Tomar café na casa de alguém é um convite para conhecer profundamente essa pessoa. Nossa casa é a casca que nos proteje do mundo. Ela é parte importante de nossa cultura particular, e reflete a maneira como enxergamos e gostaríamos de nos inserir no mundo.

Aqui, dividimos casas de pessoas que gostam de casa. Que têm suas casas vivas, cheias de objetos que contam a história de uma vida, sem um lugar perene em seus espaços.

Cristina Borges é arquiteta e designer de interiores. Morou na Gávea, no Rio de Janeiro, por muito tempo, até se apaixonar por Copacabana, em um apartamento de família, a ponto de nunca mais querer sair de lá. 

Cris, me conta quando e como começou a relação com este apartamento.

Este prédio foi construído pelo meu bisavô em 1928, ou seja, daqui a quatro anos ele completa cem anos. O prédio sempre foi inteiramente da minha família, até que, de uns trinta anos para cá, meu tio vendeu as duas unidades dele, meu tio-avô morreu, deixou parte para os seus sobrinhos, deu uma diluída. Hoje em dia, proprietário, da família, temos três. Como a vida inteira eu morei na Gávea, Copacabana era uma coisa distante da minha vida. Eu tinha horror a Copacabana, era uma coisa que me exasperava só de pensar. Mas sempre amei esta cobertura. Quando minha tia-avó morreu, minha mãe comprou do herdeiro dela e ficou alugando a vida toda.

Apesar de eu achar o apartamento em si muito jeitoso, não via ele como moradia. Morava numa casa feita por mim, um projeto meu em que juntei duas casas de vila em uma, fiz uma super casa. E aí, a vida mudou, eu me separei, meu marido faliu, eu fiquei ali segurando, segurando, até que chegou um ponto que não se justificava mais morar numa casa na Gávea, com dois filhos na PUC consumindo tudo que eu botava dentro de casa. Foi quando conversei com a minha mãe e peguei o apartamento, fiz as reformas necessárias e aluguei a minha casa da Gávea. Com o aluguel da casa da Gávea, fiz toda a obra primordial daqui, que era toda a parte de elétrica, de encanamento… E assim vim para cá com os dois meninos. Um depois foi embora, ficou morando com o pai e, na pandemia, voltou.

O que você acha que este apartamento te oferece, em termos de conforto e bem-estar?

Antes de mais nada, podemos falar do ponto. Eu não tenho mais carro. Eu desço e sou praticamente atropelada pelos táxis. Fora que tem Uber também, então isso foi um salto na qualidade de vida para mim, parar de dirigir nesta cidade. Em Copacabana, você dá uma volta no quarteirão e é como se desse uma volta ao mundo, tem mexicano, português, italiano, árabe, brasileiro, bistrô, a quilo e, às quintas-feiras, ainda tem a feira. Para mim, que tenho um pouquinho de TOC de arrumação de geladeira, manter a minha semivazia é uma bênção.

Isso é o ponto número um. Número dois, a vista. Número três, a arquitetura do apartamento: são três metros e trinta de pé direito. Mesmo que eu não tivesse o mezanino, já seria uma glória. Essa arquitetura me favorece muito, e eu agradeço demais por morar num lugar tão lindo. Além disso, estou há oito minutos do aeroporto. Eu tive uma loja no MAM, então eu sei que são oito minutos mesmo. E ainda tem o clube Marimbás, de que eu sou sócia, e o namorado, que mora no posto seis. Então, entre o posto dois e o posto seis, tenho tudo que posso querer ter. Sair daqui, nem pensar.

E você frequenta a praia?

Vou à praia todo santo dia.

Você mergulha?

Mergulho, dependendo do dia. Hoje está frio. Mergulho, imagine, pego sol. Sou do tipo que ainda se bronzeia.

Como você acha que a sua profissão influencia no seu gosto pessoal? E como foi a evolução desse gosto?

Completamente. Eu nasci e fui criada dentro de obra. Eu morei numa das casas mais bonitas da Gávea, do tempo dela. Meu avô era uma pessoa muito sofisticada, foi um dos dez [homens] mais elegantes, teve o primeiro carro, o primeiro pastor-alemão, era um dândi. Basta dizer que meu pai nasceu no Parque da Cidade, que era a casa dele, e depois ele vendeu pros Guinle, e os Guinle doaram para a cidade para fazerem o parque. Então, eu acho que nasci e fui criada nesse berço bacana, chique, uma coisa quase minimalista. A casa do meu avô era imensa, mas tinha dois sofás numa sala e no outro canto um recamier.

Devia ser muito moderno para a época. A gente não pensa em um lugar minimalista atrelado àquela época. A gente está falando de que década?

Minha avó nasceu em 1900, então, década de 20.

Devia ser muito arrojada a casa para a época. Imagina! Na mesma época  este prédio aqui estava sendo construído, todo neoclássico.

A casa até que não era muito estilosa por fora, não, mas por dentro… Minha avó e meu avô eram loucos por jardim, foi um francês que fez todo o paisagismo. Essa coisa do jardim eu acho que herdei deles. A coisa do belo eu acho que herdei dos dois lados, porque, pelo lado da minha mãe, a minha avó também era louca por jardim. Não tinha, naturalmente, o poder aquisitivo do outro lado, porém, quando [ela] fez a casa dela, chamou o Carlos Leão para ser o arquiteto, então a casa era toda jeitosinha — pequena, dentro de um lote no Humaitá, mas era uma casa muito bem arrumada. E a arte entra porque meus tios têm uma galeria de arte. A dona deste apartamento aqui, que era irmã da minha avó, era sócia dos meus tios numa galeria no Copacabana Palace, a Galeria de Arte Ipanema. Depois que ela saiu da sociedade, era o tio mais velho e, depois, entrou o tio mais moço, e ficaram eles dois. Eles fizeram a Galeria de Arte Ipanema, em Ipanema, que ainda existe. Hoje, eu particularmente acho que a obra que foi feita não serve para galeria, mas está lá a galeria, com um pé direito que você quase raspa a cabeça. Quando inaugurou, tinha um Lescher lá no fundo, que você via cortado pelo meio. Tudo bem, ali tinha um pé-direito para ele caber, mas o resto da galeria…

Então, isso me moldou como ser humano. Eu amo o belo, quer dizer, o belo que eu entendo como belo. Quem ama o feio, bonito lhe parece. Então eu procuro viajar, estou sempre comprando coisas, sempre trazendo coisas.

Muito provavelmente esse ambiente em que você nasceu e viveu, desde sempre, te levou à sua profissão.

Provavelmente. Mas eu acredito que existe uma aptidão também. Porque eu não fiz faculdade e não me formei arquiteta, mas, desde garota, fazia maquetes com as caixas de sapato. Sempre gostei disso. Meu quarto, quando criança, nunca foi o mesmo por mais de três meses. Este apartamento, até eu entender ele, foi 280 coisas diferentes.

Você ia acrescentando peças ou mexia 280 vezes com as mesmas coisas?

Mudou assim: quando eu me mudei, eu não tinha sofá, eu tinha uns bancos que eu mandei fazer no Fernando Mendes para a casa da Gávea, que eram quatro metros de banco, dois de dois metros, e neles eu tinha televisão, CD — a gente tinha CD na época, então eram pilhas de CD.

Precisava desse espaço.

Eram bancos de setenta centímetros por dois metros que, juntos, faziam os quatro metros. E aí eu acabei mandando eles para a Bahia, porque eu usava ali, mas era muito grande para o todo, e esse negócio eu joguei ali, porque não cabia. Eu não posso ter nada, conforme te digo, eu não posso comprar objeto de mesa, por exemplo. Quando eu tirei essas portas aqui, tinha uma prateleira em cima, onde eu tinha várias coisas que tive que levar para a Bahia, porque eu não tinha onde botar. Até a minha sereia, que eu não levei porque estou com medo de ela enferrujar toda. A sereia ficava aqui, que eram só coisas do mar, tinha um Artur Baglio, que era uma mulher embaixo d’água, esse Vasarely ficava ali também, tinha aqueles negócios de vela que eu trouxe do Egito e que, sempre que recebia alguém, acendia. Agora não tenho onde botar, foi para debaixo da escada.

Como você acha que o seu gosto se desenvolveu ao longo de todos esses anos?

Eu acho que, quanto mais você viaja, quanto mais você vê coisas que têm um foco, muita arquitetura… Sou louca por arquitetura tanto quanto sou por arte. E por jardins. Por exemplo, eu fui a Londres, passei quatro dias em Londres, um dia inteiro foi no Kew Gardens, que é lindo, uma coisa imperdível. Já fui aos jardins botânicos em Nova Iorque, em Berlim, em todo lugar que eu vou. Em Berlim, Sanssouci, o que é aquilo? Você já foi? É a coisa mais linda. Era para o filho gay do rei sei lá das quantas. Ele construiu para isolar o filho, desaparecer com ele da corte, entendeu? E é deslumbrante, na frente tem uns degraus, uns patamares. Aí eu comecei a reparar que tinha uns armários incrustados. Eram hortas no inverno, todas envidraçadas, mas incrustadas nos patamares, para dentro. Uma coisa, uma beleza. Pagode chinês. Olha…

Lá no Kew Gardens, você foi naquele pavilhão da ilustradora? Como que ela chama?

Margaret Mee. Gente, qualquer lugar naquele Kew Gardens.

Então, acho que viajar te joga numa coisa diferenciada. Tudo bem, eu nasci e fui criada na Bocaina, que é um lugar selvagem, virgem. Então eu acho que a minha vida sempre foi permeada entre o muito sofisticado e o muito rude.

É bom, porque tem a natureza completamente interligada.

A gente é raiz, meu pai era mergulhador, foi pentacampeão mundial de caça submarina, foi um dos fundadores do Marimbás. Ele era da equipe dos Marimbás, com Santarelli, Bruno Hermanny, era da turma deles, meu tio João [também]. Viajaram o mundo inteiro caçando. Então eu acho que esse lado bem raiz está no meu sangue por conta do meu pai. E por conta da minha avó também.

Avó de pai?

Avó de pai. Meu avô caçava. Ele conseguiu achar a Bocaina caçando. Comprou aquilo tudo, fez um barraco só para pernoite. E aí depois o meu pai foi evoluindo e fez a lodge, meu irmão depois pegou e fez uma pousada, que ele teve durante anos. E aí, quando ele encheu o saco da pousada, fechou, e agora é a nossa fazenda de novo.

Trabalhando com arquitetura e decoração, ou seja, fazendo casa para os outros, o que você acha que deixa uma casa única?

A personalidade do proprietário.

Às vezes, ele não consegue colocar isso na casa, você não acha?

Eu acho que se ele tem um mínimo de cultura e personalidade, consegue. Eu já fiz apartamento para clientes que eu não gostei, mas eles amaram. Então o meu compromisso não é comigo, não é a minha autoria, é fazer um lar para quem vai morar nele. Por exemplo, eu não sou uma pessoa que entra na casa de uma pessoa e manda jogar tudo fora e vamos fazer tudo [de novo]… “Móvel? Nem pensar, marcenaria, porque é onde se ganha muito dinheiro”. Eu faço a casa dos outros, não a minha. Eu já cansei de entrar em casa que você [diz] “isto aqui é uma casa do Cláudio”, “esta aqui é a casa do Eric”. Eu não quero entrar na casa dos outros. Tem uma história do Cláudio muito engraçada, que, quando ele foi fazer o apartamento do Caetano, a Paula começou, “Olha, eu queria que você visse o teto do meu vizinho aqui de baixo, que no vizinho de cima tem não sei o quê”. Ele olhou para ela e falou assim: “Faz uma coisa, Paula, chama o arquiteto dele”.

O que você acha que torna uma casa brasileira?

Linho, algodão, tem gente que põe brocado — isso é uma moda que eu acho que já passou. Casa brasileira é palha, madeira, e eu acho que ventiladores de teto, uma coisa bem tropical. Cores claras. Depende se a pessoa não gosta de quadro, não tem apreço por comprar arte, aí eu entraria com uma estampa. Talvez uma cor na parede; espelhos, se tem vista. Porque eu acho o uso do espelho extremamente perigoso, pode ficar um monstro e pode ficar lindo. Quando o espelho serve para abrir uma janela, estou dentro; esconder uma coluna, tudo bem. Agora, quando é um espelho tipo decorativo, para não refletir nada, no meu pensar, já cai na cafonice. Mas eu uso, eu gosto de espelho no ambiente, acho que favorece.

Fica uma casa muito adequada ao clima, sim. E, obviamente, falamos muito aqui no domínio da culinária. Qual você acha que é o papel da comida e da alimentação dentro de uma casa?

Eu acho que o agregador da família é a comida, sem a menor dúvida. O que junta é a mesa. E é o que talvez falte muito nos dias atuais, aquele momento de as pessoas se olharem e conversarem, contarem como é que foi o dia, como é que vai ser — se for almoço, como é que vai ser dali para frente… E eu acho que isso é um movimento que está acontecendo. Ontem, por exemplo, eu tentei desmarcar um dentista e não consegui, porque eles agora têm hora de almoço. Acho que é muito importante esse countdown, e a mesa é tudo numa casa. Eu fiz um apartamento, uma vez, que a mulher me disse: “Eu não quero sala de jantar, não, aqui a gente come de bandeja”. Eu falei: “Tudo bem, dá para fazer”. Mas que pena, porque era uma mulher com três filhos, sem marido — sei lá do marido, podia ser separada —, mas cada um comia numa hora, com uma bandeja e vendo televisão. É um desperdício monstruoso de aproximação para uma família. Para mim, a parte da cozinha… Inclusive, ter uma cozinha participativa seria melhor ainda, não ter aquela cozinha…

Ali, você vai estar vendo. Ela é participativa no sentido de as pessoas cozinharem juntas, isso eu acho muito interessante. Meus filhos, desde que ficaram em pé, eu empurrava a cadeira para o fogão e eles cozinhavam comigo. Sabem fazer tudo.

Hoje eles cozinham?

Tudo.

É fundamental isso, a gente ganha muita autonomia na vida. Não é só autonomia para saber se alimentar bem, com qualidade e ter saúde, mas acho que a cozinha ensina muita autonomia de vida para a gente.

Total. Porque você come o que você quer. Ter uma boa cozinha, os ingredientes bons… Você tem isso se a mãe tem esse conceito. Eu nunca tive pacote dentro de casa. Podendo, não tenho. Só, assim, quando era para a merenda dos meninos. Até o meu filho pedir para parar de mandar merenda, porque os colegas ficavam invejando a merenda dele, era muito chato. Fazia tudo bonitinho, um chocolatinho, um sanduichinho, um Toddynho ou uma água de coco, qualquer coisa, e mandava. Porque tinha dois recreios, um para comer e outro para brincar. E o de comer não dava tempo se a pessoa ficasse na fila, ela não conseguia chegar e comer. Então eu mandava. Aí começou a causar problema com os colegas e eu parei.

E o que você acha que a palavra “casa” significa? Quer dizer, o que significa para você?

Eu li uma definição do Hélio Oiticica uma vez, ele falava que a casa… Não lembro se era a casa ou era a casca do ovo, e nós somos o núcleo do ovo. Então, eu acho que a casa é isso, é o lugar que te protege, te abriga, te faz feliz. A minha vontade sempre é de voltar para casa. Acho que quem não tem vontade de voltar para casa está perdido no mundo. Para mim, a casa é o lugar de acolhimento, de afeto, de amor, é o lugar em que você recebe os seus amigos ou não — mas você se recebe, se recicla, se alimenta. Dependendo da casa, dependendo de quem mora na casa. Eu saí de uma casa para vir morar num apartamento que foi transformado numa casa. Eu acho que a casa é você que faz, e faz de acordo com as suas necessidades. Para mim, [a casa] é conforto e alegria, tudo o que preciso na vida é ter minha casa. Eu amo viajar, agora, voltar para casa é uma coisa quente no coração.

Qual é o papel da arte na sua casa?

Na minha casa, são as minhas paredes. Arte para mim é parede. Em casa, é isso. Eu não quero, até já tentei pintar, mas não quero, já tem coisa demais. Na minha vida, é me deixar feliz

Que projeto você acha que ainda não realizou na sua vida?

Eu não escrevi um livro. De resto, plantei todas as árvores, fiz filho, cozinho, lavo e passo roupa, bordo, faço tudo.

Vai escrever?

Acho que sim. Falta conhecer muitos pedaços do mundo e escrever um livro. Não descarto a possibilidade.

Do que seria?

Eu acho que seria um livro de receitas mais amplas.

Em que sentido?

Receitas de cozinha mas que fosse, por exemplo, a receita de um jantar. Aí eu vou fazer a foto da mesa e vou aumentar essa receita para o tipo de papo, o tipo de pessoa que vem. Eu li uma vez um livro de uma mulher de um diplomata italiano, Ornella… Esqueci o nome dela. Perdi muitos livros na mudança, perdi caixas e caixas de livros, mas também não teria onde botar. Ornella Muti, quem sabe? Não, é uma atriz, uma cantora. Ornella não sei das quantas. Ornella Del-Sol, eu acho. [Orietta Del Sole]

Eu pesquiso depois, tento achar e te falo.

O nome do livro é Nunca treze à mesa. Ela fazia a receita do jantar e escrevia sobre os convidados, o papo que rolou na mesa. Então, eu acho que seria isso, com fotos — foto da mesa posta, foto das comidas, dando as receitas. Acho que o meu grande lance é realmente a parte de casa.

Seria quase um livro de atmosfera.

É, por aí. Uma coisa que eu pudesse misturar, com um quadro que teria apego àquilo, uma coisa assim, com algumas referências para ilustrar aquela receita. Mas tendo a receita também. Podendo dar dica de onde comprar, o que fazer aqui no cantinho, enfim, coisas assim, arranjo de flor que ficaria legal com aquela louça — porque minha mãe também é artista, teve o momento louças, eu tenho louça de milho, louça de…

O que você acha que significa essa frase, “passar para tomar um cafezinho” com alguém ou na casa de alguém?

Eu acho que é marcar um encontro, o que é sempre bom entre duas pessoas que se gostam, se admiram, se respeitam. Em casa eu acho sempre melhor, porque adoro receber. Dá preguiça, mas se é uma pessoa com quem você tem intimidade, ela chega, vai junto na cozinha, abre a geladeira… Aqui em casa, a pessoa é de casa, não tem essa de fazer cerimônia. Tenho amigos mais antigos também, então tem gente que vem aqui que já vai e já entra. A única coisa que eu mando tomar cuidado é com o degrau.

É no coração de uma floresta finlandesa, erguido, não por acaso, entre o verde intenso e o farfalhar suave de um conglomerado de árvores, que está o Sanatório de Paimio. Concebido por Alvar e Aino Aalto e inaugurado em 1932, esse projeto arquitetônico que transcende o tempo e as convenções é um símbolo indelével do potencial da arquitetura deimpulsionar cura e bem-estar. Numa época em que a tuberculose ainda ceifava muitas vidas ao redor do mundo, quando a luta contra a doença apenas começava a se articular de maneira eficaz, os Aalto vislumbraram um espaço onde a luz, o ar e o design se uniriam feito sinfonia para aliviar o sofrimento de pessoas enfermas.

Na década de 1920, a recém-independente Finlândia via na construção de hospitais, sanatórios e outras instituições públicas uma oportunidade de criar sua identidade nacional e incitar o orgulho patriótico, antes inviabilizado pelo grão-ducado Russo. O país buscava afirmar-se por meio de empreendimentos públicos ambiciosos, e o Sanatório de Paimio tornou-se um exemplo emblemático dessa estratégia, combinando funcionalidade com inovação estética. O processo que culminou na criação do sanatório teve início em 1929, quando o casal Aalto venceu o concurso público para projetar a obra, marcando um ponto de convergência entre a arquitetura moderna e a afirmação cultural finlandesa.

Desde o início, a inovação se fez presente, a começar por uma decisão aparentemente simples     , mas inegavelmente revolucionária: o edifício em si seria como uma extensão do tratamento médico. Para os Aalto, um sanatório não deveria ser somente um lugar de confinamento; na verdade, ele tinha tudo para ser uma ferramenta terapêutica ativa, projetada para maximizar os efeitos dos métodos conhecidos, na época, para tratar a tuberculose, como o repouso, o contato com a luz solar e a inspiração de ar fresco. Esses elementos, por mais triviais e pouco hospitalares que possam parecer, formavam o cerne da mentalidade que deu à luz uma das obras mais significativas do movimento modernista na arquitetura.

A cerca de três quilômetros da pequena cidade de Paimio e a quase trinta de Turku, as imensas árvores e os sons tranquilos da floresta criavam um ambiente de serenidade e isolamento, ideal para a recuperação dos pacientes, que muitas vezes passavam anos em tratamento. Estar perto de uma vegetação tão densa proporcionava uma transição suave e necessária do mundo exterior para um espaço inteiramente dedicado à cura e à introspecção. 

A estrutura principal do sanatório consistia em várias alas interligadas, cada uma dedicada a funções específicas, mas todas com o objetivo comum de promover a saúde por meio de um ambiente cuidadosamente planejado. A ala dos quartos, com seus sete andares, foi projetada para maximizar a exposição à luz solar. Cada quarto, voltado para o sul-sudoeste, captava o máximo de luz natural ao longo do dia. As amplas janelas, que se estendiam do chão ao teto, inundavam os espaços com luz e eram quase como pinturas barrocas, emoldurando o exterior com suas largas vistas panorâmicas da paisagem ao redor e estabelecendo uma conexão constante entre os pacientes e a natureza.

 Dentro dos quartos, os tetos escuros criavam uma atmosfera tranquilizante, enquanto as paredes em tons suaves refletiam a luz de maneira gentil para evitar brilhos mais intensos que poderiam incomodar a vista. As luminárias, com um propósito similar, foram posicionadas de maneira      a minimizar o desconforto visual, reconhecendo que a percepção sensorial poderia influenciar o estado emocional e físico dos pacientes. Até mesmo as pias foram projetadas com um ângulo específico para reduzir o ruído da água corrente, demonstrando uma atenção quase obsessiva aos detalhes que poderiam impactar o bem-estar.

 Áreas como a sala de jantar, a biblioteca e espaços de recreação foram concebidas para facilitar interações sociais saudáveis e criar um senso de comunidade e apoio mútuo. Terraços amplos e acessíveis permitiam que os pacientes desfrutassem do ar fresco e da luz solar em diferentes momentos do dia, o que promovia a mobilidade e o contato com o ambiente externo, mesmo durante os longos invernos finlandeses. Para os dias mais frios, sacos de dormir forrados de pele eram disponibilizados, tudo para garantir que o clima adverso não se tornasse um impedimento para a terapia ao ar livre.

 A colaboração entre Alvar e Aino Aalto foi além da arquitetura estrutural, estendendo-se ao design de interiores e de peças de mobiliário. Juntos, criaram ícones do design moderno, como a célebre Cadeira Paimio. Inspirada no assento Wassily de Marcel Breuer, a versão dos Aalto utilizava madeira laminada curvada, explorando as possibilidades do material para criar formas orgânicas e confortáveis que auxiliavam na respiração dos pacientes.

Tudo ali combinava uma rigorosa análise científica com uma sensibilidade artística e humanista profunda. O casal criador abraçou os avanços da produção industrial e os princípios do funcionalismo, apertando-os forte com ambos os braços, mas sem nunca perder de vista o elemento humano, que sempre foi o motivador central de todas as suas decisões. Alvar Aalto, sempre atento às inovações tecnológicas, introduziu o primeiro elevador panorâmico da Finlândia em Paimio, uma inovação que, além de funcional, servia também para proporcionar aos pacientes uma visão privilegiada da paisagem ao redor. Esse cuidado com os detalhes se estendia à disposição dos blocos de edificações, pensados para minimizar a propagação da doença e garantir a máxima privacidade e conforto aos doentes.

O sanatório e seu conjunto de peculiaridades foram idealizados como uma resposta a uma crise de saúde e como um espaço que reconhecia e valorizava a dignidade e a experiência individual de cada paciente.

A integração harmoniosa entre forma e função, natureza e tecnologia, individualidade e comunidade que os Aalto alcançaram há quase um século continua a oferecer um modelo aspiracional para o futuro da arquitetura e do design. O Sanatório de Paimio permanece como um dos maiores representantes da arquitetura que cura, caracterizada pela capacidade humana de criar espaços que nutrem o corpo e a alma através da luz, do ar e da beleza intencionalmente cultivada.

Ao longo dos anos, o sanatório passou por diversas transformações, adaptando-se a novas funções e necessidades. A descoberta de antibióticos contra a tuberculose reduziu drasticamente a necessidade de sanatórios, levando-o a se reinventar como hospital geral e, posteriormente, como centro de apoio para crianças com transtorno mental e deficiência. Apesar dessas mudanças, a essência do design dos Aalto permanece intacta, graças à preservação e ao reconhecimento do valor histórico e cultural do edifício.

Hoje, quase cem anos após sua construção, o sanatório faz parte do Hospital Universitário de Turku e há um movimento crescente para que o edifício seja reconhecido como Patrimônio Mundial da UNESCO, um reconhecimento que celebraria a convergência entre arte, ciência e humanismo que ele representa. Se um dos objetivos iniciais era forjar uma identidade finlandesa, essa missão foi plenamente alcançada, pois a Finlândia continua a se orgulhar do que foi, é e ainda será realizado ali.

Quando aspectos físicos, emocionais e sociais são considerados, surgem espaços que, além de atender às necessidades funcionais, também enriquecem a experiência humana de maneiras profundas e significativas. Mais do que isso, ao priorizar o ser humano, a arquitetura atinge sua máxima funcionalidade. No coração de cada estrutura bem-sucedida deve pulsar precisamente isso: um coração, junto com uma compreensão profunda das pessoas para as quais ela foi criada. Essa abordagem, muitas vezes subestimada, talvez seja a mais eficiente de todas.

O Sanatório Paimio permanece como um marco e uma voz poderosa na chamada healing architecture, mostrando que é possível transformar o mundo, construindo novos espaços e projetando possibilidades de cura.

Le Corbusier em 1950. Imagem: Sam Lambert/Architectural Press Archive/RIBA Collections

Le Corbusier (1887-1965) foi possivelmente o mais influente arquiteto do século XX. Não só o mais influente: o mais controverso também. Com o centenário de seu clássico manifesto Por uma arquitetura (Vers Une Architecture, no francês), vale refletir sobre o que a tapeçaria teórica e a prática contida na obra representou, e representa, para a arquitetura contemporânea. Tanto a obra em questão quanto a carreira de Le Corbusier foram construídas a partir de ideias realmente inovadoras, mas ideias que, de acordo com muitos especialistas (munidos, claro, com o distanciamento temporal), não tinham em vista o mundo assim como ele

Independentemente disso, fato é que há um pré-Corbusier e pós-Corbusier. Não é sempre que vemos esse papel de divisor de águas atribuído à uma única pessoa, e isso vale para qualquer área. Ou seja: controverso, sim; irrelevante, jamais.

Nascido em 1887 na Suíça, Le Corbusier começou sua vida profissional como pintor e designer de móveis. Foi em seus tempos de aprendiz de relojoeiro, aliás, que começou a desenvolver uma consciência de estrutura e sua apurada precisão, algo fundamental em tudo que produziu posteriormente. Seu interesse por arquitetura, o levou a se matricular na Escola de Artes de La Chaux-de-Fonds, onde estudou sob a orientação de Charles L’Eplattenier (1874-1946), um mentor crucial que o introduziu ao pensamento vanguardista da época. Em 1907, se embrenhou profundamente na cena artística parisiense ao se mudar para a capital francesa. Lá, trabalhou com arquitetos proeminentes, como Auguste Perret (1874-1954) e Peter Behrens (1868-1940), adquirindo uma compreensão profunda da aplicação de materiais modernos em projetos arquitetônicos. Essas experiências o ensinaram a enxergar beleza em uma abordagem funcionalista do design, quando a forma segue a função e não ao contrário — eis a filosofia que se tornaria um pilar fundamental da arquitetura moderna.

Le Corbusier não apenas revolucionou a forma física dos edifícios, mas também introduziu novos materiais e técnicas construtivas. Ele foi pioneiro em adotar o concreto armado como material de construção principal, o que permitiu a criação de estruturas mais esbeltas, abertas e flexíveis. Essa abordagem inovadora influenciou a estética da arquitetura moderna e contribuiu para a rapidez e eficiência da prática da construção. 

Tendo em vista essa sua veia radicalmente transformadora, logo se imagina que, por trás de tudo (ou na frente de tudo), houvesse uma pessoa detentora de um arcabouço teórico amplo capaz de estruturar ideias de maneira clara e sedutora. Além de seus projetos arquitetônicos e urbanísticos, Le Corbusier era um prolífico escritor e teórico — o que nos leva ao famoso Por uma arquitetura.

Publicado como livro há cem anos, em 1923, baseado parcialmente em artigos anteriores, Por uma arquitetura é um manifesto do modernismo que defendia a aplicação tecnológica a projetos de edifícios, tomando a beleza e a lógica das máquinas e da engenharia de viadutos, transatlânticos e silos de grãos como a mais importante. O manifesto também promove — há quem diga “acima de tudo” — o próprio Le Corbusier, como um homem (quiçá, o único) habilitado a dar vida ao novo mundo proposto. É um caso clássico de um egocentrismo que, de boca cheia, diz: “O mundo precisa disso e ninguém melhor do que eu para fornecê-lo”. Em defesa de Corbusier, se havia alguém que podia fazer isso à época, era ele. E, de um jeito ou de outro, Le Corbusier o fez. 

Usando combinações de fotografias, desenhos medidos e esboços, o livro mostra imagens de carros e aviões ao lado do Partenon e da catedral de Notre Dame, considerando as cidades como receptáculos inevitáveis de toda e qualquer tecnologia. Estabelece, assim, cinco princípios-mor de design, que propõem novas formas de construir cidades, com torres de 60 andares implantadas entre vastos jardins e campos desportivos, servidas por auto-estradas de múltiplas faixas, e também blocos de “vilas-apartamentos” de vários andares onde cada casa tem o seu próprio jardim.

Os cinco princípios são:

Os pilotis — Le Corbusier propunha elevar os edifícios do chão, apoiando-os em pilotis (colunas). Essa abordagem permitia a criação de espaços abertos no térreo, liberando o solo para jardins, estacionamentos e uma maior circulação. Os pilotis também enfatizavam a separação entre o edifício e o solo, criando uma sensação de leveza e permeabilidade visual.

A planta livre — Espaços internos de um edifício deveriam ser flexíveis e livres de paredes estruturais, possibilitando uma adaptação fácil dos espaços de acordo com as necessidades dos ocupantes. Com a estrutura sustentada pelos pilotis e sem paredes de suporte, os interiores poderiam ser organizados de forma mais eficaz.

A fachada livre — A fachada de um edifício não deveria mais desempenhar um papel estrutural. Isso permitia a criação de grandes janelas e uma fachada mais leve, enfatizando a relação entre o interior e o exterior. As fachadas poderiam ser projetadas com aberturas generosas para a entrada de luz e ventilação naturais.

A janela em fita — Janelas em faixas horizontais ao longo das fachadas dos edifícios. Simples. Isso não apenas fornecia uma vista panorâmica do ambiente externo, mas também garantia uma distribuição uniforme de luz natural em todo o espaço interno. Essa abordagem transformou a qualidade dos espaços interiores.

O telhado jardim — Le Corbusier acreditava na utilização dos telhados como espaços habitáveis ou de lazer. Essa ideia promovia uma melhor utilização do espaço e incentivava a integração da natureza na arquitetura. Os telhados podiam ser transformados em jardins, áreas de recreação ou até mesmo espaços para atividades ao ar livre.

A maneira como apresentava tais preceitos era também um grande chamariz. Um dos muitos motivos para o sucesso, a abrangência e a longevidade de Por uma arquitetura, é o fato de que a obra conta com um manancial de frases marcantes, dignas de serem usadas facilmente como um ardil que se leva na bolsa ou como palavras que estampam uma camiseta. A mais conhecida delas é a que diz, em tom futurista, que “Uma casa é uma máquina de morar”. Além dela, “A paixão faz das pedras inertes um drama” e “A arquitetura é o jogo sábio, correto e magnífico dos volumes dispostos sob a luz” também entram na lista de citações memoráveis e persuasivas. Para além desse caráter progressista da maioria delas, a veia frasista mostra a importância que mensagens fortes têm, em especial na apresentação de ideias inovadoras que não necessariamente tem uma aplicação prática boa e imediata.

Mas justiça seja feita: Le Corbusier colocou, sim, suas teorias em prática. Para citar algumas obras, ele projetou a Unité d’Habitation em Marselha, um monumental bloco de apartamentos que tirava do papel suas ideias sobre habitação coletiva. Temos também as Maisons Jaoul, um par de casas em um subúrbio de Paris construídas com tijolos de barro e abóbadas robustas. Muitos, no entanto, defendem que ele criou as regras para desrespeitá-las e, portanto, muito do trabalho posterior a Por uma arquitetura se distanciou do que o próprio preconizou anos antes. Mais tarde em sua carreira, especialmente de 1945 adiante, ele rompeu com seu apego a linhas limpas e formas primitivas, explorando concreto áspero e formas curvas de forma livre. Exemplo disso é sua igreja de Notre-Dame du Haut, no topo de uma colina, em Ronchamp, no leste da França.

Unité d’Habitation em Marselha, França. Imagem: Gili Merin

Goste ou não, Le Corbusier foi uma força criativa imponente — e, talvez, egomaníaca — que transformou para sempre a sua disciplina. Seus edifícios inspiraram admiração, às vezes devoção. Como todo ícone, também foi, e é, vigorosamente atacado, como um fanático mecanicista cujas ideias inspiraram torres desumanas e selvas de concreto. Sua visão de planejamento urbano às vezes negligenciava as nuances culturais e as necessidades específicas das comunidades locais. Se, a título de exemplo, analisarmos mais atentamente a ideia de erguer edifícios sobre pilotis para permitir que o jardim se estenda por baixo da residência, logo se percebe que ela é um tanto estranha. Pode mesmo haver um jardim natural sem chuva e luz solar? Simbolicamente, você poderia ver o pilotis como um dispositivo para separar o edifício do solo e uma negação da dependência da terra, ou mesmo como uma afirmação de domínio e controle sobre a natureza. 

Villa-Savoye. Imagem: Paul Kozlowski/FLC/ADAGP

Outro fator muito criticado hoje em dia é que os planejamentos urbanos de Le Corbusier tinham o automóvel como centro. A arquitetura do movimento moderno baseava-se na presunção de combustíveis fósseis baratos e ilimitados, além de outros recursos finitos. É claro que, somente 50 anos depois da publicação de Por uma arquitetura, a consciência começou a ser formada e tal ideia passou a ser questionada. Mas isso em nada ajuda a visão em retrospecto que, para o bem ou para o mal, se dá nestes tempos em que a nossa relação com a natureza é o principal desafio da continuidade humana. Enquanto tentamos, cem anos depois, fazer as pazes com o mundo tanto em termos ambientais quanto sociais, Por uma arquitetura utilizava uma linguagem de limpeza, limpeza e eficiência, de um tipo que tende a apagar tudo o que é esteticamente diferente ou espacialmente diferente. Na argumentação corbusiana, “diferença” ganha conotações extremamente negativas e problemáticas. 

Notre-Dame du Haut. Imagem: Luke Stearns

Além disso, seu envolvimento com regimes autoritários sempre levanta questões éticas e políticas. Ele se tornou cidadão francês em 1930, aliando-se à extrema-direita. Fez parte do comitê de urbanismo da França de Vichy, liderada pelo marechal Philippe Pétain (1856-1951), que colaborou com a Alemanha nazista durante a Segunda Grande Guerra. Argumenta-se que os envolvimentos políticos de Corbusier tinham menos a ver com ideais e mais a ver com uma estratégia para conseguir produzir suas ideias, percebendo que, para tanto, tinha que ter amigos poderosos que lhe concedessem licitações. Isso justificaria a troca de correspondência não só com Adolf Hitler (1889-1945), mas também com Benito Mussolini (1883-1945) e Joseph Stalin (1878-1953). A contra-argumentação, porém, é das mais simples: seja com qual propósito, apertou mãos que não devia.

A fala de Denise Scott Brown, pioneira da arquitetura e arquiteta pós-moderna, sintetiza bem a maneira como Le Corbusier é visto sob a ótica contemporânea: “Amo as casas dele, mas ele não entendia como as cidades funcionam.” Essa é uma boa amostra, acima de tudo, porque respinga para os dois lados, o da admiração e o da rejeição, duas instâncias bem presentes quando o arquiteto é mencionado atualmente em qualquer roda de discussões. Ela continua: “Ele olhou para Nova York e disse que, quando as ruas estão retas, a mente fica clara. Adoro isso, mas quando ele diz que tudo deve ser retangular, está completamente errado. Ele não sabia relacionar nada com nada, não sabia como funcionavam os sistemas de movimento. Le Corbusier escreveu que as cidades da Europa foram construídas por burros, com as ruas moldadas em torno dos seus trilhos. Ele insulta o burro, diz que ele é preguiçoso e anda em círculos quando deveria ir direto. Mas o burro segue o caminho que faz sentido, contornando uma elevação no terreno em vez de passar por cima dela, e é assim que se obtêm os lindos padrões das cidades antigas. O burro não é preguiçoso, é um funcionalista.”

Embora muitas de suas visões tenham enfrentado críticas e desafios práticos — não só no presente, mas desde que foram apresentadas —, elas deixaram uma marca duradoura no pensamento urbanístico e inspiraram discussões sobre como projetar cidades para atender às necessidades das pessoas e ao mesmo tempo preservar o meio ambiente. Diante do centenário de Por uma Arquitetura, é essencial reconhecer que Le Corbusier não apenas moldou a arquitetura moderna, mas também contribuiu significativamente para a maneira como pensamos sobre o espaço e o ambiente construído. Seu legado perdura como um testemunho de como a visão e a inovação podem transformar radicalmente nossa relação com o mundo construído, ainda que com problemáticas vindo de todos os lados. 

Onde quer que ele esteja — possivelmente em um projeto urbanístico que aplica à outra dimensão os 5 princípios-chave da arquitetura — deve estar pensando: “Qu’on parle de moi en bien ou en mal, peu importe.” Ou: “Falem bem ou falem mal, mas falem de mim.”

Le Corbusier em 1953. Imagem: Willy Rizzo.

A Bienal de Arquitetura de Veneza é uma das premiações mais importantes e tradicionais do setor, sendo reconhecida mundialmente. Sua 18ª edição, inaugurada para o público no último dia 20 de maio, tem como temática central “O Laboratório do Futuro”, com destaque para a influência e a indispensabilidade do continente africano na formação do mundo de amanhã. A exposição internacional, com curadoria de Lesley Lokko, conta com 89 participantes. Já a exposição nacional conta com 63 pavilhões. 

Foto: Murdo MacLeod/The Guardian

“Que impacto terá esta Bienal? Que impacto espera ter? Espero que ressoe, que provoque o público a pensar de forma diferente e talvez com mais empatia sobre aquelas partes do mundo que parecem, à primeira vista, ter pouco a ver com ele, que proporcione momentos de alegria, surpresa e curiosidade” 

— Lesley Lokko, curadora da Bienal de Veneza 2023

E, pela primeira vez na história, o pavilhão brasileiro foi agraciado com o Leão de Ouro de Melhor Participação Nacional. A exposição intitulada “Terra”, vencedora do prêmio, foi organizada por Gabriela de Matos e Paulo Tavares, que com inventividade e apuro teórico estimulam uma reavaliação do passado capaz de projetar o futuro. 

Matos e Tavares propõem uma reflexão sobre a arquitetura ancestral realizada por comunidades quilombolas e indígenas, ao mesmo tempo em que investigam a tese de que Brasília foi construída sobre terras originalmente ocupadas por povos nativos, abordando assim um processo de colonização territorial. O pavilhão contempla o passado, presente e futuro do Brasil, com a terra como tema central de discussão tanto de forma poética quanto concreta no espaço expositivo. Ao cobrir completamente o pavilhão com terra, os visitantes são convidados a entrar em contato direto com as tradições indígenas, quilombolas e com a prática religiosa do Candomblé. A instalação site-specific enaltece a abordagem da terra em todas as suas dimensões.

“Terra” também aborda um futuro pós-mudanças climáticas, um porvir onde os conceitos de “descolonização” e “descarbonização” caminharão juntos, quase como noções interligadas e inseparáveis. Práticas, tecnologias e costumes relacionados à gestão e produção da terra, assim como outras abordagens na concepção e compreensão da arquitetura, são fundamentados na terra e carregam conhecimentos ancestrais para ressignificar o presente e vislumbrar futuros alternativos. Esses futuros não se limitam apenas às comunidades humanas, mas também se estendem às não humanas, caminhando em direção a um futuro planetário.

Foto: Rafa Jacinto/Fundação Bienal São Paulo

Com uma estrutura dividida em duas galerias — “De-colonizando o Cânone” e “Lugares de Origem, Arqueologias do Futuro” —, há uma aproximação entre temas emergentes no contexto brasileiro, como reparação e decolonialidade, e tópicos abrangentes e fundamentais no debate global contemporâneo, como descarbonização e meio ambiente. 

O Ministério da Cultura, que destinou aporte ao projeto, comemorou a vitória. A ministra Margareth Menezes, além de prestigiar a presença brasileira no evento, parabenizou os arquitetos vencedores em suas redes sociais por promoverem a cultura brasileira e proporcionarem aos visitantes uma imersão nas tradições indígenas, quilombolas e na prática religiosa do Candomblé.

Gabriela de Matos é criadora do projeto Arquitetas Negras, que mapeia a produção de arquitetas negras brasileiras e pesquisa o racismo estrutural e suas influências no planejamento urbano. Também é professora da Escola da Cidade, em São Paulo, onde é vice-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil no departamento de São Paulo (IAB-SP). Em 2020, foi premiada como Arquiteta do Ano pelo IAB-RJ. Seus trabalhos pesquisam tanto o racismo estrutural e suas influências no planejamento urbano quanto a arquitetura contemporânea produzida na África e sua diáspora. 

O trabalho de Paulo Tavares abre um campo colaborativo voltado para a justiça ambiental e contra-narrativas na arquitetura, operando através de múltiplas mídias. Seus projetos foram apresentados em várias exposições e publicações em todo o mundo, incluindo Harvard Design Magazine, The Architectural Review, e a Bienal de Arte de São Paulo. Além disso, foi co-curador da Bienal de Arquitetura de Chicago 2019 e faz parte do conselho curatorial consultivo da Bienal de Sharjah 2023. No Brasil, lidera a agência de defesa espacial autônoma e leciona na Universidade de Brasília.

Leia nossa conversa com Gabriela e Paulo:

Foto: Matteo de Mayda/Courtesy La Biennale di Venezia/dpa/picture alliance

Do ponto de partida “Laboratório do Futuro”, como chegar à ideia de explorar a arquitetura ancestral realizada por quilombolas e indígenas no pavilhão “Terra”?

Um conceito que sempre foi crucial para nosso projeto é a ideia de que “o futuro é ancestral”, elaborada por Ailton Krenak e o movimento indígena. Há algo de muito profundo nesta ideia do ponto de vista do design, do desenho da paisagem, da produção de uma arquitetura da terra, por assim dizer, terra como chão e planeta. É amplamente comprovado cientificamente — e também através de certificados patrimoniais como recentemente laureado ao Quilombo Kalunga pela UNESCO — que os saberes e as tecnologias de produção e reprodução da paisagem cultivados através de gerações por povos originários e povos africanos diaspóricos são cruciais para enfrentar a encruzilhada existencial que se impõe à espécie humana frente a crise climática global. Por isso olhamos para estes espaços e práticas como tecnologias do futuro, tecnologias ancestrais e ao mesmo tempo radicalmente contemporâneas. 

Foto: Rafa Jacinto/Fundação Bienal São Paulo

Qual foi o processo de pesquisa envolvido na coleta de informações sobre a arquitetura ancestral e sua relação com a colonização territorial em Brasília?

“Coleta de informações” é um termo ruim. O que tentamos fazer, com todas as dificuldades e limitações de um projeto desenvolvido em prazo tão curto, foi estabelecer relações com entidades e lideranças das comunidades e povos que são os autores das arquiteturas apresentadas no pavilhão. Por exemplo, o Terreiro da Casa Branca, as Tecelãs do Alaká, a FOIRN — Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, entre outros. São muitas gentes (sic) e terras que fizeram este pavilhão, a quem agradecemos por compartilhar deste projeto. E também tentamos entender de que maneira o projeto da bienal poderia estar em aliança com o contexto político destas comunidades e organizações. 

Por exemplo, o filme de Day Rodrigues, O Corpo da Terra, uma comissão da curadoria, fala das ameaças ao patrimônio do Terreiro da Casa Branca, em Salvador, primeiro patrimônio negro tombado no Brasil, que nos últimos anos tem visto suas terras ameaçadas pela especulação imobiliária e total descaso do poder público em preservar este patrimônio. Um outro exemplo é o modelo digital da Cachoeira do Iauaretê, desenvolvido em parceria com a FOIRN e a BrTech, que utiliza técnicas sofisticadas de preservação patrimonial digital. Esperamos que estes materiais possam ter uma agência para além de Veneza, fortalecendo a agenda de reconhecimento e proteção destes patrimônios culturais. 

Quais foram os principais desafios enfrentados ao propor uma reflexão sobre o passado para projetar o futuro na exposição? Em especial, como alcançar uma mensagem universal a partir das especificidades contidas no pavilhão “Terra”, como as reflexões sobre Brasília?

Acho que é importante salientar que, apesar de estarmos olhando para questões memoriais, questões relativas à memória e ao patrimônio, não estamos falando do passado no sentido de algo remoto, distante, passado em termos literais. Estamos falando de questões muito contemporâneas, que, sim, certamente refletem sobre a história, mas uma história muito presente. Por isso também não falamos de “arquitetura vernacular” ou “arquitetura tradicional”, ou mesmo “arquitetura popular”, para designar as espacialidades originárias e diaspóricas do Brasil. Estes conceitos são, em muitos sentidos, legados de um sistema colonial de classificação da arquitetura elaborado pela modernidade, que desafiamos no pavilhão através de diferentes camadas e narrativas. Talvez um termo mais adequado seja “arquiteturas ancestrais”, no sentido projetivo que a frase “o futuro é ancestral” de Ailton Krenak carrega. 

Sobre “como alcançar uma mensagem universal”, como você pergunta, achamos que a universalidade da mensagem está justamente no fato de que o pavilhão trata de questões e práticas locais, situadas e históricas, práticas do chão e do solo, mas que assumiram uma dimensão política global, propriamente planetária frente a crise climática, da terra à Terra. Além disso, questões sobre a de-colonização de narrativas canônicas e reparação histórica que abordamos no pavilhão são questões que estão na ordem do debate arquitetônico e artístico contemporâneo mundialmente. Considere, por exemplo, todo o debate sobre a restituição de objetos de arte pilhados de territórios colonizados que hoje encontram-se nos museus europeus, ou o debate sobre a reparação memorial que surgiu com o movimento Black Lives Matter, e explodiu em manifestações mundo afora em 2019. O pavilhão fala sobre o Brasil, mas o Brasil também como epicentro deste movimento global antirracista e de-colonial. 

Foto: Rafa Jacinto/Fundação Bienal São Paulo

Quais foram as reações e feedbacks que receberam dos visitantes da exposição? Houve algum ponto de destaque ou surpresa?

Ficamos muito contentes com a conexão do público com a exposição, especialmente o público não especializado em arquitetura. Parece haver uma relação afetiva com a terra e o chão de terra instalado no pavilhão que traz questões mais amplas sobre nosso futuro, através da arquitetura, mas para além de seu nicho disciplinar. Antes da abertura estava muito úmido em Veneza, havia chovido por dias, e a instalação de terra preservou esta umidade, exalando um cheiro de terra batida molhada por todo o edifício. Criou-se uma atmosfera sensível com a terra, não apenas no nível da representação dos projetos expostos, mas da própria experiência espacial imersiva, da experiência arquitetural do pavilhão. Como escrevemos no catálogo, ao fazer uma crítica às narrativas hegemônicas do modernismo, principalmente através de Brasília na primeira sala, não poderíamos deixar de considerar que o edifício do pavilhão brasileiro no Giardini, uma obra do arquiteto modernista Henrique Mindlin, não é um objeto neutro, dissociado das narrativas e ideologias que sua arquitetura carrega. Logo esta instalação site-specific em diálogo crítico com a arquitetura patrimonial do pavilhão no Giardini, que chamamos de “aterramento”, aterrando o edifício sobre o chão de terra batida. 

De que maneira vocês enxergam a interseção entre arquitetura e questões climáticas no contexto da exposição “Terra”?

Existem vários aspectos onde a articulação entre os termos “de-colonizacão” e “de-carbonização” colocada pela curadoria de Lesley Lokko aparece na exposição. Mais explicitamente no reconhecimento de que saberes e tecnologias indígenas e negras, manifestas em espaços como terreiros, territórios indígenas e territórios quilombolas, apontam caminhos para o enfrentamento da crise climática global de maneira igualitária e sustentável. Veja uma coisa interessante: os espaços de terreiros em Salvador tornaram-se verdadeiras “ilhas ecológicas” em meio à expansão urbana predatória e muitas vezes ilegal (este é o atual conflito enfrentado pelo Terreiro da Casa Branca, que faz parte da exposição, que é o primeiro monumento negro tombado no Brasil e está sob constante risco da especulação imobiliária). Aqui encontramos um saber/fazer de espaços — liderados por mulheres negras identificado por Gabriela de Matos como a origem da arquitetura afro-brasileira — que nos parece fundamentalmente atual para lidar com as mais prementes questões urbanas e ecológicas contemporâneas.

Como vocês vêem o reconhecimento do governo brasileiro, representado pela ministra Margareth Menezes, em relação ao prêmio conquistado pelo pavilhão brasileiro? Vocês acreditam que esse reconhecimento reflete uma mudança de postura em relação ao incentivo à cultura no país?

Ficamos honrados com a presença da ministra Margareth Menezes no evento de abertura do pavilhão. Em seu discurso, Margareth Menezes fez uma leitura sobre o significado do projeto curatorial de Terra para o Brasil contemporâneo. Não é coincidência que este prêmio venha neste momento. O Brasil passa por um momento de reconstrução, de reparação, temas centrais do projeto curatorial. De certa maneira, o Leão de Ouro vir para o Brasil neste momento simboliza uma reparação pelo desmonte ao incentivo cultural dos últimos quatros anos.   

Quais desafios vocês enfrentaram, especialmente no período de gênese do projeto, para realizar a exposição Terra em um contexto em que a cultura foi pouco incentivada? Como pensar além e superar desafios para alcançar o reconhecimento internacional?

Os desafios foram muitos e vieram em escalas diversas. Desde a distância entre nós, pois moramos em cidades e estados diferentes; a dificuldade de, institucionalmente, se entender um projeto que estabeleceu pontos de partida propondo outros cânones, isto é, a partir de epistemologias pretas e indígenas; e, por fim, projetar algo que faz reverência a nossa cultura ao mesmo tempo que não tínhamos, no momento que iniciamos o projeto (out 2022), um departamento em âmbito nacional que estivesse apoiando o campo. No entanto, a presença da Ministra Margareth Menezes na abertura do pavilhão em Veneza afirma o compromisso de sua gestão com uma proposta como a nossa.

Foto: Rafa Jacinto/Fundação Bienal São Paulo

Com esse prêmio histórico, joga-se uma luz sobre o desafio de questionar, ou ao menos ampliar, as narrativas canônicas e expandir assim a compreensão sobre a formação do território brasileiro. Em termos práticos, o que mais pode ser feito para chegar lá?

Em termos práticos, a principal questão é política. As narrativas, imagens e imaginários de outras histórias, memórias, patrimônios, arquiteturas. Tudo isso é fundamental, e também fundamentalmente político, mas não é suficiente. No momento em que esse prêmio histórico chega ao Brasil, reconhecendo as práticas espaciais e territorialidades dos povos originários na Bienal de Arquitetura de Veneza, um dos mais importantes fóruns da arquitetura mundial, vemos um retrocesso absurdo, a continuidade da violência colonial por outros meios, através da aprovação, ocorrida hoje, ao tempo desta escrita, da PL490, que adotou a tese do “marco temporal” na demarcação de terras indígenas. 

O Leão de Ouro nos faz refletir sobre uma questão crucial de um Brasil em reconstrução, um Brasil que deve olhar para sua história como horizonte de um outro possível futuro. Como as políticas de reparação serão implementadas para além de uma questão simbólica, mas sim acompanhadas de ações que garantam os direitos dos povos a terra? Em muitos sentidos, o horizonte político de nosso projeto curatorial Terra é sobre isso, através e além da arquitetura. 

Para o arquiteto, a falta importa. A inexistência de matéria, mais propriamente entendida como vazio, pode ser melhor compreendida a partir das considerações adiante expostas.

A construção do vazio é um dos pontos principais que o arquiteto deve dominar. Isso porque, em primeiro lugar, habitamos o vazio. Nossa experiência com o espaço, seja ela práticaou subjetiva, acontece nele. Assim como um escultor, a partir de um bloco monolítico, esculpe a figura pretendida através da remoção da matéria, o arquiteto se depara com um exercício semelhante em diversas escalas e contextos.

 A expressão “vazios urbanos”, por sua vez, é usualmente empregada pelos urbanistas como espaços negligenciados pela cidade, áreas sem uso, lotes vazios, obstruções físicas que impedem, parcial ou totalmente, a integração urbana. Esses comprometimentos da fluência dos espaços dificultam o acesso e a relação de áreas residenciais com setores comerciais e de serviços, e, o que é mais grave, em alguns casos, criam barreiras e acentuam desigualdades sociais.

Panteão, em Roma.

Quero, porém, ressaltar os necessários — e desejados — vazios que melhoram a qualidade de vida dos habitantes. Por exemplo, um projeto de urbanismo pode ser desenvolvido a partir do reconhecimento dos vazios, como no caso de uma praça, de calçadas mais largas, de um recuo de edificações ou mesmo do recuo das construções em relação ao passeio público, e assim por diante. O respiro, a pausa, o maior espaço e a permeabilidade na circulação dos pedestres se torna fundamental no contexto de nossas cidades mais densas. Ao analisar Manhattan, em lugar de inúmeras praças espalhadas pela cidade, foi idealizado um grande vazio central, o Central Park. Em contrapartida, Londres foi desenhada pontuando jardins menores e fragmentados pela malha urbana, alguns inclusive fechados para uso exclusivo dos moradores das casas que os circundam. Os grandes parques de Londres eram, em sua maioria, campos de caça que posteriormente se transformaram em parques. Evidentemente, as estratégias adotadas nessas cidades para os vazios planejados geram impacto nas dinâmicas sociais.

As cidades brasileiras, por sua vez, são colchas de retalhos de estratégias inspiradas nas principais correntes urbanísticas, a depender da época em que foram implantadas — na maioria das vezes, apenas em áreas privilegiadas da cidade. Nossa carência de vazios planejados é evidente, e os poucos existentes resultam de boas intenções pontuais e muito empenho, como o Parque Augusta e a abertura do Minhocão nos finais de semana,no caso da cidade de São Paulo.


Santa Paula Iate Clube, projetado pelo arquiteto João Batista Vilanova Artigas na década de 1960.

Os vazios planejados são fundamentais para que a vida urbana aconteça em sua plenitude e têm impacto direto na qualidade de vida e na saúde mental de seus habitantes. As cidades precisam ser densas(que não haja equívoco quanto a isso), as pessoas devem morar onde desejam e preferencialmente próximas de onde trabalham. As demandas precisam ser atendidas, mas, tão importante quanto a alta densidade das áreas urbanas, deve haver o contraponto, há que se dimensionar e locar adequadamente os vazios e requalificaraqueles que nos separam.

O vazio também merece protagonismo na escala das construções, seja numa casa, numa capela ou num museu. A proporção do vazio no espaço construído e sua dimensão em relação ao pé direito projetado, somadas as aberturas para a entrada de luz natural, têm influência direta na psique humana, evocando desde o acolhimento e a serenidade até a grandiosidade dos monumentos.

A magnitude do Panteão, em Roma, impacta não pela altura da construção, mas sim pela dimensão de seu vazio interno, coroado pela abertura de luz no topo.

Em um de seus últimos projetos, a reforma da Bolsa do Comércio de Paris, o arquiteto japonês Tadao Ando, que possui grande sensibilidade para o vazio, através de intervenção precisa de empenas de concreto, organizou a circulação em torno do vazio central e reforçou seu protagonismo.

Bolsa do Comércio de Paris, de Tadao Ando.

Vale aqui referir David Byrne, vocalista do Talking Heads, que em uma palestra muito interessante, correlaciona o desenvolvimento de alguns tipos de música ao espaço onde foram criadas, essencialmente a melhor propagação da música no vazio em que surgiram. Cantos gregorianos em catedrais góticas, jazz em ambientes pequenos, rock e punk nos porões.


Planta e corte de uma casa projetada por Felipe Hsu, no interior de São Paulo, em torno de um vazio central.

Nas casas brasileiras, em função das dimensões recorrentes dos lotes de meio de quadra, o vazio em forma de pátio interno, central ou lateral, recurso utilizado desde a Antiguidade Clássica, é ferramenta que permite a entrada de luz, confere permeabilidade visual à construção e agrega vantagens térmicas na implantação do projeto.


Casa em Santa Teresa, projetada pelo arquiteto Angelo Bucci. Foto: Nelson Kon

A ausência de materialidade em determinados pontos da construção é recurso que traz leveza ao objeto edificado. O que em princípio seria pesado e volumoso, pela ausência de matéria no encontro das formas, torna-se delicado e singelo.

O arquiteto brasileiro Angelo Bucci, um dos mestres em transformar o peso do concreto em construções leves que parecem apenas pousar no solo, utiliza empenas que não se tocam — vazios internos e externos que dialogam para criar uma construção rica, essencialmente através dos vazios e da ausência de encontros.

Nos dias atuais, marcados pela velocidade do mundo digital, pelo excesso de informação e pelas rotinas apressadas, o vazio, enquanto elemento chave do projeto, tem essa qualidade imaterial, muito própria e intrínseca, que traz bem-estar, proporciona oportunidade de contemplação e leveza e traz serenidade e respiro para aqueles que têm o privilégio de habitar, trabalhar e circular nos espaços assim projetados.

Lindesnes, na Noruega, é conhecida por suas condições climáticas intensas, que podem transitar da calmaria à tormenta várias vezes ao dia. No ponto mais meridional de todo o país, quando ocorre a confluência das correntes marítimas do norte e do sul, fortes tempestades berram com seu aguaceiro; caso contrário, a paz reina (nunca por muito tempo). 

Nesse cenário, emerge uma figura quase cinematográfica que, à uma olhadela rápida, mais parece a baleia encalhada de La Dolce Vita ou então o grande barco de Fitzcarraldo perdido em terra. Ao exame mais minucioso, porém, eis a mais inusitada, e grata, surpresa: nem baleia nem barco, mas, sim, um restaurante.

Inaugurado em 2019 com um projeto que estabelece um diálogo direto com o seu contexto geográfico, concebido pelo badalado escritório de arquitetura Snøhetta, o Under é o primeiro e único restaurante subaquático da Europa. Para além dos cinco metros e meio abaixo da superfície — que vale para apenas uma parte de sua constituição, enquanto a outra está acima do nível da água —, o conceito de coexistência se faz presente em uma proposta intrigante: com o tempo, cada vez mais, a estrutura do restaurante se tornará partícipe do ambiente marinho. Muito embora soe como aquele argumento de marketing pouco realista, a biologia marítima por trás do projeto explica que a rugosidade da casca de concreto age à semelhança de um recife artificial, acolhendo lapas e algas que nela podem habitar.

Há quem diga que, para a humanidade realmente cuidar melhor do meio ambiente, mais pessoas precisam ver, viver e aprender sobre ele — e essa é a ideia central no projeto do Under. 

O cronograma da experiência, sem considerar a trabalhosa viagem até o local, é: primeiro, torcendo para que as borrascas não atrapalhem, você caminha da costa por cima de uma ponte de cerca de 12 metros até a entrada com painéis de madeira do restaurante; ao adentrá-lo, logo cria-se um clima intimista com uma luz que vai gradualmente diminuindo e, uma vez que se chega ao mezanino, você está na companhia de uma janela que apresenta uma majestosa divisão entre ar e mar, bem no limite entre um e outro; e, finalmente, descendo uma grande escadaria, já com as luzes em seu estado mínimo, você se senta em uma mesa cinco metros e meio abaixo do nível do mar, de cara com as maravilhas e os mistérios da vida subaquática.

Um detalhe interessante, digno de nota por dizer muito sobre o que é e o que representa o restaurante, é que, na língua norueguesa, a palavra “under” tem um significado duplo: na mesma medida em que quer dizer “abaixo”, também quer dizer “maravilha”. 

Como metáfora, podemos pensar tanto na experiência quanto no nome como uma grande história de contrastes — entre água e ar, entre o que está acima e o que está abaixo. Com espaço para até 100 pessoas em uma área de cerca de 500 metros quadrados, o Under é o maior restaurante submarino do mundo. Diante dessa eloquência inegável, e dos entornos às vezes calmos e às vezes furiosos, ressalta-se o delicado equilíbrio ecológico entre a terra e o mar, chamando a atenção para a responsabilidade que temos de adotar modelos sustentáveis de consumo.

Se os seres humanos são compostos principalmente de água e que, portanto, queiramos ou não, estamos tremendamente conectados ao ecossistema aquático, estar no Under permite que as pessoas criem um relacionamento mais profundo com todas as formas aquáticas, refletindo sobre a nossa história antiga.

É como o oceanógrafo e documentarista Jacques Cousteau dizia: “O mar, depois que faz valer o seu feitiço, aprisiona aquela pessoa eternamente em sua rede de maravilhas.”

Rudy Ricciotti vê a arquitetura como um produto do seu contexto, combinando o poder da criação com uma genuína cultura de reconstrução e amplificação dos ecos de outrora. Nascido em 1952, o arquiteto e engenheiro francês já apresentou ao mundo uma série de trabalhos experimentais premiados, que se caracterizam pelo uso inovador de materiais – em especial, o concreto –, aplicados com preciosa imaginação aos mais diversos ambientes.

Ao longo de toda a carreira, Ricciotti nunca quis tomar de refém aquilo que já existe. Distinguindo-se da abordagem arquitetônica praticada amiúde, a destruição não faz parte da sua construção. Sua visão contribui para a fluidez dos espaços, formulando um diálogo entre épocas, sem que uma projete sombras sobre a outra. Como o próprio arquiteto diz, mais do que nunca isso se faz necessário, pois é a partir do discurso e da poesia plural que se faz resistência. Indo contra os ditames da globalização, num só tempo Ricciotti resgata e amplia a beleza, a legibilidade e a funcionalidade da história. Nutrido de uma particular inovação-preservação, prova que é possível agarrar o real com uma mão e, com a outra, reescrevê-lo.

Para citar alguns de seus prêmios e ilustrar a dimensão do impacto de sua obra, só no ano de 2006 ele foi galardoado com o Grand Prix National d’Architecture e com a Médaille d’or de l’Académie d’Architecture. Teve participações marcantes, grifadas pelo pioneirismo, em projetos como: 

Departamento de Artes Islâmicas (Louvre) – Cercado pelas fachadas neoclássicas do pátio Cour Visconti, um véu ondulante de vidro tesselado surge imponente. É o teto da ala dedicada à cultura islâmica, representada pelo tapete, tão presente no ideário do Islã. Com o cuidado de não se sobrepôr às fachadas que a rodeiam, a ala foi elaborada ao lado de Mario Bellini.

Museu Jean Cocteau – Inspirada no clássico de Cocteau, A Bela e a Fera, de 1946, essa concepção cria uma mistura de linhas serpenteantes que, qual o filme, brinca com a luz e a sombra, jogando fumaça sobre o que é sólido e o que é poesia. Ricciotti resgata, assim, um pouco do aspecto sonhador de uma das figuras mais importantes da cultura francesa.

Le 19M, de Rudy Ricciotti para Chanel

Com o 19M, edifício parisiense que reuniu 11 ateliês do Métiers d’Art da Maison Chanel, também pôs em prática suas principais ideias como criador. O número presente no nome representa o dia 19 de agosto de 1883, data de nascimento de Gabrielle Chanel; já o “M” é uma somatória das palavras métiers, mode, mains e maisons – todas relacionadas ao artesanato. Vê-se, portanto, a necessidade latente de abraçar capítulos passados para só então desenvolver o condão de recontá-los, como Ricciotti tanto gosta de fazer.

Evocando visualmente a malha de um tecido de alta costura, o 19M é um edifício triangular de 25 mil metros quadrados e de pura cronologia. Por acolher uma coleção de empresas especializadas, é tido como um manifesto arquitetônico do alardeado savoir-faire francês. Antigo, mas atual; jovem, mas reverente. Mais um típico projeto ricciottesco, em que os microcosmos do agora se adaptam ao macrocosmos de antes – nunca ao contrário.

Em visita ao espaço, vimos de perto o trabalho do arquiteto, além de entrevistar cinco jovens artistas que dividiram com a gente suas concepções sobre moda, alta-costura, modernidade e o relacionamento do setor com a nova geração.

Assista aqui