Dizem que conviver com as avós é uma sofisticação evolutiva que poucos animais desenvolveram — humanos, alguns macacos e baleias, por exemplo. Suspeito que que isso se dá pelo enriquecimento do nosso repertório emocional e afetivo provocado pela convivência com elas.
E já que é para falar sobre avós, é preciso falar delas próprias, porque avó tem que ser específica e real. O afeto vem do particular, e não do geral. No meu caso, a convivência com minhas duas avós me trouxeram a relação com a literatura, as artes visuais e a fotografia e alimentaram minhas fantasias com viagens. Também tive estímulos de outras partes, é claro, mas quando é de vó, a coisa tem um peso diferente. É como se a relação com elas fosse preparando a gente para a grande ausência que a partida delas vai deixar, e tudo que elas nos dão vira insumo para uma saudade que vai ser a principal relação que a gente vai ter com elas em grande parte da nossa vida.
Como eu já gosto de navegar na saudade e investigar a relação com nossos sentimentos através da arte, aproveitei a oportunidade para fazer um passeio com a ajuda de inteligência artificial pela minha relação com elas, passando pelas influências artísticas e os vestígios que elas deixaram no meu imaginário.
Vó Elba
Minha avó Elba era fã dos pintores pré-rafaelitas e vivia me dizendo pra visitar a Tate Gallery quando fui morar em Londres. Quando ela faleceu, eu ainda estava morando lá e não pude ir ao seu velório, por isso resolvi finalmente visitar os quadros de que ela tanto gostava e me conectar com a sua partida.
Uma gaúcha da fronteira, que além do sotaque, tinha memorabilias gaúchas, como uns quadros do pintor Glauco Rodrigues — com gaúchos cavalgando e a paisagem dos pampas — que permearam minha infância, junto de minha irmã, em sua casa. Os quadros também já se foram e deixam saudades, mas, curiosamente, contemplar essa rememoração artificial dele com a gaúcha e seus netos no Rio consegue dar conta do vazio da ausência original.
Elba tinha uma relação de amor e ódio com o videocassete, pelas maravilhas que ele podia fazer e pela incapacidade dela de ajustar o relógio ou programá-lo para fazer qualquer coisa — o que obviamente ficava a cargo do neto tecnológico.
Criada no sul do Brasil, sua relação com carne e bois era muito peculiar, e ela ficava particularmente emocionada com as touradas que passavam à tarde nos canais de TV a cabo.
Ela falava muito sobre livros com a gente, estimulando a leitura e comentando sobre seus favoritos, como Neruda ou Proust. Deste, eu sempre ouvia a história da famosa madeleine que ele tinha comido e que, num jorro epifânico, deu origem a todo seu livro monumental. A madeleine era uma espécie de portal do Proust para a infância, o que, no meu caso, com certeza seria o pão de queijo, remetendo aos que eu comia na casa dela — a única comida capaz de fazer brotar memórias e um fluxo de lembranças suficiente para preencher três mil páginas.
Seus slides de viagem eram fascinantes e alimentaram muito minha curiosidade de morar fora do Brasil e conhecer outras culturas.
Acredito que obras que nos marcam profundamente oferecem pistas importantíssimas para desvendar quem somos de verdade. No caso dela, tinha um poema do poeta chileno Pablo Neruda que sempre a deixava muito emocionada: La mamadre. Ela adorava recitá-lo com seu espanhol porteño: “La mamadre viene por ahí, / con zuecos de madera (…)”.
Vó Meri
Minha avó Meri era uma fanática por fotografia, que sempre me estimulou e me deu minha primeira câmera digital. Um de seus muito bordões era: “Se você não fotografou, você não esteve lá!”. Minhas fotos como Cartiê Bressão vêm dessa simples tentativa de registrar os momentos e sentimentos de que eu quero me lembrar.
Além de estimular a fotografia, ela também incentivava o aprendizado de línguas e a autossuficiência. Um exemplo clássico era a coleção de fitas cassete com aulas de francês que ela tinha e adorava compartilhar.
Na minha cabeça, tudo em sua casa tinha decorações náuticas, uma grande paixão dela e do meu avô, que acho que contribuíram para este meu estado permanente de viagem. Ela era cheia de truques para viagens, como sua máxima de só ficar duas semanas fora de casa para que a volta não fosse muito dolorosa e o segredo que aproveitou de Principe Charles: ele nunca sabia quanto tempo podia ficar preso num cerimonial, então, assim como ele, quando tiver a oportunidade de ir ao banheiro, vá!
Sua gigantesca coleção de corujas era mitológica e, em retrospecto, sem dúvida já era um bom indício de sua excentricidade — característica extremamente inspiradora para a conexão com minha autoralidade e individualidade artística.
Definitivamente, Meri não era adepta do minimalismo na hora de se vestir, e sua intensidade nas estampas às vezes lhe rendiam o não muito lisonjeiro apelido de “dragão da independência” pela patrulha familiar. Sua capacidade de ignorar esses ataques à sua liberdade de expressão, porém, garantiam que ela sempre estivesse pronta para brilhar.
Marcelo Steiner é médico ginecologista, integrante da Associação Brasileira de Climatério.
Na primeira metade dos anos dois mil, a publicação dos resultados de uma pesquisa clínica que incluiu mais de vinte e sete mil mulheres fez eclodir uma questão polêmica: a terapia de reposição hormonal para mulheres no período do climatério é arriscada? A diminuição do estrogênio, característica que marca o período que vai da perimenopausa à pós-menopausa, pode causar sintomas como calorões e labilidade emocional, além de aumentar o risco de doenças crônicas, como as cardiovasculares. Até esta publicação, a literatura científica demonstrava que a reposição do estrogênio estava associada a respostas benéficas para a saúde feminina, sendo considerada, inclusive, um protetor para doenças cardiovasculares. Porém, os resultados do estudo apontavam não só para um aumento dos casos de doenças cardiovasculares, mas também para o aumento dos casos de câncer de mama. Muito embora haja consenso de que diversos equívocos metodológicos determinaram resultados incorretos, receios advindos dessa pesquisa ainda ecoam no imaginário das pessoas.
Para que a reposição hormonal aconteça da maneira adequada, o quadro deve ser favorável, o início deve ter o timing ideal e tudo deve ser acompanhado de perto por um especialista. Por essas e outras, o SUS não cobre a reposição do estrogênio. Para explicar melhor o porquê disso e nos guiar por outros conceitos importantes, conversamos com Marcelo Steiner, ginecologista com quase 20 anos de prática que faz parte da Associação Brasileira de Climatério (Sobrac).
Revista Amarello: Quais são as diferenças entre pré-menopausa, menopausa e pós-menopausa?
Marcelo Steiner: Menopausa significa a data da última menstruação da vida da mulher. Significa que o ovário perdeu totalmente a capacidade de produzir hormônio e ovular. Então, a partir desse momento, a mulher deixa de ter capacidade reprodutiva e tem a produção de hormônios diminuída. Logicamente, isso não acontece de um dia para o outro. O ovário vem perdendo essa capacidade ao longo do tempo, principalmente nos cinco anos prévios à menopausa. As mulheres começam a sentir alguns sintomas relacionados a essa insuficiência de capacidade na produção de hormônio pelo ovário, e o primeiro é a irregularidade menstrual. Alguns ciclos começam a mudar de padrão. E aí, quando começa a se aproximar cada vez mais da menopausa, os sintomas mais clássicos, como a onda de calor e a labilidade emocional, começam a aparecer.
A gente considera o período dos primeiros sintomas — que, em média, começam cinco anos antes da pós-menopausa — até um ano após a menopausa como perimenopausa ou transição menopausal. A partir daí, vem o que a gente chama de pós-menopausa. Ela, em tese, se estende até por volta dos 65 anos, quando o impacto da perda do hormônio deixa de ser tão relevante e os efeitos do envelhecimento se tornam mais importantes.
RA: Você citou alguns sintomas. Existem outros?
MS: Para além da irregularidade menstrual, existem os sintomas relacionados à perda da produção do estrogênio, como sudorese e sintomas relacionados tanto à secura vaginal quanto à perda urinária. Não tem muita regra: tem mulheres que são pouco sintomáticas, tem mulheres que são extremamente sintomáticas. Nessa fase, a mulher tem propensão à alteração do colesterol, com risco de dislipidemia e aumento do acúmulo de gordura abdominal, em um padrão masculino. Todos esses fatores aumentam o risco de aterosclerose, que é o depósito de gordura nos vasos e que, no futuro, pode levar ao infarto. Perder o estrogênio também eleva a taxa de perda de massa óssea, aumentando o risco futuro de osteoporose. O estrogênio está envolvido no metabolismo energético dos neurônios e, quando cai, o neurônio precisa se adaptar ao novo status.Esse processo está envolvido nos diversos sintomas relacionados ao sistema nervoso central, como os calores e a labilidade emocional. Quando há uma adaptação, esses sintomas diminuem. São sintomas de transição, mas que tornam esse período desafiador para a mulher.
RA: Muito se fala, até de maneira preconceituosa, da questão emocional ligada à menstruação. Mas, ligando à menopausa, nem sempre, né? O quadro todo é bem complexo.
MS: De maneira geral, as mulheres encaram esse período de maneira muito negativa.Eu vejo um outro lado que é muito legal: o amadurecimento. É um período de reflexão que, às vezes, pode levar a mulher a tomar decisões que podem até melhorar a sua vida. Há bastante coisa positiva relacionada a esse período também.
RA: Considerando os seus anos de prática, pacientes costumam fazer um acompanhamento até a menopausa, para já chegar nela entendendo a situação, até de uma perspectiva psicológica?
MS: Normalmente, após os 40 anos, a mulher começa a pensar que precisa ter mais cuidado com a sua saúde. Antes, o foco era, principalmente, os filhos, a vida profissional. Depois, ela começa a pensar no autocuidado e reflete sobre o que é esse período que está por vir. Diferentemente dos homens, a maioria das mulheres têm essa preocupação.
Os 40 anos são uma janela importante para se chegar bem na menopausa. As mulheres que estão fazendo exercício físico, têm uma boa alimentação e uma boa qualidade de sono passam por essa transição de maneira mais tranquila e menos sintomática. Já as mulheres que não estão comendo nem dormindo bem, que estão estressadas, acima do peso, tendem a ser mais sintomáticas. Mas não há uma regra. Algumas doenças têm um fundo genético mais importante. Existe uma coisa individual, mas, em geral, aquela que entra nesse período com uma melhor qualidade de saúde vai ter uma transição mais tranquila e os riscos associados a entrar na menopausa vão ser menores. Por isso, é importante o médico pesar a vida pessoal da paciente com o quadro clínico dela.
RA: Considerando os malefícios da falta de estrogênio, pensar na reposição desse hormônio parece algo simples, mas é uma questão difícil, até polêmica. Qual é o quadro geral da história?
MS: Quando estava no internato, no começo dos anos dois mil, os ambulatórios de ginecologia tratavam a mulher no climatério com a terapia de reposição hormonal até o fim da vida. E, naquela época, se tinha que a terapia de reposição hormonal era muito benéfica para uma série de fatores, principalmente a diminuição de sintomas.
Em 1994, começou um estudo chamado Women’s Health Initiative. Foi um marco na terapia de reposição hormonal, feito com dois grandes grupos: um de mulheres que tinham útero e um grupo que não tinha útero. Das mulheres que tinham, metade foi medicada com terapia de reposição hormonal oral combinada de estrogênio e progestagênio, porque quem tem útero precisa fazer a terapia combinada para proteção do endométrio, e outra metade recebeu placebo. Ao grupo que não tinha útero foi dado estrogênio isolado ou placebo. O objetivo principal desse estudo era demonstrar que a reposição hormonal diminuía o risco de doenças cardiovasculares, mas ele foi interrompido antes do programado, porque o grupo que estava recebendo a terapia de reposição hormonal começou a apresentar maior risco para câncer de mama. E, apesar da literatura científica até aquele momento mostrar benefício relacionado às doenças cardiovasculares, o estudo também revelou aumento no risco para essas doenças. Foi um banho de água fria. A partir da divulgação dos resultados, muitos deixaram de prescrever ou utilizar terapia de reposição hormonal.
O estudo do outro grupo, o de mulheres que não tinham útero, foi interrompido com mais ou menos sete anos, por um aumento de risco de acidente vascular cerebral. Mas, nessas mulheres, o risco de câncer de mama não aumentou. Na verdade, o uso do estrogênio isolado mostrou quase uma proteção para câncer de mama, ainda que ele aumentasse o AVC.
Depois de observar melhor a metodologia do estudo, pesquisadores avaliaram que a população estudada era mais envelhecida, com a média de 63 anos. A grande maioria dessas mulheres já estava há mais de dez anos na pós-menopausa. E aí o que se viu foi que, analisando os resultados de acordo com a estratificação da idade, a população mais jovem, entre 50 e 59 anos, tinha uma tendência à proteção cardiovascular. Dessa análise, saiu um conceito que hoje é muito importante, chamado de janela de oportunidade. Ele diz que quanto mais próximo da menopausa for iniciada a terapia hormonal, menor o risco para doenças cardiovasculares. O raciocínio por trás é que, quando você perde o estrogênio, esses vasos sem o hormônio tendem a envelhecer e desenvolver placas de gordura, que é o que a gente chama de aterosclerose. Depois de dez anos de pós-menopausa, a grande maioria das mulheres já desenvolveu essa doença, e utilizar estrogênio nesse momento tem um efeito inflamatório, aumentando a chance de ruptura da placa e o risco de infarto e AVC. Por outro lado, caso o início do uso do estrogênio aconteça antes do estabelecimento da placa, ele vai ter um papel protetor, impedindo o desenvolvimento da placa e diminuindo a chance de doença cardiovascular.
O outro ponto é o câncer de mama, que hoje eu acho que é o principal receio. O estrogênio não é carcinogênico, ele não gera câncer. O que pode acontecer é ele estimular a proliferação de células doentes já existentes na mama. Oestrogênio tem o papel de proliferar o tecido mamário. Então, se eu der estrogênio, vou estimular o crescimento dessas células na mama. Caso já exista uma célula doente, vou acelerar a evolução do câncer — é o efeito chamado de carcinocinético.
Em dez mil mulheres na faixa de 50 anos que não fazem terapia de reposição hormonal, costumam ocorrer cerca de 30 casos de câncer de mama por ano. Com terapia de reposição hormonal, esse número passa a ser 37. Ou seja, há um acréscimo de sete casos por ano em dez mil mulheres avaliadas. É um aumento, mas ele é pequeno. É isso que a gente tem que pôr na balança do risco quando compartilhamos a opção de realizar ou não terapia hormonal.
RA: Essas células que eventualmente podem virar câncer e que podem ser estimuladas pela terapia hormonal são detectáveis?
MS: Você não tem um screening para identificar aquela única célula que pode trazer problema. O que você tem hoje são estudos genéticos, feitos para identificar ou definir grupos de maior risco. Uma pessoa pode ter o gene, mas não expressar e não ter o câncer de mama. Se uma paciente te disser que todas as parentes dela de primeiro grau tiveram câncer de mama, provavelmente ela é uma candidata a ter câncer de mama. É uma paciente de risco. Para ela, fazer terapia de reposição hormonal talvez seja mais complicado. Os benefícios precisam valer a pena para correr o risco.
RA: Por que o SUS não cobre a terapia de reposição hormonal?
MS: O seguimento é um pouquinho mais detalhado. Mas é claro que diabetes, hipertensão arterial, dislipidemia, essas e outras doenças que também demandam acompanhamento estão no SUS. Então, acredito que os possíveis efeitos colaterais geram um receio muito grande. O que havia antigamente, que era estrogênio conjugado, deixou de ser utilizado. Ele foi descontinuado e aí não entrou nada no lugar. Acredito que seja mais uma questão das sociedades médicas e associações da comunidade feminina se organizarem para ter essa opção no SUS. É inacreditável que um grande número de mulheres não tenha nenhuma opção de tratamento hormonal.
Numa tarde em Capri, diante do espetáculo de moças jovens bronzeadas atravessando a piazzetta na qual bebíamos nossos Camparis, lancei-lhe a pergunta: “A juventude te seduz?” — Annie Ernaux, em “O Jovem”.
Envelhecimento é palavrão no universo da beleza. Geralmente acompanhando de cifras bilionárias que movimentam uma indústria irrefreável em busca de tecnologia para atenuar sinais do tempo e também de um vocabulário excessivamente bélico. Você já deve ter cruzado com embalagens, campanhas publicitárias e rótulos com promessas de combater o tempo, enfrentar a guerra contra as rugas, ou vencer a batalha contra o relógio.
Se não anda acompanhado de armas de guerra, esse território ganha ares metafísicos de quem pode voltar no tempo, frear o passar dos anos, operar milagres e conservar a juventude eterna. Juventude vende, e muito. Sonho mágico, já que a única certeza que temos é que vamos envelhecer – e, na melhor das hipóteses, vivendo mais e melhor do que as gerações que nos antecedem.
Nos últimos anos, há um esforço de quem pensa o tema em olhar para o léxico em torno do envelhecimento nessa seara da estética. Mas não só, este é um movimento global, que vai além da beleza e ganhou termos específicos, como ageshaming, ageísmo, idadismo ou velhofobia, como a antropóloga brasileira Mirian Goldenberg gosta de dizer. E mobiliza mais do que especificamente essa indústria – um relatório recente da Organização Mundial de Saúde, somente sobre o tema, coloca luz à importância de discutirmos o preconceito contra idade em instituições, leis e políticas do mundo todo porque nega às pessoas direitos de viverem de acordo com o seu pleno potencial em uma sociedade que, no mundo ideal, não deveria deixar ninguém para trás.
Perla Servan Schreiber, intelectual francesa de 78 anos e cofundadora da revista Psychologies, é uma das autoras que fala sobre a passagem do tempo de forma realista, lembrando que vivemos uma fase global de revisão e rompimento com conceitos sociais e políticos que atravessam a nossa concepção de idade. “Ainda temos uma noção imaginária de idade que não corresponde mais à realidade de envelhecer nos dias de hoje. Por isso, quero dizer, em alto e bom som: sim, ainda somos sedutoras, ativas, populares, cheias de desejos e sexualidade”.
Há essa ideia, especialmente no universo de beleza, que envelhecer merece desculpas ou disfarce. Faz, sobretudo as mulheres, em busca da juventude eterna, sentirem vergonha ou lamentarem quando as rugas aparecem, a menopausa dá as caras, o corpo e a libido se transformam em comparação aos 20 e poucos anos. Sophie Fontanel, jornalista francesa de moda, despontou nas redes sociais com mais de 50 anos quando resolveu não disfarçar que queria assumir o cabelo grisalho (história que virou até livro best-seller). Em uma conversa, ela me contou que decidiu passar pela transição dos fios tingidos de castanho para o branco total assumindo a “fase zebra”, como nomeou, porque queria que, nas ruas, as pessoas vissem que atravessava a mudança sem precisar disfarçar que envelhecia. “Muitas vezes, pela manhã, olho no espelho e penso ‘parece que tenho 80’. Acho importante aceitar a verdade, você não é a mesma pessoa todos os dias do ano. Alguns dias me sinto muito jovem, meu corpo está diferente, a pele está melhor. Em outros está pior. E o modo como você se olha muda tudo”, me disse.
Numa outra ocasião, enquanto acompanhava uma série de retratos da Cecília Dean, de 54 anos, que construiu uma carreira como modelo antes de fundar a Visionaire, uma das publicações mais inovadoras quando o assunto é moda, arte e design, ela me disse que sempre ficava em dúvida se sorria, ou não, nas fotos. Porque sorrir deixava a pele dos olhos mais enrugada, mas a expressão séria e controlada de modelo não tinha mais tanta relação como ela se sentia. “Quando não sorrio e vejo as imagens penso ‘pareço tão séria, mais velha’. É isso: sorrir te faz parecer automaticamente mais alegre e mais bonita. Acredito que a idade só incomoda quando você não está feliz com o lugar que ocupa no mundo. Eu, ao menos, nunca gostaria de voltar aos meus 20 anos. Tive momentos maravilhosos e memoráveis, mas não desejo fazer o caminho de volta. Me sinto tão mais esperta hoje, tão mais experiente. Tenho conhecimento sobre coisas que eu não tinha, consigo enxergar detalhes que não poderia antes, tomar decisões mais rapidamente. Tenho uma clareza genuína que só melhora com o passar do tempo, mesmo que você sinta as mudanças físicas.”
Há mais de uma década, quando vi Patti Smith no palco pela primeira vez, fiquei encantada com a forma como ela se movimentava. Hoje, ela continua sexy, graciosa, à vontade, confiante enquanto canta. Com o cabelo branco cheio de textura, a calça jeans, camisa e tênis característicos. Descrições que não comumente fazem associação direta aos seus 76 anos.
A atitude de todas elas me faz pensar que não há uma trilha única ou maniqueísta. A memória de um rosto mais jovem é sedutora, mas tão cara quanto as lembranças do que vivemos. Só não deveria figurar como a única métrica de valor ou objetivo central de aceitação e autoestima femininas. Essa consciência também não torna o processo de envelhecimento estritamente positivo. Não há a ilusão da ”melhor idade” quando a decadência e transformação física ficam mais evidentes. Mas a combinação de saberes, desejo por longevidade e aspectos emocionais intrínsecos a envelhecer pode ser tão valiosa quanto ao corpo que enxergamos no espelho.
No atribulado cenário da sociedade contemporânea, um preconceito às vezes sutil, às vezes explícito se manifesta, sempre de maneira indigesta, em um dos espaços mais cruciais para a significação e a realização humana: o ambiente de trabalho. O etarismo — nome dado à discriminação baseada na idade — revela-se como um desafio persistente que permeia diversas esferas, com particular intensidade em setores profissionais altamente mutáveis, como os da comunicação e o da tecnologia, que se transformam a cada dia, com as inovações que não param de chegar e que clamam por implementação urgente. Enfrentar esse preconceito exige não apenas compreensão profunda dos problemas subjacentes, mas também uma mudança de paradigma que valorize a diversidade etária e reconheça as contribuições únicas trazidas por aqueles com mais de 50, 60, 70 anos.
O mercado de trabalho atual demonstra uma inclinação notável ao etarismo — um pendor que não é de hoje, mas foi acentuado nos últimos anos. A muitos setores, jovialidade e inovação parecem ser qualidades inerentes, tidos quase como sinônimos de qualidade e retorno (em um caso ou outro, até de economia), levando à marginalização dos trabalhadores mais experientes. Não é necessário recorrer a exemplos extremos: o jornalismo, agora sem contar muito com a mídia impressa, precisa se adaptar a cada instante para sobreviver; a publicidade, diante de um mar de possibilidades, tem que estar por dentro de todos os novos formatos e linguagens para ser efetiva; os programadores, já frutos tecnológicos, têm que aprender códigos e mais códigos para responder a demandas que há seis meses simplesmente não existiam; e por aí a banda toca, com as notas de um ciclo sem fim. Nesse processo, o preconceito subestima talentos, ao gerar uma atitude generalizada que não só perpetua estereótipos negativos sobre a capacidade de aprendizado e adaptação dos profissionais mais velhos, como também desperdiça os reservatórios de sabedoria — que podem, sim, ser aplicados às novidades de qualquer mercado.
A experiência é uma fonte inestimável de insights e discernimento. Uma pessoa com mais de 50 anos pode contribuir para um ambiente de trabalho de maneiras profundas e transformadoras, como, por exemplo, com sua capacidade de discernir padrões, resolver problemas complexos e orientar equipes, qualidades que se baseiam em um conhecimento que foi adquirido (veja só!) ao longo dos anos, o que a torna dificilmente substituível por alguém mais jovem. Os muitos anos de labuta não necessariamente vão ancorar um profissional a um determinado jeito de fazer as coisas, a um know-how antiquado, pois o acúmulo de vivências profissionais pode, na verdade, se juntar aos novos tempos e resultar até em metodologias aperfeiçoadas.
O preconceito baseado na idade constitui um paradoxo enorme, se lembrarmos que estamos vivendo cada vez mais. É o encurtamento da vida profissional em meio ao alargamento da expectativa de vida. Tomando como parâmetro os avanços da medicina e as mudanças de atitude que privilegiam a nossa saúde mental e física, estima-se que, a cada ano, aumentamos essa expectativa. Ray Kurzweil, renomado pesquisador futurista dos EUA, acredita que, em breve, a mortalidade será apenas uma questão de acesso à tecnologia certa. Verdade ou não, na medida em que as pessoas vivem mais e mais, a ideia de alguém atinge o auge de sua carreira aos 30 ou 40 anos é cada vez mais absurda — e é uma pena que o bom senso de Kurzweil não seja disseminado.
Como abraçar uma fatia tão pequena e presumir que só nela alguém tem algo a oferecer profissionalmente, esquecendo todo o resto? A ampla acessibilidade de informação da vida moderna permite que as pessoas continuem a aprender, crescer e contribuir além das fronteiras tradicionais da idade de aposentadoria. A crueldade — aqui e em todos os preconceitos, que têm o vil costume de operar de maneira similar — é incutir na pessoa-alvo a ideia de que ela não tem o necessário para se especializar em quaisquer que sejam os novos ditames do momento, tornando-a uma pária de si mesma. Isso para não falar da questão mais prática: essa pessoa precisa de dinheiro para sobreviver, e tirar seu ganha-pão, paulatina ou repentinamente, constitui uma atrocidade aviltante. Diante de uma aposentadoria possivelmente comprometida, o que fazer?
No contexto de descartabilidade insensata e contumaz, entra a difícil função social dos profissionais de recursos humanos. Eles, em tese, têm a capacidade de moldar a cultura organizacional de uma empresa, promovendo uma mentalidade inclusiva e diversificada. É claro que a dificuldade é maior quando são as pessoas do alto escalão que mais estão a bordo da barca do etarismo (mesmo quando não são assim tão jovens). É necessário, muitas vezes, que a mudança ocorra passo a passo, com profissionais de RH transformando, aos poucos, as práticas tanto de contratação quanto de promoção e fomentando a aprendizagem contínua e o desenvolvimento ao longo da vida.
Para além das razões óbvias, que vão do social ao moral, motivos negociais estratégicos também dizem que as oportunidades de desenvolver uma carreira significativa não deveria ser negada a ninguém com base em preconceitos etários. Empresas que valorizam a diversidade etária não apenas promovem a justiça social, mas também abocanham uma fonte inexplorada de vantagem competitiva. A diversidade é boa para os negócios, certo? E isso inclui a diversidade de idade. Além do que nenhum mercado se restringe completamente a produtos e serviços destinados a pessoas dos 20 aos 40 anos, certo? Eis, então, mais um motivo: chegar a mais pessoas a partir desses possíveis funcionários.
O etarismo no ambiente de trabalho, infelizmente, é uma questão de relevância global. O Brasil, assim como muitas partes do mundo, tem a discriminação etária como uma barreira significativa para profissionais com mais de 50 anos. Dados revelam que a indústria de tecnologia, aclamada por sua vanguarda inovadora, é uma das mais propensas à discriminação etária. De acordo com uma pesquisa realizada pelo The Center for Digital Future, nos Estados Unidos, mais de 50% dos profissionais de tecnologia nessa faixa etária relatam ter enfrentado algum tipo de discriminação ou preconceito relacionado à idade. No Brasil, uma pesquisa da Fundação Instituto de Administração (FIA) apontou que 73% dos profissionais com mais de 45 anos sentem que a idade é um obstáculo na busca por emprego.
Não é necessário fazer grandes contas para concluir que não há bons motivos para a idade ser fator excludente. De onde, então, vem essa ideia? O etarismo no ambiente de trabalho é um fenômeno complexo que está enraizado em uma série de fatores interconectados que têm impacto tanto no nível individual quanto no organizacional. O etarismo é uma ideia que não pediu licença para entrar, mas que também não abusou de sua estadia: adentrou o recinto calmamente, pelas sombras, e se acomodou sem fazer barulho. Ele está impregnado em nossas visões, favorecendo, consequentemente, os mais jovens quando processos seletivos acontecem. Isso perpetua, a partir das vias pessoais, um ciclo de discriminação, como se não bastasse o culto à juventude visto na mídia e nas indústrias de entretenimento, criando uma narrativa de que, em contraponto à velhice, a juventude tem mais a oferecer.
Essa não é uma questão isolada, mas sim reflexo de narrativas culturais mais amplas. Muitas vezes, não é apenas a idade que importa. A interseccionalidade com gênero, raça ou outras características também pode desempenhar papel fundamental. Uma pesquisa publicada no jornal Ageing & Society,da Universidade de Cambridge, feita em nove países europeus, constatou que o acesso a oportunidades de treinamento foi afetado pela interação de idade e gênero, sendo as trabalhadoras mais velhas as mais desfavorecidas. Além disso, as taxas de mobilidade descendente de cargos gerenciais e profissionais eram maiores entre os trabalhadores mais velhos negros em relação aos brancos. Ou seja, o acúmulo de preconceitos tende a desfavorecer ainda mais as parcelas que já são desfavorecidas sem o fator idade.
A presença de estereótipos negativos relacionados à idade, porém, não resulta apenas em discriminação: ela também produz baixo desempenho, que pode ocorrer por dois mecanismos, o externo e o interno. O externo se manifesta quando um trabalhador mais velho fica tão preocupado em desacreditar um estereótipo negativo que isso impede sua capacidade de concentração, prejudicando, assim, o seu desempenho. O mecanismo interno se dá quando o trabalhador internaliza um estereótipo por meio da exposição repetida a ele — se você cresce ouvindo como verdade absoluta que, na medida em que ficam mais velhas, as pessoas deixam de ser produtivas e se tornam inválidas para o mercado de trabalho, quando é sua vez de envelhecer, você pode acreditar que é menos competente.
De uma perspectiva pessoal, há inúmeras respostas a isso: desafiar o preconceito no ambiente de trabalho e estar pronto para os conflitos que nascerão daí; redefinir a posição profissional; se resignar e acreditar que seus melhores dias de carreira já passaram. Em qualquer uma delas, há um peso. Cruel, não?
Cada empresa terá necessidades diferentes, não haverá uma solução única. Qualquer que seja a abordagem adotada, será importante medir sua eficácia ao longo do tempo, e não apenas presumir que a introdução de uma ou mais mudanças significa que o problema foi resolvido. Programas de conscientização e treinamento para identificar e combater o viés inconsciente sempre são válidos. Promover a colaboração entre profissionais de diferentes faixas etárias pode resultar em uma troca mais rica de conhecimentos e perspectivas. Projetos colaborativos, mentorias cruzadas, workshops intergeracionais — vale tudo. As possibilidades são muitas, basta que as empresas queiram fazer isso acontecer.
Desafiar o etarismo no local de trabalho é construir uma cultura mais rica, inclusiva e capaz de aproveitar ao máximo a experiência humana em todas as suas fases, rejeitando o papel de virarmos párias de nós mesmos.
Para pessoas que nasceram antes dos anos dois mil, o controle remoto da televisão era um grande agente de interação com os avós. A dificuldade com o dispositivo às vezes era tanta — seja por inabilidade ou por problemas de visão que impediam que os avós enxergassem os números do controle — que a solução mais simples para os netos era pegar o controle e, aos sons da clássica reclamação de que aquela “porcaria” não estava funcionando, mudar para o canal desejado. Bem ou mal, o problema se resolvia, mas ele voltava a aparecer, muito possivelmente já nas próximas horas; na melhor das hipóteses, no dia seguinte. A impaciência, é verdade, vinha dos dois lados. Ensinar e aprender eram incumbências árduas. Para as pessoas que nasceram nos anos dois mil, há uma profusão de inovações que, tais quais aqueles controles remotos (que ainda existem e vão muito bem, obrigado), parecem indispensáveis e podem causar confusão a quem não está acostumado a aprender a mexer em um novo aparelho com tanta frequência. Direta ou indiretamente, com mais ou menos drama e belicosidade, todos já vivemos cenas similares a essa.
Por um lado, negligencia-se a tarefa atávica de auxiliar pessoas idosas a compreender e utilizar dispositivos, de promover algum tipo de engajamento com inovações digitais. Por outro, pessoas idosas resistem em aprender e se adaptar a essas novidades. Surge, então, a grande questão: onde começa e onde termina isso tudo? Essa é uma dinâmica tão intrigante quanto problemática. É como se houvesse certa irresponsabilidade compartilhada entre as gerações, cada uma considerando apenas o contexto próprio, fechando os olhos para um cenário maior de integração sadia. A pressa pelo futuro digital bate mais rápido e mais forte do que a vontade de incluir; a acomodação, que se faz de rogada, inviabiliza qualquer mergulho no vasto oceano de gadgets e inovações.
A falta de colaboração e compreensão vista amiúde em lares que abrigam gerações distintas provoca uma crescente exclusão digital sistêmica, algo que vai muito além de alguém não conseguir usar um smartphone ou navegar na internet. Ela também se traduz em um descompasso cultural enorme, uma desconexão entre faixas etárias que extrapola o que seria tido como normal e que pode afetar seriamente — se é que já não está afetando — a coesão social, comprometendo a transmissão de conhecimento e experiência de uma geração para a próxima. Um fator que aumenta esse descompasso para além da conta e faz com que esse seja um problema maior hoje em dia do que sempre foi é o rápido ritmo de mudança na tecnologia e, consequentemente, na sociedade. Nunca estivemos em marcha tão alta. Nunca antes levantamos tanta poeira com os pneus da modernidade. Novos dispositivos, aplicativos e corpos de ideias vêm se multiplicando — e isso é um desafio constante para pessoas de todas as idades, não só para os idosos. Nem sempre a adaptação acontece de maneira natural, e quanto mais distante você se sentir de um momento da história, mais improvável é que isso ocorra organicamente. Muitas vezes, porém, os que cresceram imersos nesse ambiente digital e que conseguem processar novidades com mais facilidade presumem que os mais velhos devem acompanhá-los na absorção das coisas. Essa presunção ignora o fato de que os idosos podem não ter tido a mesma exposição ou oportunidade de aprender a lidar com essas ferramentas.
Existem muitos motivos para a possível rejeição de novas tecnologias por parte dos idosos. Entre eles, destacam-se: o medo do desconhecido (porque, sim, o mundo digital pode assustar qualquer um que não o conhece); o receio de serem deixados para trás (por mais paradoxal que possa parecer, é um receio circular que também causa aquilo que se teme); as dificuldades cognitivas relacionadas à idade (que, por mais que tentemos evitar, vêm e geram complicações); ou, simplesmente, a sensação de que suas formas tradicionais de interação e comunicação são mais autênticas. Essa resistência pode, inclusive, ser amplificada pela sensação de que a sociedade está se afastando de valores e práticas mais antigas. Antes, os valores que tocavam a sociedade pareciam mais intransponíveis, blindados contra novas opções. Agora, para o bem de todos nós, a conjuntura é outra: as mudanças socioculturais estão em ritmo tresloucado e, hoje em dia, estão muito ligadas a novas plataformas, que promovem um diálogo mais aberto e inquisitivo. Quem considerar que não faz parte dessa mudança de mentalidade geral, inconscientemente, também se fecha para muitas das novidades que poderiam ser interessantes a ela em diferentes esferas.
Evidentemente, não dá para dizer que é culpa de um ou de outro. A responsabilidade — supondo que essa seja a palavra certa — recai sobre ambas as partes. Os mais jovens podem se beneficiar ao reconhecer a importância de ensinar e apoiar os mais velhos nessa jornada digital; os mais velhos podem tirar muita coisa boa de tudo que está acontecendo, explorando ferramentas que podem auxiliar sua saúde, seu bem-estar e sua vida tanto pessoal quanto profissional. Essa atitude não apenas capacitaria as pessoas idosas, mas também poderia levar a uma maior conexão intergeracional e ao compartilhamento de experiências valiosas. A população idosa pode considerar a aprendizagem contínua como uma maneira de se manter envolvida na sociedade em constante evolução. Para que isso aconteça, é necessário desatar alguns nós, a começar com um dos maiores: a negação.
A negação dessa realidade é uma camada densa do complexo tecido social que envolve a relação entre as gerações. Os mais jovens muitas vezes estão imersos em suas próprias vidas, aprofundados em uma existência que tem a tecnologia como uma extensão natural de si mesmos. Para eles, é difícil entender por que os mais velhos não conseguem, ou não querem, acompanhar o ritmo. Essa falta de empatia pode levar à frustração e até mesmo à impaciência, levando-os a abandonar quaisquer tentativas de ensinar — é a conveniência danosa de pegar o controle remoto, mudar de canal e, pronto, missão cumprida. Em contrapartida, muitos idosos resistem a admitir que precisam aprender algo novo, especialmente quando isso implica reconhecer que estão envelhecendo — constituindo a mesma conveniência prejudicial, agora no formato de chamar, esperar entrar no canal e encerrar por aí. A negação, que é uma defesa psicológica comum, pode se manifestar como uma recusa obstinada em abraçar a tecnologia moderna. Isso muitas vezes é alimentado pela sensação de que suas experiências de vida são menos valorizadas em uma sociedade obcecada pelo novo.
A negação mútua só serve para agravar a exclusão. Enquanto os mais jovens negam sua responsabilidade de guiar os mais velhos através do labirinto digital, as pessoas idosas negam a si mesmas a oportunidade de se conectar mais profundamente com realidades diferentes. Essa polarização cria um fosso cada vez mais amplo entre as gerações, corroendo a coesão social e minando a compreensão mútua. A contradição chega a ser quase palpável quando percebemos que essa retroalimentação entre as gerações não só dá perenidade à exclusão digital, mas também pode limitar a evolução da sociedade como um todo. Se não houver um esforço conjunto para envolver as populações idosas nessa jornada, perdemos perspectivas e sabedoria que poderiam enriquecer decisões e até inovações. Somos todos passageiros em uma mesma jornada temporal, e este agora, por mais que soe como má poesia, é o que nos liga. Será que podemos mesmo nos dar ao luxo de deixar para trás aqueles que nos precederam? Será que nossa obsessão pelo futuro está obscurecendo a importância de preservar o passado?
É importante lembrar que a negação é uma resposta natural a mudanças significativas. Portanto, reconhecer essa resistência e abordá-la com compaixão e paciência é fundamental para romper ciclos que acabam funcionando como verdadeiros tiros no pé. Neste caso, a negação nada mais é do que um reflexo do medo do desconhecido e do desejo humano universal de pertencer e ser valorizado. Ao enfrentar essa negação com compreensão e solidariedade, inicia-se a construção de largas travessias, transformando o fosso geracional em um ponto de partida para a troca de ideias e a construção de um futuro minimamente mais inclusivo.
Toda a questão da irresponsabilidade compartilhada nos leva a refletir sobre como a nossa sociedade valoriza e integra as diferentes gerações. É natural pensar que, ainda que já mais versadas no mundo tecnológico, com a velocidade com que tudo vem mudando, mesmo as gerações que hoje caminham com naturalidade pelas mudanças também sofram exclusão na medida em que forem envelhecendo. É natural que se pense nisso, mas não deveria ser. Encontrar maneiras de garantir que ninguém seja deixado para trás é vital. A inclusão digital não é apenas uma questão de acessar a tecnologia, mas também de cultivar entendimento, respeito e colaboração entre as gerações. No final das contas, a verdadeira evolução não está apenas no domínio de novas tecnologias, mas também na capacidade de nos conectar através das eras, tecendo a história de nossa humanidade com fios de compreensão e respeito. Um controle remoto por vez.
Caetano o descreve como um senhor tão bonito, como o tambor de todos os ritmos. Para Gilberto Gil, ele é rei. David Bowie acha que é aquilo que nos muda, mas que não conseguimos enganar. Para Proust, ele é perdido, e para Lacan, lógico. Winnicott considera que dele dependemos para darmos continuidade aos processos de maturação. E Cazuza canta que ele não para. Nas palavras de Aline Bei, ele “leva as nossas coisas preferidas no mundo e nos esquece aqui, olhando para a vida sem elas”. Einstein o descreve como relativo, não podendo ser medido exatamente do mesmo modo e por toda parte.
Procuro uma frase para este ensaio. Não há. Afinal, é possível que a força imperativa do tempo seja descrita em uma única frase? Ainda que a procuremos, não encontramos nenhuma que seja suficiente — então surge algo que apazigua minha fome de escrita. Talvez o caráter maior do tempo seja este: a insuficiência. Ensaiamos para agarrá-lo, dominá-lo, compreendê-lo, mas ele vence sempre. A soberania de cronos é inquestionável.
Tempos doloridos são longos, tempos felizes parecem passar num piscar de olhos. Não são contados na dureza dos ponteiros, e sim na fluidez das asas. Voam. Em O mal-estar na civilização, Freud afirma que a felicidade é um estado do qual nos damos conta, uma vez que está no passado.
O tempo do futuro parece distante na juventude. Temos todo o tempo do mundo enquanto somos tão jovens, dizia Renato Russo — mera ilusão. Tal fantasia é necessária para que possamos encontrar alguma urgência de construção. Nossa onipotência da mocidade é essencial (e ao mesmo tempo perigosa), pois nos lança na aventura do viver. Abraçamos as causas com mais entrega, paixão e ousadia exatamente porque não contamos com os riscos. Ainda somos um pouco ingênuos, e as vivências têm o tempero perigoso (e saboroso) e apaixonado da intensidade.
Na música, assim como na vida, o tempo é aquilo que marca a pulsação e o movimento da melodia de uma canção. A dança da existência do homem se desenrola no palco de um espetáculo de duração limitada. Sem a temporalidade que circunda e limita nossa vida, tudo estaria à deriva. Convoco outra vez Legião Urbana: o pra sempre sempre acaba. Nossa permanência se dá no “por enquanto”, e nosso pulsar do coração encerra-se um dia, levando consigo nossa história. Simples assim.
Karl Ove Knausgård começa seu livro A morte do pai com um parágrafo inesquecível: “Para o coração, a vida é simples: ele bate enquanto puder. E então para. Cedo ou tarde, mais dia, menos dia, cessa aquele movimento repetitivo e involuntário, e o sangue começa a escorrer para o ponto mais inferior do corpo, onde se acumula numa pequena poça, visível do exterior como uma área escura e flácida numa pele cada vez mais pálida, tudo isso enquanto a temperatura cai, as juntas enrijecem e as entranhas se esvaem. Essas transformações das primeiras horas se dão lentamente e com tal constância que há um quê de ritualístico nelas, como se a vida capitulasse diante de regras determinadas, um tipo de acordo de cavalheiros que os representantes da morte respeitam enquanto aguardam a vida se retirar de cena para então invadirem o novo território. Por outro lado, é um processo inexorável.”
Esse movimento vem antes de nosso desejo e nossa racionalidade, é decidido pela natureza. O acontecer humano se dá no tempo e com o tempo. Winnicott diz que o ser humano é uma amostra da natureza humana. Somos, portanto, comandados pela ação cíclica da natureza e suas estações. E nela o que há de mais constante é a impermanência. Assim como nosso existir. Tudo que é vivo em algum momento vai se desfazer. A morte seria, então, parte da saúde, do processo maturacional — só morre quem existiu —, e essa existência seria nosso acontecer no tempo. A realização final.
No ensaio Sobre a transitoriedade, Freud considera que o valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo: “A limitação da possibilidade de fruição eleva o valor da fruição (…). Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela”. Sintetizando: a urgência em viver seria, então, o que dá valor à vida. Nosso “por enquanto” é uma dádiva do tempo: o presente. Viver para sempre talvez tirasse o valor da vida. Contardo Calligaris, em O sentido da vida, declara, inclusive, que o sentido da vida é a própria vida, e que, nesse processo, a morte seria aquilo que dá significado ao viver.
Recentemente, escutei em um podcast a entrevistada dizer que, ao invés de perguntarmos a alguém sobre sua idade, o correto seria perguntarmos “quanto tempo você já viveu?”. Talvez eu dissesse ainda: “há quanto tempo a vida anda dentro de você?”.
Nos partos e nas partidas, a janela da temporalidade se abre: “Apenas em nascimentos e mortes é que saímos do tempo. A Terra detém sua rotação e as trivialidades com que desperdiçamos as horas caem no chão feito purpurina. Quando uma criança nasce ou uma pessoa morre, o presente se parte ao meio e nos permite espiar durante um instante pela fresta da verdade — monumental, ardente e impassível”, escreveu Rosa Monteiro. Nascimento e morte são movimentos antagônicos, mas com a mesma trilha sonora tocando de fundo: o ventar do tempo. Só é possível sair do tempo duas vezes: na porta de entrada e na porta de saída. Ponto. Não há como negociar nossa submissão à impermanência do existir.
Os minutos perdidos deixam vestígios tanto em nosso interior quanto em nosso corpo. Embora invisível, o pulsar do tempo se revela dentro e fora de nós. Nosso corpo é a tela da sua passagem, e há beleza na transitoriedade. A vida acontece dentro de nós, mas um dia nossa existência “desacontece”, e a partir daí acontecemos em forma de saudade.
Sigmund Freud, aos 70 anos, em sua célebre entrevista O valor da vida, parece resignado frente às perdas derivadas do processo de envelhecimento: “Por que eu devia esperar por algum tipo de privilégio? A idade, com seus visíveis desconfortos, chega para todos. Ela atinge um homem aqui, outro lá. O seu golpe sempre atinge uma parte vital”.
Como psicanalista, tendo a observar a repetição, e em todas as citações da introdução encontro algo em comum: o homem como refém do tempo. Não há como permanecer vivo e não se curvar à sua passagem, à sua velocidade e às transformações decorrentes da sua continuidade. O ritmo do tambor da temporalidade é furioso, e sua passagem veloz anda de mãos dadas com as perdas.
Não há escapatória: quem teima em segurar o tempo inevitavelmente fracassa e vai se desumanizando. Aqui me recordo do personagem Dorian Grey, de Oscar Wilde, que faz um trato com o demônio para não envelhecer, e passa de belo e poderoso para uma figura monstruosa, eternamente jovial e, por isso, assustadora e repulsiva (qualquer semelhança com a realidade das vítimas de harmonização facial não é mera coincidência.) Há algo de demoníaco naqueles que tentam perpetuar a juventude a qualquer custo em corpos que já são naturalmente antigos.
Aceitar aquilo que o ponteiro do relógio nos leva sem nos desinteressarmos pelo presente talvez seja a única forma de nos mantermos vivos, sem cair nas garras sombrias da melancolia. Aceitar a escassez do tempo e suas dores é talvez uma maneira de tentar dominar o presente. Embora haja um aspecto do tempo do qual somos cativos, ele também nos liberta, uma vez que nos ajuda a cicatrizar, cria distancias de vivências dolorosas, nos auxilia a ressignificar, elaborar, sublimar dores. Tempo e transformação são inseparáveis.
Como disse Freud, nosso ego é um precipitado de catexias abandonadas. A identidade é, portanto, marcada pelos objetos que já amamos e por aqueles que nos amaram. Dentro de nós, eles estão sempre preservados e imunes ao tempo, se tornam imortais. A revanche possível: a única casa que consegue capturar verdadeiramente o tempo é a memória.
Pensar e escrever sobre o tempo inclui a ausência, a falta e a saudade. E o coro de autores e poetas escolhidos para acompanhar essas linhas nos mostra que a experiência de tentar compreender e capturar esse senhor tão bonito é inesgotável, enquanto estivermos vivos, nunca é solitária. Nessa busca e captura, nessa brincadeira de esconde-esconde dos dias que escorregam e desaparecem em direção à noite, seguimos dançando — enquanto ainda dá tempo e enquanto nossa existência ainda não anoiteceu.
Num dia você é jovem, produtivo, tem sonhos e projetos de vida na pauta de sua agenda semanal. No outro, descobre, da maneira mais estranha possível, que seus assuntos versam sobre a morte de familiares queridos e pessoas públicas; adoecimentos e tratamentos de saúde; medicações de última tecnologia para tratamentos de saúde e suplementação para a manutenção de um corpo saudável — em um esforço constante na tentativa de mantê-lo afastado dos adoecimentos e das dores do viver neste corpo.
O tempo tem passado de maneira veloz, e não estamos conseguindo elaborar as mudanças integradas que acontecem no corpo, na mente e no espírito. As dimensões do tempo vivido têm sido borradas por um passado que se tenta resgatar de modo compulsivo, com a função de cumprir um prescritivo de vida jovem e produtiva, desconsiderando as passagens do tempo, inevitáveis a todo corpo humano. Por mais que a biotecnologia se esforce e as condições econômicas favoreçam ao ser humano avançar no envelhecimento ativo e saudável, uma verdade é nua: se viver e viver de fato é muito bom, o preço a se viver é o envelhe-ser deste templo chamado corpo e cuja humanidade parece ter caído no esquecimento moderno. O fato é que a conta não fecha; estamos desumanizando nossa condição mais humana: a vulnerabilidade, aquilo que não estamos contando, o inesperado.
Vivemos no mundo da modernidade líquida, como apontou Zygmunt Bauman, sociólogo idealizador da obra Amor líquido e de tantas outras que versam sobre o efeito do capitalismo no corpo e no tempo. Corpo e tempo que, segundo a sua interpretação, são transformados em esferas do ser humano voltadas ao consumo — especialmente o consumo que nos entrega a satisfação do bem-estar imediato, alcançado por meio do acesso fácil a serviços, pessoas e bens de consumo. Na busca por maximizar nossa satisfação instantânea, a dopamina gerada a cada like de aprovação externa nas redes sociais se tornou o maior reforçador da existência humana e de sua visibilidade social.
Em tempos idos, em que a racionalidade predominava como o paradigma de um plano diretor da existência, a máxima ideológica era “penso, logo existo”. Essa premissa migrou um pouco para “posto, logo existo” e gerou uma compulsão pela criação de perfis nas redes sociais como validação de uma existência ativa e interessante, reconhecida por meio de produção de conteúdos e imagens que emocionam e conectam pessoas por meio do afeto gerado pela identificação. Nasce, então, uma rede social virtual que predomina em todas as classes sociais, com uma diversidade humana conectada por nichos de interesse, configurando-se uma rede de apoio e criando-se vínculos baseados em laços profissionais, de amizade e de relacionamentos íntimos.
Não seria problema existir nas redes sociais; seria até uma solução para os viventes apressados, já que estaríamos encurtando fronteiras entre nossos interesses, singularizando aquilo que nos diz respeito e trazendo para perto nossos vínculos distantes (inclusive de forma geográfica), eliminando as distâncias a serem percorridas e facilitando as conexões humanas. A questão que precisamos tratar é outra, tão importante quanto silenciada em nossa sociedade: o quanto estamos mais solitários, individualistas e fechados para relacionamentos que convocam a força do encontro presencial. Isso foi naturalizado e potencializado com a pandemia de covid-19, que fez com que se aprimorassem inúmeros aplicativos de relacionamento como uma maneira de resolver o problema do isolamento social imposto pela crise sanitária.
Até aqui, a questão do envelhe-ser não seria tão inflamada, pois é possível maquiar selfies, criar perfis hedonistas e até personagens de vida interessante, que pareçam uma ótima companhia. Porém, o desencontro humano e a falta de permanência dos vínculos também se anunciam como um gerador de angústia cada vez mais recorrente nos consultórios médicos e psicológicos. Estamos vivendo uma era do hiperespetáculo, conceito descrito pelos filósofos Gilles Lipovetsky e Jean Serroy em A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista, em que os autores afirmam que o novo regime de produção traz críticas ao mau gosto e à feiura da produção industrial. Nesse âmbito, aparecem ainda diversas correntes ambicionando a melhoria da qualidade estética dos objetos fabricados em série, reconciliando a criação com padronização, beleza e indústria, com arte e técnica modernas.
Embelezar, seduzir, inovar e distrair são as novas ideias do bronze do capitalismo artista. Cria-se uma nova geração treinada no consumo para a arte, para o belo, para o prazer, para o entretenimento full time, para a cultura e para uma existência baseada no melhor aproveitamento do tempo. E o que esse cenário tem a ver com a nossa passagem do tempo vivido? Tem a ver que a vida sonhada com base num sucesso padronizado e na realização humana não comporta uma vida de fato humana, que contém diversas tonalidades afetivas: frustrações, dores, lutos, perdas — de saúde, financeiras, afetivas, sociais. Uma vida que abriga todas as mazelas humanas de descobrir-se vivo em um tempo em que não se pode ser frágil, que abriga inclusive a parte mais vulnerável do tempo: a velhice. Invisível, ela se instala, mostrando a face cinza da vida: aquela que não produz, não seduz e ainda causa dor, afinal, é doloroso pensar na passagem do tempo e em suas possíveis facticidades já presumidas e primas da dependência, como ter que contar com quem nos dê suporte e tome decisões por nós em caso de incapacidade; com a possibilidade de ter que ser tutelado — mesmo que essa tutela se baseie em vínculos afetivos. Mas cadê as pessoas que ficam disponíveis ao cuidado daqueles que não são mais moeda de troca?
A questão maior é que nós que vivemos a crise da meia-idade — e digo “nós” porque me encontro nela —, geralmente com idade entre 40 e 55 anos, estamos no auge da potência produtiva na realização de vínculos familiares, fraternos, filiais e conjugais e construímos uma boa rede de relacionamentos, compatíveis com nossos interesses, que se tornaram vínculos sólidos e que nos transmitem a segurança de que seremos cuidados. Esse cuidado geralmente se dá no grupo familiar sem maiores problemas, sendo pré-estabelecido organicamente pela sucessão familiar, afinal, os membros desse núcleo já preveem que a família seja responsável pelos cuidados com os mais velhos até a morte.
A questão que precisamos tratar, dentro do contexto do tempo hipermoderno, com todas as mudanças nos valores, nos modos de existir e na forma como se dão as relações sociais, é que os relacionamentos passaram do estado sólido para o pastoso, líquido ou gasoso. Adquirir o status de relacionamento já é algo em falta, quando a pauta é a formação de vínculos, inclusive entre gerações mais jovens, entre 20 e 40 anos — precursores da meia-idade, em que os valores são pautados pela experiência de vida e por uma maior intensidade e diversidade possível no que se refere aos momentos vividos. É uma lógica que torna o projeto de vida algo planejado quase arquitetonicamente para não se perder tempo, pois este é um recurso escasso e que não se renova.
Crises da meia-idade nos despertam para a finitude, nos fazem atentar para o fato de que não se volta no tempo. Algumas pessoas começam, nesse momento, com os cuidados estéticos e o controle da saúde, de forma a se ter um corpo que drible as marcas do envelhecer. Isso resulta, sim, em algum ganho estético, fazendo parecer que ser mais jovem mantém portas abertas, afinal, ser jovem é a marca de nosso tempo. Alguns vão cuidar de um novo projeto, abandonam as carteiras assinadas e se lançam em novos desafios profissionais. Para a síndrome do ninho vazio (quando os filhos crescem ou quando se constata que não os teve), há uma oferta de atividades que o mercado do entretenimento oferece ao tédio sentido por quem se aproxima dessa fase. Para o grupo de divorciados, há uma gama de pessoas no mercado da repescagem, com suas notórias histórias, com uma bagagem de experiências e traumas sendo curados na esperança de se voltar ao equilíbrio mínimo.
Mas até agora temos toda a ocupação vinda de fora, do material, do mundo do consumo. E o que farei com as minhas faltas de dentro? Quem vai preencher minha fome de presença, de escuta, de sentir junto comigo a vida? Quem vai estar comigo até o fim da vida adulta? Sim, precisamos falar sobre como um dia vamos morrer e nossa notória identidade cairá em esquecimento em até dois anos — isso se lembrarem de registrar que morremos, pois envelhecer traz consigo a invisibilidade de nossa passagem na terra. Triste, cru, indigesto e mal temperado, esse é o tom do desespero, da solidão que envolve essa época da vida. O etarismo é a marca hermenêutica que escancara a dor do envelhecer, fazendo cair num vazio toda a experiência viva que porta a passagem do tempo e que é negada em nossa contemporaneidade eternamente desejosa por fazer morada na adolescência. Porque, afinal, fazer família, ampliar custos e diminuir tempo ao ter filhos, nossos dependentes, em tempos de singularidade máxima, é para loucos.
Essa nudez humana e demasiada que apresento não se cura pelo material visível ofertado, pelas viagens que podemos eventualmente realizar e pela coleção de memórias. A grande memória da vida são os encontros humanos, inclusive aqueles malsucedidos, porque assim não romantizamos os desencontros e os colocamos como parte da totalidade do existir. Encontro é linguagem afetiva, presença e memória. Mas estes, tão preciosos, precisam ser construídos, em nossa época, com a urgência de quem trata o desmatamento dos vínculos pela modernidade e a escassez de tempo dedicado ao outro. Só assim podemos nos confrontar com a grande questão humana: quem sou eu a partir do encontro com o outro? Afinal, somente na construção bem cimentada do afeto é que será possível mantermos uma rede de apoio fraterna de adultos órfãos de vínculos sanguíneos, para sermos adotados “ombro a ombro” pelos amigos, companheiros de jornada que cativamos ao longo da vida. Estão inclusos aqui os amigos de infância, para quem tem a sorte de tê-los, pois eles são portadores de nosso maior bem: a identidade e a essência de uma época não corrompida pelas ideologias modernas do viver. Eles portam nossas risadas e vergonhas mais genuínas, e estas não estão em negociação para quem guardou a sete chaves os segredos da juventude.
Se é inevitável que o resultado, no grand finale, seja que tudo passa, sobrevive a isso a nossa capacidade inesgotável de amar. Se soubermos a chave para mantê-la na maturidade, teremos amor de sobra para historiar junto aos nossos companheiros de envelhe-ser. Teremos um celeiro de memórias sempre prontas para serem recordadas: do tempo que passamos juntos, dos choros, dos erros, das perdas. O mais incrível de minha rede de apoio é a diversidade: colegas de trabalho, amigos, amores e filhos. O importante, parafraseando Roberto Carlos, é que emoções eu vivi, e sem todos essas pessoas eu não teria o que contar. Vale muito a pena se vincular!
A partir do olhar de quem vive o envelhecimento, o etarismo vem sendo reconhecido como um preconceito contra a própria vida, autoinduzido pela falta de confiança nas capacidades de desempenho físico, emocionais, papéis sociais e profissionais e até mesmo dentro da família. A pessoa que envelhece se percebe numa imensa responsabilidade individual para enfrentar a própria jornada de vida e refletir sobre isso ao mesmo tempo que enfrenta as adversidades decorrentes da passagem do tempo. Esse cenário acaba por ser fonte inesgotável de ansiedade e preocupação sobre se tornar inadequado ou julgado como ultrapassado no seu modo de pensar, se expressar e agir por causa da idade que o tempo revela. A pessoa que está há mais tempo viva, lúcida e consciente precisa se dar conta que tem muito mais chance de perceber-se em um momento único para descobrir a si mesma, com a capacidade de abraçar novas ideias e aptidões, e de ensinar aos mais jovens, trazendo novas perspectivas para todos. É também o momento para admirar as capacidades adquiridas ao longo do tempo e sentir-se verdadeiramente responsável por aquilo que contribuiu para alcançar os objetivos. O etarismo é um contexto sério que está aqui no nosso dia a dia para lembrar a toda a gente que a idade é apenas uma parte da pessoa e suas várias capacidades estão presentes ao longo da vida, propagando um novo significado à palavra maturidade. Por isso, é importante lembrar que a responsabilidade de se dedicar a estas novas capacidades não está só nos outros, e sim em cada uma de nós (aqui neste texto vou usar sempre como contexto o artigo feminino para denominar todos os seres humanos como “pessoas humanas”).
Mas vamos ao que interessa neste nosso encontro: preciso contar rapidamente que não estamos falando das “outras pessoas”. Abre o celular agora, liga a câmera, faz uma selfie. A foto que você vê é a de uma pessoa que está envelhecendo. Pode ter 20, 30 ou 70…se passou de hoje, chega amanhã mais velha. Diante da possibilidade real de viver seu envelhecimento, como você se sente? A maioria das pessoas parece não estar bem com esta ideia, mas a realidade do envelhecimento está ao nosso lado a cada dia que passa. Talvez fosse melhor que pudéssemos compreender este processo que acontece conosco e fazer parte desta decisão e não apenas escolher ser uma vítima do tempo.
No início do século passado, em 1900, nossa expectativa de vida ao nascer não passava muito longe dos 40 anos. Hoje, nossa vida pode encontrar muito mais sentido a partir dos 40 e 50 anos e aí sim, acreditamos que o melhor está por vir. O problema maior que nos ronda é que para chegarmos aos 80 ou 90 anos ou mais precisamos envelhecer. Dizem que a pessoa que vai viver 150 anos já nasceu. E aqui vem a pergunta que eu quero explorar: e se essa pessoa que vai morrer com 150 anos for você? Você vai viver tanto tempo fazendo o que? Aos 100 anos você vai sentir que está jovial e com muita disposição para recomeçar vida ao lado de alguém? Ou você vai estar na vida com a mesma pessoa que está ao seu lado agora? Tem amor que dure tanto para todo mundo? E o trabalho? Atualmente a aposentadoria é considerada em tempo adequado quando já vivemos algo em torno de dois terços da vida que poderia ter uma duração considerada ideal na opinião de muita gente. Morrer perto dos 90 anos hoje em dia já nos parece um bom momento de partir? Se o raciocínio se manter, permaneceríamos produtivos e ativos até os 100 anos e ficaríamos 50 anos na aposentadoria. Faz sentido você manter seu ritmo atual de trabalho por 100 anos? E se você não vê sentido no tipo de trabalho que tem, teria coragem de recomeçar a vida com um novo projeto aos 100 anos?
Imaginamos que provavelmente você deve adoecer em algum momento, mas não se preocupe demais com isso, afinal a medicina está avançando bastante em habilidades de manter alguém vivo mesmo à custa de aparelhos. Talvez não tenha ninguém que possa sorrir feliz de imaginar ficar dependente por algumas décadas talvez. E tomara que você já tenha uma resposta cheia de alívio quando pensar em quem vai cuidar de você. E agora pensa na pessoa que você vai cuidar quando ela adoecer aos 120 anos e viver com necessidade de amor, carinho e cuidados físicos por 30 anos. Isso sim é amor, não acha?
O mérito (ou a responsabilidade) de envelhecer bem depende muito, eu diria até quase que exclusivamente das nossas escolhas de comportamentos internos e externos realizados a cada dia, a cada momento da nossa vida. Se uma pessoa for vista apenas sob o ponto de vista físico, dificilmente vamos ter um envelhecimento de sucesso. Diante deste engano, vemos as pessoas sendo escravizadas por regras abusivas de dietas, medicamentos, vitaminas e suplementos, além da crueldade da ditadura da beleza física permanente. Assim fica impossível chegar bem nem aos 40 anos, que dirá aos 80. Imagine então viver mais 70 anos depois dos 80 na escravidão desta manutenção de figurino e desempenho tentando parecer ter menos idade ou encaixado num padrão de beleza ou comportamento considerado adequado para os dias da sua idade?
A realidade de viver mais de cem anos talvez não seja tão sedutora depois das perguntas difíceis que fiz. Perguntas inocentes que a minha inocência infantil ainda preserva como uma capacidade nata de saber perguntar o que ninguém tem coragem e perguntar. Só vai ser possível chegar com companhias boas em idades tão avançadas se a gente for capaz de respeitar e cuidar de cada parte da nossa existência e também da existência de quem nos transforma em pessoas felizes. Felicidade genuína vem das relações humanas e não de coisas que acumulamos por usar todo o nosso tempo trabalhando e sendo produtivos.
Os avanços da ciência e da medicina têm papel indiscutível sobre a melhora da nossa expectativa de vida. Mas existe o lado B de tudo isso: parece que as pessoas menos comprometidas com a saúde passaram a acreditar que temos fórmulas mágicas que podem resgatar todas as atitudes erradas frente às escolhas sobre os cuidados com nosso corpo. Existe uma falsa proposta de que tudo o que fizemos de errado pode ser resolvido por remédios de última geração, vitaminas e soros milagrosos, plásticas e tratamentos estéticos caros e de risco muito maior do que os benefícios oferecidos. Só envelhece bem quem viveu em plenitude cada dia da sua vida.
Não precisa ser alegria em plenitude, precisa ser um tempo de vida. E então vamos para a angústia de metas impossíveis de controle das emoções, treinamentos mentais exaustivos sobre afirmações positivistas, crenças e mitos sobre o uso abusivo e sem fundamento dos antidepressivos e remédios para ansiedade, vão levando as pessoas não ao conforto, mas sim a mais um sofrimento: a ditadura da felicidade ou da estabilidade emocional constante: uma escravidão permanente que priva as pessoas de simplesmente viver tudo o que a vida pode oferecer. Na maioria das nossas crises, temos condições emocionais de superação, mas não temos paciência para esperar o tempo de transformação. As pesquisas cada dia mais mostram que envelhecer de maneira socialmente ativa é muito favorável. Um estudo incrível feito na Universidade de Harvard mostrou que chegar ao fim da vida feliz depende quase que exclusivamente da qualidade das relações humanas que desenvolvemos ao longo de toda a vida. Gente boa, o que faz sentido na vida não é chegar longe, mas chegar junto. E não vai ter outro caminho para viabilizar esses encontros quase eternos que não seja através da nossa capacidade natural de cuidar e nossa determinação incansável de aprender a receber cuidados.
Sigamos valentes e amorosos com nosso corpo, nossa mente, nossa existência. Façamos o mesmo com as pessoas que amamos. E vai ser fundamental que possamos também oferecer o mesmo respeito e amorosidade com a existência de outras pessoas que nem conhecemos. Nunca saberemos em qual momento a gente vai precisar de um ato de cuidado que pode salvar nossa vida. O etarismo visto por esse outro lado pode nos despertar para um novo caminho: transformar o abandono e o preconceito através de um movimento vital: a cultura do cuidado. Vamos envelhecer bem de mãos dadas e com atenção na estrada para não descer a ladeira muito rápido, combinado?
Com capa da artista alagoana Roxinha, a Amarello Tempo Vivido recebe a médica geriatra Ana Claudia Quintana Arantes como editora convidada, a fim de pensar novas formas de olhar para a passagem do tempo.
Em uma época em que o “novo” é frequentemente confundido com o “melhor” e os mais novos são mais valorizados do que aqueles com mais acúmulo de vida, o tempo vivido, aquilo que temos de tão precioso, passa a não valer muito.
Quando criança, me lembro de pedir para os meus pais convidarem os amigos deles para a nossa casa e ficar escutando as tais “conversas de adulto”. Adorava ficar no canto da sala, ouvindo por horas e horas aqueles papos, que, na maioria das vezes, fugiam da minha compreensão. Ainda que não os entendessem, eles tinham a capacidade de ganhar toda a minha atenção.
Penso que essa vivência despertou em mim o interesse por pessoas mais velhas, e, desde então, busquei naturalmente esse convívio. Tenho perto de mim pessoas que são 30, 40 anos mais velhas do que eu, e nelas deposito minha total confiança.
Hoje, aos 41 anos, percebo que conviver e ter convivido com pessoas com mais experiência me trouxe referência e esteio. No mundo em que vivemos, que percebe a dificuldade das pessoas de lidar com o seu reconhecimento interno e incita suas vulnerabilidades para que sejam mantidas consumidoras ativas, isso é imprescindível. É assim que se cria a resistência para perdurar numa cultura que vende o eldorado de se chegar bem e com saúde aos 100 anos de vida, mas que não está estruturada para ninguém que passe dos 70.
O tempo é a única coisa que temos. E se engana quem pensa que, quanto mais ele passa, menos o possuímos. O axioma deveria ser: o acúmulo dos nossos anos de vida faz com que sejamos mais de nós mesmos, e, no fim, nós mesmos é o que temos de mais precioso.
“Qualquer pessoa que pegar a história da Chic Show, vai saber que, no momento em que eles não podiam, eles fizeram”, resume o músico Thaíde, no ato de abertura do documentário Chic Show, sobre a revolucionária festa paulistana que teve seu auge nos anos setenta e oitenta.
Pense no espírito luminescente de libertação e diversão da Motown, a gravadora norte-americana responsável por produzir os mais influentes discos de soul da história, mas dê a ele, tanto em termos musicais quanto de lifestyle, uma demão ainda mais forte de resistência político-social. Em um Brasil ainda desolado e aos estilhaços da meia-vida que se sucedeu ao Golpe de 1964, talentos similares, ou até maiores, aos de Stevie Wonder e Marvin Gaye — afinal, estamos falando de divindades como Gilberto Gil e Tim Maia — ajudavam a reivindicar em alto e bom som um espaço de dignidade, reconhecimento, empoderamento e celebração, algo que simplesmente não existia para a população negra na cidade de São Paulo daqueles tempos.
Luiz Alberto da Silva, popularmente conhecido como Luizão, é o personagem central dessa história. Depois de entrar em contato com festas que geravam renda ao promover a exaltação da cultura negra, com sua percepção privilegiada, percebeu que, ao contrário do que se pensaria em um primeiro momento, havia uma abertura para festas maiores, ainda mais glamorosas e difíceis de ignorar — festas feitas por pessoas negras e para pessoas negras. Do seu tino aguçado de empreendedor e de seu interesse profundo pelas pessoas, Luizão foi capaz de fazer uma leitura sociocultural complexa, identificando naqueles ao seu redor, em plena Ditadura Militar, um alarido interno, silenciado muitas vezes à força, que clamava por momentos de extravasamento. A vida era dura, mas a vontade de vivê-la nunca deixou de existir, e o mínimo necessário para isso era colocar tudo para fora. Cantar alto para se livrar dos gritos presos na garganta. Era o começo de uma revolução que permitiu que pessoas negras se reconhecessem umas nos olhos das outras.
Cinquenta anos mais tarde, percebe-se que foi um movimento de resistência, reinvenção e enaltecimento da cultura negra, alavancando carreiras de jovens artistas e ditando tendências de todo o tipo.
Disponível na Globoplay, o filme de Felipe Giuntini e Emílio Domingos adota o formato clássico de imagens e depoimentos. Mas não só depoimentos de quem esteve lá. O rol de pessoas que emprestam a palavra ao documentário é formado por artistas que se apresentaram na Chic Show — como Jorge Ben Jor, Sandra de Sá e Carlos Dafé, para citar alguns —, mas também por pessoas de gerações mais novas que, ou por serem frequentadoras ou por terem tido contato com pessoas que iam à festa (ainda que elas mesmas nunca tenham ido ao evento), testemunham a favor do impacto gigantesco da Chic Show. Essa lista vai do sambista Péricles, ex-integrante do Exaltasamba, aos ícones do rap Mano Brown e Ice Blue, do Racionais MC’s.
A Chic Show era a representação de algo bem maior, uma ideia fogosa que crepitava decibéis que nem mesmo as maiores caixas de som poderiam reproduzir. Falar sobre ela não é falar somente sobre música, cultura, hábitos e moda; na verdade, acima de tudo, é falar sobre a história do negro paulistano. “A memória, ela é poder”, diz Emicida, que presta depoimento como o filho de um pai negro que, em meio às turbulências da vida, encontrava na Chic Show um momento de finalmente aterrissar os pés no chão. “E, se essa memória começa a ficar cada vez mais distante, as pessoas começam a esquecer quem elas são. A gente precisa saber disso, mano! Se não, a gente acha que só existe tradição nos bagulho da Europa. Existe uma tradição aqui. E uma tradição muito bonita.”
Com isso em mente, o filme serve ao fortalecimento de uma memória coletiva que, pela inércia de uma sociedade racista, sempre tende a ser esquecida. O que aconteceu com Emicida — que, apesar de não ter vivido a Chic Show no tempo em que ela acontecia, herdou a vivência do pai e hoje carrega aquilo na memória — deveria acontecer com mais e mais pessoas, sejam elas negras ou não. Por sua diversidade e inventividade, a riqueza cultural brasileira dos anos setenta e oitenta salta aos olhos de qualquer um e, grande parte dessa vastidão, passa por pessoas negras. E muito disso não foi registrado devidamente, deixando-nos sobretudo com o registro memorial. Pois, então, com o auxílio do trabalho de pesquisa feito pela equipe do doc, lembremos, ao menos um pouco, dessa tradição enorme.
A Chic Show teve seu início nas periferias da Zona Sul de São Paulo, mais precisamente no bairro do Jabaquara. O evento rapidamente ganhou destaque devido à sua mistura única, em uma escala sem precedentes, de música, dança, moda e cultura negra. Chegou, inclusive, a locais que “pertenciam” a parcelas majoritariamente brancas da população paulistana, como foi o caso da Sociedade Esportiva Palmeiras, notoriamente dominada por ítalo-brasileiros. O clube, que não muito antes chamava Palestra Itália, abriu as portas para a Chic Show. Muito embora fosse pensado para a comunidade negra de São Paulo, a Chic Show atraiu uma ampla gama de pessoas de diferentes classes sociais, raças e origens. Era a comprovação do reboar abrangente da cultura que se construía. A mensagem era clara: fosse quem fosse, se você estivesse ali, tinha que compreender que aquele era o momento e o espaço para celebrar culturas e identidades que por muito tempo foram rechaçadas, escanteadas quase como um projeto de país.
Com lambe-lambes colados por toda a cidade — uma estratégia de divulgação pensada também por Luizão —, não havia ninguém na cidade que não reconhecesse aquela junção chiquérrima de palavras. O nome, portanto, que o próprio idealizador define como um “nome-irmão” do grupo Chic Samba Show, não era apenas um deleite aos ouvidos, algo que evocava uma boa sonoridade e um sex appeal forte. Para além disso, ele atribuía aos frequentadores características raramente atribuídas à população negra, refletindo a sofisticação e a elegância conclamadas em cada uma das festas, que de tão elegantes tinham pinta de tapete vermelho. Se alguém negasse o poder de qualquer um daqueles bailes blacks, de duas uma: ou não passava de mera ingenuidade ou tratava-se da velha (e não tão boa) negação preconceituosa.
A lista de artistas que contribuíram para o sucesso do Chic Show chega a impressionar. Figuras notáveis da música brasileira marcaram presença, como Jorge Ben Jor, Tim Maia, Sandra de Sá e Elza Soares. Mas a lista não é formada somente por grandes nomes do Brasil: como bem lembra o documentário, ninguém mais ninguém menos que James Brown, o rei-mor do funk e do soul, se apresentou no festejo em 1979. Nada poderia expressar melhor do que esse fato o tamanho da relevância do evento. Esses artistas não apenas entretiveram o público, mas também contribuíram para a afirmação da música negra e da cultura afro-brasileira. E não custa lembrar: tudo isso aconteceu no meio de uma ditadura militar, que, entre muitas outras coisas, era institucionalmente racista. As inúmeras dificuldades impostas ao movimento negro da época, cujas mãos estavam atadas demais para qualquer tipo de atuação, foram perpassadas por algo tão simples e revolucionário como um baile black: ali, o dedo estava em riste, mas também estava na estica.
Outro parêntesis que o filme abre, sendo até elucidador se pensarmos nos caminhos da música black nacional, é o pioneirismo da Chic Show na discotecagem, inaugurando a era de samples feitos a partir de músicas brasileiras. Easy Nylon, renomado DJ e radialista, é quem diz: “O Easy Lee (…) pediu qualquer disco nacional para poder ensaiar e aí deram para ele o LP do Tim Maia, que tinha aquela música Você Mentiu”. E Luciano Rocha, DJ da Chic Show, arrebata: “[Ele] soltou o Tim Maia e, meu, o Palmeiras veio abaixo!” Era a cultura negra estadunidense sendo aplicada, pela primeira vez, à feição dos brasileiros. A cena relatada pelos dois DJs é capaz de arrepiar até quem não estava lá, mesmo considerando que ela não foi registrada em imagem. Basta imaginar a experiência transcendental de presenciar essa cerimônia de casamento entre a discotecagem e uma das mais fortes vozes que o Brasil já produziu.
Muito embora o filme deixe um certo gostinho de “quero mais” — seria satisfatório, por exemplo, ver mais das apresentações —, esbarrando nas limitações que os registros têm, ele consegue dar um panorama geral do que foi, e representou, a Chic Show. Em termos de empoderamento cultural, o baile proporcionou um contexto de celebração e autonomia cultural para a sempre marginalizada comunidade negra, fortalecendo a autoestima e a identidade racial. Se pensarmos em visibilidade artística, a Chic Show promoveu artistas negros, muitos dos quais conquistaram sucesso nacional e internacional após suas apresentações no evento, contribuindo para a visibilidade da produção cultural negra. Até no que diz respeito à moda e ao estilo, a festa influenciou a moda afro-brasileira, popularizando penteados afro, roupas coloridas e acessórios que celebravam a herança africana. Tudo isso se resume bem na fala de Rappin’ Hood: “Hoje em dia, eu sou um empreendedor desse caminho. Eu tenho o meu próprio selo. Tenho minha grife de roupas. E esses caras foram inspiração para isso!”
A Chic Show serviu como estopim de uma consciência coletiva de resistência e conscientização. Não era apenas um baile, mas um movimento cultural que transcendeu gerações e continuou a inspirar a população negra brasileira a se orgulhar de sua herança e a lutar por igualdade e reconhecimento em todos os aspectos da sociedade. As batidas tocavam alto e os passos de dança eram inigualáveis, mas aquele também era um espaço para discussões sobre a luta contra o racismo e a desigualdade, construindo uma consciência e uma resistência político-social compasso a compasso. Era como se cada um presente estivesse dizendo: “Não estamos brigando, estamos dançando.” Trata-se de um legado e tanto: sem saber que era impossível, foram lá e fizeram.
Viajando de férias, minha filha recebe uma mensagem da sua melhor amiga, coincidentemente chamada Helena. Fica contente com a lembrança e me diz: “Mamãe, quando eu voltar, quero brincar na casa da Helena. Ela é minha saudade mais favorita.”
Fiquei um tempo pensando. O lugar da saudade dentro da gente é sempre de honra. Para ser digno de saudade, algo precisa ter sido intensamente costurado na nossa alma, com fios do metal mais precioso que existe — que nem o tempo ou a distância são capazes de apagar.
Tenho muitas saudades favoritas que me fazem companhia. São memórias nas quais passeio com frequência e me alimento em dias sombrios. Algumas pessoas me dizem que minha memória é boa. Eu concordo, até porque preciso muito dela no meu ofício para ajudar pessoas a entender que ter uma saudade favorita não é ser esburacado, mas muito pelo contrário. Saudades favoritas podem ser lugares para sorrirmos secretamente. Isso porque são exclusivos, propriedade privada. Algumas saudades favoritas são pessoas, por vezes uma cena, uma viagem, um livro, um filme. Gosto da cena do filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças, na qual se tenta apagar a ex-namorada da mente. Eis, então, que o personagem se reencontra com uma lembrança de ambos fazendo anjos na neve, deitados, mexendo os braços e as pernas. Gorros coloridos, o branco da neve, seus corpos fazendo formato de “x”. Ao visitar essa cena, antes de seu apagamento, insiste: “Posso ficar só com essa cena da minha namorada? Por favor: Let me just keep this memory“.
Uma vez, num passeio turístico pela Itália, o navio parou e os passageiros podiam pular no mar. Todos do barco se trocaram e se jogaram. Já eu, desavisada, não tinha maiô nem toalha. Porém decidi mesmo assim mergulhar de roupa e tudo. Era verão. Meus pais, num ato impulsivo (coisa rara lá em casa), pularam atrás de mim, também vestidos. Éramos nós três, o mar azul de Capri e o sol que batia na água que a deixava estrelada. Quando retornamos a bordo, rimos de nosso trio encharcado. Era uma travessura em conjunto. Eu tinha 25 anos e me casaria em seguida. Era uma despedida do que éramos nós três, daquela família de onde eu vinha. Essa é, definitivamente, uma das minhas saudades favoritas. Foi a primeira lembrança que pulou da gaveta da memória quando pousei no título desse texto. Minha mãe foi embora há um mês e meu pai há 11 anos. Fiquei sozinha a bordo. O difícil é não poder contar com ninguém para reviver esse momento. Eu fiquei para contar essa história. Sobrei como testemunha de que um dia não fomos só saudade. Um dia saímos juntos de férias e pulamos nessa água, éramos três. Coloquei na parede do meu consultório um quadro com esse mar, feito com um cartão postal por uma amiga artista: a água azulada, as pedras, os barcos branquinhos cheios de turistas. Eu não tenho foto dessa cena que vivi, mas tenho o quadro para recordar dessa memória quando me sentir sozinha. De vez em quando eu mergulho nessa cena, nós três de mãos dadas no mar de água gelada, refrescante, rindo como crianças da nossa inconsequência.
É que nossas memórias são como roupas penduradas no varal, no fundo da nossa mente. Às vezes, passeando por elas encontramos conforto. Uma lembrança pode nos vestir como uma roupa quentinha que o sol acabou de secar. Ou, talvez, como um casaco felpudo antigo que pule de uma gaveta num dia de frio. Foi, porém, a minha filha quem colocou a etiqueta nessa gaveta com um nome pertinente. Os meus filhos são o meu presente favorito, assim como o meu futuro azulado, tal como o mar de Capri.
Enquanto a cultura escrita tem sido historicamente valorizada como fonte de conhecimento, a cultura visual tem experimentado um aumento significativo de atenção nos últimos tempos.
Pense no mais intenso número de dança. Visualize um tango argentino em que os dançarinos se movem ora juntos, ora sozinhos, em algum lugar entre a tensão e a paixão. Quem dança mais e quem dança menos neste palco? Talvez você não precise imaginar muito. “Quem brilha mais?”, afinal, é a pergunta que surge naturalmente quando pensamos na interação dançante entre a cultura visual e a cultura escrita. Por ser uma dinâmica tão interligada, e ao mesmo tempo tão excludente, esses passos têm sido observados de perto por teóricos da comunicação, antropólogos culturais e historiadores. Essas duas formas de expressão cultural não apenas coexistem se complementando, mas também moldam e são moldadas por contextos socioculturais e tecnológicos. Enquanto a cultura escrita tem sido tradicionalmente valorizada como uma fonte essencial de conhecimento e comunicação, a cultura visual tem experimentado um aumento significativo de atenção nos últimos tempos, levantando indagações pertinentes sobre a relação complexa entre ambas.
É bem verdade: se considerarmos que as pinturas rupestres são as formas de comunicação mais antigas que se tem registro — as pinturas da Caverna de Chauvet, por exemplo, datam de 30 a 32 mil anos —, ou mesmo que a escrita se dá por símbolos, a cultura visual veio antes. Mas, na medida em que as sociedades foram avançando, a escrita exerceu um papel incomensurável em todo o desenvolvimento, criando uma cultura que evoluiu mais aceleradamente do que a visual. Isso pelo menos até o começo do século XVIII, quando os primórdios da fotografia já anunciavam uma revolução. Algum tempo mais tarde, foi a vez do audiovisual surgir e se aprimorar rapidamente. A televisão também entrou em campo sob aplausos e tudo que veio daí mudou o jogo por completo. Na sociedade moderna, a cultura visual se transformou naquela grande ventania que abala as estruturas e, na contemporaneidade, essa ventania virou um verdadeiro tufão.
Impulsionada pela revolução digital, a dinâmica entre cultura visual e cultura escrita sofreu transformações profundas, refletindo mudanças na maneira como consumimos e compartilhamos informações. A escrita ainda é uma ferramenta central de expressão e comunicação, mas a cultura visual emergiu como um meio que esbanja o poder e a persuasão para se conectar com as massas. E, como não podia ser diferente, essa mudança de enfoque suscita discussões acaloradas sobre os impactos positivos e negativos da transição.
Autores como o canadense Marshall McLuhan (1911-1980) e o estadunidense Walter Ong (1912-2003), pensadores modernos canônicos que entenderam a comunicação tão bem que foram capazes de antever alguns resultados maiores a partir do que eram apenas indícios, ofereceram insights fundamentais sobre essa dicotomia. McLuhan, em seu livro Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem, de 1964, argumentou que cada meio de comunicação carrega consigo uma “mensagem” que influencia a percepção e a organização da realidade, sendo, assim, o próprio meio é uma mensagem. Ele destacou como a cultura escrita, caracterizada pela linearidade e análise discursiva, deu lugar a uma cultura visual mais imersiva e simultânea com a ascensão de mídias eletrônicas — se isso valia para 1964, imagine então para quase 60 anos adiante.
“Se a pergunta ‘Qual é o conteúdo da fala?’ for feita, é necessário responder: ‘É um processo real de pensamento, que é em si não-verbal’. Uma pintura abstrata representa a manifestação direta de processos de pensamento criativo como eles podem aparecer em projetos de computador. O que estamos considerando aqui, no entanto, são as consequências psíquicas e sociais dos designs ou padrões conforme eles ampliam ou aceleram os processos existentes. Pois a ‘mensagem’ de qualquer meio ou tecnologia é a mudança de escala, ritmo ou padrão que ela introduz nos assuntos humanos. A ferrovia não introduziu movimento, transporte, roda ou estrada na sociedade humana, mas acelerou e ampliou a escala das funções humanas anteriores, criando tipos totalmente novos de cidades, trabalhos e lazer.”
— Marshall McLuhan em Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem
Aplicando a imagem da ferrovia ao mundo virtual, percebemos como a digitalização acelerou e apresentou diversas novas possibilidades àquilo que já estava por aí antes, além de viabilizar novos formatos, surgidos como ramificações do que acelerou o pré-existente. E é seguro dizer que novos ainda virão a existir saindo desse e outros pontos de partidas, porque, no final das contas, trata-se de um trem desenfreado capaz de alçar voo a qualquer momento e abandonar os trilhos sobre os quais nasceu.
Para Walter Ong, em Oralidade e Cultura Escrita, de 1982, as transformações cognitivas e epistemológicas acompanham a transição da cultura oral para a escrita, realçando as maneiras distintas pelas quais a palavra falada e a palavra escrita moldam o pensamento.
“Nossa compreensão das diferenças entre oralidade e alfabetização desenvolveu-se apenas na era eletrônica, não antes. Os contrastes entre mídia eletrônica e impressa nos sensibilizaram para o contraste anterior entre escrita e oralidade. A era eletrônica é também uma era de ‘oralidade secundária’, a oralidade dos telefones, rádio e televisão, que depende da escrita e da impressão para sua existência.A mudança da oralidade para a alfabetização e para o processamento eletrônico envolve estruturas sociais, econômicas, políticas, religiosas e outras.”
— Walter Ong em Oralidade e Cultura Escrita
É como se a existência de uma nova era ressignificasse a era anterior. E é importante notar como a tal “oralidade secundária” acaba se repetindo, de algum jeito, nos novos formatos de hoje. Quando matérias de portais de notícia vêm acompanhadas de sua versão-podcast, reproduzimos o rádio com um verniz cibernético; quando fazemos pequenos vídeos nos TikTok, reproduzimos vinhetas publicitárias usando uma falsa máscara de pessoalidade. É difícil, portanto, pensar em quando começa e quando termina a cultura visual e a cultura escrita. É quase impossível determinar quando é uma e quando é outra, já que as duas andam tão juntas, mesmo que somente com um texto no papel ou somente com uma imagem sem palavras.
Se o cinema e a televisão representaram uma nova era cultural, o advento do mundo digital e das mídias sociais trouxe uma nova dimensão às intersecções das culturas visual e escrita. A proliferação de imagens, vídeos e emojis na comunicação cotidiana evidencia uma crescente utilização de símbolos no dia a dia, de uma maneira sem precedentes. Em vez de “eu te amo”, um emoji de coração ou um gif com aquele personagem do That ’70s Show fazendo um coração com a mão; ao invés de “estou bravo”, um emoji com carinha vermelha ou um gif de Divertida Mente, com o personagem Raiva explicitando descontentamento.
As comunicações, no geral, têm se voltado cada vez mais para os apelos visuais, mesmo quando auxiliadas pela linguagem escrita. Essa mudança é amplificada pela velocidade com que as informações são transmitidas e consumidas nas redes sociais, onde a instantaneidade das imagens muitas vezes prevalece sobre a reflexão textual profunda. Uma preocupação que nasce dessa nova realidade é que a migração para uma cultura voltada majoritariamente para o visual possa levar a uma diminuição na capacidade de concentração e reflexão crítica. Hoje em dia, quem tem tempo para ler um livro inteiro? Ou mesmo ler uma postagem mais extensa no Instagram ou um texto de blog falando bem sobre uma pousada nos Alpes Suíços?
Isso quer dizer que a escrita está fadada ao esquecimento? Evidentemente que não. A cultura escrita não está completamente desvalorizada e não está com os dias contados. A produção literária, acadêmica e jornalística continua a desempenhar um papel crucial na disseminação do conhecimento e na preservação da memória cultural. Aliás, a intersecção entre cultura visual e escrita é evidente na mídia impressa, publicidade, cinema e design gráfico, espaços em que ambas as formas de comunicação são usadas de maneira sinérgica para criar significado. Mas, ainda que o foco crescente na cultura visual não deva ser interpretado como uma rejeição completa da escrita, deve ser visto como uma mudança significativa na forma como a informação circula. O que não anula o grande desafio que já se apresenta há algum tempo: o de encontrar um equilíbrio saudável entre essas duas formas de expressão, reconhecendo as vantagens e desvantagens de cada uma.
Vivemos na era da imagem rápida, tempo em que as plataformas digitais são os pilares da cultura. O compartilhamento instantâneo de fotos, vídeos curtos e memes permitiu que as pessoas se expressassem de maneiras novas e criativas, comunicando ideias complexas em uma linguagem visual acessível. Esse, aliás, é um fator de sedução digno de nota: na linguagem visual atual, a inventividade tem forte presença, muitas vezes respondendo a eventos midiáticos maiores ou explorando características dessa ou daquela geração. Cria-se, assim, um engajamento altamente atrativo. Além da criatividade, temos a concisão também como fator determinante para o sucesso de uma linguagem, passando a mensagem de maneira rápida, divertida e de fácil entendimento. A efetividade é a marca de algo que evoluiu até chegar aos moldes que estão de acordo com aquilo que as pessoas querem e estão dispostas a receber.
“Não pensamos mais na história do cinema como uma marcha linear rumo a uma única linguagem possível, nem como uma progressão rumo à verossimilhança perfeita. Pelo contrário, passamos a ver a sua história como uma sucessão de linguagens distintas e igualmente expressivas, cada uma com as suas próprias variáveis estéticas, cada nova linguagem fechando algumas das possibilidades da anterior (…). Da mesma forma, cada estágio na história da mídia computacional oferece suas próprias oportunidades estéticas”
— Lev Manovich em The Language of New Media
A dicotomia entre cultura visual e cultura escrita não é uma batalha pela supremacia, mas uma interação complexa e em constante evolução. Ao reconhecer os méritos e as limitações de ambas as formas de comunicação e promover uma abordagem equilibrada, podemos navegar com sucesso na era digital, aproveitando o poder da cultura visual enquanto mantemos a riqueza da palavra escrita. Tudo é fruto de seu tempo. Pensar nas características da comunicação atual revela aspectos tanto positivos quanto preocupantes do nosso comportamento coletivo e da forma como nos relacionamos com a informação, a comunicação e a expressão.
A cultura visual é uma linguagem global que transcende barreiras linguísticas e culturais, permitindo que as mensagens alcancem audiências em todo o mundo. Isso pode refletir uma sociedade mais conectada e globalizada. Mas nem tudo são flores. Enquanto celebramos a acessibilidade e a criatividade proporcionadas pelo visual, também precisamos enfrentar os desafios potenciais que podem afetar características humanas fundamentais para o desenvolvimento de futuros melhores, como o pensamento analítico. É crucial encontrar um balança entre imagem e texto para garantir que possamos navegar com sucesso nas complexidades do mundo contemporâneo. É dançar para não dançar.
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Poucas coisas refletem melhor os costumes de um povo do que a culinária. Ela reflete também outros aspectos culturais, como a religião e a política. É um saber ancestral da experiência da vida, passado de geração em geração como um acervo próprio de cheiros, sabores e emoções, que vêm tanto dos alimentos e temperos quanto dos utensílios e das técnicas.
Culinária é material e imaterial, com fatores se combinando para formar uma grande, e ainda assim particular, festa cultural. A Amarello Mesa em Brasileiro, nossa coleção 100% brasileira de utilitários domésticos culinários, convida você para fazer parte dessa celebração, tornando sua casa seja ainda mais sua. Como nos reunimos ao redor da mesa todos os dias, várias vezes ao dia, comer é conversar, trocar, rememorar, saciar a necessidade de ter contato com outras pessoas. Em um mundo polarizado, uma refeição tem o poder inigualável de reunir. Se nutrir é o propósito inicial e final de uma refeição, o encontro é o entremeio que a torna especial. A partir dele é que se constrói o aconchego de uma rotina, como um ritual que, apesar de familiar, nunca é o mesmo.
É exatamente esse aconchego que evocamos em cada uma das peças da Amarello Mesa em Brasileiro, idealizadas por nós e produzidas pelas mãos talentosas de artesãos com muitas histórias para contar. É, sim, possível que atividades tão simples e cotidianas, como as que envolvem a comida e a mesa, tenham tantos significados e virem algo muito maior. Afinal, a maneira como nos preparamos para jantar ou o tempo que reservamos para sentar e almoçar é uma questão de respeito pela vida.
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A exposição sobre Heitor dos Prazeres no Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro,cuja abertura aconteceu dia 28 de junho e segue até 18 de setembro de 2023, é uma das maiores retrospectivas históricas da obra do artista, reunindo mais de 200 trabalhos. Para quem não sabe — o que não deve ser raro hoje em dia, daí a importância de trabalhos como o do CCBB —, Heitor dos Prazeres (1898-1966) foi um artista multimídia brasileiro que deixou uma marca indelével na cultura carioca e nas artes do Brasil. Nascido em 1898, no bairro do Rio Comprido, RJ, ele cresceu em um ambiente marcado pelas profundas transformações sociais decorrentes do fim da escravidão.
Sua obra, portanto, começa a acontecer poucos anos depois da Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel em 1888, num período em que se estabeleceram as bases da cultura nacional que ecoa em nós até os dias de hoje, muito influenciada pela matriz afro-brasileira. O que se vê em Heitor dos Prazeres é meu nome são trabalhos do artista no campo visual, musical, do samba e da moda. Desde cedo, Heitor demonstrou um talento natural para a arte. Sua transgressão remonta ao momento em que as elites do Rio de Janeiro e do Brasil estavam voltadas para os valores do branco europeu, da matriz colonialista, pois o artista, em sentido oposto, reproduzia em suas obras o que via e experimentava nas vivências como homem negro, sem se importar com o status quo do que era tido como “bom gosto”. Ou seja, seus temas eram os fluxos migratórios de africanos e seus descendentes, a mudança do campo para a cidade, a religiosidade, a repressão policial, a capoeira, o samba, a afetividade.
Como explica Raquel Barreto, curadora da Heitor dos Prazeres é meu nome junto com Haroldo Costa e Pablo León de La Barra, a frase que dá nome à exposição vem como autoafirmação que sempre existiu por parte do Heitor, ainda que o devido reconhecimento tenha demorado a acontecer.
“É uma citação que encontramos no documentário do [Antonio Carlos] Fontoura, feito entre 1965 e 1966. É lá, nos primeiros minutos, que ele fala a frase, e ela se relacionava com o que nós estávamos propondo na exposição, que era afirmar o lugar do Heitor dos Prazeres na história da arte brasileira, afirmar a singularidade dele. Então, a frase casou com esse desejo nosso.
O Heitor, tanto na música como nas artes visuais, se anuncia de várias formas. Tem um samba conhecido dele que marca essa característica, em que ele fala ‘eu sou quem dá as ordens pra escola de samba sair’. Em muitas pinturas ele aparece, né? Ele se coloca lá como pintor, o personagem do pintor aparece com ele se identificando a partir do signo da boina, do jaleco, daquilo que associamos à figura dum pintor. Esse lugar afirmativo e de sujeito a gente encontra nas músicas do Heitor, na própria fala do Heitor e na pintura. Foi isso que a gente procurou ressaltar com o título da exposição.”
— Raquel Barreto, curadora da exposição “Heitor dos Prazeres é meu nome”.
Como sambista, desempenhou papel fundamental na criação de blocos e ranchos e na fundação das primeiras escolas de samba do Rio de Janeiro: Mangueira, Portela e Deixa Falar (que mais tarde ganhou o nome de Estácio de Sá). Frequentador da casa de Tia Ciata, compôs com Noel Rosa a famosa canção Pierrô Apaixonado e muitas outras de autoria própria, e conviveu com símbolos do calibre de Cartola, Paulo da Portela e Pixinguinha.
Essa produção em diversas frentes, aliás, levanta um grande desafio para quem for organizar sua produção em uma exposição. Como escolher esse ou não aquele? Por que dar mais enfoque a uma ou outra produção? Talvez seja o que, popularmente, chamamos de “problema bom”, o que de maneira alguma o deixa mais simples de ser resolvido.
“A narrativa que foi construída partiu do próprio trabalho do artista. Observando a produção dele desde o final da década de trinta até 1966 foi possível perceber algumas mudanças na forma como ele abordava determinadas temáticas, a forma como ele pintava no início da carreira, o uso de uma determinada paleta de cores, a proporção dentro da pintura e como ele foi diversificando, definindo, atualizando a proposição dele conceitual e também os modos de fazer a pintura. Ao mesmo tempo, a gente encontrou aqui determinadas temáticas que acompanharam quase toda a trajetória do Heitor. Foi um exercício de organizar tematicamente, não cronologicamente, o trabalho do Heitor a partir de uma narrativa que ressaltasse o artista.
Então, jogar luz sobre a consciência estética era importante. O Heitor sempre teve muita consciência estética na produção artística dele — ao contrário de como a crítica tradicional de arte brasileira definiu o trabalho dele, sempre de forma muito restrita, diminuindo a importância e a consciência dele. Isso era um ponto muito importante, evidenciar como o Heitor era muito consciente dos processos dele e como a pintura dele tratava de temas muito importantes para sociedade brasileira, especialmente para população negra. Mas vai bem além, né? Ele é um artista que pinta momentos que retrata momentos importantes da história do país, é possível acompanhar isso nas pinturas dele.”
— Raquel Barreto, curadora da exposição “Heitor dos Prazeres é meu nome”.
É seguro dizer que o trabalho do Heitor tanto reflete o período pós-abolição quanto propõe imaginários novos, visualiza paisagens ainda não vistas, imagina realidades ainda em formação e retrata cores de vibração sem precedentes. Sua produção, portanto, como diz Raquel, vai bem além de algo restrito à população negra, muito embora ele tenha sido um homem negro que esteve ligados a momentos fundamentais da construção de uma identidade negra entre as décadas de 30 e 60. A começar pela cidade em que morou e agitou: Heitor foi capaz de participar de movimentos fundamentais na elaboração de quem é a pessoa carioca, algo que segue reverberando até hoje. Foi um pintor do Rio de Janeiro, retratando paisagens tanto urbanas como rurais, além de ser uma das primeiras figuras públicas brasileiras a exaltar religiões de matriz africana. Se pensarmos que, à época, o Rio era a capital da República, então expande-se ainda mais o impacto de Heitor dos Prazeres: nele e em toda a sua vasta produção cabia um Brasil inteiro.
Ingressou na pintura já consagrado na carreira musical e no samba, mas fez questão de também reivindicar sua consagração nesse campo produzindo um corpo de trabalho de primeira qualidade e participando de mostras e exposições de relevância nacional e internacional. Em 1951, recebeu prêmio na I Bienal de Arte de São Paulo na categoria pintura nacional. Em 1953, participou com obras em sala especial da II Bienal de São Paulo. Em 1961, expôs no Museu de Arte Moderna do Rio (MAM-RJ). Em 1966, em seu último ano de vida, participou do I Festival de Artes Negras em Dakar, no Senegal. A relevância, e a transgressão, de sua obra é tamanha que, por instigar com inovação e ânimo o protagonismo negro na sociedade brasileira — lê-se: aspirar liberdade e igualdade em uma sociedade nada liberta e igual —, o artista foi cassado pelo Ato Institucional n.º1, de 1964. Pinturas, canções, partituras, projetos, desenhos, discos e indumentárias marcam a trajetória marcada pelo prazer de dar materialidade à inquietação criativa e sua relação com diferentes esferas da produção cultural. Tudo isso está presente em “Heitor dos Prazeres é meu nome”, mas claro que o que vemos na exposição acaba sendo um recorte, por mais amplo e completo que seja.
“Curadoria sempre é a escolha de uma possibilidade entre inúmeras possibilidades e a forma que nós pensamos essa curadoria era uma forma de contar uma história e, sobretudo, de apresentar Heitor dos Prazeres. Apresentar o Heitor dos Prazeres artista visual para as novas gerações. Então, a ideia era que o conjunto da produção dele pudesse ser vista, apreciada e contemplada na narrativa que nós propomos a partir do caminho que nós encontramos na própria pintura do Heitor. Essa é uma exposição que privilegiou as artes visuais, mas ela poderia ter sido muito diferente se a exposição privilegiasse, por exemplo, a música. Ou privilegiasse a história do Carnaval, uma história em que o Heitor foi um personagem de muitas inserções importantes. A escolha pelas artes visuais, então, construiu um tipo de narrativa. É uma escolha.
Se nós escolhêssemos falar ou narrar outras histórias do Heitor, como sua relevância para a moda no Brasil, seria uma exposição completamente diferente, igualmente interessante. Essa transposição dele era fascinante. Falaríamos sobre o desconhecido envolvimento que o Heitor teve na definição da moda brasileira na década de 1960, sobre como ele foi convidado em algumas situações para propor estampas, como ele constrói o figurino no balé do quarto centenário, como ele produzia as roupas das pastoras que cantavam com ele, como a moda teve sempre muito presente no Heitor dos Prazeres. Se essa exposição fosse uma exposição enfocando o artista da moda, ela seria uma outra narrativa. Então, nós priorizamos as artes visuais e envolvemos essas outras práticas artísticas mais como um diálogo.”
— Raquel Barreto, curadora da exposição “Heitor dos Prazeres é meu nome”.
Seu legado continua vivo nas ruas do Rio de Janeiro, nas festas de carnaval e nas manifestações culturais que celebram a diversidade e a história do Brasil. Heitor dos Prazeres é uma figura que merece ser lembrada e valorizada como um dos grandes talentos que enriqueceram a cultura brasileira ao longo do século XX. Sua trajetória artística e sua contribuição para a representação da realidade pós-escravagista da população negra são uma inspiração para artistas contemporâneos e um lembrete da riqueza cultural e da resiliência do povo brasileiro.
Ergam as taças para esse grande personagem de nossa, e de outras, culturas. Heitor dos Prazeres — esse é o nome dele.
*A exposição “Heitor dos Prazeres é meu nome” está no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, de 28 de junho a 18 de setembro de 2023.
“A palavra elegantia vem do latim eligere, ou escolher. Vamos devolver à moda a elegância e fazer escolhas melhores na hora da compra.”
Não há como negar — a moda rápida, a fast fashion, está tomando o mundo. A velocidade com a qual consumidores compram roupas está acelerando a ritmo frenético. A acessibilidade e praticidade de se comprar roupas baratas online fez com que nós, consumidores, não apenas comprássemos cada vez mais, mas, em consequência, utilizássemos cada vez menos cada peça adquirida. Criamos uma cultura de moda descartável. De acordo com a organização Earth.org, nos últimos 15 anos, o número de vezes que cada peça é usada por quem a comprou diminuiu em 36%, sendo cada roupa utilizada em média apenas 7 vezes. Ao mesmo tempo, de acordo com um estudo da consultoria McKinsey, o consumidor médio comprou 60% mais roupas em 2014 do que em 2000.
São 100 bilhões de toneladas de roupas produzidas a cada ano, das quais mais de 92 milhões de toneladas são descartadas em lixões e aterros ao redor do mundo. Desse total, 39.000 toneladas estão indo parar em uma montanha de roupas descartadas no deserto do Atacama, no Chile. São roupas que chegaram às lojas nos Estados Unidos, Europa e Ásia, mas não foram vendidas. São então enviadas – sem nunca terem sido usadas – ao sul global para serem descartadas. No caso do Chile, as roupas não podem ser descartadas em aterros municipais devido ao seu conteúdo tóxico, e acabam a vida empilhadas no meio do deserto. Em Acra, capital de Gana, no litoral ocidental da África, são despejadas diariamente 100 toneladas de tecido. Membros do mercado de Kantamanto, onde muitas dessas roupas são reutilizadas ou revendidas, foram à Europa protestar contra a catástrofe ambiental causada pelo despejo de lixo em sua comunidade. Querem que as empresas de moda sejam forçadas a pagar o governo Ganês para manejar o lixo.
A indústria que alimenta esse consumerismo voraz tem um impacto enorme sobre o meio ambiente. De acordo com um estudo da ONU, a indústria de moda é responsável por 8 a 10% das emissões mundiais de carbono. Quase 10% dos microplásticos que jogamos nos oceanos a cada ano são oriundos de confecções fast fashion, que, em sua maioria, contém materiais sintéticos como poliéster e nylon. Considerados baratos e resistentes, esses materiais também contém plástico. E se 10% não lhe parece muito, pense que isso equivale a mais de 50 bilhões de garrafas PET. Os microplásticos não são os únicos vilões da história — mesmo as roupas feitas de algodão contribuem com o desperdício global de recursos. A indústria é responsável por 20% do desperdício total global de água. A fabricação de uma única camiseta de algodão requer 2.700 litros de água, o suficiente para saciar a sede de um ser humano por 900 dias.
A explosão do fast fashion, especialmente com a popularidade crescente da gigante chinesa Shein, provocou também o interesse de pesquisadores e grupos ambientais na qualidade das confecções. Investigações revelaram altos níveis de substâncias químicas tóxicas, incluindo centenas de químicos empregados pela “tecnologias têxtil”. São coisas como pigmentos a base de chumbo, etoxilato de nonilfenol ou nonilfenóis (NPEs) usados em detergentes industriais, ftalatos usados para tornar plásticos mais flexíveis e resistentes, formaldeído que previnem que tecidos amassem, e substâncias per e polifluoroalquil (PFAs) que os tornam impermeáveis.
Quem odeia passar roupa ou esfregar manchas no tanque bem que entende. Porém o efeito desses químicos sobre a saúde são altamente nocivos, especialmente para crianças menores de 6 anos, ainda em fase de desenvolvimento cerebral. Em 2013, a Greenpeace publicou um estudo feito com os dois maiores centros de produção de roupas infantis na China. Mais da metade das roupas, destinadas a países como os Estados Unidos, continham NPEs, ftalatos e PFCs. Em 2016, autoridades portuárias americanas destruíram um carregamento de roupas, lancheiras e mochilas infantis vindos do gigante asiático por excederem os limites permissíveis de chumbo.
O que todos esses químicos têm em comum é que não se degradam facilmente. Isso significa que eles permanecem no meio ambiente e no organismo de animais e seres humanos por muito tempo, e bioacumulam e biomagnificam, um fenômeno que ocorre quando há acúmulo progressivo de substâncias ou compostos químicos ao longo de uma cadeia alimentar. Nós poluímos o oceano, em uma ação que contamina os peixes, que, consequentemente, iremos consumir: é um ciclo vicioso assustador.
Estamos gerando toneladas de roupas que nem compramos, que mal usamos, e pagando com a degradação do meio-ambiente e da nossa própria saúde. É hora de mudar. Afinal, a palavra elegantia, em latim, vem do verbo eligere, ou escolher. Vamos devolver à moda a elegância e fazer escolhas melhores na hora da compra.
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