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Existe solução para o preço dos livros?

A discussão sobre o tabelamento dos preços de livros no Brasil tem gerado debates acalorados, dividindo opiniões entre defensores e críticos. O Projeto de Lei 49/2015, conhecido como Lei Cortez, busca regular o preço dos livros no

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Arte de Alvaro Seixas, capa da Amarello Erótica.

Por que as pessoas se importam tanto com a vida dos outros? Não que elas estejam realmente interessadas em você, mas nunca deixam passar algo que lhes incomoda. Uma mulher de meia-idade dormindo de pijama no carro com a boca suja de iogurte. Isso é algo tão perturbador assim? Elas poderiam simplesmente seguir seus caminhos e cuidar das próprias vidas ao invés de fingir que se importam. E eu, sinceramente, não tenho escolha; preciso me justificar, inventar qualquer história, ou as coisas podem ficar bem complicadas.

Todos os dias crio relatos variados. Eu já disse pra um policial que bebi martínis demais depois de um vesperal com velhas amigas da faculdade, por isso acabei pegando no sono dentro do carro. Pra um homem que se dizia padre, expliquei que briguei com meu marido e que preferia morrer a ter que voltar pra casa. Já contei pra uma advogada bem-disposta a me ajudar que, na verdade, eu gostava de me esconder no banco do carro pra ter um pouco de privacidade, já que a minha filha tinha muitas crianças em casa e minha novela era sagrada. No geral, todos acreditavam em qualquer coisa que eu dizia.

E o iogurte? A gosma branca escorrendo em meu rosto era um ponto bem difícil de encaixar nas minhas explicações estapafúrdias, mas ninguém estava realmente interessado em boas histórias. No geral, todos apontavam para a própria boca, usando o indicador no canto dos lábios bem arreganhados em o — um sinal para que eu pudesse perceber a sujeira no meu rosto. Eu fingia espanto e me limpava rapidamente usando o antebraço. Era suficiente. Todos, absolutamente todos, partiam depressa depois disso. Eu colocava as mãos no volante e fingia que ia ligar o carro.

Se não estavam realmente interessados, por que eles simplesmente não passavam pelo meu velho Celta com seus narizes empinados e seus tênis esportivos e seguiam, saudáveis e indiferentes, com suas vidas? Seria mais fácil pra mim. Mas era sempre isso, alguém sempre queria ajudar a pobre senhora sozinha e em apuros. Depois que partiam e eu podia ter certeza de que não havia mais ninguém por perto, começava o meu dia. Eu saía do carro, me espreguiçava bem e, antes de fazer qualquer coisa, descia para um mergulho no mar.

Pular sete ondas era sagrado, além de me benzer com um ramo — o dia de ramos era sagrado pra mamãe. Sem isso eu não era capaz de prosseguir. Morar em um pequeno carro estacionado em uma avenida à beira-mar pode parecer algo idílico pra alguns, mas, no geral, é bem perigoso. Por isso fiz amizade com Fumaça, um mendigo já acostumado a dormir no calçadão da praia e que sempre me ajudava a tirar o mato que crescia em torno dos pneus em troca de um pacote de salgadinhos. Essa pequena vida tão delicada que se insinuava em um objeto feito de petróleo e aço poderia colocar tudo a perder. Ele também ficava de olho no Celta enquanto eu ia fazer o meu trabalho na loja de conveniências que ficava a apenas trinta passos de onde meu carro estava estacionado.

Fumaça era conhecido e temido. O corpo coberto de fuligem dos carros que passavam furiosos na avenida davam a ele uma aparência fantasmagórica. Ninguém se atrevia a mexer com ele, nem os policiais. Louco! Quando ele tentava se aproximar, davam algum dinheiro e deixavam pra lá. Como eu precisava passar o dia inteiro dentro da conveniência, a minha amizade com ele foi fundamental pro meu novo estilo de vida. Pra ele também: nos últimos anos, ninguém mais andava com moedas no bolso, tudo virou pontos acumulados em um cartão de plástico e transferências online.

No começo, quando eu ainda atuava sozinha, meu veículo foi diversas vezes saqueado, e viaturas locais tentaram rebocar o que eles chamavam de lataria esquecida. Mas depois da minha parceria com o fantasma as coisas começaram a dar certo: o meu Celta ocupava eternamente a mesma vaga sem maiores problemas, e Fumaça sempre dava um jeito para que não parecêssemos assombrações ocupando um automóvel em ruínas.

O dia ia ser longo. Eu precisava ganhar dinheiro suficiente pra comer durante duas semanas. Fumaça ia fazer um pequeno procedimento cirúrgico, e eu prometi ajudá-lo. Ele iria dormir comigo no carro enquanto se recuperava, só assim eu poderia cuidar dele. Eu já produzia conteúdo pras redes sociais há mais de um ano, e tinha pegado a manha de como conseguir mais grana, caso fosse necessário parar por uns dias. Estava disposta a pular o almoço para bater a minha meta de pontos.

Fazer dancinhas na internet. Foi o próprio Fumaça que me deu a ideia quando viu o celular na minha mão. Dava algum dinheiro. No começo achei que seria humilhante, mas me acostumei rápido e até peguei gosto pela coisa. Meu conteúdo era basicamente sobre nutrição para idosos, e o meu forte era propaganda de iogurte. Nos últimos dias com a minha mãe, isso era praticamente tudo o que ela podia comer, então eu tinha me tornado especialista em sabores, marcas e detalhes nutricionais: desnatado, integral, saborizado, sabor idêntico ao natural, kefir de leite, sem açúcar, vitaminas adicionadas, sem lactose, com pedaços de frutas.

Na conveniência da praia, era o produto que mais vendia, junto com algumas modalidades de frozen, e eu combinei com o dono uma parceria de divulgação em troca da utilização dos seus produtos e do cenário da loja pra fazer os meus conteúdos. Comecei o vídeo da manhã com um boomerang de um desnatado de morango com trilha sonora de Sidney Magal. O meu sangue ferve por você! ativava a libido da mulherada, e as vendas iam muito bem. Durante minhas performances, era bem comum juntar uma roda de clientes empolgados com o meu pequeno espetáculo, e, às vezes, eles até participavam da dança. Ajudava muito no engajamento. Eu mal sabia que meu quadril podia se movimentar, mas, fazendo as dancinhas todo santo dia, não só aprendi a rebolar como compreendi os diferentes gostos musicais do meu público, e até alguns passos que eram sucesso na rede, como desenrola, bate e joga de ladinho.

Eu tinha consciência de que todo o sucesso vinha do ridículo de uma mulher da minha idade dançar para ensinar componentes nutricionais de produtos alimentícios pra idosos. Mas funcionava. Eu batia os pontos necessários e conseguia boas transferências pra minha conta. Tudo o que eu precisava era comer e dormir em paz no meu Celta. Até o fim dos meus dias. Era pedir muito? Mas a doutora Glória tinha que aparecer justamente naquela avenida, naquela praia, naquela loja de conveniência com seus insuportáveis tênis de corrida:

— Doutora Thereza?! — Eu fingi que não era comigo e continuei firme no Ooohhhh eu te amo! Eu te amo, meu amor! Iogurte no alto, derrama um pouco na boca. — Sim! É ela! Eu tenho certeza! — ela comentou com o marido, que analisava algumas opções de energéticos. O homem me encarou com um olhar de repulsa e continuou indiferente na análise de uma opção de pêssego com morango que tinha nas mãos. — Doutora Thereza?

Eu continuei firme. Tinha esperança de que a pequena multidão ao meu redor a impedisse de continuar a investigação, mas ela não se intimidou. Afastou algumas pessoas e ficou bem na minha frente. Eu não parei. O iogurte escorria pelo meu corpo. Caprichei no rebolado. Alguns aplaudiam, outros gritavam vai, vadia!, e eu dançava enquanto parodiava a canção: fonte de proteínas de alto valor biológico, cálcio, fósforo, vitaminas do complexo B. Glória estava em choque.

Ela tinha sido minha chefe, mas isso já fazia uns dez anos. Uma mulher silenciosa e de uma gentileza agressiva. Conhecida e importante executiva no ramo da indústria alimentícia local. Da última vez que a vi, ainda não tinha rugas tão profundas nos olhos e seu bigode chinês não era perceptível. Ela jamais faria procedimentos no rosto, era do tipo que acreditava na discrição absoluta. Quando fui conversar com ela sobre a licença para acompanhar o tratamento da minha mãe, ela sorriu levemente, disse claro! e retomou a atenção na tela do computador. Fala com a Susana do RH e não esquece de entregar todos os arquivos. Nós trabalhávamos sob a pressão de um rigoroso e detalhado contrato de sigilo, e em mais de vinte anos de casa eu jamais havia deixado qualquer informação vazar. Entreguei tudo. Ao final da licença a que tinha direito já sabia que seria demitida.

Eu preferi acompanhar os últimos dias da minha mãe. Erámos só nós duas. Papai morreu jovem, de infarto, pra completo alívio de mamãe, que pode usufruir ainda de alguns anos de liberdade. Eu nunca quis me casar, focada no trabalho e na minha independência, como ela havia me ensinado. Mamãe até tinha uma pequena poupança, que fez escondida por segurança, e gostava de costurar, mas nos últimos tempos as pessoas preferiam comprar roupas prontas em um famoso site chinês. Eu também tinha minhas economias, então poderíamos ficar confortáveis durante anos, mas a doença foi longa e agressiva. Não quis que ela sofresse um único dia. Quando tudo acabou, só me restou o Celta. Mamãe adorava esse carro. Nós passeamos e viajamos muito nele pelo interior do país. Foram dias felizes.

Quando o grupo de pessoas se dispersou e eu pude guardar meu equipamento — luz, um pequeno microfone de lapela e tripé do celular —, ela se aproximou de mim e, com a sua costumeira gentileza, me intimou:

— Você precisa parar com esses vídeos.

O marido a observava de longe, no caixa, com uma sacola de energéticos variados e dois frozen, um de morango e outro de kiwi.

— Você devia levar um iogurte natural — respondi. — Esses frozen são só química, como você bem sabe.

Ela olhou para o marido com ar de reprovação. Ele passava o código de barras dos produtos no autoatendimento; acrescentou ainda duas barras de chocolate com amendoim.

— Você sabe que o nosso trabalho exige sigilo absoluto. Por que você está fazendo esses vídeos? — ela questionou.

— Nosso trabalho? Vocês me demitiram. Há anos!

— Você não estava mais batendo as metas da empresa… E faltava muito às reuniões presenciais.

— A minha mãe ficou doente. Vocês sabiam disso. Em vinte anos de casa eu nunca falhei com a empresa. — Me virei, peguei a sacola com meus equipamentos e continuei: — E os vídeos são só iogurtes. Só venda de iogurtes! Afinal, todos precisamos vender, não é?

Pensei em levar alguma comida pro Fumaça enquanto aquela mulher desagradável ia embora. Peguei dois pacotes de salgadinhos de milho, dois refrigerantes e dois copos com macarrão instantâneo. Decidi almoçar. Depois voltaria para bater as minhas metas do dia.

— Agora você come essas coisas? Nem parece que conhece de perto a indústria.

— O que é que você tem a ver com a minha vida? Eu como o que eu quiser! Trabalho com o que quiser! Agora sou dançarina e como comida de pacote! Não tenho mais relação alguma com vocês! Vocês me demitiram! Quando a minha mãe estava com câncer! Câncer, porra! — Todos da conveniência me olharam depois do xingamento, e Glória, que detestava escândalos, me puxou para fora da loja. Ficamos na calçada, encerrando a discussão no sol quente.

— Você sabe que não pode fazer esses vídeos. Está no seu contrato! Discrição! É a reputação da empresa que está em jogo. Você foi uma de nossas analistas mais influentes durante anos! Vai manchar a imagem da empresa.

— Problema de vocês! — De longe eu já avistava o meu Celta e só pensava em entrar no carro e dividir os salgadinhos com Fumaça.

— Nós vamos te processar!

— Pode processar!

Eu saí andando e ela veio atrás de mim. Chegamos as duas em frente ao meu carro. Ela não queria largar do meu pé. O marido estava logo atrás dela, a uns cinco passos largos de distância, esperando a confusão terminar. Ele mordia um pedaço da barra de chocolate e olhava firme para o mar. O pescoço rígido.

— Quanto você precisa pra parar de fazer os vídeos?

— Eu não quero nada de vocês! — Eu abri a porta do carro e entrei. Ela fez que ia entrar junto, mas hesitou e tapou o nariz.

— Você mora aí agora?

— Olha só, o que é que você quer de mim? Diz logo e vai embora.

— Se o seu problema é dinheiro, eu posso te ajudar. Você só não pode mais ficar fazendo esses vídeos.

— Ah! Santa doutora Glória! Vai me ajudar! Que amor! Mas quando a mãe da funcionária mais produtiva da empresa estava com câncer, quem pensou em ajudar? Ninguém! Demissão! Na lata!

— Olha só, Thereza, foi um erro nosso, mas agora estamos dispostos a corrigir. Vamos te pagar uma indenização por tudo o que você passou…

— Eu não quero nada de vocês! Nada! — Eu gritei com tanta força que Fumaça, que estava ao meu lado no banco, ficou assustado. Glória continuava na beira da calçada. A testa suada, as sobrancelhas arqueadas. Ela realmente estava preocupada com a repercussão dos vídeos. A doutora Thereza compartilhando segredos industriais com dancinhas na internet. O marido parecia impaciente, mas continuava aguardando sem reclamar. Apenas olhava para o mar.

— Já sei! Tem algo que você pode fazer por mim. — Vi os olhos da minha ex-chefe ficarem cheios de esperança. Ela se aproximou do carro, colocou o rosto na janela do carro e conteve o impulso de tapar o nariz.

— Você pode dar um beijo no Fumaça!

— Você tá de sacanagem? — ela perguntou, surpresa, e revirou os olhos.

— É brincadeira! Mas, falando sério, se você conseguir um emprego pro Fumaça eu paro com os vídeos.

— Não… — Fumaça murmurou logo atrás de mim.

— Eu dou um beijo nele! — Glória sussurrou e olhou para o marido, que seguia aguardando sem virar o rosto em nossa direção e comendo o chocolate.

— Hahaha! Eu sabia! — Abri a porta do Celta. Ela pulou por cima do meu colo e ficou ao lado de Fumaça. O marido indiferente.

— Se você queria a sua vingança… — Ela me encarou com o seu sorriso gentil de sempre. — Vai ter! Mas depois, nada de vídeos. Combinado?

— Combinadíssimo! — respondi, empolgada.

Fumaça abriu a boca, e Glória quase vomitou no banco do carro. Além do cheiro, ele tinha estranhos pontos esverdeados nos poucos dentes que lhe restavam. Ele não hesitou e lhe deu um longo e molhado beijo. Quando ela saiu do Celta, vomitou.

— Espero que você cumpra sua parte no nosso acordo. Eu vou ficar de olho — ela disse, e saiu apressada, limpando a boca com a barra da blusa. Pegou a sacola do marido com violência e partiu, não sem antes tomar uma golada generosa de energético e cuspir tudo logo em seguida.

Fumaça me olhou espantado. Ele não era de falar muito, mas eu sabia que estava preocupado. Como eu iria conseguir dinheiro agora? O cheiro da purulência de seus pés estava cada vez mais forte.

— Não se preocupa. Ela nunca vai me achar. A internet é um mundo, e eu conheço os algoritmos. É tudo uma questão de ser recomendada para a pessoa certa.

Depois do incidente, decidi mudar o meu Celta de lugar e Fumaça, meu fiel fantasma, quis vir junto comigo. Achamos um lugar perfeito logo no fim da praia. Distante, solitário e perto das estrelas. Como sempre, havia muitas lojas de conveniência ao redor.

Hambagu, de Luísa Matsushita (2023). Cortesia Galeria Luisa Strina.

O jogo da amarelinha não é apenas a realização literária mais célebre de Julio Cortázar (1914-1984), mas também, ao lado de Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez (1927-2014), é um dos romances mais importantes e influentes tanto do boom literário latino-americano da década de 1960 quanto de toda a literatura moderna. Ou melhor… Seria a obra de Cortázar um único romance? Um único livro talvez sim, se pensarmos em termos físicos (ou de arquivos digitais), mas é mais preciso dizer que, neste livro, na verdade existem alguns romances. 

Julio Cortázar. Foto: Ulf Andersen.

Como o próprio Cortázar explica (aqui na tradução de Eric Nepomuceno) com sua “tabela de leitura”, uma breve instrução que precede o capítulo de abertura, “Este livro é, à sua maneira, muitos livros, mas é acima de tudo dois livros. O leitor está convidado a escolher uma das duas possibilidades seguintes: O primeiro livro se deixa ler na forma comum e corrente, e termina no capítulo 56(…) O segundo livro se deixa ler começando pelo capítulo 73 e depois na ordem indicada ao pé de cada capítulo.”

Em pleno 2023, ano que marca o aniversário de 60 anos da obra, a proposta ainda soa com frescor. A ideia de um leitor ativo que toma as rédeas da história se popularizou nas décadas seguintes no formato de livros infantis, nos quais as escolhas do leitor são feitas do jeito mais simples e didático possível, e também na forma de videogames e jogos que não necessariamente caminham de maneira linear, mas conforme as opções feitas por quem está jogando. Recentemente, usaram o formato na série Black Mirror, da Netflix. No caso dos romances, porém, isso nunca virou mainstream. Por incrível que pareça, a audácia do magnum opus de Cortázar ainda chama a atenção — e isso diz muito sobre duas coisas: sobre a literatura contemporânea e a força d’O jogo da amarelinha. 

As muitas promessas e projeções feitas em cima da literatura latino-americana talvez não tenham se concretizado. Ou talvez tenham, mas não pela brecha radical, revolucionária e anti-establishment aberta principalmente por Cortázar e Amarelinha, mas também por Vargas Llosa e Conversa na Catedral, García Márquez e Cem Anos de Solidão. Não virou moda quebrar as estruturas nessa escala, pelo menos não no nível de modificar tanto a experiência da leitura, pois, se o boom da literatura latino-americana se deu pelos leitores e não pelos editores (como, aliás, costuma acontecer com movimentos realmente importantes), quando essa lógica voltou ao seu estado natural de mercado ditando a produção, logo as ideias mais vanguardistas foram sendo estruturalmente cerceadas. 

Mas, de toda forma, a revolução foi televisionada (ou, no caso, impressa) e o caminho foi aberto, causando grande impacto. É como escreve Carlos Fuentes (1928-2012), outro autor de mão cheia que também fez parte desse momento de globalização da literatura latino-americana, em sua resenha de 1966:

Em suma, O jogo da amarelinha, na sua profundidade de imaginação e sugestão, no seu labirinto de espelhos negros, na sua irônica potencialidade através da destruição do tempo e das palavras, marca a verdadeira possibilidade de encontro entre o imaginário latino-americano e o mundo contemporâneo.

O jogo da amarelinha tem grande sucesso: é o equivalente latino-americano de livros como As Asas da pomba [romance de Henry James] e Suave é a noite [romance de F. Scott Fitzegeral].

Carlos Fuentes, 1966

O primeiro romance que existe em O jogo da amarelinha é lido de ponta a ponta, seguindo a tradição. Já o segundo, vai se formando pela leitura dos capítulos fora de sequência, de acordo com as instruções do autor. Os outros, podem ser montados a bel prazer por quem estiver lendo. Embora esse tipo de conceito estrutural e narrativo seja mais facilmente digerido pelos leitores do século 21, mais familiarizados com os experimentos literários pós-modernos, o alvoroço foi altamente positivo para o público que inicialmente recebeu Amarelinha. Era um abandono bem-vindo das regras rígidas de antes, uma fuga que exigia que o leitor saísse de qualquer zona de conforto. Assim, entre a polêmica e a apreciação, tanto o livro quanto o seu autor alcançaram imediatamente a fama e infâmia internacionais. Julio Cortázar, é verdade, já havia consolidado sua reputação como um escritor talentoso e inovador com tour de forcées como Bestiário (1951) e As armas secretas (1959). Sua escrita anterior, repleta de contos curtos e narrativas desafiadoras, sinalizava sua inclinação para a experimentação literária e sua capacidade de lidar com temas complexos. Mas O jogo da amarelinha foi sua grande catapulta para o reconhecimento global.

Na primeira leitura, o livro é dividido em duas seções principais, “Do lado de lá” e “Do lado de cá”, com uma terceira, “De outros lados”, que o autor afirma que o leitor “dispensará, sem remorsos”. O protagonista de O jogo da amarelinha é o boêmio Horacio Oliveira, escritor argentino radicado em Paris, desanimado com o fim de seu relacionamento com Maga. No início do romance, Oliveira é mostrado como uma alma perdida. Ele vaga pelas ruas de Paris procurando em vão a visão de Maga, torturado pela lembrança dela. Grande parte de seu tempo é passado com seus amigos, artistas fracassados e descontentes como ele. Essa convivência, no entanto, oferece pouca clareza ou paz e, assombrado pela memória de suas próprias falhas, Oliveira é incapaz de conciliar as peças do seu passado e presente. Na segunda seção, “Do lado de cá”, o pobre-diabo retornou a Buenos Aires, deportado, e foi morar com uma ex-namorada, ainda longe de resolver sua dor pela perda de Maga. Suas obsessões começam a ter terríveis consequências.

Embora a leitura deste primeiro romance seja linear, a narrativa não é nada simples, alternando entre capítulos na primeira e terceira pessoa. A primeira, no presente; a terceira, no passado. Dessa maneira, Cortázar desenvolve o personagem através de um processo de agregação e justaposição, com capítulos que nem sempre se prefiguram ou respondem diretamente uns aos outros e mudam no tempo, no espaço e na voz. Como Oliveira é um homem fragmentado, os recursos aos quais o autor lança mão são importantes para o desenvolvimento do personagem. É quando a inovação se preza a ir adiante, bem além do que somente sua proposta de rearranjar as bases sobre as quais se erigiam as fundações literárias, agregando não só exuberância à técnica mas também camadas metafóricas ao retrato. Toda a complexidade estrutural não tem a ver com um escritor que quer provar que pode escrever algo assim, que tem o desejo de se estabelecer contra alguém que dita as regras. Tem a ver, na verdade, com a experiência do personagem principal e do ensejo revolucionário de seu autor. Entre as idas e vindas de leitura, experiencia-se um pouco da irresolução de Horacio e um outro tanto da insatisfação de Cortázar, além de uma peregrinação profunda pelos estados mentais de ambos.

Oliveira mira no futuro mas inevitavelmente acerta o passado e, como resultado, não encontra um sentido unificador do presente ou de si mesmo. Nesse sentido, a primeira leitura do livro talvez prepare o leitor, tanto estruturalmente quanto tematicamente, para a suposta disjunção da segunda. O Oliveira da segunda leitura, ao contrário do primeiro, reflete não só sobre o sofrimento, mas sobre a capacidade de cura da arte e, em particular, da linguagem. Ou seja, o Oliveira da segunda leitura revela-se como um homem em busca — e, se alguém procura por algo, em algum nível existe a expectativa verdadeira de que, algum dia, não importa o quão distante ele esteja, se encontre o que está sendo procurado. O enfoque metafísico e metalinguístico da segunda leitura é favorecido pelo enigmático Morelli, personagem de filosofias similares às de Oliveira e Cortázar. Escritor, ele defende um novo tipo de arte literária, uma “narrativa que atuará como coagulante de experiências”, que criará, por sua vez, um novo tipo de homem ao criar um novo tipo de leitor, tornando-o “um cúmplice”, um companheiro de viagem.” Assim, o metafísico torna-se metaficcional, e o tipo de romance que o personagem defende é aquele que está nas mãos do leitor. Na superfície, portanto, o livro pode até parecer pessimista, mas, ainda que elenque frustrações e exaspere desesperos, a busca constante lida em qualquer versão denota a existência de uma esperança incorrigível.

Mas Cortázar, no fim, é um artista que prefere a provocação ao pronunciamento, então a busca de Oliveira na segunda leitura permanece sem solução. Melhor assim. Melhor ficar dentro do labirinto. O jogo da amarelinha não oferece conclusões definitivas ou delineadoras, apenas possibilidades.

Tudo em O jogo da amarelinha é um duplo fantasmagórico de si mesmo: cidades, personagens, culturas, até o próprio autor. Mas, na América Latina, a fantasia é história. A história como mudança não existe, há apenas a repetição compulsiva de atos rituais. Como Borges, Cortázar tenta pôr em movimento o tempo latino-americano através do fantástico. A Argentina, diz Cortázar, tem todo o futuro pela frente, e esta é a mais pobre das riquezas: eis a América Latina, em poucas palavras. Continuamente referidos às promessas do futuro, só poderemos responder com ficções se quisermos fixar o presente e sentir-nos vivos.

Carlos Fuentes, 1966

Publicado em 1963, o romance teve um impacto profundo. Além de suas inovações estruturais, também abordou questões políticas e sociais da época, lançando um olhar crítico sobre a realidade da América Latina. O livro foi publicado em um momento de agitação política da Argentina, que estava sob o regime autoritário do general Juan Domingo Perón (1895-1974). A atmosfera repressiva da época foi incorporada ao romance, e Cortázar, que era um crítico feroz do governo peronista, usou a literatura como uma forma de expressar o seu descontentamento. Com suas questões existenciais, filosóficas e culturais, O jogo da amarelinha refletiu a sensação de alienação e desilusão que muitos sentiam na época. A busca de Horacio Oliveira por sentido em sua vida é um reflexo da busca por sentido em um mundo em constante mudança que é, muitas vezes, absurdo e violento.

O livro ganhou um lugar de destaque no cânone literário latino-americano e tornou-se um marco da literatura contemporânea, não apenas na América Latina, mas em todo o mundo. 60 anos mais tarde, O jogo da amarelinha permanece uma obra essencial. Em um mundo onde o facismo parece sempre ter vez, é importante oferecer novas visões e extrapolar limites impostos explícita ou implicitamente. Ao abordar questões importantes e pulsantes de uma maneira nunca antes vista, Cortázar queria dar o poder na mão das pessoas e deixar que elas dominassem a própria narrativa, negando tanto o poder ditatorial de um autor quanto a passividade de um leitor. O jogo da amarelinha era um ato revolucionário, um grito altivo por mudança. 

Mudar a literatura e, quem sabe, mudar o mundo.

No mundo artístico, o debate sobre as diferenças entre plágio e influência é uma constante. A humanidade vem produzindo arte há um bom tempo, então é natural que fórmulas se repitam e semelhanças ocorram aqui e ali, seja em qual for a manifestação analisada.

Quando acusações de plágio acontecem, reputações são abaladas, questionamentos éticos surgem e a obra em questão é submetida a um escrutínio público. O processo é complexo para todas as partes envolvidas. Como, afinal, definir o que é e o que não é plágio? Há formatos que permitem uma inspeção mais objetiva (a progressão similar de acordes similares, as mesmas palavras usadas numa frase, etc.), mas, mesmo nesses casos, é preciso refletir sobre os limites tênues entre a cópia e a influência, além de pensar em como aplicar quaisquer que sejam os parâmetros de maneira equânime — se isso for, de fato, possível. E em um mundo como o nosso, onde as narrativas canônicas costumam vir de um mesmo lugar, seria ingenuidade pensar que é. 

Como um ótimo adendo à discussão, chegou ao Brasil, pela editora Fósforo, o livro A Mais Recôndita Memória dos Homens, do escritor senegalês Mohamed Mbougar Sarr. Vencedora do prestigiado prêmio Goncourt, a obra nos convida a ponderar sobre um punhado de questões fundamentais a partir de um ponto de vista histórico, que volta o nosso olhar para trás, mas que, ao mesmo tempo, nos empurra na direção de episódios recentes, como o infelizmente sempre atual silenciamento de vozes africanas e algumas acusações ocorridas no mundo da música.

O escritor senegalês Mohamed Mbougar Sarr | Foto: Richard Dumas para La Croix L’Hebdo.

Em 2018, na sempre movimentada e bela Paris, Diégane Latyr Faye, um jovem escritor do Senegal — autor cujo último romance, tido como um fracasso pelo protagonista, vendeu “setenta e nove exemplares nos primeiros dois meses” —, enfim encontra o livro que sempre procurou, O Labirinto do Inumano. Seu autor, o lendário T.C. Elimane, em resposta a uma escandalosa acusação de plágio que mobilizou a comunidade literária francesa dos anos 1940, desapareceu do mapa. Fascinado pelo silêncio ao qual se resumiu a vida desse mito, Diégane — um claro alter ego do próprio Sarr — inicia então seu percurso para desvendar os enigmas por trás do desaparecido, e tão promissor, autor, que chegou a ser chamado de “Rimbaud negro” em uma resenha pelo jornal L’Humanité

É importante dizer que, muito embora seja fictício (assim como a resenha do L’Humanité), Elimane é baseado em um autor real: o malinês Yambo Ouloguem (1940-2017), que em 1968 ganhou o prêmio Renaudot com Le devoir de violence (O dever de violência) e, depois de acusações de plágio, sumiu sem deixar vestígios. Por que isso é importante? Ouloguem era um escritor negro, de Mali, e foi escorraçado não só dos círculos acadêmicos da França, mas da vida social como um todo. Esse caso real respinga pelas páginas de Sarr e tudo que seu livro tem a dizer sobre muitas das problemáticas do mundo da cultura.

Capa de Flávia Castanheira e Zansky.

Num labirinto literário e geográfico empolgante que não deixa escapar nenhuma oportunidade de crítica, o autor de Senegal rebate cada fascínio com uma ressalva e cada pé atrás com um encantamento. É um equilíbrio que se deixa pesar para cá e para lá pela gravidade da História, sem que a verborragia se sobreponha ao prazer da narrativa.  

Mohamed Mbougar Sarr mergulha nas profundezas da memória coletiva africana, explorando temas como identidade, história, colonialismo e resistência. O laureado romance oferece uma perspectiva única e poética sobre a experiência africana, trazendo à tona narrativas e vozes que muitas vezes foram marginalizadas e silenciadas (ou até mesmo apagadas). Os ecos de Roberto Bolaño, que também salpicou suas visões de mundo escrevendo sobre perambulações obstinadas em busca de um mistério literário, são claros. Eles são, inclusive, explicitados na epígrafe de A Mais Recôndita Memória dos Homens.

“Por algum tempo, a Crítica acompanha a Obra, depois a Crítica se desvanece e são os leitores que a acompanham. A viagem pode ser comprida ou curta. Depois os leitores morrem um a um, e a Obra segue sozinha, muito embora outra Crítica e outros Leitores pouco a pouco se ajustem à sua singradura. (…) E um dia a Obra morre, como morrem todas as coisas, como se extinguirão o Sol e a Terra, o Sistema Solar e a Galáxia e a mais recôndita memória dos homens.”

Trecho da epígrafe de A Mais Recôndita Memória dos Homens, extraída de Os Detetives Selvagens, de Roberto Bolaño

O enredo do livro se desenrola em linhas temporais distintas, entrelaçadas com um liga-pontos novelesco de saltar aos olhos: para além da contemporaneidade que acompanha um jovem africano em busca de sua própria voz e de respostas indigestas sobre o mercado literário, a Argentina pós-guerra também serve de cenário, assim como a região do Sahel, onde um soldado africano se vê envolvido em uma trama que envolve o exército colonial francês. Esse tipo de costura, na verdade, incute no leitor uma noção praticamente palpável de que o passado e o presente são tão somente nomes diferentes dados para as mesmas realidades — e isso vale para a Europa, para a América Latina, para a África. Politicamente falando (quiçá, emocionalmente também), há muita força numa contraposição bem feita de épocas, ainda mais quando esta se sustenta sobre bases que fogem das exposições batidas, por vezes desnecessariamente complexas, com as quais estamos acostumados. 

Ao incorporar elementos mágicos e mitológicos que alcançam decibéis ainda mais altos por terem o frescor da especificidade, Sarr desafia as convenções narrativas tradicionais de um cânone que, sabemos, é tanto elitista quanto branco, masculinizado e eurocentrista, conseguindo assim explorar as profundezas da psique africana e trazer à tona uma história coletiva complexa e rica. É por essas e outras que A Mais Recôndita Memória dos Homens é uma obra que se conhece e se assume profundamente, sem demonstrar qualquer medo de colocar o dedo em muitas feridas, nem mesmo que isso signifique críticas duras contra o mundo da literatura francófona, que, curiosamente, abraçou a obra.

Não foi um acaso que o trabalho de Sarr ganhou o prestigiado prêmio Goncourt de 2021, chancelando mundialmente um autor senegalês de 31 anos (hoje, com 33 anos) e, pela primeira vez em mais de cem anos de história, fazendo isso com alguém da África subsaariana. É um dos prêmios literários mais importantes do mundo, o que torna tudo ainda mais instigante e digno de comemoração.

Edmond Goncourt (1822-1896), que dá nome à premiação, foi um escritor e crítico literário francês. O primeiro Prêmio Goncourt foi concedido, em 1903 — sete anos após a morte de Edmond. Desde então se tornou um dos prêmios literários mais prestigiados da França e, consequentemente, do mundo, sendo conhecido por impulsionar a carreira de muitos escritores. O Goncourt é concedido anualmente, sempre no início de novembro. O vencedor recebe um prêmio em dinheiro e uma grande quantidade de atenção da mídia, o que muitas vezes leva a um aumento significativo nas vendas e na visibilidade da obra premiada. 

Ao longo dos anos, o Prêmio Goncourt tem sido um importante indicador de tendências literárias e tem ajudado a impulsionar muitas carreiras notáveis na França. A história do prêmio é marcada por uma lista de vencedores que inclui alguns dos maiores nomes da literatura francesa e mundial — sem exageros. Dentre os laureados, pode-se mencionar Marcel Proust (1871-1922), que recebeu o prêmio em 1919 por Em Busca do Tempo Perdido, Albert Camus (1913-1960), premiado em 1957 por A Queda, e Marguerite Duras (1914-1996), agraciada em 1984 por O Amante.

Marguerite Duras (1914-1996)

Ou seja, ter Mohamed Mbougar Sarr nesse hall impressionante de autores e autoras representa um marco significativo na história do prêmio e da literatura mundial, quebrando barreiras e ampliando a diversidade de vozes reconhecidas e valorizadas. A vitória de Sarr não apenas colocou a África Subsaariana no centro do cenário literário mundial, mas também serviu como um lembrete poderoso de que a literatura é um espaço onde as vozes marginalizadas podem e devem ser ouvidas. Essa conquista histórica abre caminho para que mais autores africanos e de outras partes do mundo tenham suas histórias compartilhadas e celebradas, contribuindo para a diversidade e o enriquecimento do panorama literário global.

É de se pensar também, como o próprio Sarr faz, que receber esse convite pomposo para fazer parte de um clube tão restrito pode ter lá suas razões escusas. Mantenha seus amigos próximos e seus inimigos mais próximos ainda, talvez? “Não sei exatamente como interpretar”, disse ele em uma entrevista. “Isso significa que o senso de humor deles é melhor do que se acredita? É uma forma de me silenciar ou de me endossar com o prêmio? Mas, no fim, eu realmente espero que a premiação tenha acontecido porque este é, acima de tudo, um bom livro.”

Em outra entrevista, endereçou o tema do plágio, que, aliás, é uma das principais questões do romance. Onde está a linha que demarca o que é plágio e o que é influência, colagem ou o que os acadêmicos chamam de intertextualidade? Sarr afirma que um dos critérios para definir isso é a cor da pele.

“Quando você escreve, diante de toda a biblioteca escrita antes de você pelos grandes autores, você se pergunta: ‘O que eu posso trazer de novo?’ A resposta é simples: ‘Nada.’” Segundo ele, é possível reinventar narrativas por meio de seu estilo pessoal, e isso pode gerar bons livros, mas dificilmente se escapará de tudo o que o cânone já produziu. “E o ponto é, quando você pertence a essa tradição literária, pode brincar com ela, mas quando você é de outro lugar, será que pode fazer isso sem ser acusado de plágio?”

Retrato de Mohamed Mbougar Sarr, em Besançon | Foto de Sophie Bassouls/Sygma via Getty Images

A Mais Recôndita Memória dos Homens faz uma acusação veemente à comunidade literária francesa, e do resto do mundo, dizendo com dedo em riste que narrativas que não pertencem à elite branca vêm sendo roubadas sem quaisquer tipos de consequências. As repercussões, muito pelo contrário, costumam ser positivas, enaltecendo a pessoa plagiadora por uma suposta criatividade. Quem irá questionar aqueles que detêm poder, aqueles que dominam a narrativa padrão? É por isso que Sarr afirma categoricamente que a cor da pele com certeza é um dos critérios que definem o plágio ou o não-plágio. É como o trecho de uma resenha do jornalista fictício Auguste-Raymond Lamiel (um dos muitas contidos no livro), escrevendo para o L’Humanité, que diz: “Toda a história da literatura não é a história de um grande plágio? Que seria de Montaigne sem Plutarco? La Fontaine sem Esopo? Molière sem Plauto? Corneille sem Guillén de Castro?”

A arte é um território fértil para a inspiração mútua, e é comum que obras sejam influenciadas por outras. No entanto, a linha que separa a influência legítima do plágio é tênue e muitas vezes subjetiva. Mohamed Mbougar Sarr, em sua obra, levanta essa discussão ao explorar a mais recôndita memória dos homens, em que a criação artística é enraizada em uma rede de influências que se entrelaçam ao longo do tempo.

Só quero escrever um bom livro, Stan, um livro que me dispense de fazer outros, que me livre da literatura, um livro como O labirinto do inumano, entende?

— Entendo, sim. Mas vocês, escritores e intelectuais africanos, bem que poderiam desconfiar de certos reconhecimentos. Mais dia, menos dia, a fim de apaziguar sua consciência, a França burguesa vai consagrar um de vocês”.

— Trecho do diálogo de A Mais Recôndita Memória dos Homens 

No final, é bem possível que os Les Dix do Goncourt, como são conhecidos os votantes do prêmio, perpetradores de uma forte herança, tenham tido o bom senso de aceitar que seus herdeiros, ao se apropriarem dessa herança pela qual eles vivem, podem tanto renunciar a ela quanto zombar dela.

Como toda grande obra e autor, nem Mohamed Mbougar Sarr nem A Mais Recôndita Memória dos Homens podem ser facilmente classificadas. E, depois do Goncourt, o vasto labirinto de criador e criatura parece ter ficado ainda mais complexo. Por anos a fio, essas paredes vão mudar ora para lá ora para cá. Ainda assim, seguirão despertando interesse, levando a caminhos que continuarão sendo desvendados. Justiça foi feita.

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