“A Rede Social”, de David Fincher (2010)

Hoje, um punhado de big techs prosperam como monopólios escondidos bem debaixo do nariz do mundo inteiro, como uma confidência amplamente conhecida mas ignorada. Elas formam o núcleo infraestrutural de um universo tecnológico em constante expansão, operando como interfaces digitais praticamente obrigatórias para a troca social e colonizando tanto a vida profissional quanto o consumo privado, além de controlar como verdadeiros mestres titereiros os fluxos de informação e comunicação. 

Mark Zuckerberg prestando testemunho em Washington, 2018. Foto: Alex Brandon-Pool/Getty Images

Tolos são aqueles que acham que a Amazônia ainda é o “pulmão do mundo”. Esse posto, na verdade, foi reivindicado por outro lugar já há algum tempo: o Vale do Silício é quem atualmente faz o mundo girar. 

Exemplo dessa realidade tenebrosa é o que não falta: foram as plataformas digitais que mais favoreceram a ascensão da extrema direita, certo? No Brasil que elegeu Jair Bolsonaro e nos Estados Unidos que elegeram Donald Trump. E, como prova de que estamos totalmente à mercê das idas e vindas dessas grandes empresas, foram elas também que uniram forças para banir o mesmo Trump da esfera pública digitalizada depois que o ex-presidente norte-americano incitou a violência no Capitólio. Embora existam evidências legítimas de que as big techs estão mexendo um pauzinho ou outro para combater a violência política oriunda de suas próprias interfaces — mesmo que, sim, meramente por estarem sob pressão pública e forte vigilância midiática —, esses e outros casos ilustram o crescente poder que essas mega corporações exercem sobre a vida social de todo o planeta. 

E o mais aterrador: em algum nível, esse poder parece ser incontrolável, o que não é necessariamente mau visto por quem acumula mais e mais dinheiro. 

Essas empresas, é óbvio, extraem renda ilimitada de suas respectivas posições na economia digital. Não querem sair do trono onde estão sentadas tão confortavelmente. E, assim sendo, realengas que são, vão em busca de estratégias para ir mais além, chegando a elaboradas técnicas financeiras, que inevitavelmente são traduzidas em lucros estelares e recursos inigualáveis usados para expandir seus monopólios de plataforma em escala e escopo. 

Ou seja, para a surpresa de ninguém, apesar de eventuais discursos apaixonados que dizem o contrário, no fim elas não querem ser capazes de se controlar.

Muito domínio para o própior bem

“O Dilema das Redes” (2020), filme de Jeff Orlowski.

É um caso clássico de um poder que ninguém deveria ter.

As grandes empresas de tecnologia estão exercendo um impacto colossal em diversos aspectos da sociedade. Essas empresas-titãs, por serem donas de tanta magnitude e poder, têm influência determinante em várias áreas devido ao seu alcance global e domínio amplo. Tal poder é exercido em diversas frentes.

Empresas como Google, Amazon, Apple, Meta e Microsoft dominam seus setores, o que lhes confere uma autoridade perigosa. Elas controlam plataformas e serviços essenciais usados por bilhões de pessoas em todo o mundo, o que lhes permite ditar as regras e moldar a experiência dos usuários. É assim que as big techs conseguem acumular enormes quantidades de dados sobre os usuários, desde seus hábitos de consumo até suas preferências pessoais. E esses dados são usados para alimentar algoritmos de aprendizado de máquina e inteligência artificial, permitindo às empresas melhorar seus produtos e serviços, além de segmentar anúncios e personalizar as experiências dos usuários.

É assustador pensar que big techs têm grande influência política, em um nível global, já que elas mantêm laços estreitos com governos e políticos, realizando atividades de lobby e contribuindo para campanhas políticas, o que pode levar a políticas favoráveis às suas próprias agendas e interesses. O impacto delas na economia global é verdadeiramente expressivo, tanto como criadoras de empregos quanto como impulsionadoras de setores inteiros. Por exemplo, empresas como a Amazon têm transformado o varejo e a entrega de produtos, enquanto a Apple e a Google têm moldado o mercado de aplicativos móveis.

Há quem diga que, apesar das novidades tecnológicas do nosso tempo, as grandes empresas de tecnologia apenas aumentam as tendências capitalistas pré-existentes. Em outras palavras, o que é novo não é a tendência ao monopólio, mas sim a comercialização desenfreada de pegadas digitais.

O debate em torno do papel e da influência das big techs continua evoluindo e é importante encontrar um equilíbrio entre a inovação tecnológica e a proteção dos direitos e interesses dos usuários. Mas a amplitude e a profundidade da digitalização vertiginosa nos convidam a repensar a lógica do capitalismo. É uma nova lógica de acumulação, conhecida como capitalismo de vigilância — surveillance capitalism, no termo original —, voltada para extração de dados e modificação comportamental. 

Capitalismo de vigilância e suas implicações

“O Código Bill Gates” (2019), minissérie de Davis Guggenheim.

Essa mutação do capitalismo é a que cobre a abominável e escusa utilização da imensurável quantidade de dados que usuários fornecem gratuitamente a empresas de tecnologias, transformando-a em matéria-prima e produto final altamente lucrativos. Não é necessário pensar em algo fora do comum para visualizar um cenário em que alguém dá à web todo tipo de informação de mão beijada. Preferências, emoções, hábitos, posicionamento político, credo e tantas outras características que a definem enquanto pessoa e que, mais tarde, será usada para fins diversos. 

Todas essas informações são consideradas dados em estado bruto. Às vezes, esses dados são usados para melhorar a experiência do usuário, personalizar conteúdo e anúncios, oferecer recomendações relevantes e aprimorar os produtos e serviços. Mas nem sempre.

5 big techs dominam o universo tecnológico por enquanto, com milhares de plataformas menores orbitando em torno delas e milhões de aplicativos construídos sobre suas costas. São elas: Alphabet (Google), Apple, Amazon, Microsoft e Meta. Com cada uma dessas empresas tendo um monopólio para chamar de seu, as big techs como um todo passaram a colonizar as principais formas e meios de troca social, sobrepondo as formas pelas quais as pessoas costumavam interagir por meio de interfaces digitais. Isso vale para comunicação e informação, para trabalho ou consumo e, ao definir os padrões para kits de ferramentas de software, e liderar o desenvolvimento do hardware para permitir a troca, essas empresas se colocaram como interfaces obrigatórias para todos os tipos de troca na economia digital. 

É uma nova realidade que se sobrepõe à economia e à sociedade, com as big techs operando sob as lógicas de seu próprio jogo, sujeitando cada vez mais o resto do mundo às suas diretrizes imponentes e intrusivas. E bota intrusiva nisso.

O uso indevido de dados pessoais por parte das big techs é uma das grandes questões do mundo atual. Casos de vazamentos de dados, violações de privacidade e escândalos envolvendo o uso de informações pessoais sem o consentimento adequado dos usuários surgiram. Essas questões levantaram preocupações sobre a segurança e a proteção dos dados pessoais nas mãos dessas empresas. Para lidar com essas preocupações, algumas regulamentações de proteção de dados — como o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) na União Europeia e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no Brasil —, foram implementadas para fornecer maior controle e transparência sobre o uso de dados pessoais. Essas regulamentações estabelecem diretrizes sobre a coleta, armazenamento, processamento e compartilhamento de dados pessoais, além de fornecer aos usuários mais direitos e opções em relação ao gerenciamento de suas informações.

Há, portanto, esforços em andamento para regulamentar e proteger a privacidade dos usuários, tentando garantir que o uso dessas informações seja feito de maneira ética e legal. 

Mas quando essas empresas exercem tanto poder e influência na política, na economia e na sociedade, ficamos com a pulga atrás da orelha. Um termo como capitalismo de vigilância devia dar calafrios a qualquer um. 

(Falta de) limites morais

As grandes empresas de tecnologia são entidades comerciais que buscam maximizar seus lucros e crescer no mercado, então é comum que os interesses corporativos prevaleçam sobre os limites morais. Não deveria, mas é. Em muitas circunstâncias, as decisões são tomadas em detrimento de considerações morais ou éticas mais amplas e os casos de empresas acusadas de usar práticas questionáveis ​​de coleta e uso de dados pessoais dos usuários, violando toda e qualquer privacidade, comprovam isso de maneira categórica. Além do que, algumas empresas podem estar dispostas a sacrificar a transparência ou manipular algoritmos para promover determinados conteúdos ou maximizar o engajamento, mesmo que isso signifique a disseminação de informações falsas ou prejudiciais.

O que nos leva, claro, ao episódio recente envolvendo o Telegram e sua infame mensagem que dizia aos usuários que “o Brasil está prestes a aprovar uma lei que irá acabar com a liberdade de expressão”. A empresa, conhecidamente orgulhosa por seu desacato às autoridades — o que acaba sendo seu principal diferencial, quando comparada ao concorrente WhatsApp (ainda que esse não seja moralmente irrepreensível) —, manifestava sua ojeriza em relação ao projeto de combate às fake news que tramita na Câmara dos Deputados. Ir com unhas e dentes contra um projeto que, entre outras determinações minimamente sensatas, criminaliza a divulgação de conteúdos falsos por meio de contas automatizadas e determina a retirada imediata de conteúdos que violem direitos de crianças e adolescentes, transparece a gema obscura do Telegram. E, sabemos, ela não é a única empresa que é contra a regulamentação. O que isso nos diz sobre os valores morais e éticos das big techs?

É claro que nem todas as empresas de tecnologia agem dessa maneira — principalmente, nem todos os funcionários dentro dessas empresas compactuam com tais modus operandi condenáveis. Muitas dessas pessoas têm consciência dos desafios éticos associados à tecnologia e estão pressionando por mudanças internas. Além disso, existem organizações e ativistas que trabalham para aumentar a conscientização sobre essas questões e exigir responsabilidade das big techs. A pressão da opinião pública, a concorrência no mercado e a implementação de regulamentações governamentais podem incentivar as empresas a repensar suas estratégias e considerar mais profundamente as implicações éticas de suas ações. 

Embora os interesses corporativos possam influenciar as decisões das empresas de tecnologia, o que parece fugir à lógica dessas empresas é que é fundamental que haja um equilíbrio entre a busca por lucro e a responsabilidade social. A sociedade como um todo desempenha um papel crucial na definição dos limites que devem ser aplicados a essas empresas, seja por meio de regulamentações governamentais, boicotes, engajamento cívico ou outras formas de pressão. Cada vez mais a tecnologia adentra a vida das pessoas. Por um lado, isso pode ser positivo, quando essas inovações estão atreladas a resolução de um problema humano, por exemplo, ou então facilitam alguma atividade que outrora necessitava de bem mais tempo investido. Por outro lado, essas novas tecnologias podem nos tornar dependentes de certos recursos e, consequentemente, das empresas que nos trazem essas inovações.

Quando os setores de IA dessas empresas crescem desenfreadamente e as equipes de ética diminuem em ritmo similar, fica claro que temos um problema.

Mas as coisas vão realmente bem para as big techs?

Os bancos centrais exercem poder por meio dos mercados financeiros, criando várias interdependências entre domínios e interesses públicos e privados. Esse núcleo de infraestrutura é continuamente refinado por meio da extração e análise de dados, acumulando mais aluguel e poder em um ciclo que aumenta as dependências tecnológicas dos estados. É por essas e outras que os legisladores em todo o mundo precisam controlar o poder crescente das big techs, antes que elas absorvam o poder dos governos eleitos democraticamente: as grandes empresas de tecnologia se tornaram caixas eletrônicos altamente financiados para seus acionistas e executivos. 

Para aqueles que acreditavam que os multibilionários da tecnologia são intocáveis, parece impensável qualquer cenário que não remeta àquela imagem de Tio Patinhas nadando num mar infinito de dinheiro. Mas o futuro talvez não seja tão promissor a essas empresas quanto imaginamos. 

Em 2020, o mundo foi forçado a frear bruscamente. A pandemia forçou as pessoas a mudarem suas vidas profissionais e sociais totalmente. Para a grande tecnologia, isso foi um grande impulso, já que essas transformações apontaram muito para a vida online. As principais empresas de tecnologia atingiram os níveis mais altos de capitalização de mercado na história, o que permitiu com que contratassem e investissem significativamente. Depois de um tempo interminável, as coisas voltaram ao normal e a maioria das pessoas se reajustou do mundo virtual para o real, num balanço funcional entre os dois, deixando as grandes empresas de tecnologia com planos ainda mais megalomaníacos, expostas ao superestimar o crescimento das atividades online. Presumiram, erroneamente, que as pessoas iriam para o mundo virtual e ficariam lá, mas não foi o caso. 

O Fundo Monetário Internacional, por exemplo, descobriu que os gastos online aumentaram de 10,3% antes da pandemia em 2019 para 14,9% em 2020 durante a pandemia, mas depois caíram para 12,2% em 2021 após o levantamento das restrições. A grande tecnologia foi, portanto, forçada a ajustar suas expectativas de crescimento. Mas a volta à normalidade não é a única má notícia na perspectiva da Meta e de outras empresas. 

Como o resto da economia, as big techs sentiram o efeito de uma sucessão de choques. A inflação galopante, o aumento dos preços da energia e a interrupção das cadeias de suprimentos globais têm sido notícias tristes para as famílias, especialmente aquelas com renda mais baixa, e para as empresas, que em alguns casos não tiveram escolha a não ser fechar as portas. As empresas de tecnologia também sofrem. Eles enfrentam custos crescentes e demanda menor em suas principais operações de negócios, como a publicidade da Meta, que perdeu 4% de sua receita no último trimestre. E os bancos centrais aumentaram as taxas de juros, atingindo a indústria de tecnologia, que passou a depender de quantias colossais de dinheiro de baixo custo.

Por outro lado, visto que as big techs respondem ao lobby e têm relações estreitas com políticos e instituições que ditam os caminhos da economia, virou algo frequente nos últimos meses vermos CEOs convocando as pessoas a voltarem a trabalhar presencialmente, devido ao impacto econômico negativo que o trabalho remoto representa para grandes cidades. Um caso recente foi o de um dos criadores do Chat GPT, Sam Altman, que disse que o home office foi “um erro”. Isso só mostra, mais uma vez, que a lua que dita o vaivém das marés dessas empresas é inconstante e moralmente questionável. 

Com um presente em que líderes de Estado são forçados a dividir poder com os Zuckerbergs, Bezos e Musks do mundo, previsões para o futuro talvez não venham a calhar. Melhor pensar no que fazer hoje.

Mas isso só é possível no caso de a tecnologia já não ter mudado o nosso comportamento para sempre.

Um dos fatos relevantes nas eleições ocorridas no Brasil, nesse ano de 2022, foi a emergência de agentes religiosos como protagonistas do jogo político. A participação de líderes, destacadamente pastores e pastoras das igrejas cristãs protestantes neopentecostais, para influenciar e controlar o voto dos fiéis e o alinhamento quase automático da maior parte desses cidadãos à candidatura de extrema direita tornou-os definitivamente protagonistas do jogo e da disputa eleitorais. Esse estado de coisas foi alvo de críticas por parte dos que se incomodaram com a instrumentalização da religião, da Bíblia e do cristianismo na luta política. No entanto, o envolvimento de religiosos e da religião com os jogos do poder no Brasil não é fato novo da história desse país, nem estranho da sociedade brasileira.

A chegada dos portugueses às terras que viriam a ser nomeadas de Brasil é ilustrada, entre outros caracteres, pela cena da missa celebrada por Henrique Coimbra, padre e bispo português. A tela, produzida em 1860, foi inspirada na Carta de Pero Vaz de Caminha, elaborada mais de três séculos antes, enriquece a iconografia da presença religiosa católica como aliada inseparável do projeto político de conquista, desbravamento e introdução da civilização europeia em terras do novo mundo. A formação das cidades, a construção das instituições e das estruturas de poder político no Brasil não podem ser compreendidas sem a influência que sobre todas elas exerceu a Igreja Católica, seja no período do Brasil Colônia, seja no do Império e na República. Recordemos que, na abertura de nossa primeira Constituição, de 1824, a do Império do “Brazil”, anuncia-se o texto em nome da Santíssima Trindade e, no Artigo 5°, está escrito: “A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio”. 

Isso não queria dizer, contudo, que outras religiões, também de matriz europeia, não tivessem já deitado suas raízes sobre essas terras. O reconhecimento de sua presença na Constituição do Império se afirmava com a restrição de sua atuação pública, fora dos templos e do culto doméstico. 

O caminho de ingerência sobre os assuntos do poder e de controle das instituições políticas segundo os interesses religiosos esteve franqueado à Igreja Católica no Brasil, pelo menos até a Proclamação da República. A instauração da Constituição liberal de 1891 marcou a intenção de distanciamento entre religião e Estado. Nela se proibiu tanto aos Estados quanto à União “Estabelecer, subvencionar, ou embaraçar o exercício de cultos religiosos”. Em 1926, na mesma Constituição, o Estado permitiu que “Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim adquirindo bens”. O reconhecimento do exercício público da religiosidade legitimava a pluralidade, embora estivesse quase limitada ao universo do cristianismo. 

As religiões de matriz africana, como o Candomblé, e as originadas do sincretismo afro-brasileiro, como a Umbanda, mantiveram-se em posições sociais e políticas marginais ainda ao longo do século XX. Pelo fato de serem reconhecidas em comunidades onde predominava a população negra, a sua visibilidade pública se tornou mais presente quando líderes e instituições religiosos se aliaram aos movimentos de luta pela defesa dos direitos civis da negritude. Apenas no início do século XXI, o preconceito nas instituições políticas e civis em relação aos cultos e à predominância de cidadãos negros começou a ceder espaço às demandas por maior participação pública e político-institucional desses grupos.

Pode-se considerar a Constituição de 1988 o marco legitimador dessa emergência de uma religiosidade mais plural e pública. Embora não esteja dito com todas as letras que o Estado brasileiro é laico, nela está escrito no artigo 5° que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. O fato de que outros direitos civis estejam afirmados na mesma Carta legitimou a participação secular, civil, política e pública como um elemento inerente e inquestionável à condição do cidadão identificado aos princípios, dogmas, regras e tradições religiosos, quaisquer que sejam eles.

A laicidade, ainda que tenha sido um princípio norteador do espírito dessa Carta Constitucional, não implicou o afastamento das religiões da visibilidade e do envolvimento com os temas de interesse público. Se a religião católica tomou parte nas articulações e na vida política do país desde a chegada dos portugueses, por que não as demais denominações cristãs, aquelas tradicionais de matriz africana, entre outras, não poderiam se fazer vistas e ouvidas em pleno século XXI?

De fato, a separação rígida da religião como um fator de influência sobre a vida pública e civil, as instituições e os poderes políticos das sociedades tem se mostrado menos efetiva, mesmo em sociedades nas quais a laicidade constituiu um princípio fundante e estruturante do Estado. A França, em razão da Revolução de 1789, fez da separação entre Igreja e Estado, religião e poderes políticos, um princípio inarredável para a construção da República. Outros países de tradição protestante, como a Inglaterra, optam por entender a laicidade do Estado atribuindo à autoridade política suprema a primazia sobre a autoridade religiosa. 

No Brasil, a laicidade do Estado é uma noção ainda pouco enraizada social e politicamente. A construção de uma experiência singular da laicidade em sintonia com a história do país, de sua sociedade e de suas instituições é um processo complexo. Ele envolve a manifestação pública da imparcialidade do Estado em face de conflitos do campo religioso. Da mesma forma, ao Estado não caberia se inclinar em suas decisões, formulações políticas e atuação públicas em favor desta ou daquela orientação religiosa. Em face dessa noção, como entender o processo político que se deu nas eleições dos governos estaduais e federal no Brasil de 2022?

A junção entre interesses religiosos e objetivos políticos evidenciou não apenas que a religião pode ser utilizada como instrumento de luta pelo poder político, mas também a intenção de colonização do poder e das instituições públicas foi e é um propósito divulgado à luz do dia por autoridades e representantes religiosos de vários matizes. Inúmeros eventos houve em igrejas católicas e protestantes nos quais os líderes religiosos orientavam, quando não determinavam, o voto dos fiéis em favor de candidaturas específicas. De outro lado, se viram fiéis recriminando padres e religiosos que se manifestavam em favor de certas posições políticas inaceitáveis como: a defesa do armamentismo como fator de pacificação da sociedade, a leniência dos poderes públicos em face da fome dos cidadãos, o silêncio das autoridades governamentais em relação ao massacre de populações indígenas e à devastação ambiental em curso no país. Pregações lastreadas em passagens bíblicas país afora evocaram o mais rasteiro maniqueísmo, que dividiu partidos, grupos políticos, autoridades e lideranças públicas em geral entre aqueles que encarnavam o bem e aqueles que exprimiam as forças do mal. Divisões no interior do catolicismo trouxeram à luz tanto a revitalização do integralismo e do tradicionalismo conservadores ancorados na Igreja do século XIX, assim como no seio do protestantismo se viram manifestar aliados do fundamentalismo original Norte-americano, do início do século XX. 

Aos religiosos identificados ao cristianismo que se alia aos pobres e denuncia os falsos tementes a Deus, àqueles que, piedosos, perdoam as ofensas e recriminam os ultrajes, aos que consolam os aflitos e não zombam da fragilidade e da miséria chocou a adesão explícita de pastores, padres e bispos ao bolsonarismo nu e cru. Nem mesmo a violação de direitos dos indígenas, dos quilombolas, das mulheres estimulada pelo governo Bolsonaro, nem a insensibilidade do presidente em relação aos mortos na pandemia ou a inoperância estatal nos momentos críticos dos hospitais abarrotados de cidadãos em desespero, nada disso demoveu tais religiosos do apoio insuspeito. Não se incomodaram, inclusive, com a identificação dessa autoridade – desacreditada mundo afora – ao Messias, o salvador, o escolhido.

Nos momentos mais tensos da campanha política, sobrepôs-se às propostas e aos debates políticos uma retórica de combate ao inimigo ancorada na linguagem bíblica. Uma plataforma muito suspeita de defesa da família tradicional foi divulgada por políticos atolados em episódios incontáveis que denunciavam a própria hipocrisia moral. Manifestações irascíveis contra a educação sexual nas escolas públicas, o ódio em relação às posições legítimas em defesa de direitos das mulheres, às questões de gênero, às demandas por igualdade de grupos LGBTQIA+ passaram incólumes às autoridades do judiciário responsáveis por julgar o preconceito e a ofensa. Houve até religiosos desejando a morte de cidadãos, fossem os empobrecidos vítimas da violência nas periferias das cidades, fossem as autoridades do Supremo Tribunal Federal de Justiça, fosse o candidato Lula.

Que interesses poderiam conduzir tais práticas tão flagrantemente ofensivas do cristianismo original? A adesão explícita protestante, inclusive de grupos tradicionais outrora zelosos para defender a decência moral, a esse bolsonarismo irascível se explica pela abertura de uma janela de oportunidade. Esteve, e ainda está, em jogo a disputa pela obtenção da hegemonia religiosa que, uma vez conquistada, poderá colonizar de vez as instituições do Estado, assim como as próprias noções de comum e de público, que balizam a percepção dos cidadãos acerca do que diz respeito ao Estado como instância estruturante do todo social e o que é próprio à esfera da vida privada.

Entre os fatores mais elementares da civilidade abalados nessa experiência de instrumentalização da religião no vale tudo pelo poder, está um dos pilares mais fundos que sustentam as democracias: a convivência respeitosa, equânime e paciente entre os diferentes cidadãos. O enraizamento e a sedimentação de uma experiência da laicidade são desafios inadiáveis que se apresentam à sociedade brasileira. Será inútil buscarmos uma noção essencialista que estabeleça uma forma para a sociedade no interior da qual ninguém se localize.  Para que a liberdade política, de pensamento e de manifestação da opinião sejam a pré-condição e os sustentáculos da liberdade religiosa, será necessário recuperarmos os exemplos vários em nossa história nos quais as religiões serviram de instrumentos em favor da exclusão: de homens e mulheres simplesmente identificados aos diferentes desalmados, aos inimigos, aos hereges, aos ímpios, aos indesejáveis. Apenas a experiência da laicidade vigilante face às intenções de colonização das instituições públicas por orientações religiosas específicas a favor da exclusão de outras orientações politicamente legítimas será capaz de nos recolocar nos trilhos da construção de uma sociedade democrática. Façamos por onde a fim de responder a esse tremendo desafio.

Na canção-assinatura dos Novos Baianos, Mistério do Planeta, ouvimos a síntese perfeita de tudo aquilo que uma conexão humana deveria ser — Pela lei natural dos encontros, eu deixo e recebo um tanto. A ideia é simples, mas precisa: para que haja qualquer tipo de contato real em nossas relações, para que energias distintas se somem e criem rajadas efetivas de comunicação, a troca se faz necessária. Um encontro, afinal, não pode nunca acontecer de maneira unilateral, não é verdade? Talvez, se formos nos apegar tão somente à lógica do conceito, sim, é verdade, os encontros são, por natureza, uma via de mão dupla. No entanto, nos atendo aos fundamentos da vida atual, em que temos um controle quase ditatorial de nossas relações pessoais, a frase cantada pelo saudoso Moraes Moreira no álbum Acabou Chorare (1972) ganha novos contornos — pela lei natural dos encontros modernos, deixamos o que der na telha e recebemos apenas o que quisermos.

“Pela lei natural dos encontros, eu deixo e recebo um tanto.”

Estes stories pseudo-cults são chatos, nada a ver, não querem dizer nada? Unfollow nessa pessoa. Este conhecido da escola vota naquele político? Unfollow nele também. Opa, este TikTok é exatamente o que você procura? Bendito seja o algoritmo! A partir de agora, você vai receber um caminhão de conteúdo igual. E emojis e mais emojis de coração para o mundo hermético em que, não por coincidência, as pessoas pensam e votam como você. 

O livre-arbítrio de segmentar ao extremo nossas relações virtuais a bel-prazer pode ter um efeito negativo gigantesco em nossas relações pessoais, uma vez que a vida digital, em termos bastante comedidos, pulsa tão forte quanto a vida real. A polarização que vivemos não vem da discórdia propriamente dita — vem do distanciamento voluntário de tudo e todos que não compartilham de nossas opiniões. Os encontros não viraram colisões, eles na verdade foram sombreados pela autopreservação.

Os encontros, aliás, agora no sentido date da palavra, servem bem como indicativo da profundidade à qual a coisa toda chegou. Foi-se o tempo em que política e relacionamentos eram sinônimos de água e óleo, quando um simplesmente não batia com o outro. Isso, analisando em retrospecto, por óbvio não fazia qualquer sentido e estava a anos-luz do que seria ideal. Relacionar-se, romanticamente ou não, sem trocar visões políticas, não faz bem a ninguém. Porém, hoje em dia, a água e o óleo de outrora estão mais para leite e Nescau em pó, misturando-se como princípio e criando um gosto próprio de norma. De tão eu-aqui-e-eles-lá que estamos — especialmente às vésperas de eleições presidenciais —, a política se faz presente até nos aplicativos de relacionamento.

“emojis e mais emojis de coração para o mundo hermético em que, não por coincidência, as pessoas pensam e votam como você”

Um passeio rápido pelas bios de Tinder, ou de qualquer outro app similar, nos mostra um sem-fim de frases com posicionamentos políticos que se impõem como condição irrevogável para que qualquer futura relação possa acontecer. Parece inacreditável, mas aconteceu: nem mesmo o sexo é capaz de quebrar esse rol de barreiras construídas com tanto afinco, nem mesmo ele tem o poder de permitir que duas manifestações políticas se encontrem e se enriqueçam — não tem sequer a capacidade de fazer com que esses pontos de vista coexistam num mesmo espaço dialogal, ainda que se esgrimindo num vozerio que, porventura, não leve a lugar algum. 

Tomando de empréstimo o popular bordão de Isabelle Drummond na novela Caras e Bocas: é a treva!

O momento histórico traz à mente o filme A Bolha Assassina (1958), clássico do horror B hollywoodiano, dirigido por Irvin Yeaworth e protagonizado pelo ainda desconhecido Steve McQueen, em que um meteorito gosmento cai próximo a uma pequena cidade norte-americana (o roteiro abstrai-se de fazer quaisquer explicações mais detalhadas sobre o detrito vindo do céu). Envolvendo tudo que vê pela frente — de pessoas a lanchonetes —, e ganhando força a cada engolição, a bolha não para de crescer. 

Como não poderia ser diferente, a cidade entra em fuzuê diante daquela massa indestrutível, estranha, disforme, sem rosto — isso até o personagem de McQueen descobrir que, no final das contas, o monstro tem um ponto fraco: baixas temperaturas. Numa resolução típica de ficção científica, cujas mensagens mais elaboradas se anunciam timidamente por trás da envolvente trama principal, a cidade junta gente de todo o tipo para, com extintores coletados nas escolas e fornecidos pelos bombeiros, congelar a bolha-inimiga.

Se a cada unfollow ou fuga de um possível constrangimento — ação também extremamente comum quando diante de alguém que explicita opinião política contrária — acabamos por cortar laços com aquilo que não nos diz respeito, a cada unfollow ou fuga nós aumentamos a nossa bolha, isolando-nos assustadoramente em nós mesmos. Diferente do filme de horror B, não temos Steve McQueen para nos salvar, no auge de seu heroísmo, do mal que nos assola. A lei dos encontros já não é mais tão poética e natural como a dos Novos Baianos — uma grande ameaça digital, política e social paira sobre as cidades da nossa existência.   

As bolhas não param de aumentar e, no processo, nossos mundos é que vão ficando cada vez menores.

O cinema brasileiro pós-Retomada, ou seja, pós-Cidade de Deus (2002), encontrou formas múltiplas de expressão, alcançando uma pluralidade pouco vista até então. Entre as tendências mais significativas do período estavam as dos documentários e aquelas que buscavam o que Beatriz Jaguaribe chamou de choque do real. Nesse contexto, ganharam espaço as produções que faziam uso de imagens hipernaturalistas e as que apostavam nos planos longos emulando o tempo real, em uma ideia de fluxo, para repetir o termo usado por Luiz Carlos Oliveira Júnior. Mas, mesmo nesses filmes que objetivavam revelar a carne do mundo, como escreveu Jaguaribe, a intenção invariavelmente era provocar um “espanto catártico” no espectador. A realidade choca, mas sua representação pode chocar ainda mais, para certo cinema nacional do início do século XXI.

Entretanto, parece ter havido um momento em que nem o espanto dava conta de representar o vivido. Notadamente a partir da virada para a década de 2010, ganharam corpo vertentes de reflexão sobre o real a partir do irreal. Filmes como A alegria (de Felipe Bragança e Marina Meliande, 2010) e Trabalhar cansa (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2011) despontaram abrindo caminhos imediatamente percorridos por outros cineastas e núcleos de produção adeptos da distopia como ferramenta para pensar a realidade. Como se, depois do hiper-real, depois do fluxo que se aproximava ao real, depois do choque, apenas o absurdo fosse suficiente para retratar o país e o mundo hoje.

Isso para parte do cinema nacional, evidentemente. Mas parte significativa. Tanto que, aos poucos, essa vertente foi se mostrando multifacetada, com projetos estéticos bem distintos entre si, dos longas-metragens de gênero, como o musical Sinfonia da necrópole (Juliana Rojas, 2014) e o terror Morto não fala (Dennison Ramalho, 2017), os dramas com apelo fantástico, tal qual A febre (Maya Da-Rin, 2018), e os títulos de caráter ensaístico ou experimental, a exemplo de Riocorrente (Paulo Sacramento, 2013).

A Febre (Maya Da-Rin, 2018)

Nesse conjunto, chama atenção Branco sai, preto fica (Adirley Queirós, 2014), um filme que tem a realidade chocante como ponto de partida na conformação de um imaginário distópico. O pressuposto é o de um documentário: personagens reais convivem com as sequelas das agressões sofridas alguns anos antes em uma festa de black music na qual policiais, em uma batida, mandaram os brancos deixarem o local antes de espancar os negros presentes (o título do filme é a citação literal da ordem de um desses policiais). Contudo, na sucessão de acontecimentos da trama, em uma mudança surpreendente com relação à premissa, a narrativa acaba por incorporar elementos da ficção científica. Enquanto acompanha a vida de Chockito (que perdeu uma perna na ocasião e passou a ganhar a vida como artesão, usando sucata para produzir próteses para outros mutilados) e Marquim da Tropa (que ficou paraplégico e, como DJ, revisita o trauma fazendo música), o diretor também apresenta ao espectador Dimas Cravalanças (Dilmar Durães), sujeito que vem do futuro em busca de provas das atrocidades cometidas pelo Estado contra excluídos. Não há discrepâncias nessa passagem de um registro a outro, visto que o real e o delírio ficcional mostram-se ambos absurdos. E a construção visual os aproxima. A “nave espacial” de Dimas, por exemplo, é um mero contêiner, compatível com o entorno pobre, e as luzes coloridas caóticas em seu interior remetem a ambientes que nada têm a ver com a imagem de um porvir asséptico e purificado das ficções especulativas mais deslumbradas do passado. Há coerência entre a desolação material daquelas vidas e as subjetivações que essa condição produz.

Há de se considerar que é difícil compreender tamanha brutalidade. Mais do que isso, é complexo representá-la, no sentido freudiano e, também, estético. Adirley Queirós, um homem negro vivendo na Ceilândia, próximo aos seus protagonistas, encontrou uma maneira inusitada de fazê-lo, que aproxima o universo fílmico do real ao mesmo tempo que ressalta seu afastamento de qualquer lógica humanista. Quanto mais real, mais tudo aquilo parece ser irreal. É quase uma afirmação de que a realidade é a própria distopia, e vice-versa.

Branco sai, preto fica (Adirley Queirós, 2014)

É interessante pensar Branco sai, preto fica sob essa chave, oito anos após seu lançamento. Por um lado, o longa se integra a um movimento de ocupação de espaços por parte de minorias e ao avanço da luta antirracista ao longo das últimas duas décadas; por outro, pode ser visto como um libelo denuncista das reações contrárias a esse movimento e a essa luta, reações estas que se confundem com a ascensão do bolsonarismo no país. A questão é que, em 2014, o bolsonarismo ainda era discreto, talvez imperceptível, se comparado às proporções que atingiu nos anos seguintes. A contundência do filme, por isso, destoa de grande parte de seus contemporâneos, mostrando-se mais próxima, nesse sentido, de produções posteriores, lançadas à medida que as denúncias de racismo e violência de Estado adquiriram maior urgência, sobretudo conforme os anos 2020 se aproximavam – e Bolsonaro chegava ao poder no país.

Um dos exemplos mais notáveis dessa “filiação”, por assim dizer, de Branco sai, preto fica se dá com Medida provisória (Lázaro Ramos, 2021). Esse filme começa em um registro realista, ainda que com atuações e encenação que lembram o falso naturalismo comum às telenovelas brasileiras, para só a partir do segundo terço da narrativa mergulhar na ideia distópica de expulsão compulsória dos cidadãos brasileiros de “melanina acentuada” rumo ao continente africano. Chama atenção, de cara, o não uso dos termos “preto” e “negro”, em um princípio de negação da raça e, consequentemente, do racismo. “Tenho empregada ‘melaninada’, até amigos assim”, afirma uma personagem branca lá pelas tantas, incorporando o discurso corrente que busca diminuir o preconceito de cor como problema social – sem se dar conta de que o está escancarando. Embora essa sofisticação do texto (a matriz é a peça teatral Namíbia, não!, de Aldri Anunciação, 2011) perca algo de sua profundidade na adaptação à linguagem cinematográfica, trata-se de um espelho rico e contundente da sociedade na qual Medida provisória foi gerado: uma sociedade que perpetua o legado de desigualdade e dominação de classe herdado dos tempos de escravidão a partir de estratégias discursivas que incluem uma falsa harmonia no convívio coletivo. Negar o racismo é um “anti-antirracismo” – disfarçado, sublinhe-se.

Cena do filme Medida Provisória

Outra frase do filme de Lázaro Ramos, esta proferida pelo protagonista Antonio (Alfred Enoch): “Será que a gente nota quando a História está acontecendo?”. É uma espécie de grito a defender que a distopia representa a realidade do Brasil atual. A narrativa também se conecta com episódios pontuais do noticiário recente, sendo o mais proeminente, talvez, aquele que faz a votação da aprovação da medida governamental de expulsão dos “melaninados” do país um simulacro da sessão do Congresso que terminou por afastar Dilma Rousseff da Presidência. O próprio desenvolvimento dessa proposta autoritária de expulsão do território nacional se dá com alguma semelhança do real na medida em que, inicialmente, não se apresenta como tal, e sim como um incentivo, vá lá, respeitoso – basta citar o anúncio oficial veiculado na TV apresentado ainda no primeiro ato do filme: “Seja quem você quiser, viva de acordo com sua raiz. […] Você que quer uma reparação social pelos anos de escravidão: o governo por um Brasil mais justo lhe oferece muito mais: a oportunidade de voltar para a África”. Também na ficção se pode dizer que, até certo ponto, não era possível imaginar o radicalismo de algumas ideias da extrema-direita, apesar dos sinais emitidos previamente.

Quando, em fuga, Antonio e André (Seu Jorge) berram, passos apressados e câmera na mão, que “esse vídeo é para o mundo inteiro nos ouvir: a vida no Brasil está insuportável”, eles estão fazendo um comentário que efetivamente funciona mais como comentário do real do que como construção da ficção que o representa. E isso já bem próximo do desfecho do filme, ou seja, no auge do delírio distópico. Como se a hiper-realidade outrora alcançável pela aproximação do real, via choque ou fluxo, passasse a ser acessada pelo afastamento delirante da fantasia.

Por mais que pareça controverso, por mais que seja relativo apenas à parte da produção, é assim, criando distopias, que o cinema nacional tem pensado o Brasil hoje.