Imagens do filme You can’t get what you want but you can get me

Por onde começa uma narrativa que questiona e subverte a ideia de família? 

No caso dos artistas Samira Elagoz e Z Walsh, a relação que mais tarde viraria narrativa se iniciou com uma improvável e instigante baforada de anos setenta. Como as pessoas que trocam fotos de gatos dizendo indiretamente “este sou eu”, as primeiras linhas dessa história aconteceram pela troca de fotos de ídolos como Led Zeppelin, Jimmy Page e Robert Plant, que, de alguma forma, refletiam suas personalidades e estéticas. Nessa conversa despretensiosa, foi dada a partida para uma conexão que transcenderia a barreira digital, levando Z a atravessar o oceano para encontrar Sam, indo dos Estados Unidos até Berlim.

 O que começou como uma troca de imagens logo se transformou em trocas de olhares, palavras e toques, e virou uma série de momentos registrados por lentes. Assim nasceu You can’t get what you want but you can get me, curta-metragem sobre o desenvolvimento intenso de uma relação, que inclui a afetuosidade de um para com o outro durante uma mastectomia (retirada da glândula mamária feminina com o objetivo de transformação em um tórax anatomicamente masculino) e sua subsequente recuperação.

 Ou seja, além de cúmplices de vida, são cúmplices de criação. Ambos têm carreiras marcadas pela investigação profunda de dinâmicas de gênero e olhares queer, cada um utilizando seus métodos para contar histórias de desconhecidos, Samira com câmeras de vídeo e Z com câmeras fotográficas. Mas o que torna You can’t get what you want but you can get me particularmente especial é a inversão de papéis envolta em simbiose na qual criadores, sem deixar de lado a vocação de criadores, viram os personagens de uma história compartilhada. O resultado é tão singelo quanto grandiloquente.

 O filme, que ganhou repercussão em festivais de todo o mundo, é um slideshow com fotos menos e mais íntimas, uma coleção de vivências que têm início naquelas primeiras mensagens que já denotavam uma revolução. É uma obra que transita entre o hiperpessoal e o universal, acompanhando o caminhar embrionário de um relacionamento até seu crescimento total e completo, com uma sensibilidade e leveza raras, especialmente em narrativas envolvendo pessoas trans. A escolha por um formato simples, quase cotidiano, reflete o estilo de ambos. Samira, dos documentários, e Z, das fotografias, criam aqui um híbrido visual que une suas potências artísticas e pessoais. A vida imita a arte e vice-versa.

Pelas entrevistas concedidas a posteriori, fica claro que a intenção inicial não era criar qualquer tipo de projeto artístico, mas sim documentar algo especial para ambos. Z menciona que foi quase instintivo capturar cada momento vivido com Samira, dada a intensidade e a novidade do relacionamento. A proposta, porém, mesmo que não de maneira intencional no início, reflete um desejo maior de se apropriar das narrativas trans, frequentemente contadas de fora para dentro e quase sempre com um tom de tragédia ou trauma. Isto é, a narrativa apresentada no curta-metragem também aborda uma questão mais ampla dentro da arte trans: a necessidade de transcender as histórias de sofrimento e superação para incluir narrativas que refletem os pormenores, tão prendados de amor e beleza.

No auge de sua aparente banalidade, You can’t get what you want é um ato contra os estereótipos e a invisibilidade que ainda cercam a comunidade trans. Sentados, em momentos rotineiros, incitam um levante, acreditando piamente que a próxima etapa da arte trans é explorar os espaços intermediários em que a vida como ela é fica sob holofotes e o horror e a glória, que podem até se fazer presentes, não dominam.

Samira e Z não veem necessidade em se justificar e muito menos de educar sobre o que significa ser uma pessoa trans. É uma abordagem T4T (trans for trans ou trans para trans) cujo foco está na conexão e na intimidade, não nas explicações sobre identidade de gênero. O título, que, tendo em vista o apreço da dupla por roqueiros boca-de-sino, ecoa o You can’t always get what you want dos Rolling Stones, deixa claro: você não vai ter o que quer, ou o que acha que quer, você vai ter o que existe aqui e agora. É como se os artistas se vissem como uma forma de arte em si, um processo criativo contínuo e mutável. A ideia de que ser trans é ser um artista, como proposto por McKenzie Wark, ressoa profundamente. Criar-se, moldar-se, especialmente em uma relação que desafia as normas e cria novos paradigmas, é arte por si só.

O filme, que sublinha o apoio mútuo durante a transição, reflete um conceito expandido de família, que vai além da biologia e se fundamenta no reconhecimento e na aceitação plena do outro. A relação de Z e Sam pode ser vista como um novo, possível e revolucionário microcosmo afetivo, pronto para desafiar a normatividade heterossexual.

Pense de novo, Tolstói. Eis uma família feliz à sua maneira.

O filme You can’t get what you want but you can get me é um retrato sutil de intimidade e transição, desafiando as narrativas predominantes sobre experiências trans. O que foi necessário levar em consideração para capturar as camadas do relacionamento de vocês sem cair no didatismo? Foi tudo orquestrado de um jeito que funcionasse ou aconteceu de maneira natural (e, portanto, sem explicações excessivas)?
Sam:
Tanto eu quanto Z, separadamente, construímos nossas carreiras entrando na casa de estranhos com nossas câmeras, Z fotografando e eu filmando. Todo o meu trabalho é sobre conhecer pessoas desconhecidas e criar algo com elas. Mas, com Z, foi diferente. Pela primeira vez, conheci uma pessoa que me interessava sem ter a intenção de filmá-la. Só que aí, desde o primeiro encontro, Z começou a tirar fotos de mim e, de forma natural, seguimos nos documentando e capturando nosso processo de nos apaixonar. Nunca planejamos criar uma obra juntos, apenas começamos a nos filmar. Só meses depois percebemos que isso poderia virar um projeto. O amor veio primeiro, o trabalho veio depois.

Z: Queríamos ir além das narrativas trans estereotipadas que costumam aparecer por aí — histórias voltadas para educar o público cis, que são ou trágicas ou impossivelmente fofas e para cima. No lugar disso, queríamos mostrar algo no meio disso tudo: uma história sobre pessoas trans vivendo vidas comuns e cheias de amor.

Sam: Alguém chamou nosso filme de: “uma história T4T que não pede desculpas a ninguém e que não se preocupa em se explicar para o olhar cisheteronormativo”. Era exatamente isso que queríamos fazer, um trabalho que focasse menos nas nossas identidades de gênero e mais na conexão que temos um com o outro.

 A troca de imagens do Led Zeppelin se tornou um catalisador inesperado para o seu relacionamento e colaboração criativa, especialmente em uma era que não pensa duas vezes antes de rejeitar heróis do passado. De que maneira a importância estética e cultural desses ícones ressoa com seus temas?

Z: Sinto que as pessoas trans não têm a mesma liberdade criativa na expressão de gênero que nossos colegas cis, o que parece contraditório, já que a transgeneridade é baseada quase inteiramente na autocriação. Não é que eu queira ser reconhecido apenas como “um homem”. Sempre achei que os homens mais atraentes são os que têm cabelo longo e usam roupas justas, que não têm medo de um pouco de maquiagem. Então, naturalmente, é esse o tipo de homem que eu quero ser. Não quero ser qualquer um. Quero ser um rockstar dos anos 70. Encontrar Sam foi uma virada de jogo para mim, porque ele não só aceitou minha expressão de gênero, mas a compreendeu de uma maneira que só ele poderia. Nunca conheci ninguém que se expressasse de forma tão semelhante a mim, e foi muito natural explorarmos isso criativamente também.

Sam: Sempre digo que o fanatismo é a 6ª língua do amor. No início do nosso relacionamento, nos unimos pela música, e acho que me apaixonei por Z quando percebi que ele também era um fanboy. No passado, interagi com muitos fanboys, mas eles raramente se importavam com o que eu gostava. Com Z, foi diferente, sua empolgação em compartilhar cultura parecia hiper-romântica. Trocávamos fotos de estrelas do rock como Jimmy Page e Robert Plant da mesma forma que as pessoas enviam fotos de gatos e dizem, “somos nós”. Enquanto a gente passava por nossas transições, enfrentávamos preconceito por causa do nosso cabelo longo e características mais femininas. Foi sintomático criar uma conexão a partir de estrelas do rock que tinham cabelo longo e abraçavam traços femininos sem que ninguém questionasse sua masculinidade.

O filme de vocês tem foco no cotidiano, no mais pessoal, afastando-se das grandes narrativas de sofrimento. Qual é o papel dessa abordagem na reconfiguração da narrativa trans dentro do panorama cultural mais amplo?

Z: Ao longo da história e da cultura pop moderna, os homens trans apaixonados são quase invisíveis. Histórias sobre masculinidade trans muitas vezes são contadas a partir da perspectiva de outras identidades ou, então, em relação a essas outras identidades, num segundo plano. A identidade masculina trans raramente é mostrada como algo que possa se erguer sobre os próprios pés, e não costumamos ser protagonistas. Nossa urgência é criar um espaço onde o amor T4T seja algo natural. Com nosso trabalho, enfatizamos a possibilidade do amor trans como algo profundo, significativo e não centrado em trauma ou tragédia.

Sam: Acho que há algo muito inocente no slideshow. Ele conta uma história de amor quase adolescente, enquanto também mostra a intensidade dos relacionamentos trans. Nos conhecemos e nos apaixonamos como qualquer outro casal, mas temos que enfrentar acontecimentos profundos e transformadores juntos.

 Ao misturar as linhas da vida e da arte, o relacionamento vira um meio criativo. Quais desafios surgem na interação entre suas vidas pessoais e seus papéis como artistas, especialmente em um projeto tão ligado à experiência compartilhada de vocês?

Sam: Em qualquer situação em que a intimidade real é retratada publicamente, seja em uma obra de arte ou em um reality show, você se expõe a ser julgado pelas partes mais privadas da sua vida. Pessoalmente, acredito que há algo de nobre em jogar para o mundo sua vida, suas questões, inseguranças e epifanias, confiando que sua experiência é humana, compartilhada e valiosa.

Se você é um artista de um grupo minoritário ou oprimido, está sempre sendo avaliado pelo que representa e se sua representação é considerada adequada. Qualquer consideração sobre suas virtudes para dirigir, escrever ou editar é totalmente secundária — isso quando ela ocorre. O julgamento é sempre pessoal, voltado para sua aparência ou comportamento, e não sobre como você realiza seu trabalho. Homens brancos cis, por outro lado, receberam essa sensação de neutralidade e, com ela, têm a liberdade de representar outros e contar histórias que apenas observaram. Artistas marginalizados são mantidos a um nível mais elevado de pureza e têm mais a perder se não corresponderem ao que se espera.

Z: Para mim, o desafio de trabalhar junto com o parceiro é bem parecido com os desafios de trabalhar sozinho, só, talvez, um pouco mais intenso, já que há dois corações envolvidos. É o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal, o diálogo interno negativo, a vulnerabilidade inevitável de transformar em realidade as [suas] visões mais profundas. Claro que os riscos parecem grandes quando você compartilha partes do seu relacionamento mais importante em nome da arte, mas acho que foi exatamente por conta desses riscos que aprendi tanto com esse projeto. É uma honra ter seu parceiro como a pessoa que segura um espelho para você ao longo do processo criativo. Você começa a perceber que a forma como lida com sua criatividade respinga para o resto da sua vida e para todos os seus relacionamentos, independentemente de quão próximo você permita que as pessoas que você ama se envolvam no seu trabalho. Essa percepção me fez ser mais intencional na maneira como me relaciono comigo mesmo e com os outros enquanto crio.

 É surpreendente como a ideia de uma pessoa trans ter uma família ainda pode ser vista como algo inesperado, mesmo que isso não devesse causar surpresa alguma. Que mudanças vocês julgam necessárias para tornar o conceito de família mais inclusivo e representativo de identidades e relações diversas?
Z:
Família significa algo diferente para cada um de nós, essa é a beleza da coisa. Eu me sinto muito grato por ter membros da minha família biológica que me apoiam, e tem sido um prazer conhecer a família do Sam também. Mas algo que gerações de pessoas queer sempre entenderam é o conceito de família escolhida. Poder trazer o Sam para perto da minha comunidade queer/trans de irmãos, irmãs e amigos é tão importante para mim quanto apresentá-lo à minha mãe e irmão! E as únicas pessoas com quem me preocupo que entendam esse tipo de família são aquelas que realmente precisam dela.

Sam: No nosso trabalho, algo que achamos importante foi o fato de que nunca tivemos que admitir nada para nossas famílias, nem nos preocupamos em abordar nossas identidades nesse contexto. Elas simplesmente estavam lá, participando das nossas vidas e do nosso projeto. Essa abordagem reflete a normalização de estruturas familiares diversas, fazendo com que o foco esteja nos relacionamentos e nas experiências, não na necessidade de validar ou explicar nossas identidades. Para tornar o conceito de família mais inclusivo e representativo de identidades diversas, é essencial normalizar essas experiências, retratando-as como uma parte natural da vida e abandonando a ideia de que são exceções ou anomalias.

Chuva de Verão Santo Antônio, de Luiz Zerbini, em Paisagens Ruminadas, retrospectiva do artista no CCBB Rio. Foto de Pat Kilgore.

O cineasta Werner Herzog, de filmes do calibre de Aguirre, a cólera dos deuses (1972) Fitzcarraldo (1982) e O Homem-Urso (2005), galgou um lugar muito específico no ideário contemporâneo. Para muitos, ele transcende a figura do diretor, tornando-se um ícone pela força de seus filmes, mas, curiosamente, também por sua persona excêntrica e intransigente. É como se ele não fosse apenas um dos cineastas vivos mais influentes, mas um personagem em si mesmo (ou, para alguns, de si mesmo). É mais do que ser famoso ou não ser, mais do que ser um diretor importante ou não. Wim Wenders, outro alemão com status de lenda, para bem ou para mal, não evoca essa aura sobre si mesmo. O caso de Herzog é único. Cabelos (hoje ralos) frequentemente despenteados, sotaque bávaro robótico, dizeres sobrecarregados de um gravitas que ninguém mais conseguiria proferir e sair incólume — todas essas características são inconfundivelmente herzoguianas. 

Klaus Kinski em Fitzcarraldo. Reprodução.

E é nesse espectro de mitologia fílmica-sobrenatural que se encaixam suas memórias, Cada um por si e Deus contra todos: memórias, lançadas no Brasil pela editora Todavia. 

Não. É claro que não. Essa não é a autobiografia padrão de uma figura pública, de um artista, de alguém que transitou, e ainda transita, pelos corredores de grandes festivais de cinema. Não há muitos vislumbres do que constitui o âmago do diretor, as descrições que ele oferece nesse estágio da vida, octogenário, são ainda mais do que se vê e até do que se sente, mas nunca por que se sente. A palavra “incorrigível” talvez venha a calhar. Há muito da alquimia presente em fatos e questionamentos arrebatadores do mundo — e, para Herzog, nada é mais exuberante que isso. Os lugares e não-lugares, as perguntas respondidas com perguntas, os impulsos animais que são humanamente dignos de atenção. 

“Tenho uma profunda aversão à introspecção em excesso, à contemplação do próprio umbigo. Eu também preferiria estar morto a ir a um psicanalista, porque sou da opinião de que ali ocorre algo fundamentalmente errado. Se uma casa tem uma iluminação muito clara até o último canto, ela se torna inabitável. É o mesmo com a alma, iluminá-la até sua sombra mais escura torna as pessoas inabitáveis.”

Werner Herzog. Getty Images.

Pensando em obras memoriais de outros diretores de cinema, chega a ser difícil traçar comparação. Não há o compasso cronológico que vai de filme a filme, detalhando um ou outro aspecto da produção e salpicando curiosidades interessantes para quem ama aquele corpo de trabalho. Esqueça, por exemplo, as memórias de Sidney Lumet, o ótimo Making Movies (1995), que segue essa lógica e satisfaz ao entregar bastidores de filmes como 12 homens e uma sentença (1957) e Um dia de cão (1975). Herzog encara sua história como encara seus temas, narrando-a com lentidão e tiradas grandiloquentes, mas com a peculiaridade de fugir das perguntas essenciais que ele próprio faria caso não fosse o objeto de estudo. 

 O resultado? Algo sui generis. “À Herzog”. Por vezes indiferente e distante, por vezes mágico e sedutor — sem nunca deixar de surpreender.

Joana do Prado*, diretora, roteirista e professora de roteiro que criou e dirigiu a série Sociedades Matriarcais, fala sobre a influência de Werner Herzog: “É, sem dúvida, uma das maiores influências no meu trabalho. Além de admirar sua alta produtividade, o que mais me liga a ele são o recorte e o tom que ele dá aos seus filmes. A forma como ele conta histórias com uma curiosidade existencialista, investigando a condição humana em diferentes lugares e situações do mundo, é extremamente potente.”

Assim como em seus filmes, Herzog estabelece uma poderosa relação entre o humano e a natureza. Em Cada um por si e Deus contra todos fica claro de quais experiências vieram a vontade de tratar com essa dualidade. “Minha mãe”, escreve ele sobre a agonia materna depois de um ataque dos Aliados, “me encontrou no berço coberto por uma camada espessa de cacos de vidro, telhas e entulho. Eu saíra totalmente ileso, mas minha mãe, em seu medo, pegou a mim e a meu irmão mais velho, Tilbert, e deixou a cidade fugindo para as montanhas até Sachrang, a mais remota de todas as aldeias na Baviera.” Nesse refúgio remoto, encontrou um terreno fértil para sua imaginação juvenil. A partir daí, Herzog começou a forjar sua visão do mundo, que viria a definir seu trabalho criativo ao longo dos anos. Esses e outros relatos sobre sua infância, especialmente evocativos, falam de um tempo em que o cotidiano se mesclava com o extraordinário. O mundo ali era tão fantástico quanto inventado.

“A filmografia de Herzog é uma celebração da complexidade humana e da luta contra as forças naturais e sociais.”

Pensar nas linhas de força do cinema de Werner Herzog é imergir em um vulcão de complexidade e singularidade. Com uma carreira de meio século (e contando) que já soma mais de cinquenta filmes, Herzog intimida historiadores e críticos com suas variações de registro desde os primeiros passos na direção. Ele diz que, no começo de sua carreira, ficou claro que “por conta do meu quase total desconhecimento do cinema, eu teria que inventá-lo à minha maneira.” Por falta de conhecimento ou não, seguia seus instintos — e esses sempre pareciam acertados. O reconhecimento veio rápido, mas muito mais foi sendo alcançado com o tempo. Não demorou a passar de um cineasta respeitado a uma espécie de evento a ser contemplado, uma presença que transcende seu próprio trabalho para se tornar um fenômeno cultural por direito próprio.

“Seu olhar e o destaque que ele dá à força das imagens”, comenta Joana, “são minhas maiores inspirações em suas obras. Como ele mesmo disse há alguns anos, como diretor ele teve a pretensão de formar uma gramática, uma enciclopédia de imagens do nosso mundo. E conseguiu: ele é o único diretor que filmou em todos os continentes. Mais do que simplesmente colecionar imagens, ele dá protagonismo a elas, posicionando-as sempre em primeiro plano e no centro da narrativa, com o uso da música e de sua narração como suportes. Muitas vezes, ele retira a narração e ficamos apenas com a imagem, que adquire vida própria, um estrelato místico.” 

Junto com a postura espectral de sua voz, e em alguns casos a fantasmagoria de sua presença física, seus documentários foram os principais responsáveis por criar a mitologia herzoguiana. Os exemplos de bons filmes que contam com o próprio Herzog são muitos: Little Dieter needs to fly (1997), A caverna dos sonhos esquecidos (2010), Lições da escuridão (1992), Meu melhor amigo (1999) e tantos outros. Em um relato raro do livro — “raro” porque entendemos, a partir de uma relação causal direta, o início de uma característica marcante de sua obra —, o diretor conta que criou sua persona audiovisual ao ser forçado pelo amigo e jornalista Gerhard Konzelmann a aparecer em sua série de documentários, já que a voz em off não era permitida ali. Isto é, cada cineasta participante tinha que aparecer. 

“Esse foi um passo cujo alcance não pude reconhecer totalmente na época, mas que teve grandes consequências.”, relata Herzog. “Eu havia encontrado a minha voz, a minha voz de palco, por assim dizer.”

Certa feita, François Truffaut chamou Herzog de “o diretor vivo mais importante”. É sintomático que alguém tão influente quanto o francês tenha louvado o trabalho do alemão: grandes obras encantam pessoas planeta afora, pois têm o poder de quebrar barreiras geográficas e temporais. É como conta Joana:

“Ao desenvolver a série documental Sociedades Matriarcais, que foi ao ar no ano passado pelo GNT, inspirei-me muito em dois filmes de Herzog, Happy People: A Year in the Taiga (2010) e Visita ao Inferno (2016), tanto na plasticidade das imagens quanto na presença marcante da narrativa. Esses dois elementos guiaram a concepção do projeto, desde os roteiros até as filmagens. Durante os encontros com as matriarcas e com outros personagens dessas sociedades, refinei não apenas meu olhar para a realidade dessas culturas nas escolhas das imagens que as representam, mas também para a mensagem que gostaria de transmitir sobre elas e como fazê-lo. Assim como nas obras de Herzog, a narração permitiu minha participação como personagem, um espaço fundamental para a reflexão sobre essas sociedades sob a perspectiva de uma mulher que cresceu em uma sociedade patriarcal.”

O menino que morava no ponto mais remoto de toda a Baviera, em condição de miséria, realmente conquistou o mundo.

Nas memórias de Herzog há, sim, relatos sobre a produção de filmes icônicos e os atritos com figuras como o escritor de viagens Bruce Chatwin e o alpinista Reinhold Messner. No entanto, isso não parece ser o centro do livro. Esses relatos, claro, oferecem uma janela para espiar a mente do diretor, mas isso não é suficiente para levar um inquieto como ele a se dedicar à escrita memorial. O que de fato fez com que ele se sentasse em uma cadeira para escrever esse material advém de um desejo sedutor de tergiversar, um prazer incontornável de temperar as bordas de um prato já aquecido com a magma da própria lava.

Aliás, um pensamento que ressoa no fundo da mente de quem lê Cada um por si e Deus contra todos: memórias, quase como um subtexto proposital, é: certo… mas será que é verdade? Isso, talvez, seja um dos resultados do enigma que Herzog conjurou sobre si mesmo ao longo dos anos, mas, sobretudo, é fruto de uma escrita que ressoa como um sonho fabricado, apesar de ou talvez por conta de seu distanciamento autoimposto. 

Se isso soa familiar, é porque seus filmes carregam uma aura similar. Ou seja, ao desafiar as convenções da autobiografia tradicional, optando por uma abordagem mais poética e fragmentada, ele encolhe os ombros e se cobre com o lençol da coerência. Em sua prolífica carreira, sempre foi assim. Aqui, por se tratar de um livro de memórias do autor de O Enigma de Kaspar Hauser (1974), o esperado era o inesperado. Isso é, em sua essência mais pura, Werner Herzog, obcecado pelos misticismos que tornam o planeta um lugar tão interessante de se explorar (sendo ele próprio uma figura mítica desse caldo).

A filmografia de Herzog é uma celebração da complexidade humana e da luta contra as forças naturais e sociais. A escrita contida em suas memórias, por sua vez, é uma batalha particular, não contra a natureza (ainda que essa batalha esteja presente) e nem muito menos contra si mesmo, mas contra o tédio para com o mundo e as pessoas que o circundam. 

“Ele celebra a espontaneidade dos acontecimentos que testemunha ou que são testemunhados por terceiros”, sintetiza Joana. “Está em um constante estado de encantamento pela nossa capacidade, enquanto seres humanos, de criar interações complexas com o ambiente ao nosso redor. No documentário The Fire Within (2022), Herzog presta uma linda homenagem às imagens produzidas pelos Krafft, e faz isso de forma solene e muito poética. No curso que dou sobre roteiros de documentários na Roteiraria, uso este filme como exemplo da forma minuciosa com que Herzog constrói não apenas histórias, mas sensações. Nunca é a imagem pela imagem, mas sim a dialética que ele constrói entre o que tangencia nossa realidade e o que está além do tangível, conferindo um significado mais profundo ao que retrata e aos encontros que narra com seus personagens. Ele convida o espectador a dar um giro no olhar, a ir além da superfície e a ver e sentir o mundo junto com ele em uma nova e mais ampla perspectiva.”

Cada um por si e Deus contra todos é um passeio desafiador e saboroso pela sua filosofia pessoal e artística, à semelhança das romarias de muitos de seus personagens. E vale adiantar que, considerando tudo isso — a inquietude incontornável, a vontade de quebrar paradigmas, a obsessão em fazer com que sua história seja maior que si próprio —, o final do livro é perfeito. 

Dá para se perder nas paisagens interiores de um dos cineastas mais originais e controversos de nosso tempo, um homem cuja vida e obra continuam a desafiar e a intrigar, abrindo novos caminhos no cinema e além dele. 

Mas, se alguém se perder, esse alguém que se vire. Lembre-se: é cada um por si. Cada um por si e Herzog contra todos.

*Joana do Prado é diretora, fotógrafa e roteirista. Dirigiu três séries de TV, uma delas ganhadora do prêmio TelaViva. Em 2023, lançou a série documental ‘Sociedades Matriarcais’ no GNT/ Globoplay. Atua também como professora de roteiros na Roteiraria.

Cine Veneza, no filme Retratos Fantasmas.
Foto: Divulgação

O tempo não age somente sobre o que está vivo, no sentido biológico da palavra. Ele age, de um jeito ou de outro, sobre tudo aquilo que existe, ainda que a coisa viva ou não viva sequer tenha noção disso. Kleber Mendonça Filho entende a abrangência democrática da passagem do tempo e, munido de sua voz singular, tão conhecida e celebrada ao redor do mundo, conta uma história sobre cidade, cinema, memória e arquitetura em Retratos Fantasmas, seu mais novo filme. 

Imagem com o cinema São Luiz, em Recife, ao fundo. Foto: Divulgação

Mas veja bem: “entender o tempo” não é acionar o botão da nostalgia. É como próprio diretor disse na coletiva de imprensa do 51º Festival de Cinema de Gramado, onde o filme fez sua estreia nacional em 12 de agosto: “O que me preocupava desde o começo era que eu não queria fazer um filme saudosista, de ‘ai, como as coisas eram tão melhores antigamente’, eu não queria cair nessa coisa. (…) Queria evitar a nostalgia como produto. Eu queria passar direto e pegar na veia do que é um conhecimento histórico. De uma compreensão histórica. Acho que é isso que está nesse filme.”

Entender o tempo é reconhecer o efeito incontornável das mudanças. O que vale para nós, cujos relógios biológicos batem aceleradamente, vale também para as cidades e os cinemas, que sofrerão processos de alteração até que, bem, não sejam mais cidades e nem cinemas. Composto por imagens do acervo pessoal de Mendonça Filho — registros de mais de 30 anos, captados, principalmente, com Super 8, VHS e câmeras fotográficas —, que se juntam a um material de arquivo da Cinemateca Brasileira, do Centro Técnico Audiovisual e da Fundação Joaquim Nabuco, Retratos Fantasmas constrói uma espécie de mosaico de vultos urbanísticos, cinematográficos e pessoais, um labirinto de espectros que habitam o mundo dos “vivos”. Humanos, cidades e cinemas, no fim, estão fadados a virarem fantasmas.

“A minha relação com a cidade”, explicou também em Gramado, “é um pouco como a casa: na sua casa você sabe que, à direita, tem um banheiro e, depois, tem um quarto. Na cidade, você tem o seu próprio mapa pessoal do lugar. Então, para mim [a relação] fazia completo sentido. (…) E, claro, quando você se apaixona por um cinema, você também pode considerar aquele cinema a sua casa.”

Narrando no tom monocórdio-mas-expressivo ideal, o filme apresenta os cinemas como verdadeiros personagens da cidade, partícipes que muitas vezes por meio de seus letreiros fazem (ou fizeram) — voluntariamente ou não — comentários espirituosos sobre a sociedade (pense em “Bye Bye, Brasil”, de 1980), ao aparecer no fundo de inúmeros registros, marcando presença com uma aura quase etérea. Personagens-termômetros que observavam e marcavam a temperatura que sentiam.

As transformações humanas, arquitetônicas e urbanas são expostas a partir de uma lógica de boneca russa, com uma contendo a outra, mas não necessariamente tomando os atributos de tamanho físico como referência para saber qual contém qual. É mais ou menos assim: temos Recife, temos o apartamento de Kleber em Recife e, no apartamento de Kleber em Recife, temos Kleber Mendonça Filho; mas, nesse Kleber, temos o seu apartamento em Recife e, também, Recife em si. O organismo funciona de maneira complementar e contínua.

“O filme começaria sempre na coisa da cidade e dos cinemas, mas, no começo, eu ficava muito incomodado, porque parecia algo meio National Geographic. Aí no processo — esse filme, aliás, teve todo o tempo que precisava, acho importante respeitar o tempo de cada filme —, aconteceu uma coisa totalmente não relacionada mas que, no final das contas, definiu o filme. Nós entendemos que íamos nos mudar, a gente ia sair daquele apartamento, do apartamento em que eu cresci. Isso aconteceu em 2017. Então, 2016 já teve um impacto muito importante na minha cabeça. (…) E a ideia de sair daquele lugar levou um tempo de processamento. E aí eu comecei a entender que era um lugar muito filmado, porque fiz muitos filmes lá, fiz muitos curtas lá, fiz ‘O Som Ao Redor’ lá e, com a chegada dos filhos, muita imagem foi produzida naquele lugar. Imagens domésticas. E aí que o apartamento se transformou na primeira parte do filme. Quando isso aconteceu, o filme entrou no trilho.”

Kleber Mendonça Filho, coletiva de imprensa do 51º Festival de Cinema de Gramado

Para fazer um paralelo estratégico e necessário com o seu primeiro longa de ficção, O Som Ao Redor (2012), que traz muitas cenas dentro do apartamento em que o diretor morou durante muitos anos, o filme é dividido em três partes que sintetizam como as metamorfoses tomam forma. 

Na primeira, o enfoque é justamente esse apartamento, um espaço que passou por muitas transformações ao longo dos anos, tanto em seu próprio raio geográfico quanto em seus arredores. Estabelece-se de maneira orgânica, quase imperceptível — do jeito que grandes filmes costumam operar —, a relação cumulativa e multifacetada que fatores internos e externos têm no processamento de qualquer passagem de tempo. A sutileza, vale dizer, é algo de positivo, pois, em um filme que se volta ao texto narrado, cravar pingos nos is com qualquer tipo de retórica enfática cansaria qualquer um. 

Em nenhum momento, porém, Retratos Fantasmas parece inatingível. Sabe que se fazer de difícil não bateria bem com a gentileza a que o filme se propõe. É mais como se, espargindo um pouco de alma aqui e ali, ele simplesmente deixasse a assimilação para quem quer que esteja assistindo. O realizador conta que “sendo filhos de dois professores de história, a explicação das coisas sempre pareceu interessante, mas não a explicação com autoridade: a sugestão do que talvez as coisas sejam.”

O que acontece nos vizinhos interfere diretamente nas internas do apartamento e o que acontece em cada moradia também ecoa cidade afora. Paisagens urbanas e pessoas, colocadas juntas como um processo simbiótico: é dessa maneira que aquele jovem cineasta — antes, durante e depois da faculdade de Jornalismo —, aparece em alguns momentos, mostrando entusiasmo em criar narrativas dentro de sua casa e sua cidade. Quando um zoom é dado na cara de um Mendonça Filho imberbe (imagina-se que na casa dos 20 anos), o voice over da pessoa que filma diz: “O foco dessa câmera está zero, viu, Kleber”. Há uma leveza que, além de surpreender pela soma de elementos que a priori não deveria desaguar no mar que deságua, também pinta as vestes do filme com cores relacionáveis e deixa tudo mais instigante. A personalidade do diretor, leve por natureza, transparece pela sequência de registros e pela voz recifense que ressoa, o que talvez seja a justificativa para o ótimo resultado inesperado. 

Com a bênção de Agnès Varda, da leveza suave se tira um senso de compreensão dos porquês o cinema, e os cinemas, são tão importantes na vida dele e da cidade retratada com frequência em seus filmes.

A segunda parte, mais voltada para os cinemas, é recheada de gravações antigas de Alexandre, projetista do São Luiz, com quem Mendonça construiu bonita relação. Alexandre executa sua função com destreza, às vezes com métodos próprios — tirar a camiseta para sentir um mínimo de frescor no calor da sala de projeção é um deles —, mas sempre com objetividade. “Por mim, tudo certo”, dizia o projetista sobre suas reações às censuras da Ditadura Militar, “quando acontecia eu voltava para casa mais cedo”. Por essas e outras, é uma personificação carismática, completamente humana, de quem são os cinemas, do que eles representam e do efeito invisível que eles incutem nas pessoas e nas cidades. 

Na seção seguinte, as transformações de muitos cinemas em templos evangélicos ganham a ribalta. Por suas estruturas que se assemelham às de mega-igrejas, muitas salas de Recife (e do Brasil) foram compradas para dar lugar a palacetes de louvor. Apesar do simbolismo que se enxerga na transformação (as salas de cinema sempre foram templos de exaltação divina, certo?), há melancolia na acepção dos fatos. Onde estão os cinemas que tão bem representavam o Brasil, que tão bem refletiam o mundo e os anseios contemporâneos? Aonde foram parar aquelas salas que nos tiravam das ruas somente para, em seguida, com um choque dos bons, nos jogar de volta a elas? Pois bem. Viraram igrejas ou foram substituídos por estacionamentos, símbolos de uma inação epidêmica.

E, então, o epílogo. Muito embora as imagens que aparecem ao longo dos 90 minutos de filme sejam marcantes, o que mais se aloja na memória e na ponta da língua de qualquer discussão posterior é a sequência final, que dissipa os resquícios de melancolia e joga fumaça em cima de tudo. Num momento ficcional, Kleber Mendonça Filho, interpretando ele mesmo, pega um Uber. O motorista que aceita sua corrida é o ator Rubens Santos, que trabalhou também, sempre com eficiência, em O Som Ao Redor, Aquarius (2016) e Bacurau (2019). O diretor lhe diz que está dando um rolê pela cidade para espairecer, olhar ao redor, esvaziar a cabeça antes de deitar, talvez até esquecer que as farmácias espalhadas pelas ruas gritam que a cidade está doente. Ao descobrir que Kleber trabalha com cinema, e adicionar que “cinema é massa”, o motorista diz que tem um superpoder. Tão logo, desaparece. Mas o carro segue em movimento no trânsito de Recife. O volante é guiado por um fantasma que está ali, mas não está ali.

Fantasia e documentário se encontram para dar espaço a um realismo mágico que, enquanto nota dissonante, conclui a sinfonia com uma fantasmagoria humana.

“Eu recebo muito incentivo das pessoas para fazer um filme fantástico, mas a minha sensação é que eu só faço filme fantástico. (…) Com o ‘Retratos Fantasmas’ eu quase fico incomodado com a definição de documentário, porque eu realmente não estava com essa preocupação de ‘estou fazendo um documentário’. E também não quero chamar de filme-ensaio. Não é isso. Também não posso afirmar que é uma ficção, porque, seguindo como o mercado funciona, é difícil dizer. Mas é um filme. Seja lá o que for, é um filme.”

Kleber Mendonça Filho, coletiva de imprensa do 51º Festival de Cinema de Gramado

Godard dizia que “todos os grandes filmes de ficção tendem ao documentário e todos os grandes documentários tendem à ficção”. A frase parece servir como uma luva aos filmes ficcionais e documentais de Kleber Mendonça Filho, que, como em outros momentos de sua carreira, aqui evoca uma beleza que não é autossuficiente e nem espalhafatosa. É um encanto que se faz dos contornos e depende do olhar externo para se fazer completo. 

Cinema São Luiz, anos 1980. Imagem: Divulgação

O que se projeta numa tela está ali e não está ali, são projeções e retratos de algo que já nasce no passado. As pessoas que se foram estão vivas e não estão mais vivas. Dentro de uma casa ou de uma cidade, vivem todos que por ali passam e passaram. O filme de Mendonça Filho é prova disso. É um filme que, tal qual os cinemas, há de nos assombrar por muito tempo.

Do saudosismo, lágrimas. De Retratos Fantasmas, o mais quente frio na nuca. 

Todo mundo que se apaixona é uma aberração

Nem mesmo as oito bilhões de pessoas do planeta são suficientes para preencher o sentimento de ausência que certos traumas cuidam de cultivar. O pediatra e psicanalista inglês D. W. Winnicott (1896 – 1971) dizia, em linhas gerais, que os temores que mais fazem morada no nosso âmago estão relacionados a algo que já vivemos. Isto é, se você tiver sido vítima de um assalto armado, são altas as chances de você reviver o episódio cada vez que sair à rua, desenvolvendo uma relação delicada e sobressaltada com qualquer coisa que remeta à ocasião do trauma. Por já ter acontecido e deixado suas escaras, aquilo tem o potencial de se tornar o mais pontiagudo dos medos. No caso dos relacionamentos, um término custoso pode figurar um vórtex de trauma que vai e volta, tão profundo e complexo quanto o interior de um vulcão O magma está lá, quente e fluido, tomando os formatos do dia a dia e, antes que se note, está a cargo das decisões.

Um repertório emocional carregado a tiracolo serve ora como a shoulder bag da qual tiramos um ou outro item de enorme importância, tal qual um guarda-chuva, ora como a espingarda que cospe fogo à menor ameaça, tomada por um déjà vu daquilo que já nos fez sofrer. Não queremos passar por aquele sufoco de novo, então cada silhueta sombreada na parede se configura à semelhança do passado. Como ignorar o que já foi e colocar os óculos escuros para pisar na estrada de um futuro ensolarado? Há quem não consiga. As projeções sempre estarão lá, minando todo tipo de relação, sendo uma presença que respira pelo pulmão da ausência.

No meio de tanta erupção, “projeção” ganha o formato daquilo que estabelecemos como ideal para nós. O famoso “para mim tem que ser assim e assado”, cuja base, teoricamente, é empírica, mas que sempre vem com uma pitada de capricho pessoal. Procurar um modelo exato no meio de humanos inexatos é a fórmula da decepção. Mas e se essa busca pudesse ser expandida? Digamos, a novos receptáculos de interação. Estamos entrando na era das inteligências artificiais, as IAs — se é que já não estamos afundados nela —, e tudo é possível.

No filme Ela, clássico moderno de Spike Jonze, Theodore está passando por um difícil divórcio. Talvez não especialmente difícil, considerando o quão brutal um divórcio pode ser, mas, de partida, uma separação é algo que por algum tempo nos consome carga emocional. O personagem de Joaquin Phoenix, um escritor (nem um romancista, nem um autor de autoajuda, mas um ghostwriter de cartas pessoais), vem passando por maus bocados depois que anos ruins culminaram no final de seu casamento com Catherine (Rooney Mara). Mesmo no meio da enorme massa populacional da megalópole onde vive e da boa vontade de alguns amigos, a solidão é sua maior companhia durante o processo.

Ela, de Spike Jonze

Em dado momento, ele até vai num encontro às cegas, mas a tentativa acaba não vingando. É nesse estado camuflado, escondido na geografia da cidade grande, que conhece Samantha, seu mais novo sistema operacional. De cara os dois se dão bem, sendo boas companhias um para o outro. Ela é uma voz sem forma física, é verdade, mas isso não impede um relacionamento amoroso. No mundo criado por Jonze, a prática não é incomum, e os temores que afligiam Theo parecem se apequenar perto da cumplicidade oferecida por Samantha. Na medida em que vão se conhecendo e que Samantha vai se descobrindo, ela demonstra insegurança sobre si mesma — mas you feel real to me[SBC1] , rebate o escritor. Até certo ponto, ela era a projeção do relacionamento perfeito que ele nunca teve e uma supressão do que ele não conseguiu manter. E sim, o sexo também está lá, como demonstrado numa inspirada sequência em que uma tela preta representa não só o pináculo sexual de ambos, mas a conexão entre os dois atingindo seu estado mais puro.

Theo sabe bem: estatisticamente, relacionamentos com sistemas operacionais são raros, e é por isso, conclui, que o que tem com Samantha é real. As feridas começam a se deixar fechar aos sopros suaves da voz de Scarlett Johansson. Em contraponto à sua felicidade, ele ouve sua amiga (Amy Adams) relatar o fim de um relacionamento de oito anos, engatilhado por uma discussão boba, e muito humana, sobre onde colocar os sapatos. Se “o passado é uma história que contamos a nós mesmos”, ele finalmente sente que está no controle da narrativa.

Quanto mais Samantha se desenvolve, porém, mais humana ela fica. A eficiência normalmente atribuída às inteligências artificiais aqui significa mais suscetibilidade e uma ampliação progressiva do desejo de explorar mundos e sensações. Muito embora não veja problema nisso a priori, a projeção idealística que Theo tinha no começo passa a desvanecer, e seus erros reverberam, como fariam em uma relação unicamente humana. Quando enfim assina os papéis de seu divórcio, ele acusa o golpe e volta ao estado de isolamento do qual a duras penas saiu, não compartilhando com Samantha suas angústias, a despeito das inúmeras tentativas de aproximação dela. Se um dia ela foi ideal para ele, talvez agora ele não seja mais o ideal para ela. E assim eles se despedem.

Em uma carta para a ex-esposa, a primeira que o vemos assinar com o próprio nome, ele escreve: “Sempre terei um pedaço seu em mim”. De maneira similar a uma inteligência artificial que acumula informações e se aperfeiçoa com o tempo, sempre tentando preencher as lacunas de seu sistema, Theo carregará Samantha e Catherine em si.

 “Pode a consciência existir sem interação?”

Já o filme Ex Machina, dirigido e roteirizado por Alex Garland, dá ares mais fatalistas à ideia de eficiência. É essa competência que nos vem à mente quando pensamos em IA e procedimentos cirúrgicos ou IA e um chat de respostas. Mas e quando isso é aplicado a uma relação, uma troca entre dois seres? Ao passo que nós, no auge de nossa humanidade, temos que lidar com demônios internos, uma inteligência artificial opera para conseguir aquilo que foi programada para conseguir. É uma dinâmica que constitui uma curiosa “vantagem competitiva”.

Ex Machina, de Alex Garland

Ciente desse conceito, o magnata da tecnologia Nathan (Oscar Isaac) sai em busca de um programador da sua empresa: quer alguém de coração mole para conhecer Ava (Alicia Vikander), a versão mais recente de seus experimentos com robôs humanoides. Seu objetivo é ver se ela se aproveitará do ponto fraco do humano para escapar da jaula em que está aprisionada. Escolhe a dedo o traumatizado Caleb (Domhnall Gleeson), que perdeu os pais na adolescência num acidente de carro, sob o falso pretexto de que ele aplicará nela um Teste de Turing — mas em uma versão mais complexa, já que ele não somente tentaria identificar em Ava traços humanos, como também avaliaria a consciência que se conhece o suficiente para saber que não é uma pessoa. Na relação de pai e filha que Nathan tem com Ava, Caleb é uma mera engrenagem, um meio para um fim. Domhnall Gleeson, sempre capaz de evocar profunda empatia, e Alicia Vikander, em seu primeiro grande tour de force, proporcionam interações vibrantes.

Ao encontrar prazer nas conversas, Caleb se depara com o que ele mesmo define como the chess problem: ela tem sentimentos reais ou está simulando? Só mais para frente junta os pontos e descobre as verdadeiras intenções de Nathan, entendendo que até o modelo de Ava foi feito com base no seu histórico de pornografia. Vendo os dois, é difícil cravar quem é mais sozinho: o CEO beberrão que se embriaga diante do original de Jackson Pollock que tem no quarto de sua mansão isolada e hermética, ou Caleb, que, apesar de se considerar uma pessoa boa, ainda sente falta dos pais? O que destrói mais, o vazio orgânico deles ou o artificial-mas-inflexível ímpeto de viver de Ava?

“Tornei-me a Morte, a destruidora de mundos” é uma famosa fala de Robert Oppenheimer (1904 – 1967), criador da bomba atômica, como Caleb lembra em conversa com Nathan. Não à toa.

Se em Ela há uma voz de camadas tão palpáveis quanto qualquer gadget, e em Ex Machina, uma representação ardilosamente física que age conforme os interesses próprios, A.I. — Inteligência Artificial (A.I. Artificial Intelligence) tem em si um combinado desses dois. Essa trinca fílmica, de bases científicas e físicas sólidas, representa bem como o conturbado mundo em que vivemos pode, exatamente como ele é, servir de trampolim para mundos que ainda não aconteceram: mais sci-fi, menos sci-fun. Como veio antes, em 2001, A.I. é como se fosse o pai, ou o irmão bem mais velho, de uma dupla que tomou caminhos divergentes (seguindo a analogia, o filme-pai, inevitavelmente, é Blade Runner — O Caçador de Androides). Ainda que não tenha sido vista assim à época de seu lançamento, a obra de Steven Spielberg é tão sensível quanto ambiciosa.

A.I. — Inteligência Artificial é fruto de uma parceria de Spielberg com um de seus ídolos, Stanley Kubrick (1928 – 1999). Baseado em um conto do escritor Brian Aldiss (1925 – 2017), esse era um projeto de estimação de Kubrick, que por anos o desenvolveu. Ele criou argumentos, fez designs de produção, buscou investimento e, por tudo estar assim tão próximo ao seu coração, reconheceu que não era o nome mais indicado para a empreitada. Quando fez contato com Spielberg, disse que aquela ideia tinha mais a ver com a sensibilidade do diretor, talvez pensando em obras como E.T. ― O Extraterrestre e Contatos Imediatos de Terceiro Grau, que injetam à ficção científica uma grande (e rara) carga emocional. Juntos, foram aos estúdios, apresentando o projeto como “uma mistura de Blade Runner com Campo dos Sonhos”.

“A Fada Azul faz parte da maior falha humana, que é desejar coisas que não existem, ou então do maior dom humano, que é a capacidade de perseguir sonhos

A família Swinton vive uma tragédia: Martin, o primogênito, está em coma e os médicos não demonstram muita esperança. Monica e Henry, pais de primeira viagem, tentam se reerguer, mas é claro que os buracos na estrada dificultam tudo. Paralelamente, o laboratório do professor Hobby desenvolveu o primeiro robô-menino programado para amar e, ansiosos para testar a invenção, procuram os voluntários ideais. O caso dos Swinton parece perfeito, e Henry, sem que sua esposa saiba, adota David — interpretado pelo jovem e já indicado ao Oscar Haley Joel Osment. Com exceção de sua falta de costume e seus movimentos duros, David parece um menino qualquer, assim como o filho que está momentaneamente ausente. E se, no começo, a mãe se mostra incomodada com aquela presença estranha na casa, ela logo se deixa levar pelo enorme carinho que o filho adotivo demonstra. Considerando a linda visão de Hayao Miyazaki sobre o que é uma expressão verdadeira de amor, definida por ele como “quando duas pessoas se inspiram mutuamente a viver”, temos uma manifestação genuína de afeto entre os dois. Ela volta a sorrir, e ele, em seu primeiro contato com o mundo, não faz ideia do que é tristeza.

Para David, deveria ser assim: ele e sua mãe sendo felizes. E isso, ao menos por um período, acontece ― até que Martin volta, depois de um milagre inesperado.

Como um garoto que nem à puberdade chegou, Martin fica às turras com David, criando uma rivalidade fraterna que explora a inocência do irmão, sempre que possível o lembrando que eles não são iguais. Sentindo-se acuado, cada vez mais David quer provar que é humano, chegando ao cúmulo de lotar a boca de espinafre, numa atitude que prejudica seu mecanismo. O médico (ou o mecânico) adverte: “Espinafre é para coelhos, pessoas e o marinheiro Popeye. Não para meninos-robô”. Além de Popeye, outra figura conhecida que ganha destaque é Pinóquio. Monica lê a fábula e David logo se encanta com a possibilidade de, como o boneco de madeira de Gepeto, virar um menino de verdade. Para isso, precisa da Fada Azul, que realizará o seu desejo.

Eventualmente, depois de conflitos que são vistos como ameaças à segurança da família, o casal decide abrir mão de David, devolvendo-o ao laboratório. No caminho até lá, porém, sabendo que mandá-lo de volta significa fazer com que seja descartado, Monica prefere abrir o carro e mandar o filho correr para a floresta, para bem longe do laboratório. Jogado ao mundo, David só consegue pensar na mãe. Agora, custe o que custar, encontrará a Fada Azul. Quer de todo jeito ser um menino de verdade, pois julga que só assim sua mãe o amará de verdade. A longa jornada de David envolve um robô-gigolô (Jude Law), uma carnificina mecânica chamada de Flash Fair e uma Manhattan inundada; uma série de eventos que gira em torno de uma única obsessão: ser amado.

Como Theo foi amado por Catherine. Como Caleb foi amado pelos pais. Como sua mãe chegou a amá-lo, nem que por uma fração de segundo.

O que os traumas nos ensinam é que sempre haverá uma versão melhor da vida, por mais inalcançável que ela seja, e que essa versão vai nos perseguir continuamente com unhas e dentes, nos seduzindo e nos jogando em um estado perpétuo de saudade. Nada pode ser amado com mais intensidade do que aquilo que nos faz falta. E quanto mais artificial se torna o mundo, mais incessante é a nossa busca pelo real.

No fim, estamos todos em busca da Fada Azul.

Sim, talvez existissem presenças negras poderosas nas telas antes de Sidney Poitier — como o ator, musicista, atleta e ativista social Paul Robeson, que brilhou no começo do século XX em tudo que se meteu a fazer —, mas, até Poitier aparecer, não havia em toda Hollywood um protagonista negro que encabeçasse as produções com as maiores bilheterias, capazes de dar inveja a qualquer James Stewart ou John Wayne. Peguemos o ano de 1967 como referência: com Adivinhe Quem Vem Para Jantar e Ao Mestre, Com Carinho, o ator protagonizou dois dos filmes que mais arrecadaram naquele no ano — além de, claro, estrelar ao lado de Rod Steiger o vencedor do Oscar de Melhor Filme, o clássico No Calor da Noite. A euforia incontida com a qual subiu as escadas para receber a estatueta honorária da Academia, em 2002, deixa claro que, quando falamos seu nome, falamos de alguém cujo impacto ultrapassa gerações e vai além do cinema.

Nas entrevistas que formam a espinha dorsal de O Legado de Sidney Poitier, documentário assinado pelo cineasta Reginald Hudlin, Poitier compartilha suas origens em Cat Island, nas Bahamas. Depois de nascer prematuramente, com apenas sete meses de gestação, seu pai estava prestes a enterrá-lo em uma caixa de sapatos, pronto para acabar com o sofrimento do bebê. Foi sua mãe que, num ato de desespero, o convenceu a mudar de ideia, indo atrás de um vidente, que garantiu ao casal que, apesar das dificuldades iniciais, seu filho mais novo teria um futuro brilhante. “Não esperavam que eu sobrevivesse” é a primeira frase que ouvimos ecoar do ator, que nos deixou em janeiro de 2022, com 94 anos de idade. Saber que deveria ter morrido em seus primeiros meses de vida o levou a viver com entusiasmo.

Advinhe Quem Vem Para Jantar (1967), de Stanley Kramer. Sidney Poitier em cena com Spencer Tracy, Katharine Hepburn e Katharine Houghton.

No filme da Apple TV+, é ele, mais Sidney do que Poitier, que conta a sua própria história. Ao lançar mão de imagens históricas e do forte voice over proporcionado pelo ator — fruto de uma entrevista de mais de sete horas que a produtora do filme, Oprah Winfrey, conduziu com ele em 2012 —, Hudlin faz com que a narrativa seja sobre o homem, e não apenas sobre seus feitos. Por mais impressionantes que sejam os capítulos passados em revista, tudo ganha mais vida e intimidade relatados pela pessoa que os viveu. É guiado pela sua voz, marca registrada da sua carreira — impossível não lembrar dele vociferando “They call me Mr. Tibbs!” —, que temos contato com sua história pré-holofotes, vivendo sem eletricidade nas Bahamas. É assim que descobrimos como, num ambiente em que estava cercado de pessoas negras, aquele pequeno menino cresceu sem se importar com a cor de sua pele; e é assim que nos condoemos ao saber como essa realidade caiu por terra quando, na adolescência, se mudou para os Estados Unidos.

No Calor da Noite (1967), de Norman Jewison. Sidney Poitier em cena com Lee Grant.

A cor de sua pele, é verdade, importava. E importava muito. Contra uma indústria que tinha o costume de bater as portas na cara de quem quer que desafiasse o seu establishment, construiu uma invejável carreira numa Hollywood dominada por brancos. Quebrando todas as barreiras que viu pela frente, viu o início de sua ascenção pelos meados de 1955 e, já em 1964, se tornou o primeiro ator negro a ganhar o Oscar de Melhor Ator por sua atuação em Uma Voz nas Sombras, filme de Ralph Nelson em que Sidney interpreta um trabalhador que por um acaso acaba num convento de freiras convictas de que ele foi enviado ali por Deus para construir uma capela. O auge veio em 1967, com um rol de marcos nunca antes vistos, por qualquer ator ou atriz.

Em ensaio para a Vanity Fair, em 2014. Créditos: Larry Busacca.

Mas há quem questione: afinal, qual foi o público que Sidney Poitier encantou? Greg Tate, crítico cultural que aparece no documentário, diz que “seus filmes não foram feitos para negros”. Sua linha de raciocínio é a de que as narrativas dos filmes que Poitier protagonizava eram feitas para o público branco, muitas vezes atenuando cortes profundos e mastigando demais questões complexas de serem engolidas. No entanto, em linhas gerais, O Legado de Sidney Poitier argumenta que esses filmes foram pioneiros em retratar a humanidade das pessoas negros. Era a revolução possível de então e representava pequenos passos para um futuro mais diversificado. 

De um jeito ou de outro, a verdade é que há filmes que não foram bem recebidos pelo público negro. Em particular, há uma cena do filme Acorrentados, de 1958, que até hoje ressoa com polêmica. Dirigido pelo cultuado diretor Stanley Kramer, acompanhamos a história de dois prisioneiros fugitivos, um negro (Poitier) e outro branco (Tony Curtis), que, acorrentados um ao outro, tentam escapar de seus perseguidores e de suas próprias diferenças. Levanta-se debates realmente corajosos à época, em especial para a indústria conservadora em que o filme acontecia, mas, ao fim dos quase 100 minutos do filme, por motivos que a trama assenta bem aos espectadores, Poitier dá as costas à sua própria liberdade ao pular de um trem para ajudar Tony Curtis. 

Cerimônia dos prêmios Oscar de 1964. Gregory Peck, French actress Annabella, Sidney Poitier e Anne Bancroft.

Embora o documentário explore a recepção polarizadora de Poitier dentro da comunidade negra, especialmente nos já citados Acorrentados e Adivinhe Quem Vem Para Jantar, ele o faz apenas fugazmente. O próprio ator fala sobre sua reação a um artigo do jornalista Clifford Mason intitulado Por que o público branco tanto ama Sidney Poitier?, publicado no The New York Times em 1967. Nele, Mason descreve “a síndrome de Sidney Poitier: um cara legal em um mundo totalmente branco, sem esposa, sem namorada, sem mulher para amar ou beijar, ajudando o homem branco a resolver o problema do homem branco”.

Acorrentados (1958), de Stanley Kramer. Em cena com Tony Curtis.
Em 2009, Sidney Poitier recebe a Medalha Presidencial da Liberdade do então presidente Barack Obama. Créditos: J. Scott Applewhite.

Se há alguma verdade na acusação de que seus personagens eram excessivamente perfeitos para serem seguros para o público liberal branco, o ator e ativista não parece perfeito da maneira como é retratado em O Legado de Sidney Poitier, que faz com que se reconheça, pela força de sua narrativa, por que a sua história da vida foi, e ainda é, tão importante. Desde a invenção do cinema, as imagens degradantes de pessoas negras eram constantes — lembram do seminal O Nascimento De Uma Nação, de D.W. Griffith, até hoje visitado por estudantes de cinema? 

Pois bem, Sidney Poitier destruiu essas representações com páthos, intensidade e uma vontade de transformar. Filme após filme, mudou o curso da história de Hollywood e, a partir daí, mudou também um pouco da história do mundo.

O cinema brasileiro pós-Retomada, ou seja, pós-Cidade de Deus (2002), encontrou formas múltiplas de expressão, alcançando uma pluralidade pouco vista até então. Entre as tendências mais significativas do período estavam as dos documentários e aquelas que buscavam o que Beatriz Jaguaribe chamou de choque do real. Nesse contexto, ganharam espaço as produções que faziam uso de imagens hipernaturalistas e as que apostavam nos planos longos emulando o tempo real, em uma ideia de fluxo, para repetir o termo usado por Luiz Carlos Oliveira Júnior. Mas, mesmo nesses filmes que objetivavam revelar a carne do mundo, como escreveu Jaguaribe, a intenção invariavelmente era provocar um “espanto catártico” no espectador. A realidade choca, mas sua representação pode chocar ainda mais, para certo cinema nacional do início do século XXI.

Entretanto, parece ter havido um momento em que nem o espanto dava conta de representar o vivido. Notadamente a partir da virada para a década de 2010, ganharam corpo vertentes de reflexão sobre o real a partir do irreal. Filmes como A alegria (de Felipe Bragança e Marina Meliande, 2010) e Trabalhar cansa (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2011) despontaram abrindo caminhos imediatamente percorridos por outros cineastas e núcleos de produção adeptos da distopia como ferramenta para pensar a realidade. Como se, depois do hiper-real, depois do fluxo que se aproximava ao real, depois do choque, apenas o absurdo fosse suficiente para retratar o país e o mundo hoje.

Isso para parte do cinema nacional, evidentemente. Mas parte significativa. Tanto que, aos poucos, essa vertente foi se mostrando multifacetada, com projetos estéticos bem distintos entre si, dos longas-metragens de gênero, como o musical Sinfonia da necrópole (Juliana Rojas, 2014) e o terror Morto não fala (Dennison Ramalho, 2017), os dramas com apelo fantástico, tal qual A febre (Maya Da-Rin, 2018), e os títulos de caráter ensaístico ou experimental, a exemplo de Riocorrente (Paulo Sacramento, 2013).

A Febre (Maya Da-Rin, 2018)

Nesse conjunto, chama atenção Branco sai, preto fica (Adirley Queirós, 2014), um filme que tem a realidade chocante como ponto de partida na conformação de um imaginário distópico. O pressuposto é o de um documentário: personagens reais convivem com as sequelas das agressões sofridas alguns anos antes em uma festa de black music na qual policiais, em uma batida, mandaram os brancos deixarem o local antes de espancar os negros presentes (o título do filme é a citação literal da ordem de um desses policiais). Contudo, na sucessão de acontecimentos da trama, em uma mudança surpreendente com relação à premissa, a narrativa acaba por incorporar elementos da ficção científica. Enquanto acompanha a vida de Chockito (que perdeu uma perna na ocasião e passou a ganhar a vida como artesão, usando sucata para produzir próteses para outros mutilados) e Marquim da Tropa (que ficou paraplégico e, como DJ, revisita o trauma fazendo música), o diretor também apresenta ao espectador Dimas Cravalanças (Dilmar Durães), sujeito que vem do futuro em busca de provas das atrocidades cometidas pelo Estado contra excluídos. Não há discrepâncias nessa passagem de um registro a outro, visto que o real e o delírio ficcional mostram-se ambos absurdos. E a construção visual os aproxima. A “nave espacial” de Dimas, por exemplo, é um mero contêiner, compatível com o entorno pobre, e as luzes coloridas caóticas em seu interior remetem a ambientes que nada têm a ver com a imagem de um porvir asséptico e purificado das ficções especulativas mais deslumbradas do passado. Há coerência entre a desolação material daquelas vidas e as subjetivações que essa condição produz.

Há de se considerar que é difícil compreender tamanha brutalidade. Mais do que isso, é complexo representá-la, no sentido freudiano e, também, estético. Adirley Queirós, um homem negro vivendo na Ceilândia, próximo aos seus protagonistas, encontrou uma maneira inusitada de fazê-lo, que aproxima o universo fílmico do real ao mesmo tempo que ressalta seu afastamento de qualquer lógica humanista. Quanto mais real, mais tudo aquilo parece ser irreal. É quase uma afirmação de que a realidade é a própria distopia, e vice-versa.

Branco sai, preto fica (Adirley Queirós, 2014)

É interessante pensar Branco sai, preto fica sob essa chave, oito anos após seu lançamento. Por um lado, o longa se integra a um movimento de ocupação de espaços por parte de minorias e ao avanço da luta antirracista ao longo das últimas duas décadas; por outro, pode ser visto como um libelo denuncista das reações contrárias a esse movimento e a essa luta, reações estas que se confundem com a ascensão do bolsonarismo no país. A questão é que, em 2014, o bolsonarismo ainda era discreto, talvez imperceptível, se comparado às proporções que atingiu nos anos seguintes. A contundência do filme, por isso, destoa de grande parte de seus contemporâneos, mostrando-se mais próxima, nesse sentido, de produções posteriores, lançadas à medida que as denúncias de racismo e violência de Estado adquiriram maior urgência, sobretudo conforme os anos 2020 se aproximavam – e Bolsonaro chegava ao poder no país.

Um dos exemplos mais notáveis dessa “filiação”, por assim dizer, de Branco sai, preto fica se dá com Medida provisória (Lázaro Ramos, 2021). Esse filme começa em um registro realista, ainda que com atuações e encenação que lembram o falso naturalismo comum às telenovelas brasileiras, para só a partir do segundo terço da narrativa mergulhar na ideia distópica de expulsão compulsória dos cidadãos brasileiros de “melanina acentuada” rumo ao continente africano. Chama atenção, de cara, o não uso dos termos “preto” e “negro”, em um princípio de negação da raça e, consequentemente, do racismo. “Tenho empregada ‘melaninada’, até amigos assim”, afirma uma personagem branca lá pelas tantas, incorporando o discurso corrente que busca diminuir o preconceito de cor como problema social – sem se dar conta de que o está escancarando. Embora essa sofisticação do texto (a matriz é a peça teatral Namíbia, não!, de Aldri Anunciação, 2011) perca algo de sua profundidade na adaptação à linguagem cinematográfica, trata-se de um espelho rico e contundente da sociedade na qual Medida provisória foi gerado: uma sociedade que perpetua o legado de desigualdade e dominação de classe herdado dos tempos de escravidão a partir de estratégias discursivas que incluem uma falsa harmonia no convívio coletivo. Negar o racismo é um “anti-antirracismo” – disfarçado, sublinhe-se.

Cena do filme Medida Provisória

Outra frase do filme de Lázaro Ramos, esta proferida pelo protagonista Antonio (Alfred Enoch): “Será que a gente nota quando a História está acontecendo?”. É uma espécie de grito a defender que a distopia representa a realidade do Brasil atual. A narrativa também se conecta com episódios pontuais do noticiário recente, sendo o mais proeminente, talvez, aquele que faz a votação da aprovação da medida governamental de expulsão dos “melaninados” do país um simulacro da sessão do Congresso que terminou por afastar Dilma Rousseff da Presidência. O próprio desenvolvimento dessa proposta autoritária de expulsão do território nacional se dá com alguma semelhança do real na medida em que, inicialmente, não se apresenta como tal, e sim como um incentivo, vá lá, respeitoso – basta citar o anúncio oficial veiculado na TV apresentado ainda no primeiro ato do filme: “Seja quem você quiser, viva de acordo com sua raiz. […] Você que quer uma reparação social pelos anos de escravidão: o governo por um Brasil mais justo lhe oferece muito mais: a oportunidade de voltar para a África”. Também na ficção se pode dizer que, até certo ponto, não era possível imaginar o radicalismo de algumas ideias da extrema-direita, apesar dos sinais emitidos previamente.

Quando, em fuga, Antonio e André (Seu Jorge) berram, passos apressados e câmera na mão, que “esse vídeo é para o mundo inteiro nos ouvir: a vida no Brasil está insuportável”, eles estão fazendo um comentário que efetivamente funciona mais como comentário do real do que como construção da ficção que o representa. E isso já bem próximo do desfecho do filme, ou seja, no auge do delírio distópico. Como se a hiper-realidade outrora alcançável pela aproximação do real, via choque ou fluxo, passasse a ser acessada pelo afastamento delirante da fantasia.

Por mais que pareça controverso, por mais que seja relativo apenas à parte da produção, é assim, criando distopias, que o cinema nacional tem pensado o Brasil hoje.