E eu respondia, satisfeita, sentindo o cansaço nos olhos. 

 Estudei numa escola só de meninas, muito católica e coordenada por freiras que tinham cabelos curtíssimos. “Tudo o que é feito com amor tem sentido de eternidade”. Essa frase, que nunca saiu de dentro de mim, foi dita por uma freira de cabelos cacheados, que usava óculos de grau com lentes Transitions e tinha uma alegria honesta no sorriso. Ela falava de amor como quem respirava. Achei aquilo bonito, porque desde pequena me sentia sufocada e entupida. Respirar era amar? Esse dito se instalou em mim, revirou minha linguagem como um vírus, e a sensação de areia nos olhos aumentou.

Uma das minhas atividades preferidas é gritar, e esse também era o hobby de quase todas as meninas na escola. Conseguia encontrar todas com o olhar e via os insetos instalados dentro das suas bocas, cada uma com seu motivo. Gostava de olhar para as garotas, sentir toda a força, a raiva, a alegria, o desespero, o alívio, a dor delas. A gente inventava desculpa para gritar na hora do recreio, quando era permitido se rebelar. As freiras estavam ocupadas com alguma danação que as meninas faziam: puxões de cabelo, menstruação surpresa ou gravidez surpresa, uniformes customizados com decote, desobediência, meninas que se negavam a fazer a oração, rebeldias em geral. Ainda consigo escutar as freiras com vozes agudas cantando alto na oração, às sete horas da manhã: “Espírito, espírito”.

Desde os meus oito anos de idade eu carregava comigo duas bananas, papéis cheios de anotações, um terço e um livro. Assim eu me sentia preparada para o que estivesse por vir. Sentia medo e esperança de que algo mudasse completamente o rumo da minha vida. O alarme tocou e me fez voltar para a realidade. 20h59. A caixinha de som que tocava a mesma música há 40 minutos denunciava a bateria fraca. “Não, não posso parar, se eu paro, eu penso, e se eu penso, eu choro.” A voz dramática de Moacyr Franco saía rouca entre os livros da minha estante e ocupava todo o apartamento de 36m2. Fui tomada pela angústia, e os insetos se agitaram: à meia-noite as inscrições do concurso iriam se encerrar. 

Pensei na vida tranquila que teria se passasse no concurso e no emprego em que eu estava, em que o trabalho consistia em fazer contas para que nenhum dos meus chefes tivesse surpresas financeiras. Eu tinha todo o controle do que saía, do que entrava, o que comprar, como comprar. O meu chefe me chamava na sala dele e quase sempre começava a comer uma barra de cereal com tanto chocolate que me deixava enjoada. Ele dizia, com a boca cheia de chocolate e cereais, que só confiava em mim para cuidar dele e do dinheiro dele: “Você será minha eterna cuidadora”. Cuidado era outro nome que eu dava para o amor, e me envolvia nele como uma detetive que fareja vidas que precisam de cuidado. 

Eu me sentia um grande inseto rodeando a vida das pessoas. E eu estava cheia delas, que pediam tudo de mim enquanto eu oferecia tudo que tinha. Me ocupava das pessoas, queria satisfazê-las, amá-las, servi-las. Queria descobrir qual era o inseto que as pinicava, fazer um antídoto com as próprias mãos. Olhava os movimentos das pessoas para tentar antecipar tudo. É disso que você precisa? Você precisa de ajuda? Como posso ajudar? Queria desvendar seus problemas. Vivia cheia de soluções e certezas. Vivia entupida. Queria solucionar a vida antes do amanhecer, e todo dia acordava assustada às sete horas da manhã. “Espírito, espírito, que desce como fogo”. A música tomou meu pensamento, e eu sabia que me esqueceria de tudo. Comecei a fumar o cigarro que tinha comprado, apesar de não fumar. Eu precisava tragar alguma coisa na tentativa de matar os insetos dentro de mim. Não consegui. Nunca consegui fumar. Até hoje consigo ouvir minha mãe gritando meu nome com um cansaço tremendo na voz. Eu morria de medo desse cansaço, porque achava que algum dia ela diria que estava cansada de mim. “Se comporte, minha filha, seja uma boa menina”, ela me dizia. 

Sentia falta de gritar e de ser rebelde; isso me ajudava a tirar o peso do peito. Fiquei viciada em parques de diversões, e reservava o último final de semana do mês para gritar em todos os brinquedos. Foi a forma que encontrei de botar os insetos para fora. Havia algo na minha voz desesperada na montanha-russa que abria espaço para eles saírem. Era o único lugar em que me permitia gritar. “Tudo o que é feito com amor tem sentido de eternidade.” Tinha medo da freira com lentes Transitions aparecer e falar sobre amor. Todos os dias eu me lembrava de esquecer e seguia em frente com o desprazer colado no meu corpo. Estava trancada junto com os insetos, que faziam um barulho estrondoso. Tinha medo de falar e meus insetos saírem um por um, revelando tudo o que sabiam sobre mim. Aprendi a sorrir e a falar somente o necessário. Eu era prisioneira e aprisionava os insetos. Vítima e algoz. Me sentia um caquinho de dor que passava pelo mundo. Acho que foram tantas as palavras que me magoaram que acabei me afogando dentro de um abismo sem fim, como se não pudesse me manifestar toda vez que alguém dizia algo cortante. Eu me entupi de tantas vidas que vivia sem sequer saber da minha. Tinha medo de nunca mais chorar. 

21h33. Chegou mensagem de Camila, minha melhor amiga. “Sua vaca, se inscreva nessa merda! Que se fodam os outros, que se fodam os outros”. Camila é uma produtora de eventos renomada, conhece muitos artistas e é a presença mais querida e solicitada em qualquer festa. Nem parece mais a menina desengonçada que eu conheci há 15 anos no colégio das freiras; agora é loira, alta e ostenta um nariz enorme, que a deixa ainda mais poderosa. Eu tinha muita inveja de Camila, porque ela falava alto e não tinha medo de ser uma menina má. Seus insetos saíam em forma de palavrão. 

Fui moldando meus silêncios como as massinhas de modelar que usava na escola, enquanto minha melhor amiga continuou na missão de gritar e se rebelar. Camila estava certa: eu adorava fazer contas, mas não só as de matemática, eu gostava também de calcular cada passo que daria, quanto tinha na minha conta bancária e como as pessoas me veriam — sempre sorridente, controlada, mesmo que milhões de insetos me corroessem por dentro. 21h46. Mais uma mensagem de Camila, dessa vez um áudio que denunciava sua voz bêbada. “Sua égua, não esquece de se inscrever, caralho! Já preencheu a autodeclaração?” 

O documento estava aberto há dias, mas os insetos haviam dominado a minha mão desde o dia em que o havia lido. “Como você se autodeclara? Quais seus traços?” Que perturbação. 22h. Os insetos que estavam dentro de mim saíram para fora da minha pele. Eles aumentaram de tamanho, não eram mais os mesmos insetinhos, agora pinicavam. Levantei desesperada, tomei o resto de vinho que tinha na taça. Como sempre, decidi limpar todos os cantos da casa com água sanitária. Eu tinha a sensação de que conseguiria matar os insetos com o cheiro ruim que ficava. Lembrei de todas as vidas que entraram em mim, como se eu tivesse uma fenda que as atraía. Vou abrindo espaço e as vidas-insetos vão entrando, fazendo forma dentro de mim. O peito pesou ainda mais. Meu coração pareceu ter aumentado de tamanho, meu corpo se agitou. Eu estava infartando? 

22h46. A caixinha de som ainda tocava a mesma música. “Eu canto, eu choro e eu grito e o mundo, tão bonito, não consegue me entender”. Meu pai adorava escutar essa música. Ele dançava e dramatizava enquanto cantava, e eu ria, era uma criança apaixonada vendo seu pai se divertir. Isso fez com que eu nunca prestasse muita atenção na letra; é como se as palavras fossem substituídas por meu pai cantando no seu microfone imaginário. Nos momentos em que me sentia entupida, imitava meu pai e cantava junto com ele. “Não, não posso parar, se eu paro, eu penso, se eu penso…” Caí no chão sem perceber. O celular tocava, mas eu não conseguia chegar até ele. Olhei para as plantas da minha casa como quem pede aconchego e cuidado. As plantas foram a única coisa que decidi levar comigo.

O meu exercício diário era esquecer de mim para que as freiras com cabelos curtíssimos não me punissem, para que a lentes Transitions não me cobrassem cuidado e amor. Todos os dias lembrava de esquecer. Mas as plantas ficaram. A única lembrança que trouxe para a grande e assustadora metrópole em que morava. Eu estava infartando? Morrer era assim? “Não, não posso parar.” Seria a primeira mulher que morreria de amor. “Espírito, espírito, que desce como fogo, vem como em pentecostes e enche-me de novo.” O coração aumentava a cada memória que me invadia, dilacerava, cortava. Os insetos gritavam e se rebelavam.

Não queria mais nada. Fui inundada pelo descontrole, pelo surto festivo, pela vida, pela morte. E se eu quiser o meu querer? Quanto mais tentava esquecer e sufocar os insetos, mais o coração aumentava. Uma lembrança nova me invadiu, e enxerguei com meus olhos pequenos minha mãe dançando e cantando na sala junto com Emílio Santiago: “Mas o que é a vida, afinal?”.

Comecei a tossir de forma descontrolada. Vi todos os insetos saindo de mim. Eu estava infartando? “Espírito, espírito… E enche-me de novo.” Me senti desgovernada, desequilibrada e louca. “Seja boazinha.” As plantas se levantaram e começaram a arrumar a casa. Elas tinham olhos profundos, que iluminavam a sala inteira, e andavam devagar, observando a casa, ao mesmo tempo em que eram ágeis para fazer o necessário. Elas começaram a preparar um chá com suas folhas enquanto conversavam entre si e sobre o corpo caído que tinha sido esquecido por mim. Quando tentei levantar, escutei a grandiosa gargalhada delas. Elas cresceram ainda mais, e me senti minúscula num apartamento cheio de plantas vivas e falantes. 

— Ela não quis lembrar de nada, agora tá aí, caída.

— Por isso que não sabe para onde ir, não sabe mais de onde veio — disse uma planta que tirava um ramo de si. 

Meu corpo estava imóvel, mas eu via tudo o que estava acontecendo. As plantas estavam cuidando do meu corpo-cabeça. As memórias me invadiram junto com as cantigas que minha avó cantava. Lembrei do pano que adornava sua cabeça e da sua gargalhada, que parecia infinita. Lembrei das histórias mirabolantes que meu pai contava, da sua cor e do seu coração.

As plantas continuavam me molhando com a água que elas produziram. Escutei as rezas de minha mãe e sua voz que dizia “estou aqui”. As memórias me invadiram tanto que resolvi chamá-las de insetos. Memórias que acreditava com todas as minhas forças que poderiam ser lavadas, deixadas de molho na água sanitária, enxugadas, deixadas para secar. Eu estava seca e também cheia de insetos. Eu estava entupida.

As plantas entoavam um canto junto com suas gargalhadas, dançavam na sala, junto do meu corpo-cabeça. Cheguei lá tomada pelos insetos. Não havia muito mais de mim além disso. Cheguei levada pelas vozes da memória que eu quis esquecer. Cheguei e fui tomada por tudo o que veio antes de mim. O espaço-tempo era uma invenção. Quando fiquei, me tornei viva. Senti todo o impacto que a água trouxe. Senti a vida, a água viva em mim. Me tornei água e nada sabia. Minhas certezas boiavam, meu corpo-cabeça já não era mais o mesmo. 

Acordei esvaziada e com os olhos cheios de lágrimas. Estava molhada, banhada de afeto e de lágrimas. Os insetos se foram e eu fiquei. 23h. No notebook havia uma mensagem. “Sua inscrição foi confirmada”. 

#47Futuro AncestralCultura

Sankofa: ideias ancestrais para a construção de futuros possíveis

por Priscila Carvalho

Nêgo Bispo
Ailton Krenak

As dinâmicas da sociedade capitalista nos trouxeram para um lugar de grande individualismo e distanciamento do ser. O valor de nossas existências tem sido diretamente relacionado ao quanto podemos produzir e consumir. 

Em paralelo, os reflexos da ação humana sobre o planeta nos impõem que recalculemos a rota. É dado que o modelo de humanidade projetado pelo paradigma colonial falhou e, caso não construamos novas possibilidades, caminhamos a passos largos para o fim.

Abdias do Nascimento definiu Sankofa como o ato de retornar ao passado, ressignificar o presente para construir o futuro. Partindo desta definição, entendemos a necessidade de revisitar ideias e trajetórias ancestrais para criar um novo amanhã.

Estas ideias ancestrais não ficaram no passado. Elas seguem existindo na vivência cotidiana de muitas comunidades, inclusive, muitas lideranças destas comunidades têm lutado para se fazer ouvir, como verdadeiros porta-vozes de uma terra que grita por socorro.

A fim de representar estas vozes, pretendo neste texto dialogar com as contribuições de Ailton Krenak e Antônio Bispo dos Santos, o mestre Nêgo Bispo.

 “Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui.”
Ailton Krenak, Futuro Ancestral

Ailton Krenak é uma das grandes lideranças na luta pelo direito dos povos indígenas, além de ser ambientalista e doutor honoris causa pela Universidade de Juiz de Fora.

Uma característica marcante de sua atuação é o diálogo com a sociedade não indígena. Um forte exemplo desse poder de comunicação foram as lives realizadas por ele durante o isolamento social decorrente da pandemia da Covid-19.

Em seu livro intitulado Futuro Ancestral, Krenak nos convida a questionar as práxis eurocêntricas que estruturam a nossa sociedade desde o período colonial. Em um dos textos que compõem o livro, ele diz: 

Para começar, o futuro não existe – nós o imaginamos. Dizer que alguma coisa vai acontecer no futuro não existe nada de nós, pois ele é uma ilusão.” 

Em contrapartida, o passado é ancestral, pois já esteve aqui. Neste ponto Krenak propõe o resgate dos valores dos nossos antepassados, valores que têm sido paulatinamente abandonados em prol da incerteza que é o futuro. Grande parte dessa incerteza se configura pela relação exploratória que o sistema capitalista estabelece com a natureza. 

Estamos diante de um modelo de existência em declínio. Já nos ronda a dúvida sobre o que será da humanidade diante das crises climáticas, sanitárias e sociais que se impõem como resposta à lógica de consumo pautada no esgotamento, até que se use a última gota de água, petróleo e suor visando o máximo lucro. Krenak sugere que a resposta está no hoje, mais especificamente, nas crianças. É essa a geração que questiona os padrões e interliga passado e futuro bebendo da fonte das contribuições dos que vieram antes para lutar pela chance de um porvir para si e para sua descendência. 

Krenak nos diz que o futuro é incerto, mas nos diz também que é nesse futuro que moram nossos sonhos, que são também os sonhos de nossos ancestrais.

“Um rio não deixa de ser um rio porque conflui com outro. Ao contrário: ele passa a ser ele mesmo e outros rios, ele se fortalece.”
Antônio Bispo dos Santos, Contracolonização e confluência

Antônio Bispo dos Santos, conhecido também como Nêgo Bispo, é um relator de pensamentos e saberes e líder quilombola que constrói sua trajetória de vida e sua produção intelectual a partir do modelo de organização dos quilombos.

Nas comunidades afro-pindorâmicas, como o autor nomeia os povos de origem africana e indígena, um dos principais valores a ser considerado é a oralidade. Nêgo Bispo se coloca como um tradutor da oralidade para a escrita e da escrita para a oralidade, ampliando assim as possibilidades de articulação e troca de conhecimentos quilombolas com o ambiente acadêmico. 

Em 2007, lança seu primeiro livro, Quilombos, modos e significados, reeditado em 2015 com novo título, Colonização, Quilombos: modos e significações. O principal conceito desenvolvido nesta obra é a ideia da contracolonização. Contracolonizar é se colocar em oposição aos moldes de existência euroreferenciados que empurram todos os biomas e espécies, inclusive a humana, para o caminho da extinção.

Ele diz:

Quando completei dez anos, comecei a adestrar bois. Foi assim que aprendi que adestrar e colonizar são a mesma coisa. Tanto o adestrador quanto o colonizador começam por desterritorializar o ente atacado quebrando-lhe a identidade, tirando-o de sua cosmologia, distanciando-se de seus sagrados, impondo-lhe novos modos de vida e colocando-lhe outro nome. O processo de denominação é uma tentativa de apagamento de uma memória para que outra possa ser composta.

Esse “adestramento” nos distanciou das tecnologias desenvolvidas por nossos antepassados. Desaprendemos o fazer orgânico para aprender o sintético. 

Segundo Bispo, constituir com a terra uma relação pautada na biointeração pode ser um dos caminhos possíveis para o resgate destes saberes orgânicos que foram subalternizados. Se observarmos estas proposições com olhos atentos, perceberemos a sua validação através de práticas já estabelecidas e que funcionam há séculos em espaços como quilombos, aldeias e terreiros, exemplos de comunidades autossuficientes, colaborativas e voltadas para a produção de prosperidade, não de escassez, onde o que tem valor é ser, não obter.

A contracolonização pensada por Nêgo Bispo se dá também através do conceito de confluência. O autor costuma iniciar suas falas com a frase “somos começo, meio e começo”. Essa circularidade que se assemelha muito com a filosofia ubuntu, dos povos Bantu, estabelece uma existência coletiva onde se é com e a partir de quem veio antes e de quem ainda virá, ou como o mestre costuma dizer, geração avó, geração filha e geração neta. Estar em sintonia com as nossas raízes nos fortalece e impulsiona, como as águas de um rio, que em confluência com outro não deixa de ser ele mesmo, mas, através da troca, se engrandece e engrandece também os outros com os quais flui. 

Plantar e cultivar sementes para colher bons frutos — a educação como base para a perpetuação dos saberes ancestrais

Entendemos a partir das ideias de Ailton Krenak e Nêgo Bispo que as nossas melhores chances de construir futuros possíveis para a humanidade estão em manter vivas as sementes ancestrais através das novas gerações.

É comum em muitas culturas africanas e indígenas que os mais novos se sentem com os mais velhos para aprender oralmente. Mas, como expandir o alcance destas trocas? A resposta pode estar na escola. 

A grande virada nesse jogo envolve a construção de uma educação que se comprometa a romper com a narrativa dominante e que se abra para fomentar em nossas crianças uma consciência de coletividade, e esse entendimento só se torna possível ao apresentar para estas crianças cosmologias plurais.

Gostaria de referir aqui dois exemplos de instituições de ensino que têm se comprometido a cultivar saberes ancestrais em suas crianças. São elas a Escolinha Maria Felipa e a Escola Dandara de Palmares.

A Escola Afro-brasileira Maria Felipa funciona no Bairro do Rio Vermelho, na cidade de Salvador, Bahia. A instituição é privada, logo, não recebe nenhum apoio do Estado para manter suas atividades.

O projeto desta escola foi idealizado em 2017 por jovens negros educadores, que visavam para seus filhos um espaço educacional centrado nos valores civilizatórios africanos e ameríndios. No entendimento destes educadores, é preciso retornar às origens ancestrais para construir novas formas de existência possíveis na diáspora. 

A Escolinha Maria Felipa reforça a importância da valorização de referências negras. Os idealizadores da instituição avocam para si esse princípio já ao nomear a instituição e dar visibilidade a esta grande mulher negra, estrategista, quilombola que foi silenciada pela história dita oficial. Para além de Maria Felipa, o projeto político-pedagógico da escola apresenta aos seus alunos referências diversas de lideranças negras e indígenas, que muito provavelmente eles não acessariam em instituições não comprometidas com uma educação decolonial. 

Já a Escola Comunitária Quilombista Dandara de Palmares está localizada no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. É uma organização autônoma gerida por moradores da favela que não recebe nenhum auxílio governamental ou privado. A escola surgiu com o objetivo de oferecer às crianças de forma lúdica ensinamentos da sua ancestralidade, territorialidade e cultura. A ideia-base é que as crianças desenvolvam seu potencial humano, trazendo a devolutiva para sua comunidade. 

Uma das representações do adinkra, Sankofa, é o pássaro que se volta para trás e busca algo para trazer consigo para este tempo e espaço. Pensar ideias ancestrais é fazer o movimento de resgate. Quais são as práticas que nossos avós nos ensinaram e que podem se perder se não ensinarmos aos nossos filhos? A forma como nossos antepassados lidavam com o cultivo, com os animais, com as folhas, com a saúde através de tecnologias de cura seculares. Trago estas provocações para que cada um de nós exerça este movimento de retorno. Olhe para seu mais velho, é nele que mora o futuro.

Desembarque de Pedro Alvares Cabral em Porto Seguro em 1500, de Oscar Pereira da Silva (1922).

“É preciso reflorestar o imaginário”
— Nêgo Bispo

Agô a Exú, para começar e para dar continuidade (meio) peço a bênção dos que estão acordados e aos que ainda dormem, nesta temporalidade física e na cosmológica, porque palavra é Axé e movimenta trajetórias temporais das guardiãs das memórias territorializadas. E começo novamente agradecendo à guiança da minha geração Avó.

Então, o ato primeiro é de apresentar as graças, sou Mona — ribeirinha, filha do coco-babaçu e do Rio Marataoã, pertenço ao território caatinga que conflui com a mata de cocais. E quando digo que sou filha da principal vegetação de minha cosmunidade Tabocas é porque me compõe e faz parte de quem sou e de minha trajetória, desde quando era guardada dentro de um cofo para minha Mãe Maria do Socorro conseguir catar e quebrar coco-babaçu e as galinhas não me carregar, até quando comecei a ir para a escola, que mesmo tendo que estudar pela manhã, antes ia me banhar no rio do meu quintal, meu Rio Marataoã. Rio esse que banha a cidade não só de água, mas que é a principal tecnologia de guarda de memória territorializada que temos, ou como diz Vôinho Nêgo Bispo, é o envolvimento que conecta todas as vidas no território.

Para essa confluência aqui com vocês, gostaria de compartilhar uma cosmossensação vivida, sentida e narrada, escrita ou inscrita em nossa dissertação Os Nêgo da Minervina e a rede do caruá: confluências da memória e a biointeração no Quilombo São João do Jatobazinho/Piauí. Digo nossa, pois não chego só, sou nós, e porque é uma pesquisa orgânica feita junto com Rosilda Maria da Conceição, autonomeada Dona Didi, que é matriarca do quilombo, mestra de ofício contra colonialista, artesã do caruá e guardiã das histórias e saberes de sua geração avó e do território, ela é quem nos guia nessa encruzilhada da memória com a biointeração que é expressa no trançado da rede de caruá, planta catingueira. É também como Vô Bispo, lavradora da terra e das palavras, e rezadeira, espanta qualquer cobra que apareça pelo seu caminho.

Dona Didi, guardiã das sabenças de sua Mãe Minervina, de Vó Marta e de sua Bisavó Rosa, trindade, compartilha a memória matriarcal quilombola-afro-pindorâmica e as sensações que confluenciam no território, a bem dizer a biointeração que Nêgo Bispo tanto fala, ou seja, é o envolvimento, a conexão das trajetórias, quilombolas e o caruá. Uma vez que a comunidade existe e re-existe no território graças ao envolvimento com a artesania do caruá, principal fonte de renda no território. O Quilombo São João do Jatobazinho, assim nomeado pela Fundação Palmares, se autonomeou de “As Minervinas”, nome da matriarca que trouxe ao mundo 17 crianças, uma tendo nascido já se encantando pelo mundo espiritual. Quando seus filhos ou filhas chegavam às comunidades vizinhas para um festejo, jogar bola ou visitar, eram de longe apelidados de “Nêgos da Minervina”, diziam assim “lá vêm os nego da Minervina” como forma de sinalizar aos presentes que eram quilombolas que carregavam a pele cor da noite e que não queriam se misturar com eles, sendo assim, houve uma forte relação de parentesco na formação do quilombo, primos próximos se casaram e ainda hoje existe um índice de cegueira e baixa visão na comunidade.

Olha como em nossa vida realmente não existem coincidências, pois quando fui guiada a ir para o Quilombo São João do Jatobazinho, e chegando lá entendi que ali era As Minervinas, passei a sempre pensar nessa autonomeação. Daí que por esses dias, estava olhando pela janela vendo se o tempo estava bonito de chuva, e me veio à mente um sopro palavreado dizendo assim “teu umbigo, jatobá. Jatobazinho.”, e uma chave virou nesse momento. Pois algo que sempre soube e minha Mãe sempre falou é que meu umbigo tinha sido enterrado embaixo de um pé de jatobá, e não é que eu nunca havia feito essa conexão. É, quando é missão a flecha é certeira, pois também, em uma das viagens para a caatinga, passei na casa de minha Vó Odilia, para ficar uns dias, e conversar é algo que minha família gosta muito, pouco não. Nisso, estou falando com Vovó sobre a pesquisa, sobre a rede e como faz a rede, e ela para e olha para mim e fala “eu também sei fazer rede, nós tínhamos um tear lá em casa”, quase caí da rede nesse momento, olha a confluência aí.

É, pois é, é muita gente mesmo dentro d’agente, e não falo só dos nomeados humanos. Já que a nossa corpa é território, ela se ajunta, mas não se mistura, cabe o físico, o espiritual e os encantados e se duvidar até nossa Mãe a gente já carrega, como Aline Motta fala que carrega em sua escrita performática A água é uma máquina do tempo. Bom, como tudo o que é nosso é girando, é impossível que o nosso pensamento também não seja circular, pelo menos o meu é assim, vou, volto, vem um turbilhão de conversas que querem se amostrar, sabe como é, sou neta afetiva de Nêgo Bispo, meu orientador, e a proposta aqui é confluenciar.

Esse compartilhamento só é possível após o reencontro, já que não acredito em encontros, entre duas afro-pindorâmicas, Dona Didi e nós no verão intenso da caatinga, num riacho entre enormes lajeiros, onde acontece uma das etapas da confluência com o caruá, que é uma planta da caatinga, que não pode ser semeada, plantada somente pelos passarinhos e pela senhora ventania. Só pode ser colhida na época da seca, quando chove menos no semiárido, pois na época da cheia, das chuvaradas no sertão, ela solta uma toxina. Nesse momento me lembro de Dona Didi, quando ela fala sobre a grande seca de 1932 (que inspirou obras como Vidas Secas, de Graciliano Ramos), que foi graças à macambira, considerada como planta venenosa, e o saber de seus mais velhos que sabiam como confluenciar com ela, que sabiam que cozinhando ela em cerca de cinco águas daria para usá-la como alimento. Lembra também o Seu Claúdio, Mestre de defesas contra colonialistas do Quilombo — Território Lagoas, o segundo maior em extensão de Pindorama, sendo o primeiro o Território Kalunga, conectados pelo bioma. 

Em uma de nossas confluências, na Lagoa das Emas, em frente à sua, quando o sol esfriou, me disse que quando se lembra de seu Pai, recorda que ele repetia que ele não poderia esquecer o seu Bisavô, que era um “Patavó”, disse que nunca entendia o que significava o nome, mas que quando ele começou a se movimentar pela luta contra a mineração no território conheceu o povo Pataxó, e que nesse momento ele entendeu o que seu Pai falava e que hoje repete no território, para que não se esqueçam dos indígenas do lugar e de que também descendem dos “Patavó”. Ou quando ele fala sobre os saberes de seus mais velhos, que lhe ensinaram o que deveria ou não comer no território, esse é o envolvimento responsável por conectar todos os viventes pertencentes e não moradores, pois a pertença é o autoconhecimento, que é a sabedoria, do que também conhecemos por “saber entrar e saber sair”, saber quando está bonito de chuva ou quando os vizinhos peixes estão aumentando sua família, ou quando as águas vão dar peixe ou quando ela naquele dia vai estar de resguardo. Pensar nessa perspectiva me lembra meu Avô Chibanca, pindorâmico, que já se encantou, pescador que fez muito compartilhamento de peixes por farinha, ou de cofo por rede de pesca, repassou esse ofício a seu filho, meu Tio Mandioca, que inclusive em uma madrugada de pesca foi avisado pelo Rio Marataoã que o Vovô tinha se encantado.

Pertencer ao território é ter conexão cosmológica, como quando Beatriz Nascimento fala que o quilombo é território espiritual e existencial (1975). Nisso retorno à circularidade da lembrança, pois gostaria que refletissem sobre como a existência do caruá na caatinga possibilita a existência das Minervinas, do Quilombo São João do Jatobazinho. 

Como fazer a guarda da memória pela biointeração? 

Bom, após a colheita do caruá, ele terá os espinhos de suas folhas raspados, e terá que ficar de molho no riacho por três dias, e quando retirado da água será torcido e batido com um pedaço de jucá, uma planta bem forte da caatinga, usada para feitura de cercas e até usada como ferramenta de autodefesa. A última etapa para deixar a fibra no ponto para a artesania é estirar a fibra da folha do caruá em uns tocos para ficar por cerca de três dias no sol. Após essas etapas a fibra é trabalhada para a artesania da rede. Para que a rede esteja pronta, demora cerca de quinze dias, nisso o trabalho é coletivo, não tem como fazer sozinho, e enquanto os dedos trabalham para encantar a fibra em uma rede, a melhor rede do sertão, Dona Didi fica por perto contando as histórias, suas e de sua Mãe, e de sua Vó e de sua Bisavó, e quem ouviu, ouve de novo, quem não ouviu, ouve, e nesse envolvimento, nessa biointeração é performada a guarda da memória na artesania da rede, ou melhor, da colheita que semeia envolvimento com o território.

As Mestras e Mestres de defesas contra colonialistas afro-pindorâmicos, como Dona Didi, Mestre Claudio, Mestre Krenak, Mestre Kopenawa e Mestre Nêgo Bispo, entre outros lavradores das palavras-sementes nos convidam a reflorestar nossos imaginários. 

Nêgo Bispo nos sinaliza que o ataque às comunidades tradicionais e povos originários é um ataque que mira os modos de vida, o envolvimento com os viventes, a confluência que acontece entre rios, gente humana, gente bichos, gente plantas. Quando nos apresenta suas ideias sobre envolvimento e desenvolvimento, nos aponta que enquanto um tem a ver com o “ser” o outro é alinhado ao “ter”. Ainda segundo ele,

Enquanto a sociedade se faz com os iguais, a comunidade se faz com os diversos. Nós somos os diversais, os cosmológicos, os naturais, os orgânicos. Não somos humanistas, os humanistas são as pessoas que transformam a natureza em dinheiro, em carro do ano. Todos somos cosmos, menos os humanos. Eu não sou humano, eu sou quilombola. Sou lavrador, pescador, sou um ente do cosmos. Os humanos são eurocristãos monoteístas. Eles têm medo do cosmos. A cosmofobia é a grande doença da humanidade. (Antônio Bispo dos Santos, 2023).

O imaginário construído e principalmente reforçado cotidianamente sobre a caatinga, cerrado, sertão, sobre o nordeste, sobre os povos, é uma imagem de pobreza, de falta e ausência. Nem sequer pisaram o ser-tão sagrado e já o nomeiam, isso nos confirma como a guerra das narrativas é presente, afinal é através dela que se justifica a necessidade do desenvolvimento, semelhante ao que justifica a nossa ida para a escola “para ser alguém na vida”. 

O desenvolvimento é colonialista, é a promoção da desconexão, como nos diz Nêgo Bispo, desconexão com o território, desconexão com os demais viventes do lugar existencial e espiritual. É um discurso que tem como foco a destruição de seres, de mundos em prol da existência de um só mundo, o do monoteísta, monista e linear. Já o envolvimento, o pertencimento, é conexão, é legado, é ancestralidade, possibilidade de coexistências de vidas pluralistas, politeístas e circulares, né, Vô.

Notas:
1. Biointeração”, “contra colonialismo” e “afro-pindorâmica” são termos cunhados por Antônio Bispo dos Santos no livro Colonização, Quilombos: modos e significações.

A educação, não raramente, é definida como a base de tudo. Nos últimos pleitos eleitorais, por exemplo, ela apareceu nos discursos políticos com força total. Os candidatos faziam um alerta sobre sua importância na formação das nossas crianças. Falar sobre educação, portanto, um assunto tão valioso, é uma tarefa muito gratificante, mas que impõe uma busca contínua pela prudência e humildade. É neste espírito que tento iniciar o presente texto, expondo que estou mais próximo de ser um pensador que um educador. Entretanto, como peixe no mar sempre estive cercado por um oceano de excepcionais educadores, desde minha mãe aos três anos de idade até os mestres e doutores que me orientaram e me orientam hoje no mundo acadêmico.

Cada educador que fez parte da minha história de vida foi mais que um professor, eles foram, são e sempre serão parte viva do meu caráter, por isso penso que educar é, sobretudo, subjetivar. Tornei-me quem sou aprendendo a me adequar ou rejeitar certos discursos sobre mim, aprendi a me adaptar ou não a certos ambientes e grupos de pessoas, tudo que sei sobre mim foi aprendido, fui educado para ser quem sou. Apesar de sermos sujeitos no discurso do outro muito antes de nascer, quando nascemos não carregamos nenhuma verdade ou pensamento sobre quem somos ou seremos, vamos aprendendo pelo caminho a construir nossa identidade. O que quero dizer é que não nascemos sujeitos, aprendemos a ser, e é nesse ponto que reside a importância e a emergência da educação.

Educar, podemos dizer, é estabelecer uma relação entre ser e verdade, o sujeito e o conhecimento. Michel Foucault, inclusive, em um curso ministrado no Collège de France entre 1980 e 1981, descreve como ocorre essa conexão intrínseca entre subjetividade (ser) e verdade (conhecimento). Segundo o filósofo francês, a partir do pensamento moderno: não há verdade sem sujeito, ou seja, toda verdade necessita da enunciação de um sujeito, porém, como o sujeito singular poderia ser capaz de chegar à verdade (um descritor universal da realidade)? Evidentemente, o hercúleo trabalho dos pensadores modernos foi estabelecer um método para a aquisição da verdade. Deste ponto, o sujeito deve deixar sua singularidade, suas sensações, suas percepções, suas ideias etc. e assumir um método de obtenção da verdade que impõe ao sujeito uma condição universal.

Nesse curso ministrado no Collège de France, Michel Foucault aponta que a verdade é concebida e transmitida como um sistema de regras. Educar pode tornar-se, portanto, um lugar de representação e reprodução de verdades preestabelecidas sobre os sujeitos e o mundo em que eles estão, sem que haja espaço para qualquer transgressão do pensamento. Com bell hooks, entretanto, em sua obra Ensinando a transgredir, aprendemos que a educação pode ser uma prática de liberdade. Educar deve ser um ato contínuo de transgressão e libertação desses sistemas de regras que contam a história do ponto de vista daqueles que impuseram à alteridade os grilhões, aos outros, ferrolhos e ao diferente, o decesso.

A doutrinação primeira em nossas escolas é antiga e colonizadora, pois ensina uma realidade espaço-temporal quebradiça, desconectada entre si e separada do senso de responsabilidade bioética que a vida nos exige. Tratamos o passado como se ele fosse inativo, uma história a ser contada sem implicações e responsabilização. Ensinam-nos a ver o passado como algo que se foi e só é acessível a nossa existência pela via da memória, como se não possuísse influência e efeito sobre o hoje. O futuro, por sua vez, é levado como se não fosse responsabilidade nossa, no presente tempo — como lembra Krenak, vivemos como se o amanhã fosse negociável pelo agora. Essa concepção temporal, ensina Cida Bento, em O pacto da branquitude, é transmitida de geração em geração através de estruturas institucionais diversas que regimentam e uniformizam processos, instrumentos, valores e perfis sociais, que limitam a mudança e a transgressão dos pactos sociais já estabelecidos e que buscam sempre a manutenção, majoritariamente, do poder branco masculino heteronormativo. A isso ela chama de “branquitude”, um fenômeno capaz de subjetivar (educar) consciente e inconscientemente.

A subjetividade como efeito educacional precisa ser produzida e localizada fora dessa temporalidade colonial, e, nesse sentido, uma experiência de entrelaçamento com a ancestralidade é fundamental. A ancestralidade não está conectada num espaço-tempo vazio de vida e cheio de informações e decodificações, isto é, em um cogito com suas regras lógicas ao que a educação tende a se limitar algumas vezes, mas ela também não é atemporal, antes está fixada na biotemporalidade, no tempo da vida, da relação com o semelhante e o diferente.

Para bell hooks, o trabalho do educador não é simplesmente passar uma informação, mas “participar ativamente no crescimento intelectual e espiritual dos alunos”. O que quero dizer é que a educação pode acontecer em dois tempos-espaços diferentes: ou no fundo de uma caverna a ver sombras para se supor algo; ou na vila inteira que se mobiliza para educar uma única criança a fim de garantir que ela floresça em suas potencialidades, caráter e cognição. A libertação que bell hooks parece propor é a de uma educação que sai da caverna (uma boa representação da sala de aula) e mobiliza uma vila (boa representação da vida) para educar. Educação não é uma responsabilidade restrita aos profissionais da educação, mas sua função, me parece, é tornar todos nós educadores.

Em seu livro A terra dá, a terra quer, Antônio Bispo ensina que precisamos aprender a semear palavras como forma de produzir novas denominações a certos fenômenos, como forma contracolonial. Essas denominações são o que a academia gosta de chamar de “conceitos”, afirma o autor, e atualmente vivemos uma guerra de denominações ao educar na espaço-temporalidade diaspórica do Brasil. As mentiras dispensadas, particularmente, à educação e à cultura do país nos últimos anos, remontam ao regime de tempos estranhos em que censura e perseguição eram o modus operandi na república. A educação, por exemplo, segue sob a acusação de alienar alunos e doutrinar sujeitos, porém, nessa guerra de denominações sobre a educação, a palavra que devemos valorizar é a confluência (no lugar de coincidência). Educar é confluir! Proposta por Antônio Bispo, essa palavra sinaliza a partilha, o estado de trocas vivas que funciona como uma energia que nos move. A educação é o que nos leva ao encontro do outro e não à submissão do outro. É se permitir ser atravessado pela diferença e se encruzilhar com a alteridade, isso é fundamental para a construção de um modelo comunitário, ou na denominação ocidental, um modelo civilizatório.

Encontramos na ancestralidade a biotemporalidade, que nos conecta à vida em sua continuidade, nela o passado, o presente e o futuro são entidades viventes e não uma realidade partida e diagramática. Estão em nós as vidas passadas e as vidas futuras, quer em latência, quer em manifestação. Somos a extensão das vidas passadas, a perpetuação genética e epistêmica dos ancestrais que fizeram dos seus corpos saberes e dos saberes sopro de vida. Somos ainda o elo de vida para os recém-nascidos, os nascituros e não nascidos, atalaias do amanhã que se faz hoje! Na biotemporalidade: os rios, as matas, as plantas, a terra, os animais, os mitos, as músicas etc. constituem a ancestralidade.

Para não parecer algo abstrato, penso que um bom exemplo de manifestação da ancestralidade é o samba. No seu livro Samba, o dono do corpo, Muniz Sodré afirma que “todo som que o indivíduo humano emite reafirma a sua condição de ser singular, todo ritmo a que ele adere leva-o a reviver um saber coletivo sobre o tempo (…)”. O samba, premência dos pretos e pretas nos séculos passados, é um resgate da singularidade, da coletividade e do tempo. Quando digo que o samba foi uma urgência, refiro-me a uma urgência educacional frente à repressão cultural e religiosa afro-brasileira. Não é por coincidência, mas por confluência que as escolas pretas no Brasil surgiram como “Escolas de Samba”. Há no samba e sua história todos os componentes que temos pensado até aqui. A educação contracolonizadora, portanto, que faz do futuro um fenômeno ancestral encontra no samba sua maior inspiração.

O samba é esse dispositivo para diálogos futuros entre educação e ancestralidade. Ao ouvir um samba é preciso se permitir sentir a ancestralidade. A ancestralidade não está na temporalidade metafísica. Ancestralidade é aqui, é agora, mas foi ontem e será amanhã. Assim também é o samba. Samba é o ontem, é o amanhã e é o agora. No ritmo do partido-alto, nas críticas sociais do samba-enredo, nos afetos do samba-canção ou na coletividade do samba de roda é possível ouvir ao fundo a voz ancestral nos guiando à sabedoria do bem viver. No samba, a ancestralidade ensina a aprender.

No samba Produto do morro, Bezerra da Silva já falava “Sou produto do morro/ Por isso do morro não fujo e nem corro/ No morro eu aprendi a ser gente/ Nunca fui valente e sim conceituado”, mais à frente ele diz: “Embarquei no asfalto da cruel sociedade/ Que esconde mil valores que no morro tem/ Tenho pouco estudo, não fiz faculdade/ E atestado de burro não assino também”. Nossos ancestrais, muitos deles não fizeram faculdade, por isso habita neles um saber que escapa aos redutos acadêmicos e é bem traduzido por bell hooks, que denuncia uma formação educacional bancária que prepara o aluno para consumir a informação do professor, memorizá-la e armazená-la. Uma educação que prepara para o mercado de trabalho (ou econômico) está fadada não a educar, mas a produzir uma sociedade que é um produto valorizado economicamente e não humanamente.

Os que estão fora dessa educação bancária ficam à margem da sociedade, são reservados para os subempregos, a criminalização, a violência estatal, lidos como um perigo para o sistema de regras. Foi assim com Bezerra da Silva, que chegou a viver em condição de rua pela cidade do Rio, mas como ele mesmo cantou e canta até hoje: “E se não fosse o samba/ Quem sabe hoje em dia eu seria do bicho?/ Não deixou a elite me fazer marginal/ E também em seguida me jogar no lixo.”. Se reservaram a Bezerra o lugar do bicho (da clandestinidade e da própria desumanização), ele encontrou no samba o conhecimento transgressor que muda vidas e transforma pessoas e está localizado na biotemporalidade (tempo da vida). É, da rua à história viva e à ancestralidade eterna, Bezerra da Silva é um filósofo que deveria ser ensinado nas escolas, ouvido nas praças e incorporado com sua malandragem na vida.

Ancestralidade é assim, ela fala de forma popular. Diz uma linguagem que todos entendem, mas somente alguns podem ouvir e aprender. Sua sabedoria é para os que sentem antes de saber. A sabedoria do samba e o samba da ancestralidade são o remédio da alma. O mundo é duro, mas a vida é bela, parafraseando o samba: “Nós somos verso e somos reverso/ Somos partículas do universo/ Somos prazer, também somos dor/ Somos causa, somos efeito/ Somos torto e somos direito/ Enfim nós somos, o que somos ou aprendemos ser”.

 

A leitura dos trabalhos de Antônio Bispo dos Santos e Ailton Krenak nos convoca a refletir sobre a nossa relação com o meio ambiente, o espaço que a cultura ocidental nos ensinou a nomear como natureza. Esses pensadores nos mostram que apesar da diversidade de criaturas vivas no planeta e as possibilidades de outras interações com o espaço, somos direcionados a acreditar (no sistema de pensamento ocidental) que estamos apartados da natureza devido a uma crença de que somos superiores aos outros seres da terra por sermos humanos. Os povos pertencentes às comunidades tradicionais e que não se coadunam com esta lógica, como argumenta o intelectual indígena, Ailton Krenak, são vistos como sub-humanos.

Em seu livro, Ideias para adiar o fim do mundo, publicado em 2019 pela editora Companhia das Letras, o autor comenta que o processo de empreitada colonial tem nos colocado como princípio um único e equivocado projeto de sociedade no qual a humanidade vai sendo afastada da terra, das interações, e, sobretudo, da confluência com o ambiente. Para Krenak “a humanidade vai sendo deslocada de uma maneira tão absoluta desse organismo que é a terra. Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, Ásia ou na América Latina. São caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes — a sub-humanidade […] Parece que eles querem comer a terra, mamar na terra, dormir deitados sobre a terra, envoltos na terra. A organicidade dessa gente é uma coisa que incomoda, tanto que as corporações têm criado cada vez mais mecanismos para separar esses filhotes da terra de sua mãe.

Esse projeto político e econômico destacado por Krenak também é apontado pelo pensador negro e quilombola, Antônio Bispo dos Santos. Em seu livro Colonização, Quilombos: modos e significados, lançado pela editora UNB/INCTI em 2015, o autor aborda a ferocidade do Estado brasileiro em promover, ao longo da história, ataques às comunidades tradicionais. Nêgo Bispo (outra forma em que é conhecido), chama atenção para as inúmeras práticas de etnocídio cometidas pelo Estado brasileiro contra os Quilombos, os Retiros, os Mucambos entre outras terminologias usadas para caracterizar as comunidades contracolonizadoras. 

O autor explica que as comunidades contracolonizadoras podem ser descritas como as tentativas de organização de sociedade que resultaram da rebelião e processos de fuga dos africanos escravizados no período colonial e que por muitas vezes aconteciam em parceria com os povos originários (indígenas); bem como as iniciativas de organizações sociais negras e indígenas que ocorreram no período de pós-abolição. Como exemplo dessas comunidades com princípios e práticas contracoloniais, Nêgo Bispo menciona o povoado de Caldeirões, na cidade de Crato, interior do Ceará, em 1889. O povoado de Canudos, cidade de Canudos, na Bahia, no ano de 1874. O povoado de Pau de Colher, no município de Casa Nova, na Bahia, em 1930 e o Quilombo dos Palmares, em Alagoas por volta de 1695. 

Para Nêgo Bispo, os ataques do Estado brasileiro a essas organizações comunitárias revelam o incômodo da instituição com as populações que têm uma ligação com a terra e que carregam uma perspectiva de que “a terra era (e continua sendo) de uso comum e o que nela se produzia era utilizado em benefício de todas as pessoas, de acordo com as necessidades de cada um, só sendo permitida a acumulação em prol da coletividade, para abastecer os períodos de escassez, guerras ou festividades”. 

Além disso, podemos considerar a partir das reflexões de Ailton Krenak e de Nêgo Bispo que tais práticas de etnocídio cometidas pelo Brasil em relação às comunidades quilombolas, indígenas e tradicionais se relacionam às tentativas de extirpação de outros projetos de sociedades, de trajetórias de vidas, de racionalidades e de epistemologias que têm em comum a valorização do coletivo e não do indivíduo. Ou seja, é um combate a toda e qualquer narrativa que não prioriza o discurso homogêneo, o ego e, principalmente, a noção de propriedade privada. Pois se a terra é de todos e dela devemos retirar o suficiente para vivermos, sem desperdiçar e acumular para o lucro individual e para a exploração do trabalho o projeto econômico e político do capitalismo torna-se ineficaz. É preciso alimentar a sede pelo consumo, o estabelecimento de relações competitivas e a desvalorização e o não reconhecimento das epistemologias em que o sujeito só existe plenamente mediante a sua interação com a natureza e com o grupo étnico-cultural a que pertence. 

Por esse motivo, como pondera Ailton Krenak, as sociedades ocidentais vêm tentando, de todas as formas, acabar com a pluriversidade de narrativas oriundas das populações julgadas como sub-humanas. De acordo com Krenak, as diversas narrativas encontradas nestes grupos (geralmente racializados) não coadunam com a razão ocidental. O autor enfatiza a seguinte questão ao tratar das cosmovisões dos povos indígenas do Equador e da Colômbia: “Por que essas narrativas não nos entusiasmam? Por que elas vão sendo esquecidas e apagadas em favor de uma narrativa globalizante, superficial, que quer contar a mesma história para a gente?” (p. 19). 

A estratégia de combate do projeto colonial às formas de pensamento quilombola e indígena também aparece na obra de Antônio Bispo dos Santos. O pensador menciona o processo de transmissão de pensamentos genuinamente ecológicos das comunidades quilombolas. Em diversas passagens do seu trabalho, Nêgo Bispo nos presenteia com valores comunitários que aprendeu com seus mais velhos. Um desses momentos é o relato em torno da prática da pesca em sua comunidade, como ela é aprendida de maneira coletiva e de forma que não agrida o ecossistema. Nêgo Bispo expõe: 

Ainda garoto, comecei a participar das pescarias. Um grupo acampava na margem do rio e escolhia o poço onde todos pescariam. Alguns remendavam tarrafas, outros cortavam palhas para tapagens, outros retiravam balseiros de dentro d’água, outros distribuíam cachaça, bolos e tira-gosto ou faziam café. Tudo isso coordenado pelos mais velhos […] Independentemente da atividade desempenhada por cada um, no final todas as pessoas levavam peixes para casa. A medida era o que desse para cada família comer até a próxima pescaria. Seguindo a orientação das mestras e dos mestres, ninguém podia pescar para acumular, pois o melhor lugar de guardar os peixes são os rios, onde eles continuam crescendo e se reproduzindo.”

Uma breve análise do relato de Nêgo Bispo apresenta práticas ecológicas em relação aos recursos naturais, integração de todos os membros da comunidade na atividade da pesca e ênfase em um tipo de pensamento matemático no qual a quantidade para cada família é medida de acordo com sua necessidade e não pela adoção de métricas e regras de acúmulos capitalistas absurdas. Um tipo de socialização que desafia a razão do capital e que, por esse motivo, segue sendo pressionada, perseguida e combatida pelo Estado brasileiro.

Inevitavelmente, ao ler as obras desses autores, sou levada a recordações da minha trajetória de vida, instigada a pensar nos valores comunitários e nos aprendizados sobre a ocupação do território que aprendi com minha família e que atravessaram todo o meu processo de socialização infantil, juvenil e da fase adulta. Eu, uma mulher negra, de terreiro e moradora da periferia do Rio de Janeiro, aprendi desde muito cedo com minha mãe e avó materna a conceber a terra como lugar de morada, de plantio e de forças sagradas. 

Cresci em um quintal onde moravam minha avó materna, dona Maria das Neves, e seus cincos filhos com suas famílias. Uma ocupação do espaço onde a casa da minha avó ficava ao centro do quintal, e as dos outros familiares, inclusive a minha, ao redor. Foi neste espaço que aprendi a cultivar hortas, colher frutas em pés de goiabeira, jaca, cajá, manga, acerola, araçá, jamelão, graviola e amora, evitar cortar árvores sem necessidade, e respeitar a temporalidade do solo diversificando o cultivo dos alimentos em espaços diferentes para não “cansar a terra”.

Testemunhei por diversas vezes a vida se fazer presente no nascimento de porcos, frangos, gambás, ratos, pássaros, cães e gatos. Nos meses de julho e de dezembro, participava como espectadora do processo de imolação dos porcos que tínhamos criado. Nesse processo participavam alguns homens da minha família e profissionais de açougues do bairro. Esse momento era muito cobiçado no local e muitos moradores iam até nosso quintal assistir e buscar o seu prometido pedaço de carne do porco, afinal eles haviam contribuido no processo de alimentação dos suínos juntando lavagem (resto de cascas e sementes de legumes) ao longo do ano. Vi e aprendi com minha avó materna, mãe e tias como se imolavam galinhas para fazer o famoso frango à molho pardo. Andei descalça, tomei banho com água de poço, brinquei com lama e senti meu corpo voar no balanço improvisado na mangueira em frente a minha casa.

Em diversas ocasiões, vi minha avó materna cercar o quintal com elementos da natureza considerados sagrados para as religiões de matrizes africanas. Todo esse contexto de devoção e aproximação a modos de lidar com a terra me permitem dizer, evidentemente apoiada nas literaturas tratadas acima, que nada é mais avassalador do que o processo de alienação e distanciamento da natureza a que estamos sendo levados. Ficamos aterrorizados com a sinuosidade e força das águas e com o tempo da terra. Compramos nossos alimentos em mercados, esquecemos que as carnes expostas ali um dia eram criaturas vivas e julgamos a imolação das religiões de matrizes africanas. Alimentamo-nos de comidas e bebidas que podem nos adoecer devido às substâncias que lhes são adicionadas. Desaprendemos a ouvir o barulho dos pássaros, do galo e do vento nas árvores. Queixamo-nos do calor, mas não suportamos o solo sem asfalto, sem estar sobrecarregado de cimento e dos projetos urbanos.

Assim, não percebemos a eliminação de tecnologias ancestrais. De repente, temos a substituição das erveiras pelas terapeutas de florais. Não sabemos mais reconhecer um pé de goiabeira e um pé de araçá. Acreditamos piamente que nossas casas de cimento são melhores que casas de barro e de palha das comunidades tradicionais. Nunca questionamos qual casa é mais fresca, qual casa cheira e tem a energia de nossas mãos. Acostumamo-nos com o cenário de terror e de fim de mundo proposto pela razão ocidental. Por esses motivos, é tão pertinente nos cercamos de reflexões de autores quilombolas, indígenas, de religiões de matrizes africanas para que possamos perceber o que temos perdido e como não sabemos mais identificar o cheiro do tempo quando vai chover, raiar um profundo sol ou quando haverá um dia equilibrado de frescor.