#3MedoArtigo

O espelho

por Nuria Basker

Desenho, de Beatriz Chachamovits

No meu quarto tem um espelho. Eu olho de frente e, em vez de uma, são duzentas, duzentas e vinte imagens. Vejo as vencedoras e as perdedoras, as belas e as cegas, as certezas e o futuro. Vejo quem eu nem reconheceria. Uma senhora de noventa e sete anos tenta pegar um copo d’água, as mãos finas mal alcançam. As mãos finas são as minhas. Vejo ainda uma criança, loira. Espera. O que meu nariz está fazendo na cara dela? Ai, se eu pego essa menina. E de pensar que uma das duzentas, duzentas e vinte, a pior delas, seria capaz de maltratar uma criança.

Lá no fundo estão a enfermeira, a policial, a louca e a assistente social. Todas conversam com a que queria maltratar uma criança. Facilmente a dissuadem. A executiva politicamente correta, bem na frente, aplaude. Eu tenho medo de tanta gente. Eu tenho medo das que duvidam de mim. Eu tenho medo das que me incentivam com segundas intenções. Eu tenho medo de mim. Preciso saber falar tantas línguas que até do código masculino preciso entender (umas quarenta, quarenta e cinco imagens são de homens). Eu olho no espelho todo santo dia e nenhuma delas parece morrer. Pelo contrário, algumas acreditam em espíritos, o que só multiplica a multidão multidisciplinar. Duas ou três rainhas (sendo uma africana), guerreiros, Mata Hari, um médico chinês, camponeses, Cleópatra e uma etrusca sonhadora usando brinco de ouro. Tento buscar a escritora, o guru, o anjo decaído, a centrada, a dançarina, a deusa do prazer. Eu tenho medo de não agradar os que tanto gosto. Sei que todos estão lá e mando mensagens. Um beijo, uma piscada, uma oração, um poema, uma dúvida. À noite, apago a luz e meus sonhos continuam conversando com o bendito especulador. O que me vê. O espelho. O que me dá medo.

#3MedoArtigo

Medo

por Léo Coutinho

Modular, de Beatriz Chachamovits

Em 2002, a atriz Regina Duarte provocou polêmica ao aparecer no programa eleitoral do então candidato José Serra dizendo que sentia medo diante da possibilidade de ver o Lula lá e o Brasil tragado por um turbulento retrocesso econômico. Assim como ela, a parcela da sociedade que pode distinguir impressão de estabilidade com estabilidade de fato sofria a mesma sensação. Em função de cinco ou seis crises estrangeiras, o Brasil estava economicamente triste, enfermo, mas, diante do quadro internacional, todos seus índices estavam melhorando. Quer dizer, o remédio amargo que é o tripé do Plano Real estava funcionando: câmbio flutuante, metas de inflação e responsabilidade fiscal.

Levando em consideração que o PT votou contra o Plano Real e contra a Lei de Responsabilidade Fiscal, qualquer um sentiria medo, e notadamente o mercado financeiro, que, apavorado com a iminente vitória da oposição, sacava seus investimentos brasileiros, agravando a situação. Mas então veio a Carta aos Brasileiros, na qual o ora postulante Lula procurava tranquilizar os esclarecidos, assumindo que muito do que dizia não passava de bravatas e que não mexeria na economia.

Cumpriu o que disse, mas daquele jeito que é possível aos bravateiros. Digo, como nunca foi de oposição, mas sempre “do contra”, quando virou situação ele não sabia apontar um norte para o Brasil. Simples: quem é contra tudo, não é a favor de nada. Assim, uma vez lá lhe restou chamar um tucano banqueiro para o Banco Central e determinar que tudo continuasse como antes.

O resultado é sabido e, depois de oito anos, está refletido na estratosférica popularidade do presidente. Quem disser que a economia está ruim vai arranjar briga com o povo brasileiro, que se transformou em classe C, trocou a geladeira, comprou o primeiro carro e até foi dar um passeio de navio. Porém, com estaleiro construído pelo Plano Real, e com o mundo navegando em mar de golfo (para usar figuras náuticas em homenagem a tantos cruzeiros turísticos), o governo poderia ter colaborado na armação de um transatlântico; porém, tudo o que conseguiu foi entregar uma lancha. Branquinha, bonitinha, satisfatória, mas apenas uma lancha, sem autonomia nem capacidade para nos levar adiante.

Para continuar em termos marinheiros, é só olhar para os portos para ver que não vamos longe: um navio que chega em Santos espera, em média, cinco dias para atracar. Por terra, as estradas do país estão se esfarelando, e a malha ferroviária foi comida pelas traças. Os aeroportos mais parecem arenas do escárnio, sem a menor capacidade de acompanhar o crescimento econômico como está. E, por falar em arenas, é bom sempre lembrar que ainda há quem comemore a vinda da Copa do Mundo e das Olimpíadas. A indústria regrediu um século e se contenta com o papel de fornecedor de matéria-prima para o resto do mundo.

Hoje, às vésperas de outra decisão política, se perguntarem à Namoradinha do Brasil se ela continua com medo, imagino que a resposta seja afirmativa, ainda que a raiz tenha mudado. Assim como todos nós, ela deve querer um Brasil maior e melhor, mas não teme um retrocesso econômico para já. Até porque, quando começam a brincar com a democracia, defendendo controle da mídia, osculando ditadores nos sertões e alhures, forjando dossiês, quebrando sigilos financeiros, debochando das leis vigentes, os mais experientes se apavoram e se distraem de medos menores, porque já viram o filme e sabem que ele não é bonito. Ela própria experimentou a patrulha ideológica de muitos colegas, que depois tiveram que se redimir – mas não se redimiram – quando dos escândalos do mensalão, dos dólares da cueca, dos aloprados, dos churrasqueiros.

O mundo gira, e quem antes se fingia de vítima de preconceito agora semeia o medo para impressionar os mais humildes. Como tudo que há de bom por aí é coisa nova, “nunca antes na história deste país” experimentada, o Bolsa Família não é mais filho do Bolsa Escola, e foi inventado pelo governo atual. Assim sendo, pode acabar de uma hora para outra caso o povo não vote em quem o Lula mandar. Mas, afinal, quem tem medo… do lobo mau?

#2NuCrônicasCulturaLiteratura

Vestir-se da vida

por Nuria Basker

Imagem de Lucas Simões

Aos seis anos de idade, ainda não nos vestimos da vida. Nossa pele fresca não aceita o que é tecido por olhos cansados, o que é costurado por linhas retas ou bordado em ponto cruz. As roupas são feitas para sujar, os shorts para molhar, os chapéus para perder e as meias para encardir. Se é para cobrir a pele, banho de esguicho cai como uma luva; banho de piscina, como um cobertor. Só banho de chuveiro que… Bem… fica para depois.

Aos seis anos, a roupa é apenas a expectativa quebrada do presente de Natal. É apenas o que pinica no piquenique. A roupa rouba tempo da criança rouca: tem de colocar cachecol, tem de se encapotar. Mas não é toda roupa que cai mal aos seis anos. A menina desta história, por exemplo, foi inspirada por motivo nobre: entre o jantar e a hora de dormir, resolveu se vestir de princesa. Na falta de uma fada madrinha, se virou com toalhas e panos de prato. Até um lençol pequeno, velhinho dos seus tempos de bebê, virou fazenda de renda. Ela estava de frente para o espelho e ia segurando todos os tecidos juntos longitudinalmente no seu corpo. As camadas iam engordando a saia, que já se parecia com aquelas ilustradas nos livros dos irmãos Grimm. Para segurar? O cinto da mamãe, claro. Deu um pouco de trabalho para colocar, mas ficou lindo. Em cima, sua blusinha de manga bufante, a mesma que odiava na hora das festas. Nem a madrasta, nem a Branca de Neve, nem qualquer outra concorrente da vizinhança viram alguém mais bela do que ela.

A satisfação pelo recém-criado traje a encorajou a mostrar a obra nos salões reais. Bastava descer as escadarias e encontrar o rei, a rainha e o bobo da corte, ou seja, o amigo chato que o pai insistia em levar para jantar (não, pensando bem, acho que os bobos, em sua sã inconsciência, jamais seriam coniventes com atos indelicados). Ela, a herdeira do trono. Ela, tocada pelo condão de sua própria imaginação. Ela que, em estado de graça, após finalmente encontrar algum prazer na vestimenta, flutuava pelos degraus, pé ante pé. Os sons dos talheres e das risadas empilhavam-se pesadamente como as paredes das muralhas. Mas, ainda assim, a corajosa infanta prosseguiu.

Ao vislumbrarem a figura ao pé da escada, os nobres se espantaram, minimizaram as euforias, demonstraram até uma certa admiração. Nem o monarca se furtou de elogiar a plenos pulmões. Na face norte da mesa, foi a vez da rainha pedir: “Uma voltinha, por favor”. Uma voltinha? Claro, por que não? Uma voltinha e… Ó, meu Deus! Som abafado. Reviraram-se os olhos. Reviravolta. Quebrou-se o encantamento. Era a maldição da bruxa que esqueceram de lhe avisar. A voltinha. Depois da pausa, risadas estrondosas, desrespeitosas, e, de princesa mais bela, ela passou à gata borralheira, antes mesmo da meia-noite.

O movimento revelou que sua saia não tinha parte de trás. Nem uma toalha, nem um pano de prato. Nada. Esqueceu do seu verso. O único tecido ali era o da calcinha de algodão com desenho de maçã. A princesa exposta. A princesa deposta em sua inocência. Dura lição aos seis anos. O lado desnudo, despojado, desprotegido pode bem se transformar em motivo de chacota. Ainda ao som dos comentários, os últimos antes de outro assunto qualquer, ela tirou rapidamente os panos e toalhas e se descobriu sozinha. Nua perante a vida, parada e perplexa no reverso de sua devoção.

#2NuArtigo

Azul e vermelho

por Léo Coutinho

Imagem de Lucas Simões

Muito embora pelados não sejamos iguais, vestidos somos mais diferentes. Mais do que proteger, a roupa serve para distinguir cultura, estilo, estado de espírito, religião, posição social e até política. Como nos antigos clãs ingleses, nos Estados Unidos os membros do partido democrata são identificados pelas gravatas desenhadas, enquanto os republicanos preferem as listradas, chamadas regimentais. Aqui no Brasil, as militâncias dos principais partidos procuram repetir as cores de suas bandeiras nas camisas que vestem no dia a dia: petistas em vermelho, tucanos em azul.

Mas, se no vestir eles nunca combinam, o mesmo não se confirma na hora de despirem-se. Acalme-se o leitor da Amarello: este cronista não tem pendores voyeurísticos, ou pelo menos não em relação a uma classe fisicamente tão pouco atraente. Quero antes é tentar uma metáfora para a transparência, visto que a única unanimidade recente do cenário político nacional é a preferência pelas doações ocultas para campanhas políticas.

O raciocínio mais óbvio que vem com essa notícia é que são todos uns sem-vergonhas, corruptos, bandidos. Porém, como a gente sabe que em qualquer classe haverá pelo menos um membro decente, fica a dúvida de por que a unanimidade ocorre justamente quando é este o assunto.

A verdade, quem dizer que sabe, estará mentindo. No máximo temos palpites, e o meu é óbvio: nem só de ideologia se faz política, e a dose de pragmatismo necessária para enfrentar uma campanha eleitoral dentro do sistema vigente inclui os tortuosos caminhos do caixa dois. É claro que um ou outro candidato a cargo legislativo consegue fazer tudo direito e cumprir a lei, mas, numa campanha majoritária, isso seria impossível. Se alguém acredita que é possível alcançar o segundo turno de uma eleição presidencial gastando menos de cem milhões de reais, como declaram os que chegaram lá, é porque um número tão alto passa a ser abstrato e comportar qualquer coisa, feito prêmio de loteria.

Uma vez diante da realidade de custos financeiros de uma disputa eleitoral, algumas dúvidas suscitam no eleitor: de onde vem/para onde vai essa dinheirama? Comparado ao salário do cargo, o “investimento se justifica”? Quer dizer, dá retorno? Essas são as perguntas mais comuns, que estabelecem a enfermidade, mas não contribuem para o tratamento. O que deveríamos nos perguntar é como fazer para extinguir a doença.

Uma das faces mais conhecidas da nudez é a vizinhança. Muitas das vezes, mal sabemos o nome de um vizinho, mas temos noções sobre seu padrão de vida, hábitos sociais, atividade profissional, preferências alimentares e até frequência sexual, e vice-versa. Isto é: os vizinhos têm as mesmas noções sobre as nossas vidas. Ninguém pode fugir. Pior: quanto mais se tentar fugir, esconder, disfarçar, agachar para não ser percebido, mais a bunda aparece e, com efeito, mais vão reparar. É como ir vestido a uma praia de nudismo.

Não seria esta a chave para a nossa representação parlamentar? Digo: conhecer os políticos como conhecemos os vizinhos, de longe e de perto, com ou sem intimidade, mas acesso fácil garantido na esquina, na banca, praça, padaria ou pela janela? Assim poderíamos acompanhar e fiscalizar o trabalho deles, cobrar ações e propor ideias, aumentando a participação popular na vida política.

É o que querem os defensores do voto distrital, sistema em que os políticos candidatos ao legislativo se conteriam em fazer campanha respeitando os limites do distrito onde moram e são conhecidos, portanto mais sensíveis aos anseios e carências das pessoas. Se quiser saber da Lapa, não pergunte a um moqueiro. Como pregava o governador Franco Montoro, que a história posicionou acima das picuinhas politiqueiras, “ninguém vive na União ou nos estados: as pessoas moram nos municípios”. Numa megalópole como São Paulo, as pessoas vivem em seus bairros, e é deles que podem saber; portanto, é neles e por eles que devem votar.

E alguém há de perguntar: mas o que tem isso com o financiamento de campanhas políticas? Ora, é só fazer a conta: quanto vai custar um café na padaria da esquina, na cidade vizinha e do outro lado do estado. Pior: de tão alto, esse custo só se justifica na hora da colheita dos votos, de modo que representante e representado serão ilustres desconhecidos que só se encontram a cada quatro anos, anulando a participação popular e enfraquecendo a democracia – que, assim como os naturalistas, precisa estar nua para estar plena. Para ela, um boné já é disfarce.

#1MudançaArteArtes Visuais

Manifesto

por Rose Klabin

Se a globalização vem afetando, de modo crescente, todas as áreas da vida moderna, na esfera da arte não poderia ser diferente. Hoje, a economia sem fronteiras está para a arte contemporânea assim como o nu, a paisagem e o mito estiveram, um dia, para o neoclassicismo, o impressionismo e a vanguarda. 

Sempre vista como a antítese da “coisa banal”, arte era algo que não podia ser pensada apenas para o comércio ou o consumo comuns, mas se até há pouco tempo o envolvimento das empresas com esse mundo era um tanto obscuro, a ascensão de uma cultura cada vez mais movida a commodities mudou completamente esse cenário. 

É claro que isso não se deu de uma hora para outra. As empresas atentaram para o fato de que associar sua marca a produtos culturais e produtores de cultura poderia ser um negócio lucrativo. Essa mudança aconteceu em todo o mundo, a começar pelo fato de que museus, que antes eram sustentados com verba pública, passaram a ser patrocinados por empresas privadas. É evidente que isso altera os critérios de seleção da coleção e das exposições e influi no modo como os artistas vão desenvolver seu trabalho. E além disso, aqui e no resto do mundo, as instituições passam a ser também uma opção de entretenimento público, com suas lojas, restaurantes etc.

MUDANÇA CONCEITUAL

Através dos tempos, a arte vem sendo considerada pela maioria dos colecionadores e artistas como um bem de consumo de luxo que está acima das preocupações meramente comerciais, e, até as duas últimas décadas, poucos artistas adotavam diretamente o dinheiro como tema. 

Marcel Duchamp foi um dos primeiros artistas a discutir a validade financeira da obra de arte. O artista pagava seu dentista com cheques que desenhava de próprio punho, ou emitia títulos financeiros igualmente produzidos a mão, que seriam descontados para uso do dinheiro num esquema de jogo em cassino.

Outro que abordou o tema do significado da arte foi Yves Klein. Artista conceitual do pós-guerra, Klein expôs, em 1957, pinturas idênticas a preços totalmente diversos para ridicularizar a ideia da arte como algo que pode ser vendido. 

Já o influente artista alemão Joseph Beuys criou uma mitologia em torno de si mesmo, lançando o artista no papel de xamã. Extremamente politizado, Beuys acreditava que o artista-xamã seria capaz de amplas transformações sociais. Em seus desenhos, performances e instalações escultóricas, ele utilizou materiais diversos, como banha, feltro, mel, folha de ouro e carcaça de animal. Beuys insistia em apresentar a teoria “Kunst=Kapital” (arte = capital), ou seja, a arte com seu próprio poder de persuasão e valor. 

Nos Estados Unidos do pós-guerra, críticos como Clement Greenberg observaram o deslocamento inevitável dos artistas em direção ao comércio e à fama e das crescentes quantias de dinheiro e atenção dadas à arte contemporânea: mesmo a mais contestadora das artes era vendável.

Nos anos 1960, os artistas da Pop Art se aproveitavam do furor consumista e dos valores fúteis da sociedade como inspiração para transformar em arte a banalidade do cotidiano e os artigos de consumo. O maior exemplo de todos foi, sem dúvida, o artista e cineasta norte-americano Andy Warhol, e suas imagens mecanicamente repetidas que ficaram conhecidas mundialmente como sua marca. A importância da contracultura para o design e a embalagem de novos produtos começou a ser percebida ao final da década, mas foi nos anos 1970 que a arte começou a ser vista como negócio pelos próprios artistas, que usavam suas obras para contestar museus, galerias e outras instituições de arte. 

No boom do mercado de arte dos anos 1980, os artistas se livraram da obrigação de escolher entre ignorar ou criticar o mercado de arte. Até um objeto industrializado, como um aspirador de pó, podia ser recontextualizado e ir parar nos museus como obra de arte. Foi também por este período que as grandes empresas começaram a perceber a vantagem comercial de se aliarem às artes. O apoio às artes se tornou um instrumento para o desenvolvimento de identidades, tanto corporativas como de mercado. 

Só para dar um exemplo, a Philip Morris inovou em suas campanhas de marketing, organizando e patrocinando exposições com obras de Roy Lichtenstein, Jasper Johns e James Rosenquist. E outras empresas, como a Louis Vuitton e a Selfridges, estão entre as principais responsáveis pelo lançamento de uma tendência de marketing que remodelou a arte criada e consumida a partir dos anos 1990.

Já no início da década de 1990, o interesse em patrocinar cultura fazia parte da identidade corporativa, das comunicações de marketing e dos assuntos de interesse público visando lucro e retorno sobre o investimento. As empresas passaram a querer associar suas marcas a projetos que iriam interessar a um público de alto poder aquisitivo. A conclusão é a de que, se uma marca está ligada a outra, este fato promove as duas, o que nem sempre acontece somente com publicidade. Mais do que ser ocasionalmente patrocinadoras, o objetivo das empresas hoje é ser parceira, tanto em relação às instituições de arte quanto aos próprios artistas. 

ABSOLUT VODKA: UM ESTUDO DE CASO

O caso da sueca Absolut Vodka, nos Estados Unidos, sob a direção de Michael Roux, ilustra os interesses da política cultural corporativa em estruturar as relações sociais em torno do consumo. Ao aliar o patronato das artes, a publicidade e a promoção do estilo de vida, Roux conseguiu transformar a Absolut Vodka em líder das vodcas importadas nos Estados Unidos nos anos 1980 e início da década de 1990. Segundo Richard W. Lewis, em seu livro Absolut Book – The Absolut Vodka Advertising Story, foi Andy Warhol quem sugeriu, em 1985, o emprego de artistas contemporâneos e suas obras em peças publicitárias da Absolut. Por sua pintura de uma garrafa dessa vodca, Warhol recebeu US$ 65 mil, e a empresa teria os direitos de reprodução da obra por um período de cinco anos. Outros artistas, sugeridos pelo próprio Warhol, como Keith Haring, Ed Ruscha e Armand Arman, deram continuidade ao projeto. 

Embora uma corrente de artistas bem-sucedidos pense que, em algum ponto de sua carreira, terá que lidar com as forças influentes do poder corporativo e que o investimento de dinheiro para fazer mais dinheiro é um ethos dominante na sociedade moderna, nem todos os artistas contemporâneos estão engajados na criação de obras diretamente relacionadas com a cultura movida a dinheiro. Alguns criam obras que criticam diretamente o sistema corporativo global da atualidade. Afinal, as inadequações de nossa sociedade eternamente vão estimular projetos, fantasias ou simples investidas na direção de outros modos de interação social.

ARTE RELACIONAL

Se nos anos 1990 a arte se caracterizou principalmente por obras que transformavam a interação social em arena estética, um movimento nasceu para, a um só tempo, estimular a relação entre os espectadores e criticar abertamente uma tendência do ser humano a se isolar em casa na companhia da mídia e não de outras pessoas.

Sem medo, alguns artistas adotaram, em seu fazer artístico, uma abordagem do tipo “faça você mesmo”, que dá origem à arte relacional, tendo como principais representantes artistas como Carey Young, Rikrit Tiravanija e Liam Gillick. Sua obra depende de interação social e requer certa presença por parte do usuário. É como se as relações sociais fossem tratadas como um outro meio de expressão artística a ser acrescentado à fotografia, ao vídeo e às instalações.

O argentino Rikrit Tiravanija é considerado um artista relacional. Sua primeira performance, em parceria com Douglas Gordon, foi o Cinema Liberté: Bar Lounge, um projeto realizado no FRAC Languedoc-Roussillon – um centro de arte contemporânea localizado em Montpellier. A instalação consistiu na construção de uma sala temporária de projeção para vídeos antigos censurados e um bar/cafeteria, por onde o público forçosamente passava a caminho da instalação, sem questionar a função do bar como parte da obra de arte ou a da instalação cumprindo uma função de bar. 

Através de sua obra, ele queria que o público questionasse a linha que o separa da produção do artista. Na verdade, desde seu tamanho e formato até suas medidas e seus materiais, “tudo havia sido projetado para ser arte”, nas palavras do curador da exposição. A proposta era derrubar barreiras e convencer que a esfera de atividade da arte podia ser facilmente ampliada. 

Escultura, instalação, desenho gráfico, curadoria, crítica de arte e contos. Assim como em Tiravanija, o tema que prevalece na obra de Liam Gillick é o desenvolvimento de relações por meio do ambiente. Suas mostras implicam a participação do público em estruturas coletivas abertas. Desde meados da década de 1990, Gillick ganhou fama por seu trabalho de design tridimensional: telas de projeção e plataformas suspensas montadas junto a textos e formas geométricas pintadas diretamente sobre a parede. 

Gillick usava materiais como plexiglas, aço, cabos, madeira tratada e alumínio colorido, derivados da arquitetura corporativa. Em sua prática artística, a obra representa o lugar de uma negociação entre realidade e ficção, narrativa e comentário. Além disso, seus trabalhos representam lugares nos quais se deve renunciar, discutir, projetar imagens, falar, legislar, negociar, pedir conselhos, dirigir, preparar algo, e aí por diante.

Para alguns estudiosos do assunto, as grandes empresas regularmente lançam mão do conceito de inovação para associar seus valores aos dos artistas, até mesmo nos casos em que artistas veem suas próprias inovações como antagônicas ao ethos corporativo. 

Apesar de sua natureza controversa e radical, a arte criada com base na crítica social pode ser usada tanto pelos artistas como pelas instituições para angariar capital cultural, a credibilidade ou o prestígio que advém de aspirações teóricas ou políticas mais elevadas, e a aura da rebelião vanguardista ou da seriedade intelectual. 

Como alternativa à arte que critica o atual cenário socioeconômico que prevalece na sociedade moderna, o uso da interação do público reabilita a presença orgânica e irrefutável da arte que ameaça tornar-se um jogo vazio de signos e objetos pré-fabricados. 

A participação do público na obra de arte, temporariamente acolhido pelo crescimento de um ideal democrático que acata seus pensamentos e ações, e valorizando seu potencial de engajamento criativo, minimiza o conceito do artista-gênio. Nas palavras de Rikrit Taravanija, “parece mais premente inventar relações possíveis com nossos vizinhos no presente do que apostar em amanhãs mais felizes”. 

Encarando a abstração econômica que torna irreal a vida cotidiana – ou uma arma absoluta de poder do mercado techno –, artistas reativam formas ao habitá-las, transformando propriedades privadas, direitos autorais, marcas e produtos em formas destinadas a museus e assinaturas. 

Se a reapropriação de tais formas é tão relevante hoje, é porque esses símbolos nos levam a considerar a cultura global como uma caixa de ferramentas. Ao invés de nos prostrarmos diante de obras do passado, podemos tirar vantagem delas e trazer à luz essas novas relações.

Ao se modificarem arte e artista, bem como de certo modo o público, pode-se dizer que a cultura corporativa traz duplo benefício para a sociedade global, além, é claro, de representar mais um nicho de mercado para as empresas: a ampliação do papel da arte na sociedade e a participação do artista no lucro gerado pelo produto dessa mesma arte.

Rose Klabin é artista plástica.

#1MudançaCulturaLiteratura

Mudança

por Léo Coutinho

Ilustração de Isabela Lotufo

Mudança é a palavra que ganhou as eleições mais importantes do mundo no ano passado. O presidente Barack Obama seria eleito em qualquer parte do globo com bilhões de votos de gente que, quiçá, nem saberia apontar os Estados Unidos no mapa-múndi.

Mudança é mesmo uma palavra muito forte. Tem o poder de despertar o lado progressista do reacionário fundamental, o desenvolvimentista adormecido no conservador absoluto. Porque mesmo quem está de barriga cheia terá apetite diante de um pudim de leite. O problema é a contrapartida; é entregar o doce a quem o desejou e acreditou que receberia.

Por maior que seja a boa vontade de um político, por melhor que seja seu caráter, prometer uma torta de limão a um povo que amargou oito anos de limão puro tem seu lado doloso: se ele não sabe que é muito difícil, não merece o cargo que pretende; se sabe e não conta, procede mal. Por outro lado, se contar tudo, dificilmente será eleito.

Há muitos anos, São Paulo, que é a maior cidade do Hemisfério Sul, teve um prefeito que era banqueiro, não político. Chamava-se Olavo Setúbal. E este senhor, perguntado sobre a questão das enchentes que até hoje afligem os paulistanos, respondeu que o problema só seria resolvido em vinte anos, e com a condição de que os futuros prefeitos trabalhassem direito e em continuidade aos antecessores, investindo um dinheiro que não existia nos cofres públicos. Nunca mais ocupou um cargo político.

Dizer a verdade é muito difícil. Ou, no mínimo, muito arriscado. Mas acredito que nós estamos todos carentes de gente honesta não só na conduta, mas também nas palavras. É cada vez mais raro um artista que produza exatamente o que acredita e consiga alcançar um público razoável. Dentro do negócio de vender arte, tudo deve ser experimentado em pesquisas antes de ser levado adiante. Daí que ficamos com a impressão de pasteurização artística, sentindo a falta de um gênio contemporâneo para chamar de nosso.

Com a política, o mesmo fenômeno nos assola. Aqui no Brasil, entre os políticos de primeiro time – isto é, entre aqueles que podem chegar a Presidente da República –, tecnicamente falando, talvez nenhum esteja tão preparado quanto José Serra, governador do Estado de São Paulo. Porém, mesmo nele, de quem esperávamos ouvir “a palavra” ou o caminho a ser seguido, identificamos a lanterna apontada para o resultado das pesquisas.

Tome como exemplo a Lei Antifumo: é o que existe de mais em voga em termos de administração pública em todo o mundo. Salvo em casos pontuais, ninguém mais poderá ser contra. Porém, a justificativa principal por parte do próprio governo é o apoio de oitenta e tantos por cento da população à proposta. Por outra, se a saúde pública como um todo fosse um princípio do governante, ou um compromisso de seu plano de governo, o mesmo governador teria acatado a Lei Anticoxinha, que quer impor alimentação saudável nas escolas e que foi aprovada por unanimidade na Assembleia Legislativa. No mesmo caminho, com uma canetada igual à que criou a Lei Antifumo, o Palácio dos Bandeirantes proibiria a circulação de veículos queimando óleo diesel com concentração subdesenvolvida de enxofre em todo território paulista. É a vitória do marketing em todas as instâncias. Está refletida na arte, na moda, na arquitetura, na gastronomia, na produção industrial. Com a política não poderia ser diferente. O fenômeno de consumo em massa e a globalização não dão margem de erro para ninguém. Tudo deve ser aceito por todos e em qualquer lugar. De maneira que a exclusividade, seja de uma peça de roupa ou de uma ideia, passa a custar cada vez mais caro.

Resta descobrir como permitir que um artista, um intelectual ou um político viva da mesma maneira que vive um alfaiate, um chefe de cozinha ou um arquiteto. Os primeiros pertencem a um grupo que depende de um público maior para seu trabalho. Quem pretender sobreviver vendendo opinião a um pequeno grupo de pessoas morrerá de fome ou estará condenado à academia. Inverso e proporcionalmente tão grave quanto a morte por inanição é o futuro reservado para a humanidade que prescindir de pensadores independentes.

Os jornais de todo o planeta estão morrendo. Ninguém mais tem tempo e paciência para ler com calma e profundidade na manhã seguinte a mesma notícia que chegou ontem em duas linhas pelo telefone celular. Logo, como alguém já identificou, a opinião está tão desvalorizada que nós aceitamos pagar para enviar mensagens de texto para outra pessoa, mas nem cogitamos desembolsar algum para ler um texto bem escrito e fundamentado e, a partir dele e de outros, formar uma opinião.

Sem opinião, estaremos cada vez mais assumindo nossa vocação para rebanho; estaremos mais parecidos com gado, nos sujeitando aos princípios tangenciais de qualquer profeta mais sem-vergonha do que nós mesmos. E gado, se pudesse escolher mudar seu destino, seria da panela para o forno ou, no máximo, para a grelha. O destino inexorável de quem não tem opinião é arder no fogo.

O milhafre-preto é uma ave de rapina encontrada em regiões temperadas e tropicais da Europa, Ásia e África. Em média, tem uma envergadura de 1,5 a 1,7 metros e uma plumagem predominantemente marrom-escura. Seu nome em inglês — Black Kite (pipa preta) — se refere às pontas de suas asas, donas de uma coloração escura que se sobressai às outras quando os voos elegantes são alçados. Nos últimos tempos, a população de milhafre-pretos tem diminuído em muitas partes do mundo devido à perda de possíveis habitats e envenenamento por pesticidas. Geralmente, são carnívoros, ingerindo roedores, aves, répteis e insetos. No entanto, caso a oportunidade se apresente, também podem se alimentar de restos de animais ou até mesmo de… lixo.

Foto de Javed Dar/Xinhua | Getty Images

Situado na escura paisagem de toxicidade ambiental e social de Nova Delhi, capital da Índia, Tudo O Que Respira segue dois irmãos que dedicam suas vidas à proteção dos milhafres-pretos, surpreendentemente essenciais para que a cidade funcione com um mínimo de equilíbrio — se é que essa é a palavra certa. 

Uma das cidades mais populosas, povoadas e poluídas do planeta, Nova Delhi produz diariamente toneladas e mais toneladas de lixo. O cenário, portanto, não poderia ser mais emblemático: 11 milhões de habitantes, nevoeiros tóxicos no ar, partículas cancerígenas rondando em níveis alarmantes, lixo formando montanhas, espumas cobrindo os rios. Numa cadeia de sobrevivência torta em que a interferência dos humanos na natureza força as maiores bizarrices de adaptação, os milhafres-pretos sobrevoam graciosamente as pirâmides de lixo e consomem, despidos de qualquer graça, boa parte dessas toneladas. Se o prognóstico já seria pavoroso no atual estado das coisas, mesmo com essas quantidades substanciais de dejetos a menos, sabe-se lá o que seria desse frágil ecossistema sem a interferência dessas aves. Milhares de seres morrem ali anualmente em decorrência de tanta poluição, inclusive humanos, e os que sobrevivem foram obrigados a encontrar um jeito de se adaptar. 

A primeira das várias sequências deslumbrantes do documentário desconcertante de Shaunak Sen ilustra bem o espaço banal que o antinatural ocupa hoje no mundo moderno. Enquanto outros animais espreitam, o lixo na rua é cavoucado por ratos tão assustados quanto céleres. À medida que seu barulho faminto aumenta de volume, os faróis dos carros ficam mais brilhantes, desfocados e desinteressados: a humanidade, inconsequente e “ao fundo” de suas próprias criações, impactou a existência de todos os seres, dos homens aos ratos.

Como se fosse um prazeroso hobby, há tempos estamos destruindo habitats, cada época com seu modus operandi particular. A urbanização cada vez mais desenfreada avança sobre áreas naturais e, sob a desculpa do progresso (lê-se oportunidades comerciais), vai dizimando a flora que estiver no caminho e, numa só machadada, leva junto a fauna em que nela habita. E, então, de duas uma: ou a corajosa fauna dá um jeito de se adequar àquilo ou a vulnerável fauna há de, cedo ou tarde, cair em extinção, seja localmente seja como uma espécie inteira. No fim, somos eternos predadores, mesmo que não estejamos de arco e flecha em mãos. Nosso modo de agir carrega um extermínio inerente. 

Não por um acaso, em outra obra assinalada pela humanidade, a lógica do “ou vai, ou racha” também se aplica às mudanças climáticas, que tanto forçam mutações de organismo e geram novas constituições, muitas vezes fugindo completamente daquilo que seria tido como natural. Afinal, se um pinguim quiser sobreviver, que se acostume à vida sem, ou com menos, calotas polares. É nessa toada que “criamos” — no pior sentido da palavra — ratos resistentes a venenos, cujas entranhas foram obstinadas o suficiente para desenvolver uma defesa ao inimigo químico, e “produzimos” — no mais irônico sentido da palavra — mosquitos urbanos, também tolerantes aos repelentes tradicionais, insetos que sobrevivem em água de pneus e em outros recipientes de lixo. Se atualmente a União Internacional para a Conservação da Natureza, uma das principais ONGs ambientais do mundo, tem mais de 87 mil espécies em sua lista de ameaçadas de extinção, a conta parece estar pesando mais para o “racha”. 

No frenesi da capital da Índia, ou em muitas e muitas outras cidades ao redor do mundo, vê-se praticamente um cenário de mutantes. Tudo O Que Respira pinta um quadro vivo dessa realidade tão nauseabunda. 

Saud e Nadeem Shehzad, também produtos de um ecossistema em constante transição, são os irmãos que carregam a narrativa. No porão de casa, têm uma espécie de hospital veterinário improvisado com o fim de resgatar milhafres. Num bairro muçulmano da classe trabalhadora, os dois olham para as nuvens, e para as aves lá salpicadas, como uma fuga de seus arredores sufocantes, acreditando que cuidar delas, além de minimizar as suas próprias dificuldades, ainda lhes daria alguma forma de crédito religioso a ser descontado nos dias em que finalmente ascenderiam aos céus. Esses habitantes gentis e modestos de Nova Delhi dedicaram os últimos 20 anos de suas vidas tomando conta de milhafres-pretos, tratando mais de 20 mil deles. É nesses dois personagens de carne e osso que Tudo O Que Respira encontra uma exibição poética de um mundo naturalmente antinatural em que nem os humanos se salvaram de si mesmo. É como diz um deles: “Os humanos muitas vezes esquecem que também são pedaços de carne.”

Algumas imagens do filme parecem quase impossíveis, forjadas por CGI. Num momento, um grupo de insetos bebe de uma poça d’água em que se vê o reflexo de humanos passando; em outro, um bando de milhafres-pretos voam contra uma nuvem de fumaça, como se estivessem se afogando. A vida humana e a animal não estão divididas em uma cidade como Nova Delhi — tudo faz parte do mesmo quadro, e o filme de Sen o captura no auge de sua fragilidade fascinante. Tudo O Que Respira é avesso a qualquer tipo de manipulação e é, em si, uma adaptação do formato documental ao contexto atual não só da indústria cinematográfica, mas do mundo como um todo. 

Assim como os milhafre-pretos estão lutando contra o céu poluído, os irmãos que cuidam deles estão lutando contra injustiças que podem forçá-los a tombar das próprias nuvens. Como observadores de aves numa cidade como Nova Delhi, assistimos a tudo em quietude reverenciosa, num misto de desassossego e deslumbramento. Como um exercício de respiração que aumenta nossa sensibilidade ao presente, Tudo O Que Respira tem magia de transformação. 

Quem é o animal e quem é o humano?, nos perguntamos num anseio maior que nós, e nossas possibilidades, de promover mudanças. Ao mesmo tempo, aterrorizados e envolvidos demais, preferimos não saber a resposta.