Obra de Yasmin Guimarães, artista publicada na Amarello Sonho.

Em cada bolso, um universo de possibilidades e distrações. Na sala de aula, e em tudo quanto é lugar, o celular, esse pequeno artefato tecnológico, se transforma em ponte e abismo, a um só tempo conectando e dispersando. E, assim, pais e professores enfrentam um dilema moderno: abraçar ou combater? 

“O Brasil é o segundo país no mundo com maior uso compulsivo de celulares. Pesquisas mostram que o uso excessivo pode causar impactos cognitivos.”

O debate sobre o uso de celulares na infância e adolescência, em especial na sala de aula, é um dos temas mais fervorosos na educação contemporânea. Enquanto alguns defendem o potencial educativo e de abrangência de visões de mundo desses dispositivos, que podem facilitar o acesso a informações e a diversas realidades, outros apontam para as distrações constantes e a dificuldade de manter a atenção por mais de alguns minutos. 

Segundo dados apresentados na Comissão de Assuntos Sociais (CAS), o Brasil é o segundo país no mundo com maior uso compulsivo de celulares, refletindo um alto nível de engajamento digital na vida cotidiana. Segundo a ComScore, empresa de análise de dados na internet, mais de 170 milhões de brasileiros, quase 80% da população, participam regularmente das redes sociais. E pesquisas mostram que o uso excessivo de celulares e tablets pode causar impactos cognitivos e afetar o desenvolvimento psicomotor, levantando preocupações sobre os efeitos de longo prazo dessa intensa exposição à tecnologia desde a infância. 

Diante disso, fica a pergunta: deve-se preservar os jovens de uma exposição tão precoce e intensa às telas?

Ohana Luize*, coordenadora de Educação da COAR Notícias, acredita que “é uma preocupação legítima que merece destaque, pois sabemos como o excesso de telas e conexões pode impactar negativamente, gerando ansiedade e afetando a qualidade das interações pessoais. Observamos isso em nossas próprias famílias, sem necessidade de pesquisas, apenas ao observar nossa realidade. Muitas vezes, a qualidade das interações face a face entre crianças e adolescentes é comprometida pela constante presença dos celulares.”

Mas também salienta que “ao mesmo tempo, não podemos privar as crianças do acesso à informação, à tecnologia e aos aprendizados próprios de seu tempo. Precisamos acompanhar seu desenvolvimento de forma positiva, integrada e produtiva em relação às tecnologias e ferramentas digitais. Isso implica desenvolver um olhar crítico que não desvalorize a presença diária dessas ferramentas na vida das crianças, mas que as incentive a serem cada vez mais elaboradas e benéficas para o desenvolvimento educacional e digital das crianças.”

O Movimento Desconecta, iniciado por um grupo de mães em São Paulo, propõe uma reflexão sobre o uso de smartphones por crianças e adolescentes. Defendendo o adiamento do acesso aos dispositivos até os 14 anos e a restrição ao ingresso nas redes sociais até os 16 anos, o movimento destaca preocupações com o impacto negativo dessas tecnologias na saúde mental e no desenvolvimento social dos jovens. A iniciativa visa criar um ambiente mais seguro e saudável para o crescimento das crianças em uma era digital cada vez mais dominante. As pessoas envolvidas se preocupam com a exposição precoce a conteúdos nocivos e altamente viciantes que podem prejudicar a cognição, memória, saúde mental e relacionamentos das crianças. 

O movimento visa devolver a decisão aos pais, incentivando ações coletivas para minimizar essa pressão. “Queremos trazer a decisão de volta aos pais para iniciar essa transformação. Acreditamos no poder de ações coletivas e queremos inspirar família a família, escola a escola, a se juntarem a nós nessa missão”, afirma o manifesto do movimento.

Enquanto educadores enfrentam desafios para integrar tecnologias de maneira educativa, mães, como as fundadoras do movimento, buscam equilibrar os benefícios e os riscos associados ao uso precoce de smartphones por seus filhos. “Os smartphones”, diz o manifesto, “expõem crianças e adolescentes a conteúdos nocivos e altamente viciantes, acarretando prejuízos individuais na cognição, memória, saúde mental, relacionamentos e prejuízos coletivos como cyberbullying, desinformação, polarização e extremismo”.

Além disso, o movimento sublinha que a pressão social coloca os pais em uma posição desafiadora: “Ou damos aos nossos filhos acesso a algo que abre portas para vários perigos ou corremos o risco de excluí-los socialmente”. A iniciativa busca devolver a decisão aos pais e promover ações coletivas para minimizar a pressão social, inspirando famílias e escolas a se unirem nessa missão de proteger a infância.

“Os dispositivos facilitam a socialização, a expressão criativa e o desenvolvimento de habilidades digitais essenciais para o futuro”

Por outro lado, críticos argumentam que os smartphones são essenciais para a construção da identidade dos jovens — e não só a identidade digital. Os dispositivos facilitam a socialização, a expressão criativa e o desenvolvimento de habilidades digitais essenciais para o futuro dos jovens. A integração precoce às tecnologias digitais também pode preparar os jovens para um mundo cada vez mais digitalizado, onde competências digitais são essenciais para o sucesso acadêmico e profissional.

Especialistas em educação defendem que a chave está em ensinar os jovens a usar essas tecnologias de maneira responsável e produtiva, ao invés de simplesmente restringir seu acesso. Proibir o uso de smartphones pode privar os estudantes de oportunidades de aprendizado e interação social que são vitais para o desenvolvimento de habilidades importantes para o século XXI.

Ohana Luize chama a atenção para outro aspecto da discussão: as diferenças socioeconômicas dos usuários. Ela comenta:

“No final do ano passado, o estudo TIC Kids Online Brasil revelou que 24% das crianças até 6 anos de idade já começavam a se conectar à internet. Esse número aumenta para 95% entre os brasileiros de 9 a 17 anos, mostrando um crescimento significativo na utilização da internet.

O celular é o dispositivo principal para acesso à internet, especialmente nas classes menos favorecidas. Isso cria um fenômeno complexo: enquanto a tecnologia continua a se desenvolver, especialmente no ambiente educacional, proporcionando maior qualidade e robustez, a maioria dos usuários, especialmente os mais vulneráveis social e economicamente, acessa a internet exclusivamente pelo celular. No entanto, essa conexão via celular tem suas limitações de qualidade.

Essas limitações tornam as classes menos favorecidas ainda mais vulneráveis em termos de acesso à informação de qualidade. Muitos estudiosos e pesquisadores defendem um equilíbrio necessário: reconhecer os desafios dos excessos tecnológicos enquanto aproveitam os benefícios que as tecnologias podem oferecer para melhorar o aprendizado, diversificar os métodos educacionais e facilitar o trabalho dos educadores e o processo educativo familiar.”

A Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda limites de tempo para o uso de telas: para menores de dois anos, o indicado é nenhum contato com telas ou videogames; dos dois aos cinco anos, o recomendado é até uma hora diária; dos seis aos 10 anos, recomenda-se entre uma e duas horas; dos 11 aos 18 anos: entre duas e três horas. Essas diretrizes, e a necessidade delas, refletem o desafio de equilibrar os benefícios educacionais das tecnologias com os riscos à saúde mental e socialização dos jovens.

O debate sobre o uso de smartphones nas salas de aula e além delas continua a evoluir. Enquanto o Movimento Desconecta destaca a importância de proteger os jovens, a sociedade enfrenta o desafio de encontrar um equilíbrio entre promover um uso responsável das tecnologias e garantir um desenvolvimento saudável e equilibrado.

Refletindo sobre o slogan do Movimento Desconecta — A infância e a adolescência são muito curtas para serem vividas em um smartphone —, somos convidados a considerar profundamente o impacto das telas na jornada de crescimento de nossos filhos. A reflexão poética nos lembra da fragilidade intrínseca da essência da infância e adolescência e, com os avanços tecnológicos que moldam nosso mundo moderno, essa essência parece ainda mais quebradiça.

Para Ohana, “o caminho para o equilíbrio parece ser o mais sensato: promover reflexões contínuas e discussões desde o núcleo familiar até propostas mais amplas. Essa abordagem visa não apenas garantir o bem-estar e o desenvolvimento saudável das crianças e jovens, mas também reconhecer e aproveitar os benefícios que a tecnologia pode oferecer para o avanço e crescimento educacional.”

A busca por um equilíbrio adequado entre a proteção e a integração tecnológica há de seguir. Prepare-se para os novos capítulos: ela promete moldar o futuro das próximas gerações.

*Ohana Luize é jornalista, mestra em Comunicação e pós-graduanda em Educomunicação e Tecnologia.

Composição em vermelho, de Anna Maria Maiolino (1983). A artista ítalo-brasileira é uma das homenageadas da 60a Bienal de Veneza (Divulgação)

A mobilidade urbana é uma ferramenta de inclusão social imprescindível. Oferecer acesso facilitado e acessível a diferentes regiões e serviços é desempenhar um papel fundamental na garantia dos direitos de mobilidade e oportunidade para todos os cidadãos, independentemente de sua condição socioeconômica. Como prova de que a mobilidade urbana sempre chegará em quaisquer futuros com um tanque de importância cheio, ela segue sendo extremamente relevante à sociedade contemporânea, ganhando novas camadas de relevância na medida em que a sociedade avança de maneira desembestada. Em um mundo cada vez mais interconectado e marcado por desafios — tais quais a urbanização acelerada, a poluição e o congestionamento excessivo —, transporte público e companhia surgem como uma solução eficaz para promover a sustentabilidade, a equidade e a qualidade de vida nas cidades. 

O trânsito em São Paulo impacta a vida dos seus habitantes.

Nesse contexto, a necessidade de um sistema de transporte público eficiente e abrangente é mais premente do que nunca. 

Das possibilidades exploradas atualmente, parece inevitável pensar na implementação de novas políticas, como a famigerada Tarifa Zero, que só se nacionalizou de fato por aqui com as chamadas Jornadas de Junho de 2013. Essa abordagem, com a qual o transporte público seria gratuito para a população, busca enfrentar desafios como a congestão de tráfego, a poluição do ar e a desigualdade no acesso ao transporte. No panorama brasileiro, as dificuldades para a implementação da Tarifa Zero são acentuadas, principalmente em cidades de grande porte como São Paulo, palco principal das manifestações do Movimento Passe Livre ocorridas há uma década. As cidades brasileiras enfrentam barreiras estruturais, como a falta de investimento adequado em transporte público, a deficiência na infraestrutura e a falta de integração eficiente entre os modos de transporte. Além disso, a dependência do automóvel particular e a resistência política à mudança também são obstáculos significativos.

Um dos principais argumentos contrários ao transporte público gratuito é o financiamento. A gratuidade do transporte público demandaria um substancial investimento público, que poderia ser encarado como um ônus para os cofres municipais. Há preocupações de que a falta de receita proveniente das tarifas possa levar a uma deterioração dos serviços e a uma sobrecarga financeira para as autoridades responsáveis pelo transporte público. Outra dificuldade é conseguir atender o esperado aumento de demanda, o que exige investimento não apenas no aumento de frota, mas em infraestrutura urbana — incluindo faixas exclusivas, eliminação de vagas de estacionamento em vias onde passam ônibus, criação de sistemas de integração e transferência.

Tarifa Zero é uma proposta que ganhou destaque no Brasil nas décadas de 1980 e 1990, e um dos nomes associados a ela é o da política Luiza Erundina, prefeita da cidade de São Paulo entre 1989 e 1992 e uma defensora ardente do transporte público gratuito. Durante seu mandato, que aconteceu com o Partido dos Trabalhadores, foram realizados estudos e debates sobre a viabilidade da Tarifa Zero em São Paulo, o que popularizou a questão e fez com que a ideia fosse vista como uma possibilidade pelas pessoas. Antes, pouco se pensava sobre soluções como essas, descartadas de partida por serem tidas como inviáveis. A proposta foi amplamente discutida e despertou tanto apoio entusiasmado quanto críticas acaloradas. No entanto, toda ideia que desafia forças maiores sofre forte resistência e, devido a questões financeiras e políticas — e, não para a surpresa de ninguém, até pressão midiática —, a Tarifa Zero não foi implementada integralmente na cidade durante o mandato de Erundina. 

Apesar disso, como a boa iniciativa que é, o debate sobre a Tarifa Zero continuou a ecoar no cenário político brasileiro. Espera-se, inclusive, que tenha forte impacto nas eleições municipais deste ano. 

Luiza Erundina, com seu apoio à Tarifa Zero e outras iniciativas relacionadas à mobilidade urbana, deixou um legado de discussão e conscientização sobre a importância do transporte público acessível e de qualidade. Sua contribuição ajudou a colocar a questão em pauta, estimulando a busca por soluções inovadoras para os desafios da mobilidade urbana. 

E ela não está sozinha nessa. Há tanto políticos quanto pesquisadores que fazem coro à Erundina.

Enrique Peñalosa é um político colombiano conhecido por sua veia urbanista. Foi prefeito de Bogotá entre 1998 e 2001, e novamente entre 2016 e 2019. Peñalosa defende fortemente a isenção de tarifas como uma medida para garantir a equidade social e promover cidades mais inclusivas e sustentáveis. Durante seus mandatos, ele implementou políticas para tornar o transporte público acessível a todos os cidadãos.

“Uma cidade avançada não é aquela em que até os pobres usam carros, mas sim aquela em que até os ricos usam transporte público.”
Peñalosa na Ted Talk Why buses represent democracy in action (2013)

Bogotá tem uma população de 7,181 milhões de pessoas (2018). Getty Images

Susan Shaheen é uma pesquisadora estadunidense especializada em mobilidade compartilhada e inovação no transporte. Ela argumenta que o passe livre pode ser uma estratégia eficaz para aumentar a utilização do transporte público, especialmente quando combinada com outras medidas, como o compartilhamento de veículos. Aprofundando-se no assunto, ela também chama a atenção para os cuidados que devemos tomar na automatização de processos, já que muitas vezes eles reproduzem imperfeições humanas.

“Precisamos pensar cuidadosamente sobre o que queremos dizer com equidade. (…) Se entrarmos em um futuro automatizado, onde temos aprendizado de máquina e inteligência artificial aprendendo com o motorista, preconceitos raciais podem ser incorporados aos algoritmos.”
Shaheen em entrevista para Iomob, em 2018

Judith Dellheim, que já esteve no Brasil algumas vezes em fóruns sobre mobilidade urbana, é uma pesquisadora alemã da Fundação Rosa Luxemburgo que aborda a questão da Tarifa Zero como uma forma de promover a justiça social e a sustentabilidade. Ela tem acompanhado as propostas de políticas de passe livre na Alemanha e estudado a dependência de seu país em relação à indústria automotiva.

“Na sociedade atual, com muita frequência, as cidades são planejadas de acordo com as necessidades dos proprietários de automóveis. E os poderes públicos – altamente endividados – investem anualmente muito mais por habitante em transporte individual motorizado do que em transporte público local.”
Delheim, no texto Tarifa Zero, a experiência europeia (2019)

No panorama global, aliás, a utilização do transporte público varia entre os países. Em algumas nações, como Alemanha, Suíça e Holanda, o transporte público é amplamente utilizado e bem integrado, com altos níveis de qualidade e eficiência. Em alguns casos, os sistemas de transporte público são parcialmente subsidiados pelo governo, o que reduz os custos para os usuários. No entanto, não existe uma abordagem única em relação à gratuidade do transporte público. Cada país adota diferentes modelos de financiamento e cobrança de tarifas, que vão de acordo com a viabilidade política, financeira e cultural daquela nação.

Na capital da Estônia, Tallinn, uma medida interessante foi implementada em 2013: os residentes da cidade podem usar o transporte público, incluindo ônibus, bondes e trens, mediante o pagamento de uma taxa de registro anual. Já a França, conhecida pela forte presença do Estado na vida prática dos seus cidadãos, tem o caso de Dunkirk: o transporte público na cidade, incluindo ônibus e trens regionais, tornou-se gratuito para todos os passageiros. Em um outro tipo de abordagem, a cidade de Bonn, na Alemanha, oferece um modelo híbrido de transporte público gratuito. Os estudantes e os passageiros com mais de 65 anos podem utilizar o transporte público gratuitamente, enquanto outros passageiros pagam uma tarifa reduzida. Essas abordagens têm como objetivo incentivar a utilização do transporte público e promover a sustentabilidade.

Um dos exemplos que mais chama a atenção, porém, é o de Estocolmo, capital da Suécia, que adotou uma abordagem diferente para tornar o transporte público mais acessível. A cidade introduziu um sistema de tarifas progressivas, em que o preço da passagem é calculado com base na renda dos passageiros. Dessa forma, aqueles com menor renda pagam menos ou até mesmo têm acesso gratuito ao transporte público.

O futuro da mobilidade urbana envolve a exploração de novas políticas, e cada caso deve ser pensado e planejado de maneira específica. Isso inclui a adoção ou não de novidades e tendências que estão moldando o futuro do transporte.

Veículos elétricos que produzem energia limpa são um exemplo: com a transição para veículos elétricos ganhando impulso em todo o mundo, as montadoras estão investindo pesadamente no desenvolvimento de carros elétricos e a infraestrutura de carregamento está sendo expandida. A mobilidade compartilhada é uma outra possibilidade: os serviços de compartilhamento de veículos, como carros, bicicletas e patinetes, estão se tornando cada vez mais populares. As pessoas estão optando por compartilhar veículos em vez de possuí-los individualmente, o que ajuda a reduzir o número de carros nas ruas e a diminuir a poluição. Além disso, estão surgindo plataformas que integram diferentes modos de transporte para oferecer soluções de mobilidade mais completas.

Mas, acima de tudo, a inteligência artificial é quem mais deve pesar nessas decisões e discussões. A tecnologia de veículos autônomos está progredindo rapidamente, e empresas de tecnologia e montadoras estão investindo nela para uso compartilhado de táxis autônomos e ônibus sem motorista. Essa tecnologia tem o potencial de melhorar a eficiência e a segurança do transporte, além de reduzir o congestionamento nas estradas. Da mesma maneira, a inteligência artificial está sendo aplicada ao gerenciamento de tráfego e ao planejamento urbano para otimizar o fluxo de veículos e melhorar a eficiência do transporte. Algoritmos avançados podem ajudar a prever padrões de tráfego, otimizar rotas de ônibus e sincronizar semáforos para reduzir o congestionamento e melhorar a fluidez do tráfego. 

Por essas e outras, as cidades estão investindo em infraestrutura conectada para melhorar a mobilidade urbana. Sensores e dispositivos inteligentes estão sendo usados para coletar dados em tempo real sobre o tráfego, qualidade do ar e uso de transporte público. Esses dados são usados para tomar decisões informadas sobre o planejamento urbano e melhorar a eficiência dos sistemas de transporte. À medida que a tecnologia avança e as demandas das cidades evoluem, é provável que novas inovações surjam, buscando criar sistemas de transporte mais sustentáveis, eficientes e acessíveis. 

Tomando os cuidados preconizados por Susan Shaheen, e sempre tendo a ética como fio condutor, a inteligência artificial pode levar a caminhos eficazes e mais abrangentes. 

No tecido intrincado das ruas urbanas, onde se cruzam sonhos, destinos e histórias, encontra-se a essência do direito de ir e vir do cidadão. Como cidade, tem-se o dever de tornar tangível essa aspiração, pavimentando caminhos que transcendam a mera mobilidade física. Nesse emaranhado de linhas, surge uma sinfonia de vidas em movimento, dançando em harmonia com o pulsar da cidade. 

Quando reconhecemos que a liberdade de deslocamento é mais do que uma necessidade prática, mas sim a própria poesia das nossas existências, somente então estaremos plenamente vivendo a verdadeira essência de uma mobilidade urbana inclusiva. Faz lembrar da frase da celebrada e saudosa Toni Morrison: “Eu sonho um sonho que me sonha de volta para mim.”

É possível. Mas é preciso fazer com que assim seja.

Uma pessoa na casa dos seus vinte ou trinta anos, de classe média, acorda. Com as redes sociais buzinando desde que ela abre os olhos, não demora a prorromper uma certa pressão — às vezes sutil, às vezes nem tanto — para que um senso generalizado de realização, num âmbito pessoal e profissional, seja vivido. Seis, sete, oito da manhã e já há quem tenha jogado na cara uma ida à academia e um sorriso indefectível no rosto para encarar os perrengues do dia. Tão logo, mesmo que ainda sob o cobertor, essa pessoa se vê imersa em um mundo regido pela diretriz de se ir atrás, alegremente, daquilo que “te faz feliz” e conseguir tirar uma vida disso — e olha que essa pessoa nem sequer teve tempo de abrir o LinkedIn. Durante toda a vida do arquétipo tratado aqui, de vinte/trinta anos e de classe média, essa pessoa foi incentivada a perseguir os seus sonhos e transformar as suas paixões em uma carreira viável. Se por um acaso, nos anos de formação, ela pensou em se dedicar à medicina ou, vá lá, à advocacia, foi mais por gosto pessoal e menos por pressão parental.

“Insecure”, série da HBO, aborda a complexidade do trabalho no mundo de hoje. Foto: Reprodução

No entanto, a expectativa de encontrar realização pessoal a partir da profissão pode trazer uma carga opressiva de pressão, o que acontece pela visão de que é inviável ter prazer na vida sem que se encontre o trabalho perfeito e se alcance o equilíbrio entre o que é a vida pessoal e o que é o trabalho. A impressão, muitas vezes, é a de que, sem isso, a felicidade real não vai ser possível e que a culpa, no fim, é sua. Se ao acordar para ir trabalhar a pressão já se faz presente, ao menos para martelar os ânimos, em algum nível, imagine então no trabalho propriamente dito. Neste contexto, esta pessoa se esgota fazendo um verdadeiro malabares mental para balancear suas expectativas pessoais, as demandas do mercado de trabalho e a realidade das oportunidades disponíveis, tudo isso enquanto busca construir uma relação saudável e significativa com o trabalho, além de quebrar a cabeça para fazer com que as finanças batam. É um prato cheio.

Será mesmo que aquele nove-às-cinco impessoal, bate-cartão-na-entrada e bate-cartão-na-saída, era tão ruim assim? 

O dia acaba e, veja só, ela não está necessariamente feliz, o que é algo natural na vida de qualquer um, mas, considerando a positividade profissional tóxica que o mundo circunscreve à ela, isso faz com que ela fique ainda pior, seja por não estar fazendo o que ama ou por estar fazendo o que em tese ama e mesmo assim não ter alcançado a tão almejada plenitude. Uma coisa leva a outra, feito a mais Millenial e Gen-Z das bolas de neve, e, agora com a cabeça deitada no travesseiro, os pensamentos não dão trégua. 

a expectativa de encontrar realização pessoal a partir da profissão pode trazer uma carga opressiva de pressão”

Eventualmente, dorme. E, então, para o bem e para o mal, o dia seguinte vem.

Parece exagero televisivo ou literário, coisa saída de uma ficção distópica de pouca imaginação, mas essa autocomparação que coloca o factual e o idílico lado a lado é uma dinâmica diária de muitas pessoas. A psicóloga Thais Andrade1, tomando como referência seus muitos anos de prática, reflete sobre a importância do trabalho para as pessoas:

“A partir da minha experiência, observo que o trabalho é não apenas central como também essencial na vida de grande parte das pessoas. Para uma vasta maioria significa sobrevivência e sustento; para outros, como deveria ser para todos, significa também a possibilidade de reconhecimento e satisfação pessoal. Por essa razão tantos caem em depressão quando, por exemplo, deixam de trabalhar ou se aposentam. Para muitos essa mudança é catastrófica, uma vez que inúmeras perguntas nunca questionadas começam a emergir: quem eu sou sem meu trabalho? O que faço comigo? O que faço com meu tempo? Do que eu realmente gosto? Como estão minhas relações pessoais? Além de, é claro, a preocupação em pagar as contas.”

A relação com o trabalho passou por transformações significativas ao longo das últimas décadas. Basta tomarmos os anos 1980 como parâmetro. Havia aquele grande culto ao trabalho, sendo praticamente inevitável que aquilo fosse o centro da vida de uma pessoa, que tinha uma mentalidade de dedicação e comprometimento total à carreira. E não era bem como vemos com mais frequência hoje, de “eu faço o que gosto, então é claro que me dedico”, mas uma lógica de “eu vou virar tudo o que me dá retorno, não importa o que seja”. Os engomados de Wall Street, tão bem vestidos quanto tão sem escrúpulos, vêm à mente, certo? De Michael Douglas a Leonardo DiCaprio, de Sigourney Weaver até Melanie Griffith. Aqui no Brasil, com o boom de agências de publicidade e o espírito empreendedor generalizado começando a florescer, não foi muito diferente. 

Aqui e lá — e em tantos outros “lás” —, foi a década dos yuppies, obcecados em fazer mais e mais dinheiro, independentemente do quanto isso fosse pesar na vida pessoal. Analisando em retrospecto, com os valores da sociedade atual em mente, isso pode soar como algo absurdo. De fato, houve uma mudança nessa perspectiva.

“A vivência da frustração, que nos acompanha desde o nascimento, é fundamental para o desenvolvimento do nosso psiquismo e para a constituição de quem somos”, diz Thais Andrade. “Wilfred Bion e Donald Woods Winnicott, psicanalistas ingleses, escreveram de forma muito profunda sobre o tema. Frustrar-se faz parte da natureza humana e a maneira como lidamos com a frustração desenhará nosso caminhar pela vida.

Agora, será que uma pessoa que nasceu no início dos anos 80 teria uma tendência a ter mais tolerância e capacidade de lidar com as frustrações do que, digamos, um nativo digital? Alguém que, ainda engatinhando, já teclava nos celulares e tablets? Acredito que já existam pesquisas nesse sentido. Talvez sim, talvez não (existem os aspectos da constituição de cada um). O fato é que a vivência da espera era outra e a percepção desta parece mudar a cada geração.”

O trabalho é visto atualmente de uma maneira diferente, como uma ideia que foi, ao mesmo tempo, expandida e reduzida.

Leonardo DiCaprio em O Lobo de Wall Street.

Expandida porque, na medida em que a gama de possíveis atividades profissionais vai se ampliando a cada dia, mais caminhos podem ser traçados — estamos na época em que jogar videogame pode dar dinheiro (imagine dizer isso a um menino dos anos 1980!). E reduzida porque, por mais importante que seja o trabalho, ele não deveria mais ter o poder de nos definir. “Eu não sou o meu trabalho” é um discurso recorrente. Há uma tendência crescente de enxergar o trabalho como uma parte importante da vida, mas não necessariamente como o único ou principal elemento definidor da identidade pessoal. 

A busca por propósito e satisfação pessoal no trabalho tornou-se mais evidente, e as pessoas estão cada vez mais dispostas a explorar suas paixões e interesses, transformando-os em carreiras viáveis. Bonito, não? Sim, bastante. Mas é justamente aí que as contradições começam a aparecer. Há pouco tempo, tanto em redes sociais de caráter profissional quanto em plataformas como o Instagram, rodou o seguinte desafio: “Diga quem você é sem citar o seu trabalho”. Isto é, não valeria dizer “comunicador”, “empresário”, “bartender”, nem nada disso. Difícil. Por mais que a vida pessoal hoje seja importante — talvez, sim, até mais importante do que a vida profissional —, ainda temos o costume de nos classificarmos a partir de nossas atividades profissionais. O que isso diz sobre nós? É um mero ricochete de outras gerações ou a coisa vai bem além? A reflexão ganha ainda mais camadas quando a digital pessoal é tão marcada na vida profissional, como ocorre amiúde na atualidade, na grande maioria de setores e até classes sociais. O trabalho, então, por mais que mudanças teóricas, e até práticas, tenham acontecido, segue tendo muitas vértebras em nossas espinhas dorsais. 

Será que, no fim, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais?

Uma mudança notável e inegável é que as atividades que antes eram consideradas apenas hobbies, como gostar de filmes ou de games, agora podem ser encaradas como opções reais de carreira. Essa mudança de mentalidade, e realidade de mercado, permite que as pessoas busquem caminhos profissionais que estejam mais alinhados com seus interesses e habilidades, o que resultaria em uma maior satisfação e realização no trabalho — isso, claro, quando o bailado é feito sobre o campo da teoria. Por mais positivo que esse novo aspecto possa ser, a busca por uma carreira baseada em paixões e interesses também pode trazer um sem-fim de frustrações. Não vai ser toda vez que aquilo que se deseja vai ser alcançado, e se porventura isso acontecer, as expectativas nem sempre são atendidas. É a velha máxima do “cuidado com o que deseja, pois você pode um dia conseguir tudo”. A discrepância entre a realidade e as expectativas têm o poder de levar a um constante estado de insatisfação, criando um inquietamente interno psicológico que faz as pessoas estarem sempre em busca de algo mais, em busca daquela sensação de plenitude profissional, e pessoal, que muitas vezes é difícil de ser alcançada.

“Um dos problemas do mundo atual, onde estamos com nossos pés fincados, é que com tanta demanda, tanto excesso de informação o tempo todo, fica difícil encontrar espaço para o sentir — incluindo a felicidade ou o processo de descobrimento do que despertaria tal sentimento. Como encontrar espaço dentro de nós, e em nosso dia a dia, para que os momentos de felicidade possam existir? Ou para percebê-los?”, questiona a psicóloga. “Outro ponto é que mesmo aquilo que nos faz feliz vai dar trabalho, vai ter perrengues, dificuldades, restrições, escolhas.”

Jesse Einsenberg em “A nova vida de Toby”, minissérie da Hulu/Disney Plus

Lembra da frase “trabalhe com o que você ama e nunca mais precisará trabalhar na vida”, atribuída a Confúcio? Ela reflete uma noção completamente idealizada de que se pudermos fazer o que amamos, o trabalho se tornará uma fonte contínua de felicidade e satisfação. Acordar vai ser fácil, enfrentar o trânsito não vai doer, passar horas infindas na labuta vai ser mole. Convenhamos que Confúcio, ainda que no auge de sua sabedoria, nada sabia sobre levantar cedo para trabalhar. Estima-se que o filósofo chinês viveu no mundo que antecedeu Cristo, séculos e mais séculos atrás. No entanto, essa perspectiva otimista segue sendo amplamente divulgada e incentivada, muito embora não responda mais ao que entendemos por mundo há um bom tempo.

Que justiça seja feita, há perfis por aí, populares e conscientes, que questionam tais platitudes, como o Obvious aqui no Brasil. No geral, transmitem mensagens empáticas sobre trabalho, autoestima, as dificuldades enfrentadas diariamente por mulheres e tantos outros temas importantes. É necessário que esse contraponto exista para que se enfrentem as visões idealizadas e crie nas pessoas a sensação de que está tudo bem caso alguma coisa dê errado nas suas respectivas buscas por satisfação pessoal e profissional. É uma questão de perspectiva: a frase de Confúcio, dependendo de quem a encara, pode ser vista como “trabalhe com o que você ama e, assim, você trabalhará 24 horas por dia”. Ela expressa um ponto de vista mais realista, destacando que se dedicar exclusivamente ao trabalho que amamos pode levar a uma imersão constante, onde a linha entre vida pessoal e profissional se torna tênue.

Enquanto a primeira versão da frase sugere que a paixão pelo trabalho elimina a sensação de estar trabalhando, a segunda versão aponta para a possibilidade de uma sobrecarga e de sacrificar outros aspectos importantes da vida. É importante reconhecer que, mesmo em uma carreira apaixonante, haverá tarefas menos agradáveis e pressões profissionais. E, acima de tudo, haverá o compromisso, a responsabilidade, que, por si só, já têm um peso diferente. Assistir a um filme é uma coisa, assistir a um filme e ter que escrever sobre ele é outra; ter uma banda é uma coisa, ter que compor um número razoável de novas canções dentro do prazo e fazer 25 shows ao mês é outra. E por aí vai. Nem mesmo seguindo as vocações que respondem ao mais espiritual dos ensejos, por exemplo, impedem que os burnouts aconteçam.

“Correr não adianta”, analisa Thais Andrade, “precisamos de pausas. É nessa brecha que podemos, quiçá, encontrar opções criativas e mais saudáveis para sairmos do lugar. Porém, descer da esteira que nos faz correr e não nos tira do lugar implicará em lidar com a realidade externa e com nós mesmos. Isso inevitavelmente vai gerar sofrimento, mas também será uma oportunidade de desenvolvimento pessoal. Quando nos olhamos, além de nos depararmos com nossas limitações, também podemos nos deparar com nossos potenciais, a depender do quanto é possível tolerar a dor que a realidade nos impõe.”

“Em complemento”, finaliza ela, “estamos na era da positividade excessiva, em tempos em que a Fake News do ‘tudo é possível e está a seu alcance’ circula das mais diversas formas pelas redes sociais. Se por um lado, a geração Z se opõe ao modelo de trabalho excessivo das gerações anteriores; por outro, também são estimulados a fazer aquilo que amam e a seguir seus sonhos. Cabe destacar, porém, que o véu do excesso de positividade pode turvar a visão e deixar o coração iludido.”

O pessimismo recorrente em algumas gerações pode ser atribuído em parte à percepção de que alcançar a felicidade plena no trabalho pode ser uma expectativa irrealista. É importante lembrar que a felicidade não é exclusivamente derivada do trabalho. Outras áreas da vida, como relacionamentos e tempo livre, obviamente também desempenham um papel significativo no bem-estar geral. Em vez de buscar incessantemente a perfeição e a felicidade total no trabalho, é mais realista e benéfico buscar um equilíbrio saudável, encontrar propósito nas atividades profissionais e também valorizar os momentos de descanso e cuidado pessoal. 

É como diz Issa, protagonista de Insecure (2016-2021), série que, dentre muitos temas, lidou muito bem com as complexidades do trabalho na vida atual, especialmente quando ele se mistura com a vida pessoal: 

“Eu sou uma bagunça. Mas uma bagunça que está aprendendo a lidar com os seus problemas.”

“Insecure”, série da HBO. Foto: Reprodução

1Thais Fonseca de Andrade, psicóloga clínica e psicanalista em formação pelo Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Mestre em Ciências (USP) e Especialista em Psicoterapia Psicanalítica (USP) ([email protected]).

O termo “consciência de classe” foi cunhado no início do século XIX pelo filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel e posteriormente popularizado pelos pensadores socialistas Karl Marx e Friedrich Engels. Para Hegel, a consciência de classe se referia à compreensão que os indivíduos têm de si mesmos como membros de uma determinada classe social, abarcando aí as formas com as quais essa compreensão afeta suas visões de mundo e ações político-sociais. Já a dupla Marx e Engels atribuiu ao conceito um significado mais específico, argumentando que a ideia traduzia um entendimento consciente e crítico dos interesses de classe e da posição social de um indivíduo na sociedade capitalista. Segundo eles, essa compreensão é um processo histórico que se desenvolve à medida que os trabalhadores percebem que seus interesses são distintos dos interesses da classe capitalista dominante, e que a luta de classes é necessária para alcançar a emancipação social e econômica.

Dito isso, pensemos no Brasil. Por aqui, há uma clara distinção entre a classe dominante e a trabalhadora. De acordo com o relatório World Inequality Report 2022, elaborado pelo World Inequality Lab, o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, ocupando a “honrosa” 9ª posição no ranking global de desigualdade de renda. Em alguns pontos do país, esse cenário se faz gritante. Bom exemplo desse berro é o bairro do Morumbi, que comporta em si, num raio bem menor do que seria de se imaginar, a maior favela da América Latina e uma das maiores concentrações de renda do país. Você já deve ter visto a imagem que registra a divisa entre uma sequência de condomínios de luxo e uma sequência de moradias de baixa renda, ilustrando com perfeição essa dualidade do bairro e evidenciando, sobretudo, os altos índices de má distribuição de renda do país. Tirada no começo dos anos 2000, a foto já virou quase um clichê ao redor do globo: de tão eloquente, por escancarar uma realidade exageradamente desequilibrada, ela acaba sendo fácil de ser usada como exemplo. Trocando em miúdos, para o mundo inteiro somos uma amostragem de desigualdade.

Foto de Tuca Vieira.

Existe uma noção geral dessa realidade?

Pela lógica, a tendência é que a consciência de classe seja mais forte nos países em que a desigualdade de renda é mais alta, porque trata-se de um contexto em que as pessoas são mais propensas a se identificar com um grupo social, reconhecendo, ainda que inconscientemente, que pertence a um determinada estrato da sociedade. Ou seja, se tomarmos essa tendência como referência, estando no top 10 de países com maior desigualdade social, no Brasil essa consciência deveria ser alta. Mas, no fim, estamos conjecturando em cima de um conceito complexo e subjetivo, difícil (senão impossível) de medir e comparar entre países. Às vezes, parece irreal pensar na população brasileira como um corpo social totalmente ciente de seus próprios contrastes, ainda que estes sejam vividos diariamente; às vezes, no entanto, é impossível pensar o contrário. Ficamos um tanto reféns de nossas impressões pessoais, baseadas na vivência ou não.

Vários movimentos sociais e políticos demonstram que há, sim, uma forte consciência de classe no Brasil: lutas pelos direitos e interesses das classes trabalhadoras denotam isso, como sindicatos, partidos políticos de esquerda e grupos de defesa dos direitos humanos. Ela também pode ser captada na crescente mobilização e conscientização dos jovens e das minorias sociais, que enfrentam desigualdades históricas e estruturais em relação à classe dominante. Por mais louca e perigosa que as redes sociais possam ser, ela cumpre bem a função de conscientizar gerações mais novas — o que, em décadas passadas, ou nunca aconteceria ou, quando muito, aconteceria tardiamente.

É claro que vale ressaltar que nem sempre essa consciência é forte e coesa, já que muitas vezes — quiçá sempre — é influenciada por fatores culturais, políticos e econômicos complexos. Além disso, as desigualdades sociais e econômicas no Brasil são profundas e persistentes, o que significa que a consciência de classe pode ser difícil de se desenvolver e de ser mantida em algumas regiões do país.

E os impostos, o que nos dizem sobre isso tudo?

Como os impostos são uma forma importante de financiamento das políticas públicas e de redistribuição de renda, a consciência de classe pode influenciar a percepção dos cidadãos em relação aos impostos e como eles são utilizados pelo Estado. Em geral, dança-se o baile ao som das cornetas douradas do privilégio: a classe trabalhadora paga uma parcela significativa de impostos em relação à sua renda, enquanto a classe mais rica paga proporções menores. Isso pode levar a uma percepção de injustiça fiscal e a uma falta de confiança nas instituições governamentais. Por outro lado, quando os cidadãos têm uma consciência de classe mais desenvolvida, eles tendem a ter uma visão crítica das políticas fiscais e a exigir uma maior progressividade fiscal, ou seja, que os impostos sejam mais elevados para os mais ricos e que os recursos arrecadados sejam direcionados para programas sociais que beneficiem a classe trabalhadora.

A consciência de classe pode influenciar a percepção dos cidadãos em relação ao papel do Estado na economia. Enquanto os defensores de uma consciência de classe mais aguçada tendem a acreditar que o Estado deve desempenhar um papel mais ativo na promoção da justiça social e na redução das desigualdades, aqueles com uma visão menos crítica da classe tendem a favorecer políticas que reduzam o tamanho do Estado e a carga tributária. No Brasil, o sistema tributário é bastante complexo e o pagamento de impostos pode ser uma questão delicada para muitos cidadãos e empresas. Há uma grande quantidade de normas, leis e regulamentações que regulam a cobrança de impostos, o que pode dificultar a compreensão e o cumprimento das obrigações fiscais.

Existem diversos tipos de impostos, que são cobrados tanto pelo governo federal quanto pelos governos estaduais e municipais. Alguns dos principais são: o Imposto de Renda (IR), Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e Imposto sobre Serviços (ISS).

O dinheiro arrecadado com os impostos no Brasil é destinado a diversas áreas e serviços públicos, tais como saúde (SUS), educação, segurança pública: assistência social, previdência social e outros. A alocação dos recursos públicos pode variar de acordo com as prioridades estabelecidas pelo governo em cada período. 

Sistemas tributários progressistas

Pensar na consciência de classe e na tributação específica de países pode ser interessante por, diante da postura de cada um, analisar as maneiras como cada um lida com a respectiva desigualdade social. Existem vários países que adotam políticas tributárias progressivas e buscam taxar as maiores riquezas de maneira justa. Alguns exemplos europeus, cuja realidade, sabemos, é diferente do Brasil, incluem:

Dinamarca Conhecido por ser um dos sistemas tributários mais progressivos do mundo, tem uma taxa máxima de imposto de renda de 55,9% sobre os rendimentos mais elevados. Além disso, a Dinamarca também cobra impostos sobre heranças e doações, e possui um imposto sobre a propriedade que incide sobre imóveis e outros ativos.

Suécia Taxa máxima de imposto de renda de 57,1%. Além disso, a Suécia cobra impostos sobre a propriedade, heranças e doações, e tem um imposto sobre a riqueza que incide sobre os patrimônios líquidos mais elevados.

Noruega Taxa máxima de 39%. A Noruega também cobra impostos sobre a propriedade, heranças e doações, e possui um imposto sobre a riqueza que incide sobre os patrimônios líquidos mais elevados.

Alemanha & França Com sistemas parecidos, a taxa máxima do imposto de renda alemão é de 42%, enquanto a francesa é de 45%. Ambos os países cobram impostos sobre a propriedade, heranças e doações. Além disso, têm impostos sobre a fortuna que incide sobre os patrimônios líquidos mais elevados.

Marx e um futuro almejado há mais de um século

“Não é a consciência do homem que lhe determina o ser, mas, ao contrário, o seu ser social que lhe determina a consciência.” Essa é uma das muitas frases famosas de Karl Marx. Entender a qual grupo pertencemos é determinante para tornar qualquer luta legítima. A falta de consciência de classe é capaz de criar cenários tenebrosos, como muitos que vivemos no mandato presidencial passado, em que os capatazes particulares nadaram de braçadas para sair à frente de qualquer sociedade igualitária. 

Para além de uma história formativa repleta de desigualdade e crueldade, temos uma história recente que faz ecoar com força essa triste realidade clássica brasileira.

#44O que me faltaCulturaSociedade

Tenho, logo sou?

O que cuidadores de elefantes e um chocolate dividido dizem sobre a modernidade e a sociedade atual.

As lágrimas rolaram pelo meu rosto por boa parte do documentário Como Cuidar de um Bebê Elefante (The Elephant Whisperers). Ao receber o Oscar na categoria Documentário em Curta-Metragem, a diretora indiana Kartiki Gonsalves falou sobre coexistência e sobre o vínculo sagrado entre nós e o mundo natural. A história de dois cuidadores de elefantes órfãos na Índia não emociona apenas pela surpreendente conexão entre eles, mas também porque o filme serve como um espelho reverso: a gente enxerga no casal de cuidadores os valores mais nobres e básicos que precisamos pra sermos felizes. Eles vivem isolados e têm uma vida precária, mas vivem totalmente em sintonia com a natureza e o mundo animal e parecem muito mais felizes e completos do que a gente. Apesar de terem muito pouco, eles vivem a vida na sua totalidade e se sentem parte do todo, algo que nós buscamos duramente todos os dias, muitas vezes sem chegar a lugar algum. Isso porque, é óbvio, estamos buscando no lugar errado.

A modernidade nos tirou a sincronia com a natureza, esgotando nosso mundo interior. Nosso apetite por novas emoções está nos deixando indiferentes a valores como a sutileza e a ética. O dia em que recuperarmos a nossa atenção das redes sociais e olharmos para as coisas que realmente importam, uma revolução começa. Um levante tão importante quanto as grandes transformações tecnológicas que estamos presenciando. Inteligências artificiais, novos mundos imersivos e possibilidades de socialização que nunca havíamos imaginado estão sendo criados sem a nossa participação, causando FOMO (do inglês fear of missing out, isto é, medo de estar perdendo algo) e ansiedade e aprofundando ainda mais a desigualdade no mundo.

Sim, a tecnologia traz possibilidades incríveis, mas as mídias sociais fraturaram nossa capacidade de foco e nos encurralaram. Olhamos nossos celulares a cada minuto, na expectativa por uma notícia, um convite, um elogio, um like, um match, qualquer coisa que provoque faíscas e nos faça sentir vivos. Enquanto isso, o mundo “lá fora” queima. E o mundo lá fora também é lindo.

O problema que enfrentamos hoje é que a atenção às redes ocupa o espaço que antes era ocupado pela empatia. Não precisamos ir longe para perceber que há mesmo um “déficit de empatia” no mundo, parafraseando Obama em um discurso de 2013.

Queremos feedback instantâneo; não escutamos, não elaboramos as consequências dos nossos atos online e buscamos escapes da rotina vivendo qualquer experiência que prometa algum tipo de iluminação, de um Carnaval frenético a um ritual de ayahuasca no meio de São Paulo. Esportes radicais, comidas exóticas, experiências lisérgicas e encontros relâmpagos viram condutores de adrenalina que, assim como uma droga, duram pouco e fazem as pessoas ansiar por mais e mais. Estamos viciados.

No livro The Life Intense: A Modern Obsession, o autor francês Tristan Garcia nos descreve como paraquedistas emocionais, “em busca de sensações fortes que possam justificar nossas vidas”. Quando foi a última vez que você fez algo pela primeira vez?

A economia da experiência está por todos os lugares, vendendo novas aventuras e emoções, e a gente segue comprando do lado de fora para alimentar o lado de dentro. Sensações de vazio e de que nunca temos o suficiente estão há anos sendo semeadas em larga escala na mente humana para acompanhar um mundo organizado para o lucro, e não para a prosperidade humana ou ambiental.

O nosso tempo e a nossa atenção tornaram-se os ativos mais valiosos dessa nova economia. Nosso status é cada vez mais medido não pelo que somos ou pelo que contribuímos, mas pelo que vivenciamos, fotografamos e escolhemos compartilhar. Vivemos um caos publicitário, em que o objetivo dos anúncios parece não ser mais a informação, mas simplesmente a atenção. E a qualidade dessa atenção não importa.

Esta é a vida agora: um fluxo constante e interminável de conteúdos fragmentados e sem sentido que a gente nem quer ver, mas dos quais, por algum motivo, não consegue desviar o olhar.

A possibilidade do conhecimento ilimitado da web é tão onipresente que nem nos lembramos de como era não o ter. Superestimamos o quanto essas tecnologias estão nos prejudicando e subestimamos o quanto também estão nos ajudando. Porque, sim, a internet e as redes podem proporcionar coisas incríveis e propagar assuntos importantes que rodam o mundo em minutos. As redes foram fundamentais para movimentos como #MeToo, Time’s Up e #BlackLivesMatter, e funciona com igual importância para educar e alertar a sociedade sobre questões sociais e ambientais, como as atrocidades cometidas contra o povo Yanomami e a tragédia que devastou o Litoral Norte de São Paulo.

Então o problema não é a tecnologia em si, e sim como escolhemos usá-la. A gente realmente escolhe o que vê ou tem alguém decidindo por nós? A tecnologia está nos servindo ou nós é que estamos servindo a ela?

Nos dias de hoje, não elaboramos os assuntos que nos atravessam. Frases inteiras são resumidas em emojis, a vida (dos outros) é sempre bela, nos comunicamos através de likes, não lemos mais e não sabemos mais nada em profundidade. Nosso conhecimento, assim como nossa atenção, é fragmentado. Sabemos um pouco de tudo e de tudo um pouco, e isso parece ser o suficiente em conversas rápidas em festas entre uma foto e outra ou para engajar vídeos no TikTok.

Muitos dizem que a hiperdigitalização está impulsionando um retorno do mundo analógico, trazendo de volta o uso de discos, câmeras polaroides, enciclopédias, fitas cassete, telefones com fio e Ligue-Táxi — enfim, experiências de um mundo hiperfísico e tangível.

A gente não é o que tem nem podemos ser definidos pelos nossos 15 segundos de engajamento no Instagram. Nós somos o total das nossas experiências de vida: cada lágrima, cada sorriso, cada vez que o coração bate mais forte, cada vitória e cada tombo, cada paisagem, cada música, cada trabalho concluído, cada livro lido, cada história de amor, cada decepção, toda morte e nascimento, cada vez que temos coragem, todos os sins e todos os nãos, as superações e os desgostos, cada ideia e solução, cada beijo, cada gozo, cada abraço de saudade, cada partida e cada reencontro.

Amor, dedicação, conhecimento e foco nos levam a relacionamentos mais profundos e geram sucesso a longo prazo. No entanto, nossa economia atual está constantemente nos levando para longe disso. Precisamos parar de buscar só do lado de fora para acalentar o interno. Nossa atenção pode estar à venda, mas iluminação e paz de espírito não estão, e dependem puramente do nosso esforço e da nossa habilidade de empatia.

Encerro com a história de um estudo feito em 2011 na Universidade de Chicago, em que os pesquisadores realizaram um experimento para entender se um rato libertaria outro de uma gaiola sem receber uma recompensa. A resposta foi sim. Depois de várias sessões, os ratos aprenderam rapidamente a liberar os colegas enjaulados. Os ratos repetiram o comportamento mesmo quando lhes foi negada a recompensa do reencontro. Ainda mais surpreendente: quando os ratos foram apresentados a duas gaiolas, uma contendo um rato e a outra um chocolate, eles optaram por abrir as duas gaiolas e dividir a recompensa.

Qual foi a última vez que você dividiu o seu chocolate?

Na canção-assinatura dos Novos Baianos, Mistério do Planeta, ouvimos a síntese perfeita de tudo aquilo que uma conexão humana deveria ser — Pela lei natural dos encontros, eu deixo e recebo um tanto. A ideia é simples, mas precisa: para que haja qualquer tipo de contato real em nossas relações, para que energias distintas se somem e criem rajadas efetivas de comunicação, a troca se faz necessária. Um encontro, afinal, não pode nunca acontecer de maneira unilateral, não é verdade? Talvez, se formos nos apegar tão somente à lógica do conceito, sim, é verdade, os encontros são, por natureza, uma via de mão dupla. No entanto, nos atendo aos fundamentos da vida atual, em que temos um controle quase ditatorial de nossas relações pessoais, a frase cantada pelo saudoso Moraes Moreira no álbum Acabou Chorare (1972) ganha novos contornos — pela lei natural dos encontros modernos, deixamos o que der na telha e recebemos apenas o que quisermos.

“Pela lei natural dos encontros, eu deixo e recebo um tanto.”

Estes stories pseudo-cults são chatos, nada a ver, não querem dizer nada? Unfollow nessa pessoa. Este conhecido da escola vota naquele político? Unfollow nele também. Opa, este TikTok é exatamente o que você procura? Bendito seja o algoritmo! A partir de agora, você vai receber um caminhão de conteúdo igual. E emojis e mais emojis de coração para o mundo hermético em que, não por coincidência, as pessoas pensam e votam como você. 

O livre-arbítrio de segmentar ao extremo nossas relações virtuais a bel-prazer pode ter um efeito negativo gigantesco em nossas relações pessoais, uma vez que a vida digital, em termos bastante comedidos, pulsa tão forte quanto a vida real. A polarização que vivemos não vem da discórdia propriamente dita — vem do distanciamento voluntário de tudo e todos que não compartilham de nossas opiniões. Os encontros não viraram colisões, eles na verdade foram sombreados pela autopreservação.

Os encontros, aliás, agora no sentido date da palavra, servem bem como indicativo da profundidade à qual a coisa toda chegou. Foi-se o tempo em que política e relacionamentos eram sinônimos de água e óleo, quando um simplesmente não batia com o outro. Isso, analisando em retrospecto, por óbvio não fazia qualquer sentido e estava a anos-luz do que seria ideal. Relacionar-se, romanticamente ou não, sem trocar visões políticas, não faz bem a ninguém. Porém, hoje em dia, a água e o óleo de outrora estão mais para leite e Nescau em pó, misturando-se como princípio e criando um gosto próprio de norma. De tão eu-aqui-e-eles-lá que estamos — especialmente às vésperas de eleições presidenciais —, a política se faz presente até nos aplicativos de relacionamento.

“emojis e mais emojis de coração para o mundo hermético em que, não por coincidência, as pessoas pensam e votam como você”

Um passeio rápido pelas bios de Tinder, ou de qualquer outro app similar, nos mostra um sem-fim de frases com posicionamentos políticos que se impõem como condição irrevogável para que qualquer futura relação possa acontecer. Parece inacreditável, mas aconteceu: nem mesmo o sexo é capaz de quebrar esse rol de barreiras construídas com tanto afinco, nem mesmo ele tem o poder de permitir que duas manifestações políticas se encontrem e se enriqueçam — não tem sequer a capacidade de fazer com que esses pontos de vista coexistam num mesmo espaço dialogal, ainda que se esgrimindo num vozerio que, porventura, não leve a lugar algum. 

Tomando de empréstimo o popular bordão de Isabelle Drummond na novela Caras e Bocas: é a treva!

O momento histórico traz à mente o filme A Bolha Assassina (1958), clássico do horror B hollywoodiano, dirigido por Irvin Yeaworth e protagonizado pelo ainda desconhecido Steve McQueen, em que um meteorito gosmento cai próximo a uma pequena cidade norte-americana (o roteiro abstrai-se de fazer quaisquer explicações mais detalhadas sobre o detrito vindo do céu). Envolvendo tudo que vê pela frente — de pessoas a lanchonetes —, e ganhando força a cada engolição, a bolha não para de crescer. 

Como não poderia ser diferente, a cidade entra em fuzuê diante daquela massa indestrutível, estranha, disforme, sem rosto — isso até o personagem de McQueen descobrir que, no final das contas, o monstro tem um ponto fraco: baixas temperaturas. Numa resolução típica de ficção científica, cujas mensagens mais elaboradas se anunciam timidamente por trás da envolvente trama principal, a cidade junta gente de todo o tipo para, com extintores coletados nas escolas e fornecidos pelos bombeiros, congelar a bolha-inimiga.

Se a cada unfollow ou fuga de um possível constrangimento — ação também extremamente comum quando diante de alguém que explicita opinião política contrária — acabamos por cortar laços com aquilo que não nos diz respeito, a cada unfollow ou fuga nós aumentamos a nossa bolha, isolando-nos assustadoramente em nós mesmos. Diferente do filme de horror B, não temos Steve McQueen para nos salvar, no auge de seu heroísmo, do mal que nos assola. A lei dos encontros já não é mais tão poética e natural como a dos Novos Baianos — uma grande ameaça digital, política e social paira sobre as cidades da nossa existência.   

As bolhas não param de aumentar e, no processo, nossos mundos é que vão ficando cada vez menores.

O cinema brasileiro pós-Retomada, ou seja, pós-Cidade de Deus (2002), encontrou formas múltiplas de expressão, alcançando uma pluralidade pouco vista até então. Entre as tendências mais significativas do período estavam as dos documentários e aquelas que buscavam o que Beatriz Jaguaribe chamou de choque do real. Nesse contexto, ganharam espaço as produções que faziam uso de imagens hipernaturalistas e as que apostavam nos planos longos emulando o tempo real, em uma ideia de fluxo, para repetir o termo usado por Luiz Carlos Oliveira Júnior. Mas, mesmo nesses filmes que objetivavam revelar a carne do mundo, como escreveu Jaguaribe, a intenção invariavelmente era provocar um “espanto catártico” no espectador. A realidade choca, mas sua representação pode chocar ainda mais, para certo cinema nacional do início do século XXI.

Entretanto, parece ter havido um momento em que nem o espanto dava conta de representar o vivido. Notadamente a partir da virada para a década de 2010, ganharam corpo vertentes de reflexão sobre o real a partir do irreal. Filmes como A alegria (de Felipe Bragança e Marina Meliande, 2010) e Trabalhar cansa (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2011) despontaram abrindo caminhos imediatamente percorridos por outros cineastas e núcleos de produção adeptos da distopia como ferramenta para pensar a realidade. Como se, depois do hiper-real, depois do fluxo que se aproximava ao real, depois do choque, apenas o absurdo fosse suficiente para retratar o país e o mundo hoje.

Isso para parte do cinema nacional, evidentemente. Mas parte significativa. Tanto que, aos poucos, essa vertente foi se mostrando multifacetada, com projetos estéticos bem distintos entre si, dos longas-metragens de gênero, como o musical Sinfonia da necrópole (Juliana Rojas, 2014) e o terror Morto não fala (Dennison Ramalho, 2017), os dramas com apelo fantástico, tal qual A febre (Maya Da-Rin, 2018), e os títulos de caráter ensaístico ou experimental, a exemplo de Riocorrente (Paulo Sacramento, 2013).

A Febre (Maya Da-Rin, 2018)

Nesse conjunto, chama atenção Branco sai, preto fica (Adirley Queirós, 2014), um filme que tem a realidade chocante como ponto de partida na conformação de um imaginário distópico. O pressuposto é o de um documentário: personagens reais convivem com as sequelas das agressões sofridas alguns anos antes em uma festa de black music na qual policiais, em uma batida, mandaram os brancos deixarem o local antes de espancar os negros presentes (o título do filme é a citação literal da ordem de um desses policiais). Contudo, na sucessão de acontecimentos da trama, em uma mudança surpreendente com relação à premissa, a narrativa acaba por incorporar elementos da ficção científica. Enquanto acompanha a vida de Chockito (que perdeu uma perna na ocasião e passou a ganhar a vida como artesão, usando sucata para produzir próteses para outros mutilados) e Marquim da Tropa (que ficou paraplégico e, como DJ, revisita o trauma fazendo música), o diretor também apresenta ao espectador Dimas Cravalanças (Dilmar Durães), sujeito que vem do futuro em busca de provas das atrocidades cometidas pelo Estado contra excluídos. Não há discrepâncias nessa passagem de um registro a outro, visto que o real e o delírio ficcional mostram-se ambos absurdos. E a construção visual os aproxima. A “nave espacial” de Dimas, por exemplo, é um mero contêiner, compatível com o entorno pobre, e as luzes coloridas caóticas em seu interior remetem a ambientes que nada têm a ver com a imagem de um porvir asséptico e purificado das ficções especulativas mais deslumbradas do passado. Há coerência entre a desolação material daquelas vidas e as subjetivações que essa condição produz.

Há de se considerar que é difícil compreender tamanha brutalidade. Mais do que isso, é complexo representá-la, no sentido freudiano e, também, estético. Adirley Queirós, um homem negro vivendo na Ceilândia, próximo aos seus protagonistas, encontrou uma maneira inusitada de fazê-lo, que aproxima o universo fílmico do real ao mesmo tempo que ressalta seu afastamento de qualquer lógica humanista. Quanto mais real, mais tudo aquilo parece ser irreal. É quase uma afirmação de que a realidade é a própria distopia, e vice-versa.

Branco sai, preto fica (Adirley Queirós, 2014)

É interessante pensar Branco sai, preto fica sob essa chave, oito anos após seu lançamento. Por um lado, o longa se integra a um movimento de ocupação de espaços por parte de minorias e ao avanço da luta antirracista ao longo das últimas duas décadas; por outro, pode ser visto como um libelo denuncista das reações contrárias a esse movimento e a essa luta, reações estas que se confundem com a ascensão do bolsonarismo no país. A questão é que, em 2014, o bolsonarismo ainda era discreto, talvez imperceptível, se comparado às proporções que atingiu nos anos seguintes. A contundência do filme, por isso, destoa de grande parte de seus contemporâneos, mostrando-se mais próxima, nesse sentido, de produções posteriores, lançadas à medida que as denúncias de racismo e violência de Estado adquiriram maior urgência, sobretudo conforme os anos 2020 se aproximavam – e Bolsonaro chegava ao poder no país.

Um dos exemplos mais notáveis dessa “filiação”, por assim dizer, de Branco sai, preto fica se dá com Medida provisória (Lázaro Ramos, 2021). Esse filme começa em um registro realista, ainda que com atuações e encenação que lembram o falso naturalismo comum às telenovelas brasileiras, para só a partir do segundo terço da narrativa mergulhar na ideia distópica de expulsão compulsória dos cidadãos brasileiros de “melanina acentuada” rumo ao continente africano. Chama atenção, de cara, o não uso dos termos “preto” e “negro”, em um princípio de negação da raça e, consequentemente, do racismo. “Tenho empregada ‘melaninada’, até amigos assim”, afirma uma personagem branca lá pelas tantas, incorporando o discurso corrente que busca diminuir o preconceito de cor como problema social – sem se dar conta de que o está escancarando. Embora essa sofisticação do texto (a matriz é a peça teatral Namíbia, não!, de Aldri Anunciação, 2011) perca algo de sua profundidade na adaptação à linguagem cinematográfica, trata-se de um espelho rico e contundente da sociedade na qual Medida provisória foi gerado: uma sociedade que perpetua o legado de desigualdade e dominação de classe herdado dos tempos de escravidão a partir de estratégias discursivas que incluem uma falsa harmonia no convívio coletivo. Negar o racismo é um “anti-antirracismo” – disfarçado, sublinhe-se.

Cena do filme Medida Provisória

Outra frase do filme de Lázaro Ramos, esta proferida pelo protagonista Antonio (Alfred Enoch): “Será que a gente nota quando a História está acontecendo?”. É uma espécie de grito a defender que a distopia representa a realidade do Brasil atual. A narrativa também se conecta com episódios pontuais do noticiário recente, sendo o mais proeminente, talvez, aquele que faz a votação da aprovação da medida governamental de expulsão dos “melaninados” do país um simulacro da sessão do Congresso que terminou por afastar Dilma Rousseff da Presidência. O próprio desenvolvimento dessa proposta autoritária de expulsão do território nacional se dá com alguma semelhança do real na medida em que, inicialmente, não se apresenta como tal, e sim como um incentivo, vá lá, respeitoso – basta citar o anúncio oficial veiculado na TV apresentado ainda no primeiro ato do filme: “Seja quem você quiser, viva de acordo com sua raiz. […] Você que quer uma reparação social pelos anos de escravidão: o governo por um Brasil mais justo lhe oferece muito mais: a oportunidade de voltar para a África”. Também na ficção se pode dizer que, até certo ponto, não era possível imaginar o radicalismo de algumas ideias da extrema-direita, apesar dos sinais emitidos previamente.

Quando, em fuga, Antonio e André (Seu Jorge) berram, passos apressados e câmera na mão, que “esse vídeo é para o mundo inteiro nos ouvir: a vida no Brasil está insuportável”, eles estão fazendo um comentário que efetivamente funciona mais como comentário do real do que como construção da ficção que o representa. E isso já bem próximo do desfecho do filme, ou seja, no auge do delírio distópico. Como se a hiper-realidade outrora alcançável pela aproximação do real, via choque ou fluxo, passasse a ser acessada pelo afastamento delirante da fantasia.

Por mais que pareça controverso, por mais que seja relativo apenas à parte da produção, é assim, criando distopias, que o cinema nacional tem pensado o Brasil hoje.