A poesia é fundadora. Euclides da Cunha era poeta.
Em sua edição comemorativa de dez anos, a revista Amarello trouxe aos leitores um dossiê temático voltado ao tema da primeira das três partes d’Os Sertões, A terra. Agora, os quinze anos da revista, são comemorados com ensaios que permeiam o tema da segunda parte, O homem.
Euclides da Cunha era poeta. Essa afirmação não toca apenas a considerável obra em verso do autor d’Os Sertões, em que o cuidado métrico e o rico vocabulário, tão próprios do parnasianismo de então, embalam o amor à natureza, bem como o louvor ao progresso científico e à liberdade. A erudição de Euclides da Cunha o permitiu confeccionar um livro que era, em suas três partes, ensaio geológico, ensaio antropológico e narrativa histórica, respectivamente; no entanto, quer leia-se a primeira, a segunda ou a terceira parte, a linguagem, por precisa que seja no manejo do jargão científico, prorrompe irrefreável em poesia. Qual é o significado dessa dominância do poético na obra de Euclides da Cunha?
“Para o pensamento evolucionista, o negro africano e o indígena americano se encontravam no mesmo estágio evolutivo do grego, do celta ou do germânico de milênios atrás”
A linguagem que vemos na primeira sessão da obra, A terra, defende Leopoldo M. Bernucci, estudioso da obra de Euclides, fornece os ritmos e elementos essenciais para o que se encontrará nas sessões seguintes. A terra é, portanto, contexto para o desenvolvimento do “homem” tanto quanto palco móvel e dinâmico para a “luta”. Na terceira parte, já sabemos, impera o caráter narrativo e — por que não? — épico do livro. Já a segunda parte, O homem, nos faz deparar com um problema: ali vemos o Euclides antropólogo, encharcado de teorias deterministas, valendo-se de ideias sobre raças “superiores” e “inferiores”, cujos caracteres intelectuais e morais parecem tão rígidos quanto as monumentais formações rochosas tão belamente descritas na primeira parte. É inevitável o incômodo diante de ideias trabalhosamente combatidas ao longo do século XX, cujos resíduos seguem perturbadores no presente, a ponto de carregarem discussões raciais de tensão e amargor. Não seria esse um passado teórico-literário que queremos (ou deveríamos querer) expurgar? Deveria Euclides da Cunha, afinal, entrar pro rol de gigantes literários cancelados hoje?
Talvez a erudição científica de Euclides da Cunha nos desoriente a ver na segunda parte d’Os Sertões um simples endosso arrogante de ideias racistas que punham o homem branco no topo da humanidade, tendo indígenas e africanos (e suas diversas mesclas) no lugar de elementos retrógrados, perigosos à formidável civilização que o Brasil poderia ser. É um Brasil bastante miscigenado em raças e tradições — e miserável, em termos materiais — que Euclides encontra nas campanhas sertanejas e transpõe para sua literatura. A perplexidade europeia diante das outras “raças” humanas já havia séculos dava origem a uma diversidade de teorias extravagantes sobre a origem e o desenvolvimento da humanidade, o evolucionismo sendo, na época de Euclides, a perspectiva em voga. De uma origem próxima ao animal, a humanidade percorreria uma longa jornada até o aperfeiçoamento moral e intelectual, indo da relação mais imediata com os dados brutos da realidade material às abstrações que mais e mais libertam o ser humano das contingências imediatas. As diferentes raças se encontravam, no entanto, em pontos diferentes dessa jornada. No polo mais desenvolvido, o europeu; no mais primitivo, o africano e o indígena. Diante de um país carregado de indivíduos pertencentes a raças diversas desfilando suas tradições, o homem formado nas letras e ciências europeias não poderia senão, por um lado, espantar-se com os perigos que tais descontinuidades representavam à civilização que tanto desejava edificar e, por outro, maravilhar-se com o farto material científico que essa diversidade fornecia. Se etnólogos europeus embrenhavam-se nas matas africanas para recolher dados preciosos sobre “a infância da humanidade”, o que não faria o intelectual brasileiro tendo o material em sua casa?
É ocioso entrar na ladainha de que Euclides da Cunha estava apenas reproduzindo o pensamento de sua época com todos os seus preconceitos, mas é bom lembrar que ele não estava sozinho em suas ideias. Talvez o maior expoente desse pensamento, contemporâneo de nosso autor, tenha sido o médico e antropólogo baiano Raimundo Nina Rodrigues, abolicionista de crença férrea na inferioridade negra, que legou estudos minuciosos sobre as culturas, religiões, línguas e tradições africanas na Bahia, revisitados periodicamente por estudiosos e ativistas brancos e negros que rejeitam seu racismo, mas acolhem seus trabalhos etnográficos. Contradição? Não exatamente.
Para o pensamento evolucionista, o negro africano e o indígena americano se encontravam no mesmo estágio evolutivo do grego, do celta ou do germânico de milênios atrás. Os ritos praticados nas aldeias africanas e americanas e nos terreiros africanistas brasileiros proviam correspondentes precisos da antiga população que viria a dar origem a Homero, Hesíodo, aos trágicos e, finalmente, a Platão e Aristóteles. Que privilégio, para o homem de ciência e de letras brasileiro, conhecer, por analogia, as sementes da civilização ocidental que buscava reproduzir no Brasil!
Com Nina Rodrigues, ficamos nesse ponto. Com Euclides da Cunha, vamos além. Como? É aí que, no autor fluminense, o poeta cavalga o homem de ciência e torna seu O homem algo além de um documento do lamentável racismo de uma época passada. Comece a ler a segunda parte d’Os sertões; ali estão as teorias sobre a hierarquia das raças, os danos causados pela mestiçagem (particularmente para as raças ditas superiores) e o perigo que esta oferecia para a civilização. Siga lendo a segunda parte d’Os sertões, e a exposição teórica dá lugar à descrição etnográfica — os hábitos, as tradições dos sertanejos, sua complexa relação com o rude meio em que vive, são mais que detalhados. Vemos o frio cientista que falara até então entusiasmar-se diante da riqueza da realidade à sua frente. Vemos, em suas avaliações dos cultos e das formas da religiosidade popular, o erudito reconhecer fortes traços das diversas formas, primitivas e heréticas, que o cristianismo tomou na Europa ao longo de sua evolução, juntamente com rituais iorubanos e bantos ou elementos do islamismo africano. Em suma, séculos de história e léguas de geografia se condensam na impressionante religiosidade sertaneja que o letrado Euclides tem diante de si — uma condensação desse tipo se dá no solo da imaginação mais que no da análise racional, e sua expressão é privilégio do poeta, mais que do cientista.
“Hoje, mais que mestiço, o brasileiro pode se mostrar plural, e sua história ser lida por lentes ameríndias, africanas, europeias”
Vai nesse caminho, em sua obra De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira, José Guilherme Merquior, ao ver n’Os sertões uma retratação — retratação de Euclides pelo local a que relegara o sertanejo como elemento retrógrado, reacionário, entrave ao progresso republicano. As contradições só aparentes de Nina Rodrigues (seu racismo com sua dedicação ao estudo das culturas negras) se tornam contradições de fato na obra de Euclides, e é aí que vemos sua grandeza. Diz José Guilherme Merquior: “Essas contradições, por mais que turvem a coerência da visão científica de Euclides, depõem em favor de sua honestidade intelectual”. E depõem em favor, também, de seu fervor lírico. Bernucci, no estudo introdutório à sua edição crítica d’Os Sertões, encontra tais contradições no próprio estilo de Euclides, carregado de elementos barrocos tão condenados pelo naturalismo de sua época.
Neste momento, podemos perguntar: quem é o homem da obra de Euclides? O homem que escreve parece ser aquele homem branco, epítome da civilização, que se queria fazer vicejar nos trópicos; o homem que é escrito é um misto retrógrado e insustentável das três raças (sim, pois Euclides vê no sertanejo também elementos degenerados do português). Mas que homem emerge hoje? É um homem com o qual possamos nos relacionar?
Lemos o seguinte, sobre as manifestações religiosas sertanejas: “Não seria difícil caracterizá-las como uma mestiçagem de crenças. Ali estão, francos, o antropismo do selvagem, o animismo do africano e, o que é mais, o próprio aspecto emocional da raça superior, na época do descobrimento e da colonização”. Passagens como essa parecem como que um negativo daquilo que viria a ser positivado na obra de Gilberto Freyre. Racialmente e culturalmente, o brasileiro é um homem mestiço e encontra sua natureza exatamente na síntese dessas raças e tradições. A positividade que Freyre via na mestiçagem talvez tenha uma gênese mitopoética no poder barroco da linguagem de Euclides, ainda que, no mesmo Euclides, o homem de ciência teimasse em “fazer o dever de casa” e ver na mestiçagem uma degeneração.
Hoje, as teses favoráveis à mestiçagem do próprio Gilberto Freyre por vezes são vistas como reacionárias e até racistas. O mais que bem-vindo, o necessário crescimento — em número e vigor — de intelectuais negros e indígenas vem reivindicando perspectivas históricas e epistemológicas próprias a cada um desses grupos, cuja destinação é algo mais que ser absorvido numa mestiçagem teorizada e celebrada por autores de extração — e, acima de tudo, formação — europeia. Hoje, mais que mestiço, o brasileiro pode se mostrar plural, e sua história ser lida por lentes ameríndias, africanas, europeias… Talvez hoje, mais que antes, encontremos uma produção intelectual brasileira que possa assimilar mais vigorosamente as contradições que vemos na poesia da linguagem de Euclides da Cunha.
optopor escrever este texto com frases iniciadas por letras minúsculas, como gesto de insubordinação ao poder dominante e sua insistência na homogeneização, colonização, normatização, sincronização, automatização. para homem com h maiúsculo, criemos.
no contrafluxo da criação, contudo, o corretor automático do computador corrige este texto e transforma cada letra minúscula inicial digitada em maiúscula. automaticamente. sem o meu consentimento. eu sigo a voltar nas letras iniciais contidas após cada ponto final, insistentemente transformadas em maiúsculas, para mantê-las da forma que o leitor as vê: minúsculas.
pensemos a partir do e-mail: com um enter é possível perder o sotaque ou qualquer espontaneidade promovida. a forma “correta” também é oferecida automaticamente. sem tu “mal” conjugado, obrigade com pronome neutro ou intenção estilística nas construções de frase.
mas são apenas sugestões do programa, claro. para facilitar. o Waze também não nos obriga a virar para a direita ou a esquerda. ele fala, a gente obedece.
além disso, certamente é possível desabilitar o corretor automático, que não tem este nome por acaso. surge automaticamente, se instala automaticamente, corrige automaticamente e pouquíssimos sabem como alterá-lo. quem esgota o programa?, perguntaria Vilém Flusser. nos anos 80, o filósofo já colocava a questão da mediação do aparelho/da imagem técnica entre o homem e a sociedade ocidentalizada como um elemento fundamental na construção do mundo em que vivemos. assim, preocupado com a fragmentação de nossa experiência e imaginação, Vilém desenvolveu o termo “aparelho”, definido como “brinquedo que simula algum tipo de pensamento”, e o relacionou com sua capacidade de nos tornar seus “funcionários”, isto é, “pessoa(s) que (…) age(m) em função dele”. ou seja, na perspectiva flusseriana, o famigerado corretor automático funcionaria como um aparelho que insiste na imposição de um tipo de pensamento que, por sua vez, é baseado numa norma, num modelo, numa “verdade” programada. e, ao agirmos de maneira automática, em função dele, nos tornamos seus funcionários, permanecendo presos dentro da lógica imposta. como alternativa para essa complexa relação, o filósofo propõe que brinquemos.
entendo que o exemplo do corretor automático possa soar exagerado à primeira vista, se o mantivermos isolado. basta olhar ao redor, no entanto, e facilmente conseguiremos desdobrá-lo para praticamente todas a esferas de nossa vida cotidiana: mapas, trajetos, horários de ônibus, aplicativos de transporte particular, entrega de comida, supermercado, previsão do tempo, banco, cadastros, agendamentos, pix, matrículas, ingressos, tradução, pesquisas, filmes, jogos, aulas virtuais, músicas, séries, notícias, fofocas, receitas, dietas, letras e cifras musicais, contagem de calorias, cálculo dos batimentos cardíacos, número de passos dados, horários para tomar água, avaliação do ciclo menstrual, avanço da gestação em formato de fruta. não apenas o corretor, mas uma infinidade de outras tecnologias digitais faz parte de nossas rotinas.
acontece que, por trás de cada tecnologia, há uma lógica. Yuk Hui, importante filósofo da contemporaneidade, explica que ela se caracteriza por carregar “formas particulares de conhecimentos e práticas que se impõem ao usuário, os quais, por sua vez, se veem obrigados a aceitá-las”. percebem? de forma geral, usamos a tecnologia do jeito que ela se apresenta — com suas letras maiúsculas e correções automáticas. pouco brincamos com o programa.
Shoshana Zuboff, criadora do termo “capitalismo de vigilância”, oferece uma perspectiva semelhante, pensando a partir de empresas do universo digital como Google, Amazon e Apple: “tecnologias são constituídas por funcionalidades específicas, mas o desenvolvimento e a expressão dessas funcionalidades são moldados pelas lógicas institucionais nas quais as tecnologias são projetadas, implementadas e usadas”. Shoshana com letra maiúscula porque é nome próprio, não porque está no início da frase.
o que ambos os autores propõem é que não há neutralidade nos aparatos que compõem a vida. não devemos encará-los a partir de um viés unicamente instrumental, como se fossem meros objetos com funções. ao utilizá-los, o fazemos a partir da lógica, do conhecimento, da intenção de quem os criou. não se trata de um lugar de valor, mas sim de sua característica. tendo isso em vista, me parece interessante problematizarmos: e quando a grande maioria das tecnologias que utilizamos são produzidas por um único modelo?
esse processo integra o desenvolvimento da humanidade. para a construção do pensamento moderno não foi diferente. ao ampliarmos a perspectiva da tecnologia à dimensão de modos de habitar a terra, chegaremos a algumas estruturas que hoje podem nos parecer naturais, mas que, na verdade, foram construídas. ideias como ciência, mente, arte, lucro, natureza, excepcionalidade do homem branco foram constituídas junto da formação da modernidade e disseminadas graças às tecnologias (entre outras, náuticas e bélicas), possibilitando, segundo Hui, “a elevação de uma visão de mundo regional ao status de metafísica supostamente global”. supostamente. pois, se há um modelo de poder dominante, ele, no entanto, não é universal. povos originários, cuja existência se dá a partir de uma cosmopercepção distinta da ocidentalizada, são afirmação disso, bem como tantos outros núcleos de resistência espalhados pelo planeta. ainda assim, não restam dúvidas de que um modelo único é imposto: capitalista antropocêntrico racista patriarcal, padrão balizador de um jeito “certo” de existir. e este é o ponto que gostaria de relacionar com as tantas letras minúsculas deste texto.
porque a homogeneização das formas é caminho para o controle. e quando não temos tempo nem energia para pensar, a dominação é facilitada. Suely Rolnik, filósofa e psicanalista, alerta que, em sua versão atual, “é da própria vida que o capital se apropria”, defendendo justamente que nossa força vital e de cooperação acabam sendo “canalizada(s) pelo regime para que construa um mundo segundo seus designios”.
assim, se insisto nas letras minúsculas deste texto, é na convicção da potência da criação enquanto resistência. não como um muro que barra um movimento, ainda que esse tipo de postura também seja fundamental. penso na resistência enquanto proposição. invenção para desdobramentos que não sabemos, mas que se exercitam para sair de um modelo fixado. Edson de Sousa, psicanalista que estuda a questão da utopia, observa que “criar é abrir descontinuidades, interrupções no fluxo do mesmo”.
decidida a construir um texto sem espaços para homem com h maiúsculo, me propus às letras minúsculas. a metáfora seria um caminho para pensar maneiras de destituição de parâmetros habituais do regime hegemônico. outros futuros. transformações. mas, para minha contraditória surpresa, essa singela provocação formal também se deparou com desafios tecnológicos. claro. a insistência do corretor automático até estas últimas linhas permaneceram, lembrando e relembrando sua tentativa de padronizar meu texto. padronizar a vida.
diante disso, me alio à ideia de “não ceder à vontade de conservação das formas de existência” — defendida por Rolnik —, insisto mais que o corretor automático e deixo aqui outro breve exercício de criação.
Acordei descoberta, o corpo inteiro molhado de suor, o imã gigante me sugando junto com Erwin, o gato, pra dentro do buraco negro que, então, explode em milhões de caquinhos, uma gosma brilhante e transparente, o fim da ilusão. Meu coração batendo afoito ao som de mil betoneiras lá fora. Depois da covid-19, nunca mais a sensação de despertar renovada. Sonhos exaustivos envolvendo a limpeza de espaços imensos, enlameados e repletos de objetos sem utilidade, quebrados, eletrodomésticos ridículos, como uma máquina de fazer muffins, e eu me vendo de fora, narradora e protagonista, munida de pano, esfregão e produtos que prometem eliminar todo o lodo, de quatro no chão. Era no clímax, quase sempre catastrófico e que definia o clima emocional do dia, que eu acordava, sem fôlego, o ar condicionado esgoelando.
É provável que seja um efeito colateral passageiro, mas difícil dizer quanto tempo pode durar ou se vai perdurar, disseram vários médicos, sem constrangimento, já que um dos grandes legados da covid foi ajudar a expor o tamanho da nossa ignorância. Antes de deitar, me brindei com um pequeno coquetel de alprazolam, florais de Bach e três quartos da garrafa de um chardonnay razoável que encontrei na geladeira, mas nada mais parecia fazer efeito.
Procurei os meus óculos — outro legado da covid: a vista cansada, muito natural começar na sua idade. Claro, eu sei, respondi, com preguiça de explicar pra oftalmologista que minha visão era, até então, invejável, 20/10, a tal da acuidade visual de excelência, e depois de me recuperar da infecção pelo SARS-CoV-2 foi para 20/67, subnormal, péssima. Me ocorreu que só vi fotos da minha mãe usando óculos escuros, nunca de grau, e que minha mãe não chegou à minha idade. Tateei os objetos no criado mudo e paft, o estardalhaço do copo d’água contra o chão de tacos. Se eu acreditasse em presságios, diria que desastres maiores se anunciavam, mas a verdade é que o desastre já havia se instalado.
Cega como uma toupeira e sem muito senso olfativo. Unfit for living, dizia papai, em seus bons momentos, quando brindava o mundo com seu sorriso sedutor, quase infantil, e aquele sotaque britânico meio falso lapidado nos anos em Oxford. Meus melhores anos, ele gostava de repetir, e acrescentava: antes de conhecer sua mãe. Notei, preocupada, a ausência de Erwin, que costumava dormir no outro lado da cama. Revirei os travesseiros e encontrei os óculos debaixo de um; o celular, embaixo de outro Eram 3h47.
Grogue e chamando o gato por seus vários apelidos — bóson de Hggs, Schrödinger, papi, levantei, me arrastando, e coletei os caquinhos de vidro. Circulei pelo apartamento de quarenta e dois metros quadrados, racionalizando a situação. Erwin era um animal sensível, que tinha o hábito meio esotérico de sumir nas luas cheias. E eu, o de buscar, cambaleante, a reconstituição dos meus passos da noite anterior, stalker de mim mesma. Nenhum dos dois estava feliz na caixinha sem ar pra onde nos mudamos de última hora. Um relance da minha imagem no reflexo do armário revelou uma figura tragicômica, cabelos desgrenhados, os óculos sujos e o roupão branco felpudo manchado de Activia de frutas vermelhas.
Arranquei os óculos da cara para lavá-los na pia com detergente e, contra o piso cerâmico frio cor de âmbar, detectei uma mancha preta. Como num dos sonhos então recorrentes, o tempo desacelerou. Sentei sobre os joelhos, diante da mancha, inescapável. Enfiei os óculos sujos de volta na cara e, trêmula, vi, com todos os seus contornos, o gato, estatelado, os olhos verde-água muito abertos. E, assim, um par de lentes sujas selam o destino de Erwin, o gato. Antes superposto, uma probabilidade. Agora morto. O mundo quântico é bizarro, mas a realidade clássica é cruel.
Circundei o gato, confusa, até me deixar tombar pela gravidade e deitar ao seu lado no chão frio. Encostei minha orelha no seu peito peludo e as lágrimas desceram. Herr Schrödinger. Alisei suas patinhas, o pequeno rosto manchado de marrom chocolate molhado pelas lágrimas quentes. O interfone tocou, mas não me movi. Em alguns instantes, sabe-se lá quantos, o tempo suspenso, a campainha.
Me arrastei até a porta e, pelo olho mágico, vi Iandara, vestida em seu poncho de dormir. Do seu apartamentinho de zeladora, diretamente sobre o meu, ouvia-se tudo. Abri apenas uma fresta. Dona Stella, aconteceu alguma coisa?O gato, eu disse, sem conseguir articular o resto, aos soluços. Seu rosto quadrado e amassado de sono tensionou, e ela olhou sobre os meus ombros, talvez em busca de vestígios de um crime. É verdade que meu consumo de álcool havia aumentado bastante durante a pandemia, e muitas vezes me preocupei com o que Iandara pensava das muitas garrafas vazias no meu lixo reciclável. Suas expressões eram difíceis de interpretar. Ela disse que já voltava. Fechei a porta e, em alguns instantes, Iandara estava na minha cozinha com um lençol branco, no qual embalou Herr Schroedinger e, diante do meu desamparo, corroborado pelas manchas de iogurte rosa no roupão, ofereceu ajuda com o enterro. Eu, que sempre me gabei de conseguir lidar sozinha com as situações mais difíceis, que fui sozinha pra clínica quando não podia mais olhar na cara do Edu nem queria contar pra amiga nenhuma que a relação de seis anos seria abortada junto com um feto; que fui trabalhar normalmente no dia seguinte e combinei comigo mesma que não pensaria mais no assunto; que reconheci o corpo do meu pai, aos 21 anos, um dia antes da entrevista pro estágio, que eu tanto queria no colisor de partículas e pra onde fui alguns dias depois. Eu fui incapaz de me despedir de um gato.
Posso te oferecer um café? A água já está no fogo.
Mas, sem dizer palavra, Iandara saiu do apartamento, levando com ela o meu gato morto.
Trecho de Supernova, romance em progresso de Ananda Rubinstein.
Um ensaio sobre humanidade, monstro, literatura e fotografia
1. O nome do homem, o nome do outro
Gosto muito de contar a seguinte história. Uma escritora criou um monstro sem nome. Um monstro sem mãe e cuja figura paterna era um cientista cruel. O monstro sofreu muito, afinal, não poderia ser amado, justamente por ser monstruoso. Mas houve uma justiça humana no final: o público gostou tanto dele que, ao longo dos tempos, cometeu um deslize: nomeou o monstro e se esqueceu do cientista.
Essa é a história mais bonita sobre a popularidade de Frankenstein ou o Prometeu moderno, de Mary Shelley, cuja criatura sem nome recebeu o nome, no imaginário popular, de seu criador, Victor Frankenstein. Uso essa fábula sobre a recepção da obra de Shelley quando quero falar sobre Antropoceno, essa nova época estranha e sombria em que vivemos, na qual a ação humana mudou a própria geologia do planeta. Afinal, existe também um deslize quando se usa o termo “Antropoceno” — Eileen Crist, uma socióloga que se dedicou a estudar animalidades, alerta que o termo literalmente significa a “era dos homens”. Assim, se olhar bem, o público também cometeu suas justiças, ao nomear uma era monstruosa com nosso próprio nome. Inclusive, no radical Anthropos, ressoam também um abismo, um antro, um outro.
2. A história deve mudar
É quinta-feira. Mais uma tarde em que preparo aulas. O tema é o que andei trabalhando há alguns anos, literatura e emergência climática. Nos títulos, antes se usava a expressão “mudança climática”, mas isso caiu um pouco em desuso, pois parecia designar uma transformação sem a interferência humana. Houve depois a fase em que se passou a adotar “crise climática”, uma expressão também não muito feliz, pois poderia transmitir a ideia de situação passageira. Agora se usa “emergência climática”. Qual será nossa próxima etapa para nomear o que acontece ao redor do planeta?
Enquanto o café esfria ao meu lado e os céus de Brasília não se cansam de chover, escolho uma das minhas citações favoritas de Donna Haraway, a filósofa e cientista estadunidense, uma anciã. Minha apresentação em slides não fica tão bonita quanto a frase. Observando a tela escura, torço para que a citação transcenda as letras frias e toque algum pedaço de coração do outro lado:
“Pensar devemos; devemos pensar. Isso significa simplesmente que devemos mudar de história; a história deve mudar.”
Anoto mentalmente: não esquecer de mencionar que os grifos em itálico estão no original. Mas é no papel que escrevo minha cola: a primeira frase é um adágio de Virginia Woolf, repetido por Isabelle Stengers, que Donna Haraway me traz e eu trago até você. Pensar devemos.
Na aula da noite, pretendo comentar a força da literatura para transmitir os dados duros que outras ciências nos gritavam, mas não chegavam aos ouvidos mais profundos das mentes. Para chegar a estes precisamos passar primeiro pelo coração. É como diz minha amiga Gisele Mirabai: é preciso comover. E a arte tem um condão para tocar lugares inacessíveis a outras linguagens. Por isso, amamos a criatura e esquecemos o cientista.
Enquanto preparo a aula, não deixo de me sentir vazia com tantas notícias trágicas na palma da mão na tela do celular. Qual será a próxima catástrofe a rolar nas telas infinitas? As chuvas? A seca? Os furacões? A única certeza que existe sobre furacões é sua imprevisibilidade. Parece que isso poderia ser estendido às catástrofes de maneira geral, contudo, exercer a esperança é uma prática, em alguns dias, inglória.
Respiro, procuro ajustar bem os slides e ergo a coluna. Arrumo o queixo. Foi esse erguer a coluna que nos fez assim, Anthropos, outros.
3. Um achado de pesquisa
Fazer pesquisa também é criar laços profundos de amizade e receber presentes raros. Quem diria que um dos grandes presentes que recebi este ano seria um texto? Um achado de arquivo. Um colega estava procurando outras coisas numa pesquisa em jornais antigos, topou com um artigo e logo se lembrou de mim. Enviou por WhatsApp, direto da máquina do tempo.
Muita gente fala sobre o conceito de “Antropoceno”, que, apesar do pioneirismo dos dois cientistas que nomearam essa época nova da geologia, Eugene Stoermer e Paul Crutzen, no início do século XXI, já estava sendo cozinhado por outras pessoas. Por exemplo, ficou famoso o geólogo italiano Antonio Stoppani, que, em meados do século XIX, se referiu à força humana como forças telúricas.
Mas ninguém poderia imaginar que um brasileiro já estaria marinando esse conceito cem anos antes. Euclides da Cunha publicou, em 1900, uma crônica impressionante — ainda mais se se pensarmos que só agora os contornos do que seja a época antropocênica ficaram indiscutíveis. Com sua marca registrada de bigodes, rosto fino e anguloso, o então Euclydes (grafado assim, com y), nascido no município de Cantagalo, no Rio de Janeiro, parece ter acordado bem cedo para descrever com minúcia geológica esse novo tempo.
Na crônica, intitulada Fazedores de deserto, o autor reclama de como o clima do estado de São Paulo se alterou com as imensas plantações de café. Com observações que vão da física à meteorologia, ele mostra como os onipresentes cafezais impuseram uma mudança no território. Aliás, com um erro: o jornalista imputa erroneamente aos povos originários a culpa pela devastação por praticarem a coivara, algo que hoje se sabe benéfico à terra por sua escala, rotatividade e diversidade do plantio.
Quase descrevendo o próximo verão de 2025, o texto se inicia assim:
“É natural que todos os dias chegue do interior um telegrama alarmante denunciando o recrudescer do verão bravio que se aproxima.”
Mais adiante, depois de descrever a mudança do clima a partir da mudança da paisagem, ele anuncia com uma clareza mordaz:
“Porque há longos anos, com persistência que nos faltou para outro empreendimentos, nós mesmo a criamos. Temos sido um agente geológico nefasto, e um elemento de antagonismo terrivelmente bárbaro da própria natureza que nos rodeia.”
A ideia de geologia não pode passar despercebida. Incrível como Cunha, já tão cedo, percebia que a própria estrutura planetária estaria sendo alterada por essa ocupação e transformação desmedida de tudo.
Em outras obras, inclusive, é notável como ele abusa de metáforas geológicas. Em Os sertões, o autor compõe seu périplo a respeito das lutas sertanejas por uma racionalidade moderna a partir da seca e da inundação, a partir da vegetação e do horizonte, estando as pessoas imiscuídas à paisagem. Mesmo que seu olhar seja preconceituoso à nossa época e defensor dos ideais de “nação republicana” do período, Cunha talvez tenha conseguido traduzir uma paisagem que contém o humano. Uma barreira, uma rede, um invólucro. Não mais o outro, o meio que nos circunda, o meio ambiente.
Na literatura, algumas coisas ambíguas nos escapam. Sem querer ou sem conseguirmos resistir, surge uma paisagem que contém o humano, um todo, o um. Mas logo nos escapa.
4. O centro das coisas
Nas discussões ecológicas, um ponto que sempre me chama atenção é a noção de centro. Em uma célula, onde é o centro? Certamente onde ocorre a maior transformação. Num país, onde é o centro? Não será onde ocorre a maior transformação de algo em outro? Será que não são os lugares insuspeitos, as minas, as plantations, as plataformas de petróleo, os centros de tudo?
Outra ideia interessante é: o planeta é redondo. Assim, o centro está em todas as partes. Inclusive nesta página que você lê agora.
Quando Euclides desenha uma paisagem que contém pessoas, a paisagem não é mais acessória, é central. Uma das ideias bonitas para um futuro é descentralizar as pessoas, descentralizar o humano, fazer do homem vitruviano um brinquedinho esquecido numa caixa antiga. Talvez as pessoas fiquem mais calmas. Menos neuróticas e menos cheias de si. “De perto, de perto, todo mundo é normal”, diria minha amiga Vanessa Guedes. Respirarmos nossa própria insignificância faz bem. Expiramos nossos excessos e sentimentos excessivamente egoísticos. Rirmos de nós mesmos. Isso nos traria uma imensa liberdade. Talvez até poderíamos ser felizes.
5. Fotografar o Antropoceno
Um dos gestos mais contemporâneos é fotografar casualmente. Houve um salto dessa tecnologia da experiência de Louis Daguerre até hoje. Agora o mundo parece inimaginável sem a lente, sem a tela, sem a reprodução fidedigna, que parece estranhamente falha em nos devolver o mundo.
Lendo um artigo O olho do Antropoceno, de Ana Maria Mauad e Marcos de Brum Lopes, sobre fotografia, não deixo de descobrir algo que os autores apontam — a representação da escala da catástrofe ecológica:
“As fotografias de ‘Little Boy’ e de ‘Fatman’, os nomes dados às duas bombas que destruíram, respectivamente, Hiroshima e Nagasaki no ano de 1945, durante a Segunda Guerra Mundial, podem ser vistas como portais para um outro tempo.”
A foto que não consigo publicar aqui não retrata somente a catástrofe. Ela marca uma cronologia. Uma imagem é um tempo. Outro. Diferente do vivido.
Como olhar para um tempo? Seria a fotografia potente o suficiente para olharmos uma época? Como acompanhar essa capacidade estranha de transformar o mundo num antro próprio, num outro? Ao mesmo tempo, a fotografia também não faz parte da natureza? Anoto essas perguntas bobas num bloco de notas eletrônico.
6. O hábito da esperança
Termino de preparar a aula e há um raio de sol tímido nas calçadas. As árvores estão vestidas de rendas de gotas transparentes. Minha vista está mais cansada, mas a cabeça voa. Abro o celular num gesto mudano e faço as imagens deslizarem sob meus dedos. Deveria aproveitar o final de tarde deslumbrante, mas alguma notícia besta captura a minha atenção. A sombra da monumentalidade antropocênica me impede de ser outra.
E no centro desse movimento, de abrir o celular e negar a tarde lá fora (ao mesmo tempo, a tarde também está contida no aparelho em minhas mãos), tento cultivar o hábito da esperança. Procuro levantar a cabeça, na postura que gostamos tanto, na famosa insignificância da espécie. Com vontade, procuro rir de mim mesma.
“Sou bravo, sou forte/Sou filho do Norte” — Gonçalves Dias (1823–1864)
O poeta maranhense Gonçalves Dias colocou as palavras transcritas acima na boca de um guerreiro tupi, em sua famosa obra I-Juca Pirama. Mas bem poderia ter sido na boca de um seguidor de Antônio Conselheiro durante a Guerra de Canudos, de um dos cerca de vinte mil sertanejos que surpreendentemente resistiram às investidas do exército nacional antes de serem mortos e de o povoado ser queimado. Esta guerra, ocorrida nos primeiros anos após a Proclamação da República, pode ser lida como um choque entre o Norte brasileiro, atrasado, rural, religioso, e um Sul que se via como urbano, moderno e cosmopolita e que não toleraria uma “ameaça” como a representada pelos “conselheiristas”.
“Que outros elementos influenciam no fortalecimento de uma identidade nacional? A seleção? As novelas da Globo? A música? Os atletas olímpicos?”
Esse conflito entre Norte e Sul (que grosso modo seriam as regiões Norte e Nordeste em oposição às regiões Sul e Sudeste) teve outros momentos de tensão ao longo da história do Brasil. E, infelizmente, alguns habitantes do Sul continuam achando que a solução mais fácil seria se livrar do pessoal lá de cima. Claro, não sugerem que haja uma guerra ou nada assim, mas toda vez que os resultados de uma eleição aparentemente mostram que as preferências políticas dos nortistas são muito diferentes das dos sulistas, surgem as mesmas vozes de sempre bradando dos seus altares virtuais: “Por que eles não se separam logo do Brasil?!”.
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Normalmente eu não tenho paciência para responder a esses questionamentos xenofóbicos, mas, em homenagem ao meu colega jornalista Euclides da Cunha, eu vou sugerir duas linhas de raciocínio (uma técnica e outra afetiva) para rebater meus interlocutores arianos. (A quem interessar possa, eu tenho um quarto de sangue nortista, de origem potiguar.)
Meu primeiro argumento é um contra-argumento: o Brasil não é os Estados Unidos. Apesar de, por motivos de mau jornalismo, vários sites insistirem, em toda apuração de eleição presidencial, na divisão do mapa brasileiro em estados vermelhos e estados azuis, nós não vivemos num país bipartidário e com colégio eleitoral. Nos EUA, pode até fazer sentido falar em “blue states” e “red states”, já que o partido que ganha em cada estado leva todos os votos daquela unidade federativa referentes à proporção definida pelo colégio eleitoral. Mas isso faz com que eleitores em estados onde a vitória de um dos partidos já é tida como certa sintam que nem vale a pena ir votar, ainda mais que o voto não é obrigatório por lá.
Aqui, cada voto é individual e conta para o resultado total de votos de cada candidato a presidente. Um voto de um eleitor no Rio de Janeiro tem o mesmo valor de um voto de um eleitor em Pernambuco. Lá, um voto de um eleitor na Califórnia ou no Texas, onde o vencedor já é previsível, “vale menos” do que o voto de um eleitor na Pensilvânia e nos outros chamados “swing states”, em que tanto os republicanos (vermelho) como os democratas (azul) têm chance de ganhar. Aqui não é assim! Por isso, não faz sentido pintar os estados de vermelho e azul. Esses mapinhas imitando os americanos só servem para fortalecer esse discurso xenofóbico de que “lá no Nordeste não sabem votar”. Não é à toa que, na última eleição presidencial, a Polícia Rodoviária Federal tentou prevenir que esses eleitores tentassem executar algo para o qual não estavam capacitados…
O fato é que, no Brasil, não importa quem ganhou em cada estado, e sim quem ganhou no total. Cada voto é único. Cada brasileiro conta, seja do Sul ou do Norte. Na eleição de 2022, Lula venceu Bolsonaro por pouco mais de dois milhões de votos. O que isso significa? Na Bahia, por exemplo, Lula ganhou com cerca de 70% dos votos. Se tivesse ganhado com menos de 60%, mesmo Lula tendo ganhado na Bahia, Bolsonaro teria sido eleito. A mesma análise vale para o Sul. Em Santa Catarina, Bolsonaro teve cerca de 70% dos votos. Se ele tivesse tido essa mesma proporção no Rio Grande do Sul e no Paraná, teria sido eleito.
Daqui tiramos duas conclusões. A primeira é que o sistema eleitoral brasileiro é muito mais democrático do que o americano. Aqui, cada voto será relevante em uma eleição, não importa o estado em que você more. Em 2022, um eleitor do Lula em Santa Catarina tinha tanta importância quanto um eleitor do Lula em Pernambuco. Da mesma forma, um eleitor do Bolsonaro em São Paulo tinha tanto valor quanto um eleitor do Bolsonaro na Paraíba. A segunda conclusão deriva dessa: não podemos considerar os estados onde o Lula ganhou como sendo “vermelhos” e os estados onde o Bolsonaro ganhou como “azuis” (inclusive porque, se um americano vir esse mapa, não vai entender nada, dado que lá o partido republicano é que é o vermelho). Em cada estado, ainda que 70%, em casos extremos, possam optar por um dos candidatos, ainda existem 30% que preferem a outra alternativa! E, dentro dos estados, cada município também segue a mesma lógica. E em um estado pode haver grande diferença entre municípios. Em 2022, por exemplo, Bolsonaro ganhou na maioria dos municípios do estado de São Paulo, mas Lula ganhou na maioria dos municípios da região metropolitana da capital. E dentro dos municípios, a lógica continua, se compararmos diferentes bairros…
Não faz sentido querer dividir o país em cores distintas! Nós, brasileiros, não somos vermelhos ou azuis, nós somos todos verdes e amarelos.
Vamos fazer um teste de brasilidade. Você se emociona ao ouvir aquele poema que começa assim?
Minha terra tem palmeiras Onde canta o Sabiá; As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá.
Se você se emocionou, você com certeza é brasileiro! Aí que entra minha segunda linha de raciocínio — mais afetiva — para responder ao pessoal que indaga por que o Norte/Nordeste não se separa do Brasil. Simplesmente porque, sem eles, não existe Brasil. Você deve ter aprendido na quinta série que a estrofe acima é a primeira do poema Canção do exílio, de Gonçalves Dias — sim, o mesmo poeta romântico maranhense com o qual comecei o texto. O que talvez nem todos saibam é que um trecho desse mesmo poema é citado, entre aspas!, no hino nacional brasileiro.
“‘Nossos bosques têm mais vida’, ‘Nossa vida’ no teu seio ‘mais amores.’”
Ou seja, dois elementos tão importantes para a identidade brasileira, a Canção do exílio” e um trecho belíssimo do nosso hino, não existiriam sem nosso querido bardo nortista. E, em um país com poucas guerras no currículo, sendo que a de Canudos foi uma das últimas (e, ainda que sangrenta, foi breve e localizada), que outros elementos influenciam no fortalecimento de uma identidade nacional? A seleção? As novelas da Globo? A música? Os atletas olímpicos?
O que seria da Seleção de futebol sem Zagallo, Bebeto ou Rivaldo? Sem falar na rainha Marta! O que seriam das novelas marcantes para a cultura nacional sem Dias Gomes, José Wilker, Aguinaldo Silva? O que seria da grande família brasileira sem Marco Nanini? Do nosso humor popular sem Chico Anysio e Didi Mocó? Da nossa música sem João Gilberto, Caetano, Gil? Da nossa esperança olímpica sem Ítalo Ferreira, Isaquias Queiroz, Rayssa Leal?
Por caminhos tortuosos e muitas vezes violentos, nos tornamos esse Brasil que está aí. Para o bem e para o mal, somos 215 milhões de brasileiros que escutam cantar o Sabiá. Alguns lugares sofrem com secas, outros com enchentes. Agora não dá mais para se separar. Ainda dá tempo de se ajudar. Temos que aprender a conviver com nossas diferenças — e valorizar o que temos em comum. A começar pelo verde e amarelo.
Em casa, Dona Brasilina lhe entregou o prato de pastéis com couve, um pedaço de carne de bode seca, e saiu para pendurar as roupas. Eles não se falavam mais. Antonio ouvira dizer que ela tinha se engraçado com alguém e, certa vez, quando ele a chamou para lhe fazer carícias, ela negou o fogo, dizendo: “Um dia vou embora, vou com quem pode me dar uma vida melhor. A gente parece passarinho, Antonio, migrando de um lado pro outro”.
O coração de Antonio batia agoniado. Ele tinha vocação para a batina, gostava de orar e de servir às gentes, contar as histórias de Jesus, mas, com a morte do pai, teve que deixar os estudos de latim e assumir os negócios.
Perdeu tudo.
Foi assim que ele e Brasilina começaram a se mudar, de fazenda em fazenda, onde Antonio conseguia trabalho como mestre de primeiras letras.
Um dia, quando trabalhava numa fazenda perto de Santa Quitéria, Antonio montou o burro para ir à cidade e viu, sozinho, no meio da caatinga, um casebre quase encantado. Era vermelho, e tão bem cuidado que parecia saído de uma história. Na varanda, viu uma moça com uma flor branca no cabelo, de vestido amarelo, no meio de estátuas de santos e santas.
Ele parou o burro. Desacreditado, ficou contemplando.
Ela tinha nas mãos contas brilhantes como diamantes e as usava para completar as esculturas. As mais lindas que Antonio já tinha visto.
“O senhor tá perdido?”
Antonio ficou desconcertado e, como a moça lhe pegou no susto, disse que sim, que queria ir para Tamboril e tinha esquecido a direção. “O sol tá forte na cabeça”, explicou, e, levando o chapéu ao peito, disse: “Num me apresentei. Antonio Maciel”.
“Joana Imaginária” ela disse, e, de soslaio, mirou os grandes olhos verdes nos miúdos olhos negros dele. “Tamboril é pra lá.”
Antonio reparou que ela não tinha dois dos dentes da frente. Pôs de volta o chapéu na cabeça. Ia agradecer e ir embora, mas pensou que queria elogiar as figuras de argila.
“A senhora é a artista?”
“Sou. Vendo pra igreja, pras lojas, também pras casas. Quer levar uma?”
Joana apoiou a caixa de contas na mureta da varanda e foi virando as esculturas para Antonio ver.
“Eu bem que queria, Joana. Joana Imaginária. Nome bonito esse. É de batismo?”
“Não, é só porque eu imagino muito. Imagino todos os santos e vejo eles direitinho. Aí me chamaram de Imaginária e ficou.”
“Quanto é a Nossa Senhora?”
“A Aparecida? 200 réis.”
Joana pegou a estátua.
Brasilina até que podia gostar, mas ia querer saber de onde veio, quanto custou e por que comprou. Ele bem sabia que ela tava preocupada em ter uma vida mais confortável e que aquela santa ia ser para ela um cacareco que eles não precisavam ter. Ele até imaginou: já temos duas Nossas Senhoras e cê trouxe mais uma? E desse tamanho, ainda por cima?
As estátuas de Joana Imaginária eram do tamanho de crianças.
“Um dia eu vou comprar todas as estátuas da senhora, quando eu realizar meu sonho de construir mais igrejas no sertão. Infelizmente hoje num posso levar, não. Minha mulé não vai apreciar eu trazer um presente dessa grandeza.”
“Mas se é bonito, uai, não entendo… Ela num reza?” Interessada na resposta, Joana se sentou na muretinha, ao lado da caixa de contas, para ouvir Antonio.
“E como reza, mas reza pra ficar rica, pra ter outro homem.”
Ele se ajeitou em cima do burro.
“Ave Maria”, disse Joana, e fez o sinal da cruz.
Então o silêncio interviu. A artista levantou e começou a colocar as continhas de falso diamante na estátua de São João.
Antonio já podia esporear o burro, mas o animal parecia que queria ficar.
“E a senhora, reza?”
Quando Antonio se deu conta de que aquela era uma pergunta tola, pois é claro que Joana rezava, já tinha perguntado.
Ela não se ofendeu. Sorriu. Disse: “Até quando eu tô sonhando”.
Antonio pensou que se ela esculpisse a própria imagem, ele ia querer comprar uma.
“E marido, num tem?”
“Pra quê? Num tenho e nunca vou querer ter.”
O coração do cavaleiro acelerou. Fazia tempo que seu coração não fazia isso, de o deixar quente, transtornado.
“Vixe. Mulé valente.”
“E dá pra num ser, nesse vasto sertão? O senhor é professor?”
“Como você sabe?”
A bolsa, que o mestre-escola carregava cruzada no peito, estava aberta, os livros caindo para fora.
“Eu num sei ler, você podia me ensinar.”
Antônio ficou sem ar. Tirou de novo o chapéu.
“Vai ser uma honra, dona Imaginária.”
“Eu te faço uma santa pra cada igreja que construir.”
“Eu te dou minha palavra: volto pra te ensinar a ler a Escritura.”
Com o acordo feito, se despediram.
O burro gemeu quando foi esporeado, e cavalgou o caminho que sabia de cor e salteado. Olhando o céu e os passarinhos, de cima do burrinho, Antonio cantava. No seu pensamento estava Imaginária e as estátuas brilhantes de Nossa Senhora Aparecida, de São Sebastião, de Cosme e Damião, e do Anjo Gabriel.
quando era pequeno, conversava com um ponto localizado dentro de sua cabeça. era um ponto final. desses que se faz com grafite no papel. lembra especificamente de um momento em que essa conversa aconteceu. um momento que poderia ser muitos, condensados num só local: a última curva da estrada sinuosa que levava à sua casa. conversava com seu ponto ali, onde passava todos os dias, sentado no banco de trás do carro, o trânsito engarrafado, a rua era estreita e o sinal demorado. o ponto era como um amigo. já adulto, contou essa história para uma senhora espalhafatosa na aula de dança. ela lhe disse que com ela também havia se passado algo parecido, mas, no lugar do ponto, ela tinha um rubi no meio do peito. cada um com a figura que merece, pensou; o ponto de grafite parecia combinar mais com sua personalidade franciscana. passados outros anos, ele contou a mesma história a uma amiga. ela lhe perguntou: “você percebeu que esse ponto é o seu supereu? é um ponto final. como esses que os pais dizem para os filhos: ‘não, e ponto final!’, tipo ‘papo encerrado’”. ele lembrou também que os apresentadores de televisão têm “um ponto”, que é a voz do diretor entrando em sua cabeça. fez sentido para ele a observação da amiga. contudo, nunca havia pensado no seu ponto como uma autoridade, muito menos do tipo que diz “não”. ao contrário, conversava sem censuras com o ponto sobre tudo. mas, sim, parecia mesmo ser o supereu freudiano, só que sem subir o tom. era um ponto gentil. o menino negociava com ele sobre o que se podia ou não fazer. o ponto sinalizava: “isso não pode”. o menino respondia: “mas por que não, se não fará mal a ninguém?”. “talvez vá pegar mal pra você”, argumentava o ponto. “mas deixarei de fazer o que tenho vontade de fazer, mesmo que não faça mal a ninguém, porque vai pegar mal?” entre ele e o ponto, muita diplomacia. já adulto, entendeu que podia, mesmo quando proibidas, fazer as coisas a seu modo. não alardeava, porém, a transgressão. inclusive, queria mesmo que não houvesse, nesses casos, proibição alguma. não entendia a frase “proibido é mais gostoso”. queria mesmo era restaurar o jardim após a queda: o reino; o tempo da inocência — desimpedida, erótica, fluida. sem o estigma do mal.
*
o ato recolocava o ponto. sua perversão era mansa. a vivia com lassidão. como uma criança, invertia os sinais. o bem do mal: o pomo. ficou lúcido como um louco. amoral. soberano de seu reino, tornou-se um monstro. era pequeno e grande. procurou seus iguais e os encontrou. aqui e ali gozou com eles. não parou, entretanto, de conversar consigo. não havia mais ponto. pontos marcavam o pulso de seu corpo, ritmo que só estancará quando desaparecer de todo. ressonará ainda a lufada de ar quente, gritada, como cristo na cruz, que não guardou ar dentro de si quando morreu. assim, morreu muitas vezes, urrando. o mesmo estrondo de quando irrompeu nu do abismo pré-natal. invertia os sinais. não sabia mais o que era dor e o que era prazer. tudo revirava dentro dele. mas, ainda que não conseguisse falar das coisas como sempre as havia entendido, estava são. ia se tornando, aos olhos dos outros, um adorável, dócil idiota. enterrava os pés no chão. se perdia as palavras não significavam mais nada. som, matéria, cordas vibrando cabeça boca adentro. corria o risco de desaparecer e reaparecer 3,5 bilhões de anos antes naquele líquido sem céu, peixe minúsculo balançando o rabinho na brancura espessa. sem linha do oriente. onde tinham ido parar o homem e seu ponto?
*
viu uma bela mulher no monte. senhora, sentada debaixo da copa larga de uma árvore milenar. do alto, ela olhava longe a paisagem. tomada por uma saciedade sexual, não como a de depois do sexo, mas como a de certa vez, quando penetrou a mulher que amava com movimentos mínimos e sentiu sua buceta morna e molhada pulsando e comprimindo seu pau, inchado de sangue, tremendo, na iminência do gozo que não vinha. o claro instante do prazer. não havia repouso, só o cristal do êxtase como máscara em sua cara farta. foi também nesse momento — imagina-se — que ele se tornou a mulher monumental que antônio sobral viu cantando canções de amor no palco daquela espelunca em botafogo. segundo me disse, vestia vermelho resplandecente.
*
hoje, quando acordei, não consegui me levantar. meu corpo pesava 700 quilos em queda livre quando se chocou com a terra. atraído pro seu centro, pela primeira vez carreguei o peso dele. meu tronco é grande. é preciso muita força pra levantá-lo. as pernas doem. quero logo parar. com a bochecha colada no chão, a cabeça é minha parte mais pesada. erguê-la pelo pescoço é muito sem jeito. diferente do apoio das panturrilhas e dos calcanhares, que fazem alavanca pro corpo. além disso, a cabeça lateja dentro, variando o peso no ar — multiplicado pela aceleração da gravidade —, dificultando a manobra. assim, é difícil mantê-la erguida e firme. mas aos poucos os músculos vão ficando fortes e se mover se torna leve, muito leve. tenho a sensação de que estou voando. só eu. mas sinto que a qualquer momento posso cair e ter de recomeçar tudo de novo, uma dor dos séculos. aconteceu comigo uma vez. no meio do caminho, eu caí. de novo, me levantei. minhas asas eram pequenas, batiam ligeiras e afobadas pra ninguém me comer. asas de anjo, anjo caído, que sabe pousar no corpo macio do homem, da mulher — mais leves que o ar.
Dia desses, na modorra da sesta vadia na praia de Itamambuca, pensei ter protagonizado um instante que mudaria o curso da história humana — ainda que deitado na rede da varanda de casa. Desculpe nisso a imensurável prepotência, amigo leitor, mas sou carioca e programações mentais se impõem, sabe como é. É que achei ter testemunhado um gato, deitado ao muro em expediente similar ao meu, contemplando a beleza de uma flor, apenas pelo ato de contemplar. Daí que não faz muito tempo, pensei, uma maçã caiu na cabeça de um sujeito e aqui estamos, três séculos e meio depois, em desfrute do mapa das leis que regem a natureza, facilitando a construção de nossa sempre inédita prosperidade.
“Viver imerso em desafios de vida e enfrentá-los, portanto, é uma dieta saudável ao cérebro”
Ocorre que, ao que se sabe cientificamente, a contemplação da beleza de uma flor ou qualquer outro elemento da natureza, como um ato puramente estético — “apenas por contemplar” – é algo que estaria restrito aos humanos. Não há evidências claras de que outros animais tenham a capacidade de apreciar a beleza visual da maneira que fazemos, isto é, de forma desinteressada e sem um propósito funcional, como a busca por alimento ou parceiro reprodutivo. Lamento por eles, sendo este o caso. Embora não seja exatamente essa a razão de nossa prevalência cênica no planeta, ainda assim é, literalmente, a parte mais bela da vida humana; e diria que a mais honrosa, num exame mais artístico da biologia.
No fantástico livro Uma nova terra, Eckhart Tolle começa sua explicação espiritual exaltando a beleza estética das flores como um portal para a iluminação. As primeiras delas, manifestos aleatórios de uma forma de vida que ainda tentava emplacar, despontaram em terras hostis como lampejos frágeis, em meio à aridez do mundo. Como rebeldes silenciosas, suas pétalas se abriram ao sol inclemente, sem garantias de permanência, sem promessas de multiplicação. O milagre de sua existência parecia, a princípio, um evento efêmero, perdido entre as forças brutais da natureza. Ainda assim, floresceram. A beleza das flores não é apenas visual, mas existencial, pois representa o triunfo da vida sobre a dureza, a transformação do ambiente adverso em algo que colore, perfuma e impõe nova estética ao planeta.
Nesse sentido, não seria esticar demais o argumento reconhecermos a mesma beleza, intrinsecamente, na existência de outras espécies e manifestações de vida, sobretudo nossa própria. E nesse fio, por sua vez, quem mais seriam rebeldes silenciosos sob a inclemência do sol, manifestos da resiliência da vida perdida florescente entre forças brutais da natureza, senão povos como o do sertão brasileiro? É provável que Tolle jamais tenha lido Os sertões, de Euclides da Cunha, mas suas flores estão lá, manifestas pelos olhos daquele homem, já que beleza não faz parte da física engendrada pelo sujeito da maçã (dos três séculos e meio atrás), e sim da quântica, se está nos olhos de quem vê.
Se é verdade — e é — que a romantização da miséria humana alimenta consequências perversas, devemos ainda assim reconhecer que a vida revela sua verdadeira essência no ato contínuo da luta por sobrevivência. A própria flor, em sua breve existência, não vive para ser contemplada, mas, ao resistir e florir, se torna o que há de mais contemplativo no mundo. Nenhuma aspereza em sua luta apaga sua beleza. Ao contrário, a sublinha. Por isso a redundância sentimental de seres humanos modernos, não os do sertão, mas de abundantes metrópoles, que sentem suas vidas como carentes de essência.
Sobre isso, entre tantas descobertas da neurociência moderna, nenhuma parece a mim, pobre homem leigo, mais sugestiva que a descoberta do córtex cingulado anterior médio e seu comportamento, de acordo com recentes, mas abundantes dados de estudos feitos em nós, humanos. Ao que parece, essa pequena área cerebral está completamente envolvida no processamento de emoções, regulando nossas respostas em situações que envolvem conflitos, dores ou dilemas, aquilo que chamamos de inteligência emocional. Ocorre que — e os estudos o mostram —, ela é também uma área que cresce quando fazemos coisas que não gostamos, mas precisamos fazer, isto é, tarefas que exigem força de vontade; e encolhe quando empacamos em zonas de conforto.
Assim, repara-se que esse espaço cerebral é notadamente maior em atletas e obstinados, e maior ainda naqueles que percebem a si mesmos como superadores constantes de obstáculos da vida. Seu tamanho parece também estar associado à longevidade, e alguns cientistas chegam a chamá-la não somente de músculo da força de vontade, mas o da vontade de viver e acontecer. Como outros músculos, não custa repetir, seu tamanho é modelável de acordo com o comprometimento real do indivíduo, não é uma questão totalmente fatalista, de fardo da natureza.
Viver imerso em desafios de vida e enfrentá-los, portanto, é uma dieta saudável ao cérebro. Mais que saudável, parece imperativa ao nosso sucesso emocional. Talvez seja essa a descoberta que fecha o circuito de tantas dúvidas existenciais do homem, ou ao menos daqueles que, como eu, têm o privilégio do tempo e da segurança física para tanto. Até mesmo a máxima de que liberdade é fazer aquilo que não queremos, algo que Immanuel Kant não exatamente escreveu, mas é facilmente interpretável através de sua obra sobre filosofia moral, parece a tradução literal dessa descoberta científica. Nesse sentido, tanto é admirável o homem do sertão, alheio a tal debate exatamente por já ser sua conclusão, quanto seu retrato, traçado na referida obra literária brasileira, encaixa-se perfeitamente a todos nós, humanos de toda e qualquer parte de nossa pequena vila, o planeta Terra.
“Não por acaso, grandes obras literárias são sempre jornadas ao interior do homem”
Em Os sertões, afinal, a jornada pelo deserto brasileiro não é uma exploração geológica, mas sociocultural e histórica. O sertão euclidiano, um terreno inóspito e árido, é, ao mesmo tempo, fidedigno à realidade física e um espaço metafórico ao leitor, tão desafiador quanto solos fictícios de outras leituras consagradas, como na Viagem ao centro da Terra, de Júlio Verne. Ao descrever o conflito de Canudos, Euclides sugere que a verdadeira batalha ocorre dentro do homem, em sua tentativa de compreender e sobreviver à brutalidade do ambiente. O sertão, para ele, é tanto realidade física quanto alusão à resistência interna de nós contra nós mesmos, da luta por identidade e sobrevivência.
No clássico fantástico de Verne, analogamente, o protagonista Axel e seu tio embarcam em uma expedição geológica para desbravar o desconhecido mundo subterrâneo. À medida que descem pelas profundezas do solo, enfrentam desafios que exigem coragem, raciocínio e superação de medos. Ao confrontar o abismo físico, simbolicamente, Axel encara o abismo de suas próprias limitações:
“Devo confessar que esta viagem ao centro da Terra produziu em mim um efeito profundo. Fiquei diferente do que era antes. Minha vida interior ganhou uma nova direção; fui levado a reflexões profundas e a uma serenidade de espírito que eu não possuía antes da expedição.”
Por essas e outras, não por acaso, grandes obras literárias são sempre jornadas ao interior do homem. Assim, acima de tudo, é fundamental o esforço de mergulharmos na literatura como uma experiência, algo que certamente impacta nosso desenvolvimento emocional, e não como informação, algo que, por definição, não constrói aquilo do que somos feitos.
Mas de todas as jornadas existenciais em que a humanidade anda envolvida no mundo real, atualmente, nenhuma é mais fascinante do que a corrida espacial moderna. Não sei o amigo leitor, mas considero sacrilégio intelectual a resistência do cidadão comum, sempre aquiescido como alienado, a acompanhar a abundante e fenomenal quantidade de façanhas, imagens e degraus conquistados, numa nascente nova era de Grandes Navegações rumo ao desconhecido. Se os sertões por aqui são inóspitos, o que dizer daquilo que já vimos em Marte, nosso vizinho mais próximo? Ainda assim, planos de ocupá-lo seguem em construção metódica, provando que nada é mais valioso neste universo do que a inteligência.
Neste ponto, aliás, por enquanto tudo também corrobora a constatação de que estamos sozinhos nas redondezas. É engraçado como a ideia do homem sozinho no espaço ofende a virtude fabricada pelo próprio homem, que atribui tais evidências à pouca base de dados e intui tal hipótese como inconcebível, suposto ápice de nossa arrogância. Acontece que as leis da física e da química não se subjugam à moralidade humana, única que obedece a noções como arrogância ou humildade.
Fosse a Terra apenas três graus mais quente ou mais fria (já foi e voltará a ser), não estaríamos aqui, neste instante, no qual em apenas duzentos anos passamos da descoberta da eletricidade para o lançamento de foguetes, robôs andarilhos em Marte e envio de missão a uma lua de Júpiter. A este ritmo, onde estaremos daqui irrisórios mil anos? Melhor, onde estariam criaturas vizinhas a nós, a “apenas” dez mil ou um milhão de anos (nada) à nossa frente, em matéria de inteligência?
Talvez seja mais correto pensar no universo como instantes, e menos como espaços ocupados. Talvez as imagens do robô Opportunity, em Marte, revelem algo análogo à Terra de ontem ou de amanhã, ou ambas, quando o instante não é o propício. Fato é que hoje, enquanto nosso sistema solar parece um sertão sem fim, nossa Terra é a única flor. Como escreveu Tolle, a primeira flor provavelmente não durou muito tempo. Nem a segunda.
Enquanto isso, o homem do sertão, nas palavras de Euclides da Cunha, “é um desbravador de si mesmo, cavando com as mãos nuas a própria resistência, mas sentindo sempre a vulnerabilidade da carne”.
Já a beleza em si, ainda que perecível, é, por outro lado, magnânima. E transforma o filme da sobrevivência numa obra de arte, impecável em sua estética. Sim, o gato em meu muro a vê, mas não é por ela gratuitamente emocionado.
Sobre uma eventual sensibilidade estética de outros mais, galáxia afora, provavelmente não saberemos em vida. Ainda estamos em fase anterior, atrás de água, tal como homens do sertão.
Não surpreende que, ao celebrar seus quinze anos de vida, a Amarello nos instigue a pensar na ideia de identidade.
Enquanto processos de formação de identidade duram uma vida toda, é justamente entre os doze e os dezoito anos que um indivíduo se depara com a grande tarefa de (começar a) descobrir quem é. Segundo a teoria do desenvolvimento psicossocial de Erik Erikson, psicólogo e psicanalista germano-americano, cada estágio da vida apresenta um dilema específico, que precisa ser elaborado para um crescimento saudável de personalidade em direção a uma vida plena. Na adolescência, a crise é do conflito entre identidade e confusão de papéis. Em seu livro O ciclo de vida completo, Eriskon argumenta que, nessa fase, a experimentação de papéis é essencial para que padrões básicos de identidade comecem a emergir — tipicamente a partir (1) da afirmação e rejeição seletiva das identificações de infância de um indivíduo; e (2) da forma como o processo social da época identifica os jovens — idealmente reconhecendo-os como pessoas que precisaram se tornar quem são e, sendo quem são, podem ser confiáveis”. A crise, então, é sobre integrar, de maneira minimamente coerente, as diversas expectativas e experimentações a uma concepção de “eu” que minimiza a sensação de confusão e insegurança em relação a um lugar no mundo (e os processos sociais têm papel gigante nisso). Nesse sentido, um senso de identidade mais sólido ajuda o indivíduo a encarar os desafios da vida adulta com mais segurança.
Poderíamos falar aqui da identidade da própria revista, mas, apesar dos seus quinze anos adolescentes, os tempos das revistas parecem ser diferentes dos tempos dos humanos. Uma publicação que nasceu como mudança, passou por renascimento e discorreu, no caminho, sobre futuros ancestrais e imaginação radical já parece ter construído um senso de identidade suficientemente coerente para seguir adiante, mais amadurecida. Um breve passeio pelas cinquenta edições revela a riqueza de temas que abarcam transformações, territórios, subjetividades, heranças e — claro — cultura.
Para uma revista de “cultura em brasileiro”, o convite para esse diálogo sobre identidade gira, então, em torno de uma ideia de identidade nacional brasileira. Nesse contexto, talvez a crise da confusão de papéis nos ajude a compreender melhor essas nuances. Estamos, brasileiros, confusos?
Vamos começar pela ideia de identidade nacional brasileira, uma expressão que já carrega múltiplas camadas e diversos significados. A própria noção de “nação brasileira” traz em si uma contradição latente, uma incompatibilidade intrínseca — um problema de sufixo, como explicou Antônio Houaiss a Leilane Neubarth: “O sufixo de nação é ‘ano’ ou ‘ês’. Vamos lá: americano, australiano, italiano, africano, mexicano… Ou francês, português, inglês, japonês. O sufixo ‘eiro’ é de profissão: padeiro, carpinteiro, jardineiro, pedreiro”. Neubarth relata esse diálogo eu seu artigo Brasiliana, e arremata: “Milhões ao longo dos séculos usando o Brasil como profissão em vez de trabalhar para ele, por ele, pelo nosso povo, pela nossa nação”.
Para (começar a) elaborar a crise da confusão de papéis, um primeiro passo talvez seja abraçar esse sentimento de nação. Convocar palavras germinantes, como diria Nego Bispo em A terra dar, a terra quer: “Vamos pegar as palavras do inimigo que estão potentes e vamos enfraquecê-las. E vamos pegar as nossas palavras que estão enfraquecidas e vamos potencializá-las”. Sejamos, pois, brasilianos.
Pensando ainda na ideia de identidade nacional, O caráter nacional brasileiro, de Dante Moreira Leite, faz um profundo apanhado das raízes deste, com uma análise densa que põe em diálogo os campos da psicologia, antropologia, sociologia e literatura. Em sua epígrafe, Leite já convoca Guimarães Rosa — “Existir é homem humano” —, remetendo à complexidade da tarefa identitária. O que pode dar conta da humanidade? E é sobre isso que a obra discorre, sobre as contradições e a precariedade de teorias e ideologias de caráter nacional que acabam por revelar, explícita ou disfarçadamente, formas diversas de preconceito. O livro percorre historicamente as várias fases das ideologias: a fase colonial, desde a carta de Pero Vaz de Caminha; o romantismo do século XIX, com a independência e a formação de uma imagem positiva do brasileiro; as ciências sociais e a imagem pessimista do brasileiro; e o desenvolvimento econômico da década de 1950 e a superação da ideologia do caráter nacional brasileiro. “As ideologias do caráter nacional brasileiro frequentemente representam, portanto, não uma autêntica tomada de consciência de um povo, mas apenas um obstáculo no processo pelo qual uma nação surge entre as outras, ou pelo qual um povo livre surge na história”, defende Leite.
Essa provocação nos faz repensar a noção de “uma” identidade. Há uma coerência mínima que nos dê segurança para encarar os desafios da vida? Lembro-me de um artigo de Contardo Calligaris (A coerência é um valor moral?) em que ele invoca justamente o dilema — em oposição à coerência — como forma de lidar com a realidade e com os outros: “Para o indivíduo moral, que se orienta (e desorienta) por dilemas, a coerência não é uma virtude, ao contrário, é uma fuga (um tanto covarde) da complexidade concreta. Oscar Wilde, que é um grande fustigador de nossas falsas certezas morais, disse que ‘a coerência é o último refúgio de quem tem pouca fantasia’ e, eu acrescentaria, de quem tem pouca coragem”. Uma boa noção de identidade parece abranger uma vastidão de caminhos que, ainda que aparentemente não congruentes, nos oferecem um senso de pertencimento e orientação no mundo. Mas para isso será preciso imaginação e coragem? Como escreveu Walt Whitman: “Eu me contradigo? / Pois bem, então me contradigo / (Eu sou vasto, contenho multidões)”.
Quando levamos a crise e o dilema para o âmbito cultural, podemos pensar em como uma identidade nacional brasileiraiana conversa com a cultura popular. Lourdes Macena, professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará e diretora do Miraira — Laboratório de Práticas Culturais Tradicionais, nos lembra das diversidades da(s) cultura(s) popular(es), da importância de se falar dos territórios e de reconhecer e valorizar o que foi deixado invisível. Em uma de suas aulas, ela argumenta que é preciso olhar de forma mais organizada e comprometida para o saber tradicional, para as identidades e para os territórios para além das capitais e das sedes, sempre pensando em “estabelecer a marca de um povo plural e singular ao mesmo tempo”. A importância do plural, como afirma Maria Laura Cavalcanti em seu artigo Duas ou três coisas sobre folclore e cultura popular: “No singular, ‘cultura popular’ sugere uma enganadora homogeneidade”. Esta conclui, ainda:
“Uma cultura é sempre do mundo e o melhor uso da expressão ‘cultura popular’ corresponde ao desejo de transpassar fronteiras, de estabelecer comunicações. Em suas melhores expressões, esse esforço busca apreender diferenças, não para enrijecer limites (porque esse enrijecimento pode atingir formas virulentas, como ocorre nos nacionalismos exacerbados), mas para ampliar nosso leque de possibilidades. Valorizar a cultura popular como aquela parte da produção cultural que seria a mais autenticamente nossa traz algumas armadilhas indesejadas. Por quê? Porque esse ‘nosso’ é muito heterogêneo e torna-se ‘nosso’ por caminhos muito diferentes. Tipificar a cultura, opor tipos de cultura rigidamente diferenciados é falsear um universo sempre mais rico, porque heterogêneo e dinâmico. (…) Tornar alguma coisa o penhor da identidade de uma nação é uma sobrecarga imensa e o melhor a fazer é afirmar a pluralidade interna e externa aos vários segmentos da cultura. Todos eles são ‘nossos’. Talvez possamos fazer dessas diferenças um estímulo. Um ponto de apoio de reconhecimentos e solidariedades a favorecer a inventividade de todas as nossas tradições”.
E aqui, retomando Erikson e a importância dos reconhecimentos dos processos sociais, talvez a confusão de papéis possa ser melhor elaborada a partir desse plural de identidades. Ou, ainda, a partir da noção de confluências de Nego Bispo:
“Não tenho dúvida de que a confluência é a energia que está nos movendo para o compartilhamento, para o reconhecimento, para o respeito. Um rio não deixa de ser um rio porque conflui com outro rio, ao contrário, ele passa a ser ele mesmo e outros rios, ele se fortalece. Quando a gente confluencia, a gente não deixa de ser a gente, a gente passa a ser a gente e outra gente — a gente rende. A confluência é uma força que rende, que aumenta, que amplia”.
Abri um exemplar de Os sertões que tenho em casa e reli Os homens para escrever para esta edição da Amarello. Entre a última página e a contracapa, encontrei, dobradas, seis páginas de um suplemento especial do Caderno 2 do jornal Estado de São Paulo. Oitenta anos depois da morte de Euclides de Cunha, uma repórter (Brenda Lee Fucuta) e uma fotógrafa (Mônica Zarattini) refizeram o trajeto indicado por Canudos, diário de uma expedição — livro do autor anterior a Os Sertões —, onde encontraram “uma ilha cultural com hábitos peculiares e linguajar próprio, em que o mito Antônio Conselheiro sobrevive”. A edição do jornal é de 1989.
“Alto, magro, Vô Ivanildo usava sapatos impecáveis e um pequeno Rolex. Era socialista. Durante a ditadura, escondeu Ferreira Gullar no sítio do seu irmão, no interior do Rio”
A publicação do livro que abri é de 1986. Meu avô tinha esse hábito: guardar recortes de jornais e revistas na contracapa dos livros da sua biblioteca. Descobrir por acaso uma página recortada quando folheio um livro que fora dele é uma forma de reencontrá-lo, de lembrar do cuidado com que organizava sua vida e do carinho com que cuidava dos seus livros. N’Os sertões, encontrei também uma dedicatória: “Ao Ivanildo, pela passagem de seu aniversário, os votos de muitas felicidades — São Paulo, 23 de janeiro de 1986. Ligia, Oswaldo e os netos”. Minhas três irmãs mais novas ainda não conseguiam assinar, mas, aos cinco anos, com uma letra tremida, tentei escrever .
Alto, magro, Vô Ivanildo usava sapatos impecáveis e um pequeno Rolex. Era socialista. Durante a ditadura, escondeu Ferreira Gullar no sítio do seu irmão, no interior do Rio. Assinava a Carta Capital e O Estadão, e a banca ao lado da sua casa lhe entregava aos finais de semana o Jornal do Brasil. Com alguns ajustes na fisionomia, ele poderia se parecer com Dom Quixote, seu personagem favorito. A sala do apartamento em Higienópolis em que ficava sua biblioteca era decorada com quadros com cenas do livro de Cervantes. Formado em direito em Recife, respondia, quando lhe perguntavam de onde era: “de Caruaru, modéstia à parte”. Seu avô foi prefeito sete vezes da cidade.
Rubem Braga escreveu uma vez que nasceu, “modéstia à parte, em Cachoeiro de Itapemirim”, e pensaram que a expressão fosse dele. Eu pensei que fosse do meu avô. Numa pequena nota em Recado da primavera, Braga assume que a escreveu parodiando Noel Rosa — mas diz que pouca gente percebeu. Eu não percebi que meu avô parodiava nenhum dos dois, mas sabia que ele escutava Noel e, morando em Ipanema nos anos 60, viveu na praia o clima das crônicas de Braga — era nela que apresentava, na areia, o futebol que, gostava de dizer, aprendeu no Sport Club Recife. Assistia a todas as categorias de todas as modalidades esportivas na televisão. Quando lançaram a revista Bundas, conversamos sobre o Pasquim.
Descobri com ele escritores como Josué Montello, Agripino Grieco e Marques Rebelo. Tenho a edição que era dele de Terra de Caruaru, de José Condé, publicada em Portugal. No prefácio, Condé diz que evoca, no livro, “a Caruaru dos seu tempo de menino”, que “pertenceu também a muitos companheiros” — e, entre outros, cita meu avô e Álvaro Lins. Mortos de sobrecasaca foi, para mim, o título de um livro de Álvaro Lins antes de ser um poema de Drummond: Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes / e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos. / Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava / que rebentava daquelas páginas.
José Condé dedicou esse exemplar de Terra de Caruaru “Para Marília e Ivanildo — meus irmãos — muito afetuosamente, Condé. Rio, 61”. Marília não é a minha avó. Ela foi a primeira mulher do Vô Ivanildo, e morreu num acidente de carro entre São Paulo e o Rio de Janeiro. Meu avô estava . Nunca mais . Nunca conversamos sobre isso. Num exemplar do Diário de Pernambuco, nos arquivos digitalizados da Biblioteca Nacional, descobri que ela morreu em 11 de janeiro de 1969.
O pai de Marília, Francisco Oliveira e Silva, era um advogado e escritor pernambucano, e publicou livros de poesia, contos, romances, memórias, meditações, etc. — além de um livro comparando Dom Quixote a Chaplin, traduções de Freud e uma imensa obra jurídica. Seu livro Gotta Dágua, de 1932, é uma coleção de pequenos comentários ou aforismos sobre assuntos como “o sorriso de Pirandello”, “variar” ou “o prazer de admirar”. No verbete O estilo, escreve que ele “reproduz a harmonia ou o tumulto de uma vida cerebral. Revela as linhas ásperas, desenvoltas ou sutis da sensibilidade que o modelou à sua feição e ao seu sofrimento”.
Um dia perguntei ao meu avô por que não escrevia as suas memórias. Ele disse que precisaria se libertar do estilo datilográfico da profissão. Talvez ele tivesse lido Álvaro Lins, em seu Jornal decrítica, de 1941: “um estilo deve, na sua perfeição, estar sempre presente, mas dando a impressão de ausente”. Ele não escreveu as suas memórias.
Tenho seus livros de Oliveira e Silva. Todos têm dedicatórias à sua filha ou ao casal, em diferentes momentos das suas vidas: “À Marilia, à hora em que realiza o seu sonho de moça, com o voto para que Deus lhe acrescente às dádivas tudo o que, ainda, puder oferecer de bom — Papai. Rio, setembro de 1946”. Não sei qual foi o seu sonho de moça. Mas talvez seja esse um soluço de vida que nenhum verme rói.
E depois… Uma xícara vazia fora colocada à mesa, na simbologia transcendental da chegada do velho, tanto físico quanto temporal, pois, na realidade da vida, representava o novo!
A guardiã ocupa-se dia e noite a restaurar vilas, aldeias, pequenas cidades, grandes cidades e, por que não?, casas humildes, casas burguesas e até palacetes. Independia, sua ação, de classes sociais, países e continentes! O importante era restaurar nem que fosse a Casa Branca, a NASA, o Congresso Nacional brasileiro, até o Serviço Nacional de Informações! Se a missão era restaurar, mãos mágicas começavam a agir com a força do fogo violeta transubstanciando o Rio Ganges, o Rio Amazonas e todos os rios do Brasil, os mares do Atlântico ou os vulcões incandescentes.
A última restauração, passados alguns séculos de destruição e desrespeito a um povo tradicional, fora no Nordeste brasileiro (uma Amazônia destruída), onde, a partir da expansão da consciência das crianças, à época áurea e cristalina, ela aconteceu com êxito. A reconstrução de sua identidade cultural e étnica se deu a partir de uma nova forma de educação, que hoje se chama “paulofreiriana”, que nada mais era do que reconhecer os valores culturais e os conhecimentos tradicionais do povo e aplicá-los à aprendizagem do dia a dia. Aí, é claro, as seculares gerações festejavam a ação desse papel transgeracional com ofertas de luzes de cristal e força espiritual!
O que representava, então, o papel da guardiã? Além do fortalecimento das funções políticas, sociais e espirituais, o belo renascer da humanidade para a força mental e espiritual do voluntariado transformador! Assim se deu com os grandes líderes, como Nelson Mandela, Madre Teresa de Calcutá, Gandhi, Jeane Sindab, Manoel da Conceição, Chico Mendes, Luiz Carlos Prestes, Mário Juruna, Raoni, Megaron e milhares de “apoiadores de luz do comando planetário”, que se distribuíram em segmentos nas artes, nas políticas, nas ciências local, nacional e internacional, independentemente de obterem vantagens pessoais, promoções e segurança de vida. Num plano mais elevado, citam-se os diversos espíritos supremos, como o Divino mestre Jesus de Nazaré (Sananda), Krishna, Shiva, Sidarta, Brahma, Zeus, Alah, Oxalá, Platão, entre outros.
É difícil viver uma vida de voluntariado transformador? Sim, mas é dentro do trabalho voluntário que os recursos financeiros, através de doações pessoais, culminam nos institucionais, que surgem para a sobrevivência pessoal, social e global do trabalhador. É dando que se recebe! Alguns desses líderes morreram de fome, e é por isso que os governos devem apoiar o trabalho do voluntariado transformador, como os catadores de lixo para material reciclável, as quebradeiras de coco, os pescadores. Enfim, os curadores da terra, como aqueles que combatem o fogo nas florestas, que preservam o meio ambiente e protegem os seres humanos e animais. Segmentos como escritores, pensadores, artistas, filósofos, professores, médicos e enfermeiros fazem parte do grande voluntariado transformador, e não deveriam passar por burocracias, papeladas online aterrorizantes e desestimuladoras, que só servem para uma minoria articulada. Seus salários são migalhas do poder.
Recentemente, o mundo transcendental convocou a guardiã para restaurar grandes cidades conflituosas no mundo inteiro, entre estupros, pedofilia, máfias, tráfego e uso de drogas e corrupção política e de menores, entre outros crimes. É óbvio que essa força atuante da guardiã conta com milhares de mãos trabalhadoras de luz. É o voluntariado transformador! Seja física, ancestral ou espiritual.
Nos velhos casarões, há de se limpar, organizar e purificar paredes e telhados, fazer revelar as linhas, as artes, a beleza das paredes, dos corrimãos de madeira envernizada, dos quadros seculares de pintores do presente e do passado, de peças de porcelana, das estátuas das mais diversas formas e dos artesanatos em plumagem, pedrarias e cestarias.
No ambiente exterior, os jardins, os canais dos riachos, os grandes muros e as ruas terão de ser limpos das terríveis baratas aglomeradas e ratazanas fétidas e dos lixos acumulados há tempos, poluidores do ambiente e do ar. As igrejas hão de se restaurar e devolver o ouro, a prata e os diamantes a quem pertencem por direito secular, já que foram arrancados a dor e suor pelo trabalho escravo de indígenas e africanos das Américas e da África.
Referendando à natureza, as águas, as terras e as montanhas são desinfetadas pela força do trabalho da mente do legislativo, do judiciário e do executivo, atrelado à consciência popular no cumprimento das leis, de seus papéis e de suas responsabilidades.
O planeta Terra está a passar por mudanças radicais. Uma delas é a rebelião do clima, que está a acontecer para que uma nova capa seja reposta em substituição à grande poluição ambiental e atmosférica. É como a mudança da pele das cobras. O planeta está a ganhar, paulatinamente, uma nova pele. O novo planeta azul!
A guardiã cumpre seu papel. Nesse contexto, ela foi designada a dar as boas-vindas à nova geração. Arrumou as camas para o sono profundo dos que trabalharam firme nos últimos séculos e preparou a mesa. Uma xícara de porcelana lindamente colorida e pintada anunciava a chegada de algo velho, carcomido e depauperado, mas cheio de experiências. Logo entra uma jovem a propagandear a nova humanidade e a transição planetária. Ela trazia na sua essência os conhecimentos, a sabedoria, a “Senhora Si”, andarilha pela paz e pelo amor entre povos. Era a representação de novas mentalidades, de uma nova ética: a humanidade e o planeta restaurados. Esperança do universo! A nova guardiã de todos os tempos sorria. O novo voluntariado transformador emanava luz, força, energia e alegria de viver! Sigamos com esse voluntariado, porque as bênçãos, o amor, o trabalho e o desenvolvimento são seus amigos fiéis. Dele depende a sobrevivência e purificação do planeta Terra. Assim aprendi com minha avó, Maria de Lourdes de Souza, indígena Potiguara, paraibana, pobre, mas sacerdotisa de grande riqueza dos conhecimentos tradicionais e imemoriais dos povos indígenas.
TERRA E ÁGUA
“A Terra é um organismo vivo que fala conosco através das chuvas, dos trovões, da luz do sol que faz crescer a vegetação, que ilumina o dia, que nos dá o néctar da vida, não só para nós, mas para todos os seres vivos terrestres, marítimos, fluviais. A lua é nossa avó, o sol é nosso avô. Nossos corpos são sagrados, e de nossos úteros brotam vidas. Nossas culturas e cosmovisões são os maiores patrimônios para vidas futuras, pois o planeta Terra é nosso avô, e as mulheres indígenas são sagradas como a natureza.”
Oração à natureza, Eliane Potiguara
No dia em que a sociedade brasileira definitivamente entender a filosofia indígena, ela será mais feliz e menos competitiva. As bases da cultura indígena são a cooperação, a colaboração, o amor e a solidariedade ao outro. O sistema atual de vivência da sociedade baseia-se no dinheiro, enquanto, no sistema dos povos originários, as relações de troca e a sustentabilidade são mais fortes. Isso não significa que eles não utilizam o dinheiro, mas o fazem de forma mais humanitária. O sentimento de pertencimento a uma terra, seu meio ambiente e sua ancestralidade são as linhas mestras da sobrevivência — o que deveria ser vivência, não fosse a falta de apoio do Estado e de reconhecimento de suas diferenças.
Dessa forma, as sociedades indígenas que pareciam prestes a serem extintas veem, a cada dia, crescer sua população. E seus valores podem muito contribuir para a sociedade. Vamos dar um exemplo disso falando de um elemento essencial que serve como mantenimento cultural: a água.
A água tem sido motivo de debates em salas de aula e encontros ecológicos, e todos parecem dispostos a refletir e discutir sobre ela, porém, como sempre, são discutidas formas e apresentadas importantes ideias unicamente para sua preservação no planeta Terra. Não duvide de que toda e qualquer sugestão será bem-vinda, mas, como isso, a solução para a questão será protelada mais algumas décadas.
Precisamos nos fazer mais alguns questionamentos: quanto tempo temos? Nossos filhos, netos e gerações seguintes vão ter a chance de reverter esse tempo? Por que nossa geração e as antecedentes não conseguiram aproveitar o tempo que tiveram? Conseguimos imaginar o que será da vida nesta nossa casa chamada Terra quando não mais houver água para nada? Quando isso acontecer, teremos para onde ir para sobrevivermos? Onde está o nosso instinto de preservação da espécie quando se trata de cuidar da nossa sobrevivência? Essas perguntas vitais podem ser tema de debate para a conscientização de professores e alunos. Afinal, a essencialidade da água é evidente e nos remete para muitas dimensões da existência.
Em muitos preceitos espirituais, a água é fonte não só de vida, mas é cura, coloca-nos ao pé do Divino, transcende-nos e acolhe-nos em inúmeras culturas.
Os povos originários de todos os cantos do mundo precisam ser escutados com seus saberes e ações. No Brasil, por exemplo, indígenas e quilombolas são vetores importantes, nos dando exemplos valiosos de como preservar e usar a água de forma consciente e sustentável.
O tema sobre a água dá asas à imaginação para outras diversas pautas relativas à natureza e ao meio ambiente que podem ser tratadas por professores e alunos. Dessa forma, teremos uma educação diferenciada daquela imposta pela colonização contemporânea. Deixemos esses povos falarem.
Você fez 13 anos nesse mês de setembro, dia 23, junto com a chegada da primavera. Na religião do seu pai, já pode ser considerado um homem. Na minha, ainda falta um pouquinho. O fato é que você tem nós dois bem instalados dentro de você, então pode oscilar entre ser um homem e um menino. Bom, pensando bem, talvez ser adulto implique assumir que essas posições são oscilantes e coexistem. Nunca deixamos nossa meninice de lado.
“Espero que, quando se tornar homem, saiba que ser homem é diferente de ser macho”
Explico: no futebol, você joga como homem adulto, passa a bola, grita alto quando faz gol, bate no peito. Contemplo em silêncio, já que pouco entendo do jogo. Mas, quando o ponto é seu, pareço uma menina apaixonada contando para a arquibancada que aquele atacante é meu filho. Seu pai, nessas horas, também reencontra o menino que foi e, por vezes, reclama com o juiz, tudo que ele sempre achou ridículo fazer — mas o amor é assim. Todas as cartas de amor são ridículas e, onde esse sentimento está, ficamos assim, ridículos. Já dizia o poeta. Você há de se apaixonar muitas e muitas vezes na vida e vai entender isso.
Aliás, uma amiga me mostrou o Ethan Hawke, numa entrevista, declarando que podemos viver sem poesia e arte até que a gente se apaixone ou perca alguém que amamos. Uma fala inesquecível. Seu avô dizia que quem anda com um poema no bolso nunca está só. Por isso, decorei tantos para embelezar a minha rotina. Poemas colocam purpurina numa cena, abuse deles.
Freud dizia, em O mal-estar na civilização, que nunca nos encontramos tão indefesos como quando amamos. Eu sempre concordei com ele, mas, depois que te conheci, assino embaixo. Suas dores são minhas; eu as sinto na pele mais do que as minhas próprias, mas isso não significa que você estará protegido delas. Muito pelo contrário. Elas são parte da nossa existência e nos ensinam muito. Abrir o peito para senti-las é um ato de coragem, assim como saber a hora de deixá-las, pois passar a vida olhando pelo retrovisor é viver de tempos mortos, como dizia Simone de Beauvoir.
Aliás, seu avô também costumava dizer algo parecido sobre o passado: é preciso tratar algumas coisas com uma distância respeitosa — a natureza, as drogas e o passado. Essas forças poderiam nos engolir, pois são bem maiores que a gente. Eu já saí de muitas enrascadas por causa dessa frase.
Freud dizia que a felicidade é uma manifestação episódica; ou seja, temos momentos felizes, mas não o tempo todo. Acho importante você ter isso em mente para suportar os pedaços mornos da vida. São muitos, e, se você tiver sorte, contemple-os. Quando há algo dando errado na vida da gente, temos muita saudade deles; isso eu aprendi.
“Preste atenção nas frases das canções. A música é sempre a companheira ideal”
Nos momentos mais difíceis, saiba que o trabalho ajuda demais a nos dar contorno, um lugar seguro que nos prende na realidade. A rotina, da qual a gente tanto se queixa, serve muitas vezes como uma moldura que nos ajuda a não despencar. Coloque os pés no chão e dê o primeiro passo. Produzir dá a maior satisfação, e, se pudermos escolher com o que trabalhar, somos privilegiados. Encontre sua paixão e conhecerá o prazer no ofício. Não se esqueça jamais de que poder escolher um trabalho é uma dádiva em um mundo onde muitos trabalham para o pão de cada dia. Valorize o aprendizado que nós pudemos te oferecer; aprender é uma forma de ser livre. Use bem as asas que te demos.
Espero que, quando se tornar homem, saiba que ser homem é diferente de ser macho. E isso significa que não precisa viver tentando mostrar sua força e insubordinação. Sua masculinidade vira gaiola se você deixar. Em Mudar: método,Édouard Louis escreveu um lindo trecho sobre isso. Homem chora, sim; pode ser sensível, sem medo. Brinca do que quiser, usa a cor que quiser, ouve a música que gostar. Como diz a autora Chimamanda Ngozi Adichie, “O problema da questão de gênero é que ela prescreve como devemos ser em vez de reconhecer como somos”. Ninguém tem o direito de prescrever como você deve ser, assim como você não tem o mesmo direito na vida de nenhuma pessoa.
Preste atenção nas frases das canções. A música é sempre a companheira ideal. Dance. Mexa seu corpo e escute a música vibrar. Ele é seu, filho. Já morou em mim, mas hoje é onde você mora. Cuide bem desse lugar, ele é sagrado. Você é livre para usá-lo. Mas não esqueça que devemos tratar o corpo do outro com o mesmo respeito. E que, dentro dele, mora alguém, e, quando o ferimos, estamos deixando marcas numa alma. Invadi-lo sem permissão é esvaziar alguém. Deixa buracos na alma.
A verdade é que há algo difícil de te dizer, mas de que não posso me abster. Não são todos os homens, filho, mas é sempre um homem. O que quero dizer com isso é que há algo de muita responsabilidade em ser um homem. Isso não tem a ver com sexualidade — você vai usá-la da forma que quiser, eu não tenho nada com isso —, mas com o fato de que há toda uma sociedade que apoia certos comportamentos: os tais chamados machistas (termo que eu vivo usando em casa e que você se irrita), que oprimem as mulheres. Escrevo isso no meu lugar de fala, de quem já se viu silenciada, oprimida e diminuída por olhares masculinos. Esteja sempre alerta.
Eu adoro e sei de cor um texto que se chama O homem lúcido, que é um ensaio sobre a lucidez. Um texto caldaico, de autor desconhecido, que diz que o homem lúcido sabe que ele é o equilibrista da corda bamba da existência, que a vida é uma carga tamanha de acontecimentos que nunca devemos nos entusiasmar com ela. Nele, há uma ideia de que a lucidez está ligada a optar pela vida, saber ver beleza em tudo e nunca temer a morte. Termina com um pensamento: a justa lei máxima da natureza é que a quantidade de acontecimentos bons seja equivalente à quantidade de acontecimentos ruins na vida de um homem, mas aquele que opta por procurar pela beleza, ainda que nos infortúnios, é agraciado por mais acontecimentos favoráveis. Se você quiser ver a cena do Domingos de Oliveira lendo esse texto ao final do filme Separações, ela está no seu amado YouTube. Me arrepia a cada vez que assisto. Acho que não há nada mais poderoso nesta vida, meu filho, do que a lucidez. Cuide da sua. E saiba que, embora solitária, é um presente; é como enxergar a realidade com olhos de raio x. Bem mais legal que seus óculos de metaverso, vai por mim.
Aliás, você sabia que, se fechar os olhos, tem seu próprio metaverso? Experimente. Podemos montar cenas incríveis, ter encontros amorosos, matar saudades de pessoas que já se foram. Funciona sem wi-fi. Chama-se fantasia. Dá um prazer enorme. Quando eu não estiver mais aqui, é lá que a gente vai se encontrar.
Ainda sobre se perder: seu pai não faz nada sem Waze. Ajuda bastante, corta caminhos. Mas, de vez em quando, experimente se perder pela cidade, tentar vivê-la de fora para dentro, deixar-se distrair. Quando morei fora, me perdia quase todos os dias, tanto que tenho o mapa da cidade até hoje na minha mente, vinte anos depois. E é lá que passeio no metaverso dos meus olhos fechados, quando tenho saudades da juventude. Se entregue para a calçada, sem saber aonde ir, ouvindo uma boa trilha sonora, e se deixe ser levado pelo seu próprio passo. Pensando bem, filho, crescer é isso, ser levado pela força do nosso caminhar. A força dos meus me trouxe até você, e eu já tenho muito orgulho desse homem que meu ventre preparou para o mundo. E temos muito tempo ainda. Espero que a justa lei máxima da natureza me ofereça a cortesia que oferece aos homens lúcidos.
***
Nota: O texto caldaico mencionado é do século VI a.C. e segue assim:
“O homem lúcido sabe que a vida é uma carga tamanha de acontecimentos e emoções que nunca se entusiasma com ela, assim como não teme a morte. O homem lúcido sabe que viver e morrer são o mesmo em matéria de valor, posto que a Vida contém tantos sofrimentos que a sua cessação não pode ser considerada um mal.
O homem lúcido sabe que é o equilibrista na corda bamba da existência. Sabe que, por opção ou acidente, é possível cair no abismo, a qualquer momento, interrompendo a sessão do circo.
Pode também o homem lúcido optar pela Vida. Aí então, ele esgotará todas as suas possibilidades. Passeará por seu campo aberto e por suas vielas floridas. Saberá ver a beleza em tudo. Terá amantes, amigos, ideais. Urdirá planos e os realizará. Resistirá aos infortúnios e até às doenças. E, se atingido por algum desses emissários, saberá suportá-los com coragem e mansidão.
Morrerá o homem lúcido de causas naturais e em idade avançada, cercado por filhos e netos que seguirão sua magnífica aventura. Pairará então, sobre sua memória uma aura de bondade. Dir-se-á: aquele amou muito e fez bem às pessoas.
A justa lei máxima da natureza obriga que a quantidade de acontecimentos maus na vida de um homem iguale-se sempre à quantidade de acontecimentos favoráveis.
O homem lúcido que optou pela Vida, com o consentimento dos Deuses, tem o poder magno de alterar essa lei. Na sua vida, os acontecimentos favoráveis estarão sempre em maioria.
Esta é uma cortesia que a natureza faz com os homens lúcidos.”
Os povos indígenas habitam o território brasileiro há milhares de anos e, ao longo desse tempo, desenvolveram uma vasta gama de conhecimentos e tecnologias. Eles realizaram técnicas para fazer cerâmicas, processar e manipular alimentos, esculpir madeira e cultivar plantas, além de desenvolverem as artes de cuidados de saúde e métodos de tratamentos e cura de doenças.
“É importante abordar a questão dos modelos de conhecimento, especialmente o modelo europeu, que historicamente, sob o rótulo da ciência, tem tratado os conhecimentos indígenas como simples objetos de estudo e recursos a serem protegidos.”
Atualmente, de acordo com os dados do Censo Demográfico de 2022, divulgados pelo IBGE, a população indígena no Brasil chegou a 1.737.000 pessoas, o que representa cerca de 0,83% da população total do país.
Embora esses números possam parecer pequenos em termos proporcionais, eles carregam uma importância imensurável para o patrimônio cultural, pois representam uma diversidade cultural imensa, com mais de 305 etnias e mais de 274 línguas diferentes. Sua presença enriquece o patrimônio cultural brasileiro, preservando tradições, línguas, histórias, expressões artísticas, músicas e costumes.
O contato dos povos indígenas com os colonizadores europeus foi marcado por um processo de extrema violência e opressão, resultando em profundas transformações sociais, culturais e demográficas. Desde a chegada, o encontro de dois mundos até então desconhecidos gerou um choque violento, não apenas no sentido físico, mas também na desestruturação das instituições indígenas e nos sistemas de conhecimentos.
Uma das manifestações mais evidentes da violência foi a brutalidade física exercida pelos colonizadores. Os europeus, movidos por interesses econômicos e pela busca de riquezas, recorreram a métodos agressivos para dominar e explorar terras indígenas.
Além disso, os colonizadores trouxeram doenças como a varíola, o sarampo e a gripe, para que os povos indígenas não tivessem imunidade. Estima-se que milhões de indígenas tenham morrido em decorrência dessas epidemias, configurando um dos maiores genocídios da história.
A violência também se manifestou de forma cultural. Os colonizadores, por meio de suas instituições, impuseram suas línguas, suas religiões e seus costumes, desvalorizando e tentando erradicar a vida e jeito de ser indígenas. A catequese, conduzida por missionários europeus, buscava “civilizar” os povos indígenas através da conversão traduzida ao cristianismo. Muitos grupos indígenas foram obrigados a abandonar suas práticas, seus conhecimentos e falar suas línguas.
“Entender o modelo de educação indígena pode ser um caminho. Aqui não custa nada lembrar que os povos indígenas têm seus próprios modos de educação.”
Esse processo deixou um legado de exploração e opressão que ainda ecoa nos dias de hoje, refletido nas lutas contínuas dos povos indígenas por reconhecimento, direitos e justiça. A história desse encontro não deve ser esquecida, pois compreender esses acontecimentos é essencial para considerar e enfrentar as consequências que persistem nas sociedades contemporâneas.
Apesar da extrema violência, os povos indígenas lutaram e continuam a lutar contra a colonização e a opressão. Muitas comunidades indígenas se reorganizaram e adaptaram suas formas de lutas ao longo dos séculos, utilizando desde a fuga para áreas mais remotas até a adoção de estratégias de negociação com os colonizadores.
Nos dias atuais, a luta dos povos indígenas pela vida, pela existência e pelos seus territórios continua sendo uma realidade dura, marcada pela luta contra invasões, desmatamentos, e pela busca incessante por reconhecimento e proteção de seus direitos e culturas, muitas vezes negligenciados ou ameaçados por interesses econômicos, políticas públicas e pelo modelo de conhecimento ocidental, mais conhecido como Ciência.
Vale a pena, aqui, adentrar nessa questão de modelos de conhecimento. Isto é, é importante abordar a questão dos modelos de conhecimento, especialmente o modelo europeu, que historicamente, sob o rótulo da ciência, tem tratado os conhecimentos indígenas como simples objetos de estudo e recursos a serem protegidos. Esse modelo não só se apropriou dos conhecimentos indígenas como base para suas teorias, tecnologias e soluções, mas também fez parte de um contato marcado pela violência colonial.
Apesar de toda política de dominação, os povos indígenas sempre lançaram mão de estratégias próprias para a “sobrevivência”, ora enfrentando fisicamente, ora se rendendo, ora fugindo para lugares remotos. Essas iniciativas garantiram a presença indígena e seus conhecimentos até os dias atuais.
Em todo esse tempo, entende-se que os conhecimentos indígenas foram guardados nos corpos e nas mentes dos detentores de conhecimentos. Atualmente, com a proposta de promover uma relação mais equitativa entre os povos e seus respectivos sistemas de conhecimento, torna-se urgente propor iniciativas que considerem os diferentes modos de conhecimento, ativar e semear os conhecimentos indígenas, com a mesma importância dada ao que é denominado Ciência.
Ativar para semear significa incluir os detentores de conhecimentos indígenas como interlocutores na educação oficial, nos debates mundiais e permitir que eles ativem seus conhecimentos “incubados” e desenvolvam suas próprias teorias, a partir de uma visão “nativa”. Ativar os conhecimentos implica, primeiramente, reconhecer o valor das epistemologias indígenas como fontes legítimas de conhecimento.
Durante séculos, os saberes indígenas foram encarados como arcaicos ou inferiores. No entanto, no mundo de hoje, cada vez mais afetado pelas mudanças, eles podem ajudar a compreender as mudanças e contribuir para tomadas de decisões mais assertivas em vista de um mundo mais equilibrado.
Dessa maneira, entender o modelo de educação indígena pode ser um caminho. Aqui não custa nada lembrar que os povos indígenas têm seus próprios modos de educação. Assim como em qualquer modelo educacional, o processo indígena é fundado na sua dimensão filosófica, envolvendo conhecimentos imateriais, práticas sociais, cuidado da pessoa, cuidado do corpo, cuidado coletivo e tecnologias que são desenvolvidos de acordo com as noções, as concepções, a ética e os valores de cada grupo social.
O processo de educação indígena começa na gestação e se estende até o fim da vida. Desde o nascimento, a proteção coletiva da pessoa é assegurada. Uma criança que acompanha sua mãe e seu pai em atividades domésticas já está sendo educada, cuidada e protegida. Ao estar com pais, avós e irmãos, seja em atividades domésticas ou no roçado, as crianças amadurecem e aprimoram seus conhecimentos sobre as concepções, regras sociais e noções de ética do seu grupo. Existem outras dimensões que fazem parte do processo de educação e constituem o sistema de educação indígena. Aqui, vamos elencar algumas de modo didático.
As crianças, desde cedo, são educadas a desenvolver cuidados com os seres que habitam a terra, a floresta, a água e o espaço aéreo. Desde pequenas, elas são ensinadas a respeitar os seres que vivem em ambientes como cachoeiras, rios, lagos, matas e na própria terra, pois são consideradas responsáveis por cuidar de tudo que existe no território. A falta de cuidado, proteção e respeito a esses seres pode resultar em ataques a elas e às outras pessoas da comunidade. Assim, as crianças são orientadas a respeitar cada lugar e ambiente por onde circulam, garantindo uma qualidade de vida sem doenças e conflitos e assegurando a abundância de recursos necessários. Elas são também educadas para cuidar de seus territórios, da floresta, da terra e da água, para que não falte fartura de alimentos e fertilidade, garantindo, assim, a qualidade de vida coletiva.
O respeito e cuidado com as pessoas também é uma dimensão fundamental da educação indígena. As crianças são ensinadas a respeitar seus pais, avós, tios, irmãos e parentes que vivem na mesma comunidade ou em outras comunidades. Nesse sentido, é importante que elas aprendam comportamentos adequados e uma linguagem apropriada para interagir com outras pessoas. O respeito é ensinado no dia a dia, com base em noções de ética, educação e relações interpessoais e cosmopolíticas.
Além disso, o cuidado com o corpo é outra dimensão essencial da educação indígena. Todos os dias, ao amanhecer, as crianças são orientadas a tomar banho e a se movimentar na água para fortalecer o corpo, ganhar força para as atividades diárias e limpar o estômago. Esse cuidado inclui a ingestão de um cipó específico durante o banho matinal. Além disso, manter o corpo protegido com pinturas corporais é fundamental, pois se acredita que a desproteção pode causar sérias doenças.
Outra educação importante são os hábitos alimentares. As crianças e jovens indígenas são orientadas e acompanhadas a consumir certos alimentos de forma moderada. Algumas regras incluem evitar o consumo excessivo de peixes assados, evitar alimentos quentes e de peixes considerados gordurosos ou remosos. O cuidado com a alimentação é essencial, pois contribui para a aprendizagem e memorização, o desenvolvimento de um corpo ativo, um espírito intuitivo aguçado e um estado de disposição sem preguiça.
Enfim, a noção de qualidade de vida para os povos indígenas não se restringe ao aspecto de relações com a “natureza” ou o biológico. Antes o contrário: envolvem aspectos cosmopolíticos e conecta o coletivo ou a pessoa numa teia de relações com outros seres, com os waimahsã, com os animais, com a floresta, com a território, com a água, com os artefatos, com a casa, com os parentes e com outras pessoas.
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Este texto inicialmente foi publicado na revista SESC/São Paulo.
A palavra “sertão”, com o significado de interior vasto — mas desconhecido para o europeu — aparece já na carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel. E traz uma marca duradoura: a definição de um objeto de conhecimento no qual o recém-chegado pena para entender e mais ainda para explicar.
Foram necessários mais de 150 anos de um processo que Araripe Júnior denominou obnubilação brasílica para se chegar a um estágio mais avançado de conhecimento. Ele definia este processo como uma queda da consciência europeia frente à realidade da vida no trópico — e a posterior recomposição dessa consciência numa forma capaz de transmitir o novo conhecimento na linguagem escrita do mundo ocidental.
“A Guerra de Canudos é, para o sr Euclides da Cunha, um crime”
Seu herói obnubilado era Gregório de Matos e Guerra, e a justificativa para a escolha, mais do que interessante: a queda brasílica seria comportamental, com a adoção dos costumes populares em relação a sexo e dizeres. Mas a reconstrução noutra linguagem viria com a adoção da viola e da canção, capazes de permitir a primeira criação e o primeiro registro escrito de algo que já seria um falar próprio da terra brasílica, uma métrica já diferenciada em relação ao fazer poético metropolitano. Enfim: mergulhar no sertão passava a ser entendido como um modo de conhecimento.
Araripe Júnior fez mais do que montar a interpretação. Ele foi o responsável maior por retirar a obra de Gregório de Matos do limbo de manuscritos guardados em gavetas e da memória oral em que ela vegetou por dois séculos. Nesse longo período, era considerada uma obra muito imprópria para ser conhecida pelos brasileiros — apenas uns poucos poemas, de caráter mais religioso, haviam sido publicados em antologias.
Fundador da Academia Brasileira de Letras, Araripe escolheu Gregório de Matos como patrono da cadeira 16 — aquela que ocupo hoje. Era uma atitude de vanguarda e indicadora de um caminho. Araripe foi recolhendo os originais de Gregório que encontrava e guardando-os no arquivo da instituição. E teve influência na publicação da primeira antologia desse obnubilado, ajudando a tornar menos estranha a escrita da experiência brasileira para os brasileiros.
Esse processo coincidiu no tempo — a primeira década republicana — com uma forma moderna, e civilizatória, de obnubilação. A notícia da derrota da expedição Moreira César em Canudos percorreu o país na velocidade dupla do tempo. Levou mais de seis dias para ir do local dos combates até o posto de telégrafo mais próximo — e algumas horas para gerar um incêndio urbano nacional.
Em São Paulo, o centro da explosão foi a redação de O Estado de S. Paulo, jornal que defendia o novo regime. Antes mesmo de a edição ser escrita, a simples postagem dos telegramas que chegavam na vitrine da redação foi atraindo multidões — e detonando reações clamorosas. Nada estranho, na medida em que os telegramas que chegavam não traziam exatamente fatos, mas antes interpretações prontas (exatamente o mecanismo das fake news, que não é tão novo assim): apenas uma forte armada monarquista seria capaz de derrotar o batalhão comandado pelo algoz de tantas forças federalistas gaúchas, com seus 700 homens bem armados e muito treinados.
Enquanto a rotativa era posta para imprimir sem parar — ao final de um dia seriam impressos 17 mil exemplares da edição, possivelmente um décimo da população de São Paulo naquele momento —, leitores dos telegramas e dos primeiros exemplares se agrupavam para atacar as redações dos jornais monarquistas, além de alguns líderes desse movimento. A cena se repetiu com pequenas variações no Rio de Janeiro e em algumas capitais do país.
Enquanto o governo armava um exército de sete mil homens para destruir o inimigo, Júlio Mesquita, o editor de O Estado de S. Paulo, ia buscar um único homem: Euclides da Cunha. Ele era militar, da corrente florianista, a mesma do derrotado Moreira César. Aceitou a missão de ir cobrir a guerra de Canudos — e começou a seu modo.
Não tinha mais informação real do que aquela filtrada dos telegramas: havia sido uma derrota militar massacrante. Sem nada melhor vindo do campo de batalha para informar, seus primeiros artigos descreviam basicamente a mobilização da tropa de combate que acompanharia, combinada com considerações sobre o ânimo dos combatentes para enfrentar o inimigo — que coincidiam com suas próprias crenças de republicano. Assim, ele ia mandando novas versões a cada porto de escala no caminho, até chegar a Salvador.
Mas, assim que desembarcou, tomou uma atitude diferente à de visitar seus colegas de farda eventualmente conhecedores de melhores informações sobre os combates — algo que seria perfeitamente possível em sua situação. No lugar disso, preferiu agir como repórter, indo buscar informações também sobre aquilo que se passava do outro lado das linhas de combate. E fez isso indo ao hospital que cuidava dos feridos de guerra canudenses.
Encontrou um menino de 14 anos chamado Agostinho, com quem conversou longamente. Ela lhe contou com sinceridade tudo que vivera, tudo que pensara. Sem o menor pingo de monarquismo – mas muita dor de uma população sertaneja tocada de um lado para outro e atacada por tropas armadas. Quase seis meses depois do evento de Moreira César, Cunha teve então a primeira oportunidade de contrastar as interpretações que ouvira o tempo todo, adequadas à sua formação de militar, com uma narrativa factual mais consistente. Publicou com todas as letras seu julgamento sobre aquilo que ouvira na edição do dia 27 de agosto de 1897:
“Essas revelações têm para mim um valor inquestionável: não mentem, não sofismam e não iludem, naquela idade, as almas ingênuas dos rudes filhos do sertão”.
Foi seu momento de obnubilação, de troca da consciência ideologizada por outra, de cidadão. A partir daí começou o longuíssimo processo que levaria essa nova consciência para a forma escrita. Cumpriu suas obrigações de correspondente de guerra, produzindo narrativas tão isentas quanto possível para quem acompanhava o conflito do lado da tropa que massacrou o arraial — ele chegou a Canudos nos estertores dos combates, dias antes da destruição final. Levaria cinco anos para publicar Os Sertões. Já na primeira resenha da obra, feita por José Veríssimo e publicada em 5 de dezembro de 1902, todo o significado da nova consciência seria explicitado:
“A Guerra de Canudos é, para o sr Euclides da Cunha, um crime. A campanha em si parece-me, desde o primeiro dia, mais do que um crime: um erro crasso, imperdoável. Não faltam na nossa história sinais de ininteligência. Nenhum, porém, tamanho. Crime ou crimes haverá apenas no cerco final, conforme conhecíamos pela divulgação oral, ou por algum escrito de pouco valor, e os narra agora, com vingadora veracidade, o autor de Os Sertões”.
O sucesso imediato da obra teve o efeito inverso dos ataques ao arraial do Conselheiro: gerou uma forte corrente na direção de entender que a missão da elite brasileira já não podia ser mais aquela do Império, a de criar uma nobreza como contraste ao homem do sertão. Dali em diante, começava a valer o desafio de criar uma nação de cidadãos, ao modo dos ideais iluministas.
O passo seguinte neste longo processo viria com uma radical mudança na avaliação de quais deveriam ser as relações entre a língua falada, aquela dos sertanejos e da cultura oral, e o dever de quem escreve. Até o Parnasianismo, essa relação era pensada como a de uma necessidade de os parcos escritores empregarem as técnicas que dominavam para fazer contraste, aumentar a diferença entre o mundo culto e o populacho.
O processo inverso, da submissão do escritor aos ditames da fala, começou a se acelerar no século XX: Afrânio Coutinho organizou a primeira edição das obras completas de Gregório de Matos. O jornalismo de massa se constituiu num campo de provas que foi muito além do pioneiro Euclides da Cunha. Apenas para falar do jornal que o contratara, Amadeu Amaral, Monteiro Lobato e Mario de Andrade passaram a perseguir este ideal.
O movimento modernista, nascido ao redor deste debate, foi o primeiro a adotar o predomínio da fala sobre a escrita como regra pétrea na construção da norma culta. Junto com ela veio a narrativa codificada do imaginário popular como tema capaz de permitir um novo balanço entre sertão e cidade: O Saci, Macunaíma, Abaporu e Antropofagia são apenas alguns registros dessa vertente.
Essa forma de consciência foi se tornando cânone: em O sequestro do barroco, de 1989, Haroldo de Campos aponta Gregório de Matos como o fundador de uma literatura. Finalmente chega o momento no qual uma consciência plena de si mesmos, pelos brasileiros, é identificada. E de, enfim, se poder começar a indagar o que é que este brasileiro tem a dizer ao mundo.
Vale a pena indicar um passo além nessa linha. Davi Kopenawa Yanomami e Ailton Krenak, para ficar apenas nos exemplos dos povos originários, vêm sendo capazes de dar expressão escrita a um conteúdo antes só acessível a obnubilados. Até onde tal recado pode chegar?
Meu percurso em leitura e releituras da obra Os sertões, de Euclides da Cunha, talvez seja uma das narrativas com mais histórias dentro de mim. Era leitura obrigatória na universidade e exigiu (ou era minha exigência) ler as linhas, no fluxo contínuo de tantas páginas. O diálogo do autor com as pesquisas de campo trazia, em meio à história, um repertório não familiar a mim. Eu me perdia, eu me encontrava — espectador, no ofício de acompanhar também as vozes, na ordem da ciência.
Três partes integram o conjunto da obra: A terra, O homem, A luta. Levei-as, em minha profissão, para as escolas pública e particular, e mesmo para a universidade, incluindo a pós-graduação. Na Semana Euclidiana, eu já questionava minha interação com a obra. Em São José do Rio Pardo, em puro ensaio, recortei um fragmento do texto e, diante do público adulto, realizei a surpresa de os meninos encenarem o que brotava como fruição do “rio da aldeia”. Essa mise en scène abriu veredas em minha experiência poética, emocional. Fui em busca da pulsação da linguagem, das linguagens. Assumi, em primeiro plano, a teatralidade que Euclides oferece ao leitor. Passei pela ampla bibliografia de autores convocados pelo enunciador/narrador para convalidar sua tese: o sertão/o homem/Canudos. Segui, contudo, as lições de Ítalo Calvino em Seis propostas para o próximo milênio: o projeto de reinventar sentidos, em busca de “leveza” e “consistência”, em meio a um universo. Em Os sertões, a partitura: o ritmo que se constrói na conjunção do plano de expressão/plano de conteúdo.
Como motivação para esse recorte na apreensão da obra, a exemplo de Calvino, levo uma “verdade” que organiza meus passos. Quando o mundo à frente se mostra incomensurável, volto às matrizes míticas para buscar a essência do que se reinventa em travessia. Para vencer a Medusa, visto-me de Perseu e olho, no espelho, o que dou conta para poder, progressivamente, vencer a Górgona mortal que petrifica.
Escolho o ângulo para entrar no reino da linguagem, com vistas a estratégias para os desafios. Preciso do espelho que reflita a obra, apreendê-la pelo vértice que cabe em mim. É assim que ouso “penetrar surdamente no reino das palavras”: lá está a polifonia de múltiplas vozes na densidade de sua criação. Transcendo o Tejo e vou, progressivamente, em busca da sonoridade compatível com a minha condição humana. Lá está Os sertõese seus poemas inscritos.
Tenho vivido, atualmente, o insólito como expectador, partilhando a leitura em grupo com um coro afinado diante da construção da narrativa. Até certo ponto, livre, catarticamente, para fruir o palco onde se encontram o homem brasileiro, Antônio Conselheiro e o bando de jagunços.
Convido você, leitor, a fazer essa travessia. Mais cedo ou mais tarde, com o livro ou esta revista à mão, viva a experiência estética para ser também ator em cena. Afinal, o rio da aldeia, em espelho, contém a ancestralidade pulsante!
Letras dizem! Nem necessitam as palavras inteiras, que formam ao juntar-se.
Precisam de quem, atento, as compreenda, além de quem, escrevendo-as, facilite o seu entendimento. Assim formamos um trio. Eu escrevo, você lê e, entre nós, essas letras nos ligam num raro milagre: a minha expressão compreendida e a sua compreensão respeitada. Vejamos um exemplo, usando maiúsculas como ritos de significação.
“Ser o ser” ou “ser o Ser”. Voltaremos a isso.
A rigor, ninguém deveria escrever para quem desconhece. O ideal seria conhecer, do leitor, a bagagem, e só então recortar, para ele exclusivo, como faz o alfaiate, o texto perfeito.
No entanto, também se deseja — e é preciso —, escrever sem saber quem lerá. Para isso há um cuidado anterior, o de garantir uma bagagem mínima que permita a máxima compreensão. Dependendo do autor, essa escolha visita pequenos becos escuros, ou visita o universo, com seu imenso vazio e seu fascínio estelar. Daí dizerem que, quando um dedo aponta uma estrela, o sábio olha a estrela, o tolo olha o dedo. Palavras são dedos que apontam estrelas. Discutir as palavras é perder as estrelas. O ideal das palavras, esses riscos que soam, é serem inaudíveis, invisíveis, e só ficar, em quem lê, aquilo que dizem.
Escolhamos um tema: os Humanos!
Eu poderia dizer “o Homem”, no universal sentido de humanidade. Faltaria “a Mulher” no sentido de humanidade… Mas a esta altura ainda estaríamos preocupados com os dedos, perdendo as estrelas. Pratiquemos, portanto, esse ato de caridade que é a compreensão: humanos! Falemos de humanos.
Mulheres, homens, adultos, crianças, jovens, idosos, bebês… Palavras nos vãos, substantivando e adjetivando as categorias, existentes e novas, buscando o conjunto dos traços comuns: o humano no bicho, nesse bicho que é humano.
Quem é? Como é? O que nos faz humanos? O que torna humanos esses corpos que falam, escrevem e leem? Que registram, e lembram, e riem, e choram enquanto criam e matam, ao redor e entre si. Sendo longa a viagem, é melhor revisar a bagagem.
O que nos faz humanos? Esse tem sido um milenar tema de interesse. Segue inesgotado. Há uma razão: é inesgotável. E o é por uma singular característica: a linguagem.
Ampliando, a linguagem capaz de cultura. Ampliando, a cultura capaz de contrato. Ampliando, o contrato capaz de construir confiança.
Surpreendendo, o contrato igualmente sujeito ao ardil traidor, utilizando a linguagem a favor de mentir. Mas há mais.
Outros, antigos, insistiram que o estigma, o carimbo indelével do humano é a razão. Outros, juntando, que é a razão integrada à linguagem. Outros, ousando, propondo uma carne dotada de alma na forma espantosa de uma alma encarnada… E outros duvidando, acrescendo, cortando, a ponto de estimular que, para maior compreensão, juntemos tudo, e faltará.
Os humanos são animais biológicos dotados de fala, que evoluíram adaptativamente a partir de ambientes e ancestrais conhecidos. Não! Ou não só! Os humanos são almas criadas por Deus encarnadas em corpos. Ou foram os corpos criados por Deus, que então soprou a alma? Pelo que se vê, como há de tudo, os humanos criaram palavras para descreverem a si mesmos. Não! Foram as palavras que criaram os humanos para falar através deles.
Bio… Psi… Biosociopsi… Bioanímicosociopsi… Bioanímicosociopsi nebular… E vai além.
Sob a visão que a si mesmo constrói, um humano resulta de: (i) uma carga genética; (ii) uma educação na infância; (iii) uma educação juvenil; (iv) um autodesenvolvimento na maturidade; e, para muitos, (v) uma alma, ou espírito, ou self, ou palavras que sejam que se queira adotar.
É possível reduzir isso a: (i) genética (nature); (ii) educação (nurture); e (iii) alma (esse terceiro fator).
Derivada dos poderes acima: a linguagem! Aqui compreendida no seu amplo sentido de “capacidade de contratar socialmente símbolos de representação”. Assim somos nós.
Agora, entregando a promessa das primeiras linhas, voltemos ao “Ser o ser” ou “ser o Ser”. Sejamos o Ser que somos, a tentar descobrir os seres que somos.
Nossos céus, nosso lixo, são repletos de anjos e bichos.
Somos nós esses anjos e bichos. Integrando, cada um no seu só, os coletivos anônimos que adoramos, detestamos, mas que nos formam. A ambivalência é nossa aliada inimiga. Ela não é algo dentro de nós. A ambivalência é o que somos. Racionais paradoxos, pavorosamente incoerentes que, como criativos capazes de regredir como avanço, somos, ao mesmo tempo, produtores de desgraças e construtores de esperanças. Daí a questão “Ser o ser”. Comecemos por essa.
Ser, em maiúscula — algo de alma, portanto —, como um verbo ativo claramente disposto a ser, em minúscula, algo de bicho. Ou seja, desse “Alto”, esse Ser superior, desce ao corpo, experimenta os sentidos, cheira, olha, ouve, degusta, tateia. Experimenta as delícias e as dores, até os resquícios do gozo, fruindo e esgotando os amores.
É possível também “ser o Ser”. Esse bicho, menor, que olha acima e, por razões misteriosas — que nem são razões, são desejos —, ousa escalar. Ele escala! Em muitos sentidos, escala. Erótica, ética e esteticamente, ele escala e se torna mais desejável, mais justo, mais belo, até que escala politicamente, se fazendo mais poderoso, um fluente influente até, no limite, galgar a poética. Então, nesse cume, o ser que o galgou do sopé atinge o Ser. Aí se encontram! Ou seja, é no Ser, aí de cima, que esse ser, lá de baixo, é capaz de dar as mãos a si mesmo e propor a aventura a que se chama existência.
Qual seria? Que proposta, além dessas, tão óbvias e belas, poderia esse ser propor ao Ser, e vice-versa?
A proposta é bem clara: começar a “ser junto”. Essa é a proposta que o humano do Humano faz ao seu Ser, via ser. Conhecer!
Conhecer, primeiro, a si mesmo, é claramente impossível na ausência do Outro. Outrar-se, portanto. Outrar-se, em busca de si, na medida em que vaga pelos mares do Nós… Avancemos! Vejamos.
Humanos são bichos com almas capazes de voz, na forma de sis solitários que se conhecem em Outros, na busca de um Nós.
Delicados violentos, amorosos cruéis, ardilosos sagazes, perigosos, portanto. Humanos são esses seres estranhos que perguntam a si mesmos: “Quem são?”. É mesmo patético!
Aqui eu rio do rir do pensar… Como pode alguém, em sã consciência, perguntar a si mesmo quem é? Ou o que é? Ao invés de apenas ser, sem jamais perguntar nem querer se esconder. Justo aí o estranhamento se amplia. Os Humanos propõem oposições, sendo frequente se apaixonarem por extremos. Chamam dialética. É o maior absurdo que um surdo é capaz de escutar. Não sintetiza, divaga, contorce as palavras em dobras de cobras, cujos venenos sibilam nas bífidas línguas. Humanos, por vezes, são temíveis serpentes. Porém, ao mesmo tempo, concebem a dialógica. Então os rios de palavras fluem, uns acham os outros, os nós se desatam… E eles abraçam os nós, todos juntos.
Enfim, humanos são seres cujas palavras os tornam sociais, e chamam a isso contratos, frequentemente os celebram e respeitam, tanto quanto os falseiam e traem. Como usinas de afetos, humanos são produtores de raiva, de ciúme, de inveja, tudo embalado no medo, sempre em busca de amor.
Adoram o poder e se iludem ao pensar no amor ao poder como um dos poderes do amor. Amor e poder são opostos. No entanto, os humanos imaginam que, um dia, o amor e o poder estarão juntos.
Neste dia… A criar, a propor, a insistir… A esperar para ver. Neste dia… Ser o Ser será o ser… E nos lindos sons do serão da existência, os humanos serão…
Imagine carregar um gravador a tiracolo, desses antigos, cheio de botões quadrados, parecido com um tijolo longo e pesado, sob o olhar desconfiado de políticos e da imprensa, enquanto cada palavra que você registra denuncia injustiças. Nos anos 1980, um homem indígena fez exatamente isso, desafiando a imagem que a sociedade esperava dele. Em uma época em que a voz indígena era silenciada e a sua presença na sociedade totalmente invisibilizada, o cacique Mário Juruna não queria apenas registrar vozes — queria que o país ouvisse o clamor dos povos indígenas. No entanto, ele foi retratado pela mídia mais como uma figura bizarra, que dizia:
Warazu, o homem-branco, trata a palavra sem honrá-la, fazendo dela fumaça sem valor. Conta com o poder do vento que as leva, mas eu guardo aqui neste aparelho para que meus parentes saibam tudo o que falam e fazem e o que falam e não fazem.
Considerado excêntrico, por andar com um grande e pesado aparelho eletrônico, ele se destacava pela determinação em registrar a palavra dos políticos e denunciar a desconfiança dos indígenas em relação ao governo. Esse homem, Mário Juruna, acabou sendo retratado pela mídia como um clown da floresta, e o uso de seu gravador — embora carregado de intenção crítica — foi frequentemente reduzido a um “costume curioso”, mais folclórico do que uma séria denúncia sobre o descaso com os direitos indígenas.
“No Brasil, são mais de trezentas etnias espalhadas por todas as regiões, cada uma com sua identidade, sua voz e suas histórias de resistência”
Juruna, líder do povo Xavante, usava trajes tradicionais como expressão de sua identidade e do seu orgulho cultural, mas a sociedade e os veículos de comunicação viam essas vestimentas como “fantasias”, transformando-o em uma figura “exótica” ou “pitoresca”. Essa abordagem encobria o valor simbólico e político de sua aparência, deixando de lado a verdadeira mensagem que ele trazia. Quando se tornou deputado federal, Juruna provocou uma dissonância na forma como a sociedade enquadrava os povos indígenas, pois, para exercer o cargo, ele teve que obter um registro geral e um CPF, condições antes negadas às diversas etnias do Brasil. Em uma ocasião, ao ser convidado para um congresso internacional, Juruna foi barrado juridicamente, pois, sob a legislação da época, ele não era considerado “gente”.
A folclorização e estereotipação da cultura indígena se repetiu com o cacique Raoni, cuja imagem foi reduzida a símbolos visuais, como o botoque labial e o cocar, sem o devido reconhecimento de sua posição como liderança política em defesa da Amazônia e dos direitos de seu povo. Assim como Juruna, Raoni enfrentou um sistema que via suas vestimentas como uma curiosidade cultural, e não como parte de sua resistência e identidade. Nos anos 1980, Raoni foi catapultado à popularidade internacional pelo cantor de rock Sting, que o acompanhou em uma série de eventos para denunciar a destruição da Amazônia e defender os povos indígenas. Nascido por volta de 1930, Raoni é uma figura de liderança desde jovem, destacando-se por sua luta pelos direitos indígenas e pela preservação da floresta.
Estas duas figuras proeminentes representam a força e a luta de muitos. No Brasil, são mais de trezentas etnias espalhadas por todas as regiões, cada uma com sua identidade, sua voz e suas histórias de resistência. Juruna e Raoni nos lembram que a diversidade indígena é vasta e que suas lutas são as de centenas de povos que buscam o respeito, o reconhecimento e o direito de existir em seus próprios termos.
“A visão de que os povos ancestrais não eram humanos remonta ao século XVI, ao embate entre a Igreja Católica e os colonizadores”
Nas décadas anteriores, a narrativa predominante sustentava que os povos indígenas estavam “à beira da extinção”. Na década de 1960, os irmãos Villas-Bôas ganharam destaque ao coordenar a criação do Parque Nacional do Xingu, que visava proteger as culturas indígenas remanescentes da região. Essas culturas, ao longo da história do Brasil — desde o período colonial até a Monarquia e a República —, eram vistas pelas diversas constituições como “inferiores”. Apenas em 1988 a Constituição Federal passou a reconhecer os povos indígenas como plenamente humanos e portadores de direitos, embora ainda de modo limitado.
A visão de que os povos ancestrais não eram humanos remonta ao século XVI, ao embate entre a Igreja Católica, que condenava a escravização indígena, mas considerava essa população sem cultura alguma, e os colonizadores, que, em conluio com as monarquias europeias, justificavam o escravismo dos povos originários ao argumentar que, por serem canibais, os indígenas não poderiam ser reconhecidos como humanos. Desde então, os antigos povos reagiram a essa prática colonizadora de diferentes maneiras: fugindo para as florestas, resistindo em guerras genocidas, submetendo-se à catequização ou miscigenando-se, o que muitas vezes diluiu suas identidades e raízes.
Essa identidade fragmentada apresenta desafios profundos. A falta de coesão cultural enfraquece o sentido de pertencimento e a transmissão de valores, facilitando o isolamento e a exclusão, além de abrir espaço para conflitos internos e perda de referências culturais essenciais. Sabemos que uma identidade coletiva e cultural se sustenta em valores, símbolos e tradições compartilhados, que conectam os indivíduos a um sentimento de pertencimento e continuidade histórica. Elementos como língua, espiritualidade, arte e costumes criam um reconhecimento mútuo entre os membros, destacando o que os torna únicos. A identidade cultural é, portanto, uma herança e uma criação contínua, que se adapta e se reafirma diante de novos desafios.
Os territórios indígenas invadidos não foram apenas físicos, mas também imateriais. Esses espaços simbólicos e intangíveis, onde valores, memórias e práticas culturais são preservados e transmitidos, vão além de locais geográficos, existindo nos laços emocionais e espirituais entre as pessoas. São territórios invisíveis sobre os quais se erguem cosmovisões, moldando o entendimento que as comunidades têm de si mesmas e do mundo.
Folclorizações e estereótipos são resultado da destituição dessas visões de mundo. Um exemplo disso está na cosmovisão Guarani, profundamente integrada ao homem, à natureza e ao sagrado, que foi desarticulada pela chegada dos jesuítas no século XVI. Em nome da “civilização”, os missionários impuseram uma visão de mundo que desconectou os Guarani de seus territórios espirituais, levando-os a perder práticas e saberes essenciais para sua identidade. A organização social Guarani, que valorizava a liderança dos anciãos e a filosofia do bem-viver, foi substituída por aldeamentos controlados, com um sistema de ensino religioso que reprimia suas tradições. Esse processo, que estudiosos chamam de “etnocídio”, deixou traumas intergeracionais que ainda impactam a vida Guarani hoje.
Os legados de Juruna e Raoni são fonte de inspiração para movimentos indígenas contemporâneos que buscam reafirmar suas identidades e preservar seus territórios, tanto físicos quanto imateriais. As novas gerações de lideranças indígenas se apropriam de ferramentas tecnológicas, como as redes sociais, para registrar e disseminar suas próprias narrativas, como resistência à folclorização e à distorção. Essas vozes indígenas nos trazem uma mensagem clara: a identidade indígena não é um rótulo ou estereótipo; é uma experiência viva, construída e defendida ao longo de séculos de resistência. Figuras como Juruna e Raoni mostram que ser indígena é, acima de tudo, exercer o direito de existir e expressar seu modo de ser.
Quando o ancião Raoni, com seu corpo marcado pelo vermelho do urucum e a pintura do século em seus cabelos esbranquiçados, o rosto sulcado das lutas, o largo botoque nos lábios, é convocado a participar da solenidade da posse de um presidente lado a lado com este, é como se, pela primeira vez, o país reconhecesse a sua ancestralidade mais profunda. Mesmo que inconsciente e simbólico, o gesto vai tocar na revisão das narrativas escravocratas e políticas de dizimação que nasceram no século XVI.
Para toda uma diversidade de culturas ancestrais, quando se vê a imagem do cacique, já ancião, subindo a rampa presidencial — independente de ideologias ou tormentos políticos passados —, isso representa um marco histórico para a cidadania indígena no Brasil. Essa imagem, associada ao recente estabelecimento de um Ministério dos Povos Indígenas, aponta para uma nova etapa no reconhecimento e na valorização de direitos, identidades e outras inclusões. Representa um passo crucial para uma possível reparação histórica de séculos de marginalização, invisibilização e desrespeito.
Ao conceder esse espaço, o Brasil pode começar a cumprir um papel que muitos povos indígenas esperaram por gerações: uma cidadania plena, em que sua cultura e história sejam vistas não apenas como um legado, mas como uma parte fundamental do futuro do país. Juruna e Raoni abriram uma trilha difícil na floresta de aço e concreto.
Ao conhecer essas histórias, você se torna parte de um caminho de re-existência. De uma resistência que não se contenta com estereótipos e exige respeito e reconhecimento pleno. Estar disposto a caminhar nessa trilha com eles, ampliando o espaço para vozes e histórias antes ignoradas, é o desafio da juventude atual, neste paradigma tecnológico digital do século XXI.
O que é mais terrível e dramático é que o mundo vive um momento tão desassociado de si e da natureza, após ter esgotado sistematicamente recursos naturais que lhe garantem a sobrevivência, que as visões de mundo que podem verdadeiramente ajudar na reconciliação com uma vida mais digna e saudável estão intactas como bens preciosos por entre as identidades desses povos.
Ao longo da história, nada teve maior impacto na vida coletiva das mulheres do que o ato de dar à luz. O parto é um momento transformativo na vida de uma mulher e o ato definitivo da história da humanidade, sem o qual nossa espécie não teria sobrevivido. Pode ser um momento de profunda realização e conquista, de admiração pela força materna e de infinito amor, mas nem sempre assim é. Às vezes, ele é marcado pelo trauma, pela dor e pela perda, e é sempre um momento de fragilidade e perigo para a saúde das mães e dos bebês.
“Uma lente histórica revela que o parto é também uma construção social, que diverge entre culturas, religiões, classes socioeconômicas e, principalmente, na esfera médica, é construída pelos meios de ganho de conhecimento, economia e tecnologia”
O fato de o parto ser de extrema dificuldade para nós, seres humanos, se deve à nossa evolução. Fósseis de seis milhões de anos mostram sinais precoces do bipedismo, um processo evolutivo que demoraria mais quatro milhões de anos, incluindo o surgimento do Australopithecus, hominídeo bípede. Mesmo andando em pé, seus esqueletos sugerem que a sua forma de andar era bastante diferente da nossa. Aos poucos, nossos quadris diminuíram para comportar sua nova estrutura, em que a pélvis e os ossos da coxa se encaixaram de uma maneira que nos permite andar em pé por períodos prolongados. O Homo erectus, espécie hominídea encontrada na África e datada a cerca de dois a 1,8 milhões de anos atrás, é o nosso primeiro parente ancestral com bipedia estritamente terrestre e não arbórea, com proporções semelhantes à do homem moderno, e por isso com uma forma de andar parecida. Justamente por isso foi batizado de erectus — homem reto ou homem que fica em pé.
Enquanto isso, nosso cérebro vivia sua própria evolução espantosa. Ao longo de milhões de anos, o cérebro humano triplicou de tamanho e tornou-se desproporcionalmente maior em relação ao resto do nosso corpo em comparação a outros animais. Esse conjunto de fatores evolutivos, a pélvis estreita e o cérebro grande, resultou em bebês com cabeças maiores tendo que passar por canais vaginais bem mais estreitos. Assim, o trabalho de parto tornou-se mais lento, mais dolorido e muito mais perigoso.
Por isso nós, mulheres, passamos a necessitar de ajuda durante o parto. A figura das parteiras, papel que, em sua essência, descreve uma pessoa que assiste no parto, surgiu centenas de milhares de anos atrás. Historicamente, elas eram mulheres mais experientes que auxiliavam a parturiente durante o trabalho de parto — que não à toa se chama trabalho. Às vezes rápido, mas frequentemente demorando horas, o parto é uma provação. A função das parteiras era (e continua sendo) o de apoiar a mãe no que for necessário.
Isso tudo pode nos parecer um tanto óbvio. Afinal, o parto é uma experiência cotidiana e universal. As mulheres dão à luz desde o início da humanidade, e nosso corpo está programado para a reprodução da espécie. Nos parece lógico, sabendo que o parto é difícil e doloroso, que alguém deva acompanhar a mãe. Porém, uma lente histórica revela que o parto, assim como o papel da parteira, e mais adiante, dos médicos e hospitais, é também uma construção social, que diverge entre culturas, religiões, classes socioeconômicas e, principalmente, na esfera médica, é construída pelos meios de ganho de conhecimento, economia e tecnologia. O parto, enfim, não se restringe a um ato fisiológico, mas é também um espelho do momento e da sociedade em que se vive. Isso é algo unicamente humano.
Os registros históricos mais antigos que temos são esculturas e imagens de seis a sete mil anos antes de Cristo, encontradas onde hoje se situa a Turquia. Elas retratam uma deusa, sentada em um trono dando à luz, a cabeça do bebê visível entre suas coxas. De fato, na maioria dos registros antigos de várias culturas, vemos que as posições mais utilizadas eram verticais, com a parturiente em pé, ajoelhada, de cócoras ou sentada em alguma espécie de cadeira, trono ou banco especializado. Temos imagens dessas posições no Egito, na Grécia, na Roma Antiga, na Índia, no Japão, na China e pelo mundo afora. Estas posições ainda são praticadas em comunidades onde a obstetrícia ocidental não é dominante, mostrando uma continuidade no ato do parto através da história, interrompida apenas pela medicalização do parto no Ocidente a partir do século XVII.
As cenas de parto no Egito Antigo são numerosas e uma excelente fonte de informações, pois abrangem milhares de anos entre as primeiras dinastias faraônicas até o Império Romano. Em sua maioria, são relatos em papiro, com conteúdo médico e religioso, com magias e encantos para a proteção das mães e bebês, assim como descrições de complicações durante e após o parto e possíveis tratamentos para diferentes órgãos, como o útero, a bexiga, a vulva e o abdômen da mulher. O aspecto místico ou religioso, longe de ser uma indicação de ignorância sobre o corpo, demonstra que o plano espiritual e o corpo físico não operavam em âmbitos separados, mas eram parte comum e complementar dos conceitos de fertilidade e saúde. Não existia cura sem magia nem magia que não estivesse em busca de proteção ou cura. Tão importante era esse aspecto religioso que a faraó Hatshepsut registrou a assistência de vários deuses no seu parto, momento que imortalizou na parede de seu templo mortuário em Deir el-Bahari. Cenas de partos fazem parte de outros templos e de pequenas capelas do Egito Antigo, sempre com a gestante sendo acompanhada por outras mulheres, que lhe prestam assistência. Algumas mostram mulheres em pé; outras, sentadas. Existe até um hieróglifo específico para o parto — uma mulher sentada, a cabeça do feto visível entre suas pernas. De igual importância para os egípcios era o cuidado prático com o momento do parto. Arqueólogos descobriram tijolos de 3,7 mil anos, chamados meskhenet, o nome também dado à deusa do parto. Eles eram posicionados debaixo dos pés das mulheres que davam parto de cócoras para ajudar no posicionamento correto da pélvis.
Universo feminino
Mesmo na Antiguidade, o parto era um domínio feminino. O que essas imagens antigas mostram é que mulheres eram sempre apoiadas e assistidas por outras mulheres, fato que continuou por centenas de anos. Durante a Idade Média na Europa, a medicina era baseada em textos de filósofos da Antiguidade, principalmente Galeno e sua teoria dos humores, Hipócrates e Aristóteles. Estes médicos-filósofos focavam primeiramente na saúde dos homens, e a saúde feminina era pouco estudada (algo que, diga-se de passagem, ainda acontece no século XXI). Portanto, os “assuntos” femininos eram deixados de lado, sob responsabilidade das mulheres, hábito reforçado por tabus que ditavam quais homens tinham acesso ao corpo nu de uma mulher — em muitas culturas, apenas o marido.
“Independentemente de onde o parto se dava, a parturiente estava sempre cercada de outras mulheres. Era um universo estritamente feminino”
As parteiras formavam, portanto, uma parte essencial do nascimento de uma criança. Eram mulheres mais velhas e experientes. A palavra midwife, “parteira” em inglês, vem do inglês arcaico mid e wif, ou “com mulheres”. Na Jamaica, são chamadas de nana, ou “avó”, assim como no Japão, onde até recentemente eram chamadas de sanba, ou “idosa”. Em francês, eram as sages-femmes, ou “mulheres sábias”, e, em dinamarquês, as jordemoder, ou “mães da terra”. As parteiras abrangiam todas classes sociais, e não havia um curso ou treinamento específico para se tornar parteira. Em muitos casos, as “parteiras” eram apenas parentes ou vizinhas mais velhas da grávida, que já tinham passado pelo nascimento de seus próprios filhos. Era o caso principalmente entre as famílias de mais baixa renda ou que viviam em zonas rurais muito isoladas.
Havia também parteiras profissionais, que eram pagas pelo seu serviço. A partir do século XV, essa passou a ser uma profissão mais regulamentada. Alguns municípios na Europa central, como na Alemanha e na Bélgica, passaram leis sobre a prática da parteira, definido os parâmetros dos serviços que elas poderiam oferecer. Mas, em sua maioria, a profissão de parteira não exigia nem uma educação formal, nem era organizada em guildas medievais. O treinamento ocorria através da prática, e muitas parteiras iniciavam sua carreira acompanhando outra parteira, mais experiente, por vários anos, aprendendo o ofício a partir da observação e da participação em partos.
As parteiras profissionais eram mais comuns em centros urbanos, e eram bem pagas se o bebê nascesse saudável, especialmente se fosse menino. Aceitavam moeda, mas, entre famílias mais simples, muitas vezes eram pagas com uma troca de serviços ou bens, como ovos, galinhas, leite, mel e pães, ou em tecidos ou roupas. A parteira profissional trazia mais experiência e ajudava a parturiente de várias formas, como, por exemplo, a trocar de posição e a controlar a dor com bebidas feitas à base de diferentes ervas. Também cuidavam do bebê, monitorando sua posição e, quando necessário, inserindo as mãos dentro do canal vaginal para tentar girar um bebê que estivesse em posição obstruída. Elas ainda estimulavam a respiração do recém-nascido, cuidando para desenrolar o cordão umbilical caso estivesse no pescoço do bebê.
Não era uma profissão sem risco. Caso o bebê nascesse com alguma má-formação, a parteira poderia ser acusada de haver o enfeitiçado. Em 1484, o Papa Inocêncio VII proclamou uma bula que ordenou a investigação acerca da bruxaria e de heresias. Os dois inquisidores encarregados de liderar a investigação, Heinrich Kraemer e James Sprenger, anexaram a bula papal a um dos mais danosos documentos já produzidos, o Malleus Maleficarum, ou “martelo das bruxas”. Nele instruíam homens a identificar uma bruxa, dando início a uma perseguição terrível. Parteiras, muitas vezes mulheres mais velhas em posições sociais mais vulneráveis (por serem, por exemplo, viúvas sem a proteção legal de um marido, ou por terem conhecimento de ervas e curas caseiras), eram alvo fácil dessa perseguição. As parteiras desafiavam, assim, as crenças institucionais cristãs, pois não só levavam a população a acreditar que elas tinham algum poder sobre a vida ou morte de uma criança, como, ao olhos da Igreja, o trabalho delas intervinha na expiação do pecado original, ou seja, ao prestar assistência e amenizar a dor da parturiente, não permitiam que as mulheres se livrassem da mácula do pecado original, que toca a todas as mulheres em função de seu sexo. Entre os séculos XVI e XVII, mais de sessenta mil pessoas foram condenadas à morte por bruxaria; apesar disso, o papel da parteira era tão fundamental que continuou sendo de praxe por séculos.
A grande maioria das mulheres dava à luz em casa, fosse esta um casebre simples ou um palácio. Porém, em algumas culturas, como os maori da Nova Zelândia, as mulheres eram proibidas de fazê-lo, para evitar atrair a presença de maus espíritos para o seu lar. No Japão Antigo, o parto era um evento durante o qual a mãe e o bebê flutuavam entre o mundo dos mortos e dos vivos. Por isso, a mulher dava à luz em uma sala ou cabana especial, que a separava da vida cotidiana. Mulheres francesas campesinas muitas vezes optavam por dar à luz nos celeiros, para ter um pouco de paz longe de outros filhos e para facilitar a limpeza após o parto.
Na Inglaterra medieval, ao pai do bebê era dada a função de ir de porta em porta, avisando amigas e vizinhas, do parto iminente, para que elas pudessem prestar assistência. Uma vez feito isso, ele era proibido de participar do parto. As mulheres ajudavam a trocar lençóis, lavar a roupa de cama, buscar água quente, assim como ajudar a cuidar de irmãos mais velhos, de trazer comida e até de cuidar do marido nos dias seguintes ao parto. O nascimento de uma criança era razão para comemoração, e era um evento social, uma chance para colocar a fofoca em dia, tanto que, em inglês, essas mulheres ajudantes eram conhecidas como God-siblings, ou “irmãs de Deus”, expressão que aos poucos se transformou em God-sibs, e eventualmente em gossips, ou “fofoqueiras”. Isso demonstra o aspecto social e comemorativo do parto, durante o qual se botava o papo em dia. Era um evento de que toda uma comunidade participava, e um momento comunitário de solidariedade com a mãe, que nunca se encontrava sozinha.
Para mulheres da aristocracia, e em especial da realeza, o parto também tinha importância política e ganhava um caráter quase de espetáculo. O nascimento de um herdeiro homem podia garantir a continuidade de um reinado, enquanto nascimentos de filhas geravam a oportunidade de alianças políticas e militares no futuro através de casamentos vantajosos. As mulheres aristocráticas iam à igreja rezar pela saúde do bebê, e, algumas semanas ou meses antes do parto, se recolhiam para um período de repouso dentro de seus aposentos. Lá se criava um ambiente que imitava o útero, quente e escuro: o chão e as paredes eram revestidos de tapetes e tapeçarias; todas as janelas, exceto uma, eram cobertas, para evitar a entrada de vento encanado, considerado perigoso para a saúde da mãe; o fogo era aceso na lareira e assim mantido o tempo todo; e velas providenciariam a única fonte de iluminação. Ali a grávida descansava, rezava e refletia, se preparando para o momento do parto, que era assistido por diversas figuras da corte. O parto era também um dever.
Porém, independentemente de onde o parto se dava, a parturiente estava sempre cercada de outras mulheres, parteiras, parentes e vizinhas. Era um universo estritamente feminino. As mulheres pariam no seio da família, confiando no seu instinto e na ajuda de outras mulheres.
A medicalização do parto
O processo de medicalização do parto começou no século XVII, sob influência da corte francesa. O médico François Mauriceau, da escola obstétrica francesa, foi encarregado pelo Rei Louis XIV de encontrar uma maneira que permitisse o monarca de enxergar melhor o momento do nascimento do bebê. O parto real era, afinal, matéria de importância nacional, e a saúde dos herdeiros poderia garantir a continuidade do reino. Louis XIV teve vinte e dois filhos, e assistiu o parto tanto de seus herdeiros oficiais como de seus bastardos, frutos da união com sua esposa e com suas amantes, que deram à luz deitadas de costas, pernas erguidas.
“Com essa institucionalização do parto, ocorre um afastamento da família e da rede de apoio da mãe no momento do nascimento”
Esse foi um legado maldito para as mulheres, pois essa posição, que ganhou popularidade primeiro entre as aristocratas e depois se espalhou pela sociedade, não favorece o processo do nascimento. Além dessa nova posição, a força da escola obstétrica aos poucos empurrou as parteiras para o segundo plano, trocadas pela figura do médico, normalmente homem. As parteiras continuavam a assistir, mas, quando qualquer intervenção se tornava necessária, os médicos eram chamados. Isso tornou o momento do parto um embate, não sendo incomum ter um médico dando ordens contrárias às sugestões da parteira. Havia também outro problema. Por questões de pudor, médicos muitas vezes drapeavam um lençol sobre o quadril da mulher e apenas guiavam o bebê com as mãos, sem olhar o que estava acontecendo.
Apesar do avanço da profissão médica, adentrando um âmbito antes estritamente feminino, as técnicas não haviam se aprimorado tanto. Ainda se sabia muito pouco sobre a fisiologia da gravidez e a mecânica do parto. Partos eram momentos de grandes riscos para as mães e seus filhos. Havia muitas coisas que poderiam dar errado, e a mortalidade materna seguia alta. As causas mais comuns incluíam infecção, hemorragia e pré-eclâmpsia. O risco ao feto também era elevado, especialmente em partos obstruídos, com bebês que não se encaixavam corretamente, com cordões umbilicais envoltos no pescoço ou que ficavam sem oxigênio se presos no canal vaginal por muito tempo. Todas essas preocupações agora tinham que existir ao lado de ideias e tratamentos trazidos pelos médicos de outras áreas. As práticas que haviam evoluído ao longo dos séculos foram substituídas por novos entendimentos do corpo. Por exemplo: na Europa, um fungo chamado Claviceps purpurea, conhecido como ergot, era usado por parteiras para acelerar o trabalho de parto e para diminuir o sangramento pós-parto, enquanto os médicos introduziram a prática do sangramento para livrar a mulher dos maus humores — uma ideia no mínimo desaconselhada, visto que a hemorragia era uma complicação frequente. Assim, aos poucos, as mulheres foram desapropriadas de seus saberes, e as parteiras foram perdendo seu lugar em prol dos médicos cirurgiões.
No final do século XVI, o médico inglês Peter Chamberlen inventou o primeiro fórceps, que mais tarde foi aprimorado. Isso gerou, de fato, uma mudança no aspecto clínico obstétrico. O fórceps nada mais é que um instrumento criado para extrair bebês, puxando-os pela cabeça através do canal vaginal em partos mais difíceis ou prolongados, sendo utilizado para evitar a mortalidade materna e perinatal — ou seja, em casos extremos. Ele foi um grande avanço, pois substituiu a única outra alternativa nesses casos extremos, a do parto cesariano. A cesárea, que hoje domina o cenário obstétrico no Brasil, em pouco se assemelhava à cirurgia que temos hoje. Era um último recurso, pois a mãe, na maioria das vezes, não sobrevivia. Manuscritos persas e assírios já mencionavam a retirada de bebês pela via abdominal, mas a prática ficou comum no contexto do Império Romano. Existe até uma lenda, um tanto duvidosa, de que a cirurgia assim se chama porque a mãe de Júlio César foi a primeira mulher a ter um parto cesariano. O que sabemos é que havia uma lei em que proibia o enterro de gestantes antes que se retirasse o bebê do ventre. Se este sobrevivesse, seria chamado de cesare, e talvez essa seja a origem do nome. O importante é ressaltar que, nessa época, a cesárea era feita apenas em partos nos quais a mãe já havia morrido, como uma última chance de salvar a vida do feto. Era uma prática rara, pois não rendia bons resultados, tanto que foi apenas na Idade Média que recomeçam os relatos de cesáreas: o primeiro é de 1337, na República Tcheca, e nele conta-se que a Rainha Beatrice de Bourbon desmaiou no final da gravidez. Achando que ela havia morrido, começaram a cirurgia para tentar salvar o bebê, no meio da qual Beatrice acordou. Outro relato é de 1500, na Suíça, onde uma cesárea foi feita não por um médico, mas por um castrador de porcos, que chamou parteiras para tentar salvar a vida de sua mulher. Elas não conseguiram ajudar. Ele então chamou os cirurgiões-barbeiros, que se recusaram a abrir a barriga da grávida. Por fim, no auge do desespero, ele mesmo fez a cirurgia, e a mãe e o bebê sobreviveram. Mas foi apenas com a invenção da anestesia, no século XVIII, que médicos-cirurgiões passaram a tentar a cirurgia em grávidas ainda vivas, com o intuito de salvar ambas as vidas, da mãe e do bebê. Mesmo com a ajuda da anestesia e com os avanços no campo médico (que contava então com um maior entendimento do corpo humano graças às autópsias, que viraram prática mais comum em escolas de medicina), dados mostram, por exemplo, que, entre 1787 e 1876, nenhuma mulher sobreviveu a uma cesárea na cidade de Paris. Era ainda algo muito perigoso. Assim, a invenção do fórceps salvou a vida de muitas mulheres e bebês por evitar a cesárea. No século XIX, a cada mil mulheres, cerca de 275 morriam, uma taxa altíssima.
A invenção do fórceps salvou, portanto, a vida de muitas mulheres e muitos bebês, proporcionando uma alternativa mais segura, mas não sem seus riscos. Além dessa invenção, a medicina passou por vários outros avanços, como o desenvolvimento da teoria dos germes, que mostra que infecções são causadas por bactérias. Médicos e parteiras notaram que mortes por infecção poderiam ser evitadas se as mulheres dessem à luz em ambientes mais estéreis e limpos. Pela primeira vez na humanidade o parto deixou de ser um evento realizado no seio familiar e passou a acontecer cada vez mais em hospitais e centros especializados, as maternidades. Surgiu também o saneamento básico, que melhorou as condições de salubridade. E depois, no século XX, é descoberta a penicilina, que diminuiu em muito as mortes por infecções. Esse conjunto de anestesia, antibiótico e um conjunto de profissionais, obstetras, parteiras e pediatras, reunidos em um único ambiente corta significativamente a mortalidade materna e neonatal. Os hospitais passam a adotar cada vez mais práticas que se tornam rotineiras, como o uso de campos estéreis, a desinfecção da vulva e de instrumentos médicos, o uso de enemas para limpar o cólon antes do parto e roupas especiais e limpas para médicos e enfermeiras.
Esse ideal do parto limpo como sendo o melhor levou a outras práticas com o cuidado dos bebês. Ao nascer, eles são imediatamente separados das mães e levados para um berçário, onde tomam banho. Em conjunto com o parto limpo, surge também a ideia de que o melhor parto é um parto rápido, pois se acreditava que um parto lento aumentava o risco de faltar oxigênio para o bebê. Logo começam, assim, intervenções com ocitocina, ruptura de bolsa, manobras manipuladoras e episiotomia. A mulher perde a autonomia até na decisão da posição de seu corpo, tendo de ficar em posição deitada para facilitar o monitoramento e trabalho dos profissionais. Com cada intervenção, aumenta o número de parâmetros a serem monitorados por máquinas e aparelhos especializados — análises, ecografias, avaliação dos sinais vitais.
Com essa institucionalização do parto, ocorre um afastamento da família e da rede de apoio da mãe no momento do nascimento, pois hospitais e maternidades não foram pensadas para acomodar a parturiente, mas sim para as necessidades médicas dos profissionais da saúde. E por ter de permanecer internada em quartos muitas vezes coletivos, com regras definidas pelas instituições hospitalares, as mulheres tornam-se cada vez mais passivas diante dessas regras e normas, diante da perda da privacidade e do seio familiar.
É nesse momento que se solidifica a figura do médico como protagonista do parto. É ele (na sua grande maioria histórica, foram eles, e não elas) que passa a decidir como e quando a mulher irá parir. É tirada completamente da mulher a capacidade de sentir seu próprio corpo e de deixar os instintos guiarem a natureza. De repente, ela se encontra apática, figurante do seu próprio parto, monitorada por aparelhos incompreensíveis e cercada de médicos preocupados apenas com o quadro clínico. A ela, mãe, agora cabe apenas um papel de fragilidade e de exposição total, longe da família e da comunidade, presa a uma cama, deitada, participante quase inativa.
Nascer no Brasil
O Brasil se destaca no mundo por um fator extraordinário: é o país com a segunda maior taxa de partos cesarianos do mundo, atrás apenas da República Dominicana. O cenário é descrito como uma “epidemia da cesárea” por parte da comunidade médica. Como chegamos nisso?
“O debate em torno da cesárea no Brasil deve incluir também discursos sobre riscos e segurança”
A primeira cesárea registrada no Brasil é creditada ao doutor José Correia Picanço, Barão de Goiana, e foi realizada em Pernambuco, em 1822. Porém, a obstetrícia realmente teve início no país com a criação das escolas de medicina, em 1852. No final do século XIX, as primeiras maternidades começaram a surgir em Salvador, no Rio de Janeiro e em São Paulo, e nessa época a cesárea, no Brasil, continuava sendo a exceção, recorrendo-se a ela apenas em casos de obstrução durante o trabalho de parto. O índice de mortalidade materna após uma cesárea continuava muito alto por causa de infecções.
Até então, caso a escolha tivesse de ser feita entre a vida da mãe ou do bebê, a vida do bebê era a que prevalecia. Porém, após uma decisão da Academia Francesa de Medicina, em 1852, que defendia dar prioridade à vida da mãe, muitos médicos adotaram a prática da embriotomia, procedimento extremamente perturbador, em que o feto é cortado em pedaços dentro do ventre para poder ser extraído, esteja ele vivo ou morto. Isso resultava, obviamente, em 100% de óbito para o bebê, e imagina-se o quanto era uma experiência invasiva, violenta e traumatizante para a mãe.
Enquanto o fervor pelo avanço técnico levava os médicos a apoiarem a embriotomia como procedimento, a prática no Brasil foi fortemente condenada pela Igreja Católica, que considera o momento da concepção como o momento que dá início a vida. Portanto, para a instituição, a embriotomia não passava de assassinato. As mulheres grávidas se viram, assim, na encruzilhada dos interesses religiosos e médicos. O corpo da mulher, mais uma vez, é campo para batalhas éticas, ideológicas e legais.
Na primeira metade do século XX, a embriotomia caiu em desuso, e voltou a preferência pela cesárea. Essa mudança se deve a dois fatores: avanços e inovações na técnica da cirurgia, incluindo a posição do corte e os pontos dados na mulher, assim como a chegada da penicilina; e a aprovação do Código Penal, em 1891, e do primeiro Código Civil, em 1916, uma vez que ambos concederam proteções legais às vidas do feto e da gestante.
O século XX também viu um projeto político e social para a construção do cidadão brasileiro. Era um cenário complexo, portanto, em que havia um objetivo básico de fornecer à pátria filhos saudáveis — os futuros trabalhadores que construiriam uma grande nação. O controle do corpo da mulher se tornou, assim, parte desse projeto, e a profissão médica dependia de exercer esse poder total sobre o ato do nascimento — e não apenas no ato, mas na própria definição do que ele deveria ser. Isso não quer dizer que os obstetras não acreditavam estar fazendo o melhor pela parturiente e pelo bebê, mas que sua produção de conhecimento era responsável pelo aumento vertiginoso das intervenções médicas durante o parto no Brasil. Através de análises, medicamentos, procedimentos e comportamentos muitas vezes eficientes, eles contribuiram para a queda da maternidade materna e neonatal, mas geraram, involuntariamente, outros aspectos negativos.
Hoje, no Brasil, acima de 90% das mulheres têm assistência pré-natal, tanto na zona rural quanto na urbana. Mais de 70% das mulheres têm mais de seis consultas pré-natais, um dos indicadores de sucesso para evitar a mortalidade da mãe. O nosso percentual de partos realizado fora de ambientes hospitalares está abaixo dos 2%. Nos anos 70, a taxa de cesáreas no Brasil era em torno dos 15% — a Organização Mundial da Saúde (OMS) define a taxa normal de cesáreas (aqueles partos que realmente necessitam de uma intervenção cirúrgica) em 10-15%. Em 2022, porém, chegamos a 57,7% no país. Por quê? Porque a institucionalização do parto em ambientes hospitalares resultou em um número crescente de intervenções. Mulheres grávidas com um risco habitual, ou seja, sem uma gravidez de risco, estão sendo expostas, sem nenhuma necessidade médica, a intervenções como uso de cateteres, rupturas de membrana, indução ao estourar a bolsa ou falta de movimentação ou troca de posição, o que não favorece o parto. Além disso, deve falar da episiotomia, que é um corte cirúrgico feito no períneo, além do uso de medicamentos para acelerar o parto. Em outras palavras, no Brasil, mulheres de risco habitual e mulheres de alto risco estão recebendo as mesmas intervenções, indiscriminadamente.
Porém, essas cesáreas não são distribuídas de forma igual. A taxa é de 85% no setor privado e apenas 40% no setor público, indicando uma forte predileção pelo parto cesariano entre mulheres com maior grau de escolaridade e de mais alto padrão econômico. Entre mulheres não brancas, a taxa cai tanto para a cesárea em si quanto para o uso de medicamentos que aliviam a dor (por exemplo a anestesia epidural). Esse é um triste fenômeno, às vezes denominado “cor da dor” uma vez que a raça de uma mulher pode implicar diferença nas intervenções que serão oferecidas a ela durante o seu parto. Esses diferentes tratamentos com base em classe e cor, assim como estruturas e práticas patriarcais, contribuem para que as taxas de mortalidade infantil negra continuem mais altas do que a branca. Os problemas são desiguais: enquanto mulheres em melhores condições financeiras podem encontrar resistência para garantir o parto vaginal em uma gravidez de risco habitual, mulheres não brancas, de rendas mais baixas, ainda sofrem para conseguir acesso ao mesmo nível de atendimento.
O debate em torno da cesárea no Brasil deve incluir também discursos sobre riscos e segurança. Ao ver de muitas mulheres (e profissionais obstétricos), a cesárea oferece um risco controlado e controlável — ela rápida, segura e limpa —, enquanto o parto vaginal lhes parece um risco incontrolável e imprevisível. Não apenas o risco é controlável, mas, com uma cesárea eletiva, se pode agendar a data do nascimento, retirando do cenário um elemento de incerteza que pode gerar ansiedade e ajudando no planejamento de licença maternidade, férias, ajuda com filhos mais velhos e assim por diante. Há também o medo da dor do parto, que causa terror em algumas mulheres. Por aspectos como esses a cesárea ficou com fama de ser a opção “mais fácil”, deixando-se de lado que ela é uma cirurgia abdominal séria, com recuperação lenta e muitas vezes dolorosa.
Hoje existem vários movimentos que buscam mudar o cenário do parto no país. Em 1996, Organização Mundial da Saúde publicou o manual Boas práticas de atenção ao parto e ao nascimento, com várias orientações em torno do parto. Essas orientações são baseadas em evidências científicas de estudos feitos ao redor do mundo. A principal meta do manual é mostrar que o melhor caminho para obter o parto mais saudável é oferecer o menor número de intervenções possíveis compatíveis com a segurança da parturiente e do bebê. Esse movimento em prol da “humanização” do parto entende a gravidez e o parto como eventos fisiológicos naturais que, em 80% dos casos, não necessita de tratamento ou intervenção médica. Logicamente, nos 20% dos casos em que há necessidade de intervenções, estas devem ser realizadas, de forma a manter a mãe e o bebê em maior segurança e conforto possíveis. Em outras palavras, a parte médica deve se basear nas mais fortes evidências e práticas científicas, sem sacrificar o apoio, o acolhimento, a autonomia e o respeito à parturiente, figura central do parto.
Esses são os objetivos do Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento instituído pelo Ministério da Saúde, com base nas orientações da OMS e com o entendimento que devemos adotar “medidas e procedimentos sabidamente benéficos para o acompanhamento do parto e do nascimento, evitando práticas intervencionistas desnecessárias, que, embora tradicionalmente realizadas, não beneficiam a mulher nem o recém-nascido, e que com frequência acarretam maiores riscos para ambos”.
O projeto Rede Cegonha, implementado pelo Ministério da Saúde como parte desse movimento de humanização, é hoje uma das principais estratégias do Sistema Único de Saúde, o SUS, para acompanhar a gestante durante a gravidez, o parto e pós-parto, além de prestar assistência a crianças até os dois anos de idade. O país conta com 270 serviços hospitalares habilitados na Rede Cegonha, entre eles 18 Centros de Parto Normal, ou Casas de Parto, em funcionamento. Estas são unidades de saúde destinadas aos partos de risco habitual, fora dos (mas em proximidade de) estabelecimentos hospitalares, que possibilitam a presença de acompanhantes, que oferecem opções como banheiras e massagem para as parturientes, com ambientes em que estas possam se movimentar durante o trabalho de parto, e terapias como a aromaterapia e outros confortos. Existe hoje a meta de construir mais 30 desses centros em 19 estados brasileiros. É um passo na direção certa; porém, ainda temos um longo percurso a traçar.
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Após perder dois bebês, com nove e doze semanas de gravidez, respectivamente, tive minha primeira filha aos 36 anos de idade, o que é considerada uma gravidez geriátrica. Aos 30 anos de idade, havia sofrido uma trombose venosa na perna, e isso pode ter levado a um problema que me fez perder os bebês. Na terceira gravidez, tomei injeções anticoagulantes que me ajudaram a manter o feto. Moro em Estocolmo, na Suécia, país referência em parto humanizado. Com 40 semanas e três dias de gestação, e sem nada da minha bebê dar o ar da graça, insisti muito com as médicos para ter o parto induzido, contra a indicação da minha parteira, que é quem faz o acompanhamento pré-natal no país. Até então eu havia tido uma gravidez saudável, de risco habitual, porém, pelo fato de ser mais velha, de ter um histórico de perda e de morar em um país com uma cultura totalmente diferente, sem dominar o idioma, me sentia muito insegura e ansiosa. Minha ginecologista no Brasil havia me dito que, se estivesse tendo o parto em São Paulo, teria tido uma cesárea marcada para as 39 semanas de gestação por causa dos fatores que já mencionei. Porém, a parteira que acompanhou minha gravidez aqui parecia despreocupada. A cada consulta, media o batimento cardíaco da neném, avaliava a minha barriga e me perguntava como estava me sentindo. Fiz apenas dois exames de ultrassom. Vinda do sistema brasileiro, me sentia totalmente perdida e desamparada.
Por isso insisti no parto induzido, sem ter maiores informações e com nenhum entendimento sobre quais seriam as intervenções feitas, no meu caso. Entrei no hospital em uma quinta-feira. Durante os quatro dias que se seguiram, em trabalho de parto, recebi hormônios como prostaglandina, via vaginal, e ocitocina intravenosa. Tive intervenções não farmacológicas, como o deslocamento das membranas do útero, em que a parteira manipula as membranas com os dedos, e, no segundo dia, um cateter com um balão foi inflado no colo do útero. Na terceira noite, tive a ruptura da bolsa com o que me parecia uma espada, longa e pontiaguda. Recebi óxido nitroso e morfina para administrar a dor, aos quais tive uma reação negativa já na primeira noite, e passei a vomitar descontroladamente pelos dias seguintes. Fiquei muito enfraquecida e desidratada, e passei a receber soro e glicose intravenosos. Minha dilatação não passava dos sete centímetros. Por fim, no domingo, minha filha nasceu depois de uma cesárea de emergência.
Se pudesse viajar no tempo, voltaria àquela grávida ansiosa, aterrorizada, e diria “calma, seu corpo não está pronto ainda, confie nele”. Todas as intervenções que sofri não ajudaram a minha filha a nascer, e, por fim, por preocupação com a minha saúde, ela teve que sair à força. Passei anos lidando com as consequências. Tive uma recuperação muito dolorosa e difícil, e me sentia um fracasso como mulher. Passei muito tempo, após o parto, tentando aceitar a sensação de vulnerabilidade, de falta de autonomia e de desamparo que tive durante todo ele. Não sabia o que estava sendo feito ao meu corpo e me senti uma participante passiva do nascimento da minha filha. Mesmo com o sistema mais bem equipado para partos humanizados, a minha história foi — talvez, reconheço com desconsolo, em parte por insistência minha — de intervenções que a cada vez mais escalonavam a piora do meu estado fisiológico e psicológico. Por isso, hoje advogo com tanto fervor pela humanização do parto, para que nós, mulheres, possamos voltar a sentir poder e autonomia sobre os nossos corpos, para que todas nós, ao redor do mundo, sejamos tratadas com respeito, mantidas bem informadas sobre os aspectos médicos do parto. Para que possamos, junto à equipe médica, ter uma experiência positiva nesse momento tão fundamental para a humanidade.
Somos filhos da República e sabemos que todos os seres humanos são iguais em dignidade e direitos. Ninguém discorda do que diz a Constituição de 1988: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. No entanto, a aceitação dessa igualdade jurídica convive — eis a contradição — com uma frequente indiferença em relação ao outro: a quem não é percebido como igual, seja por laços de família, de amizade, de afinidade esportiva, política ou ideológica, etc.
Há, na sociedade brasileira, uma profunda carência de alteridade. Pode-se dizer que a desconsideração do outro é o elemento comum das nossas grandes deficiências enquanto coletividade.
A agravar o quadro, tudo isso está envolto em um manto de invisibilidade. Sequer é percebido. Nossos diagnósticos de sociedade não incluem os problemas dos outros. Restringem-se ao âmbito particular, aos limites do próprio quintal. E o mesmo ocorre com nossas propostas de solução. Falamos de sociedade, mas estamos pensando em nós: no que nos afeta e em quem nos circunda, o que reforça a dinâmica de exclusão do outro. Até a solução — o que se deseja como solução — torna-se uma agravante do problema.
Um defeito enraizado
Costumamos pensar que o grande problema nacional — aquilo que configura nosso subdesenvolvimento social e nossa própria identidade nacional — é a pobreza, a falta de meios materiais. Ao contrário dos países desenvolvidos, que tanto admiramos por suas realizações, somos um país pobre, sem meios de transporte adequados, sem infraestrutura, sem bons salários para os professores. Se exportássemos bens com maior valor agregado, se aumentássemos nossa produtividade, se os pobres tivessem menos filhos, se os impostos fossem mais bem gastos — se tudo isso ocorresse, teríamos, enquanto sociedade, mais recursos, seríamos mais desenvolvidos, haveria maior segurança pública. Não admitimos explicitamente, mas, no fundo, pensamos que, com mais dinheiro, tudo seria diferente.
Certamente o dinheiro muda muita coisa, mas nosso grande problema não é a falta de recursos econômicos. Não se ataca a questão primordial apenas ampliando a geração de riqueza, ou mesmo distribuindo mais dinheiro entre as pessoas. Não é um problema numérico, quantitativo. Há uma questão qualitativa, mais profunda. Existe uma limitação de perspectiva, de mentalidade, de sensibilidade, que nos configura socialmente e que faz com que o outro nos seja invisível. Ele não entra em nossa equação cotidiana.
Pensemos nesta chaga nacional que é o patrimonialismo, a apropriação do público para fins particulares. Pensemos nos privilégios, na desigualdade, especialmente nas desigualdades de oportunidades. Tudo isso só floresce — tudo isso só é tolerado socialmente — onde há uma reduzida percepção do outro. Os privilégios são ruins até o momento em que sentamos na mesa dos privilegiados. Depois, eles ganham outra coloração, outra justificação, outro nome. Já não são privilégios: são méritos, conquistas, direitos.
Elenco três aspectos fundantes do nosso subdesenvolvimento social.
Temos uma visão distorcida dos tributos. Pensamos no que pagamos — no que sai do nosso bolso — e naquilo que recebemos de maneira direta e visível. Dificilmente pensamos no que os outros merecem receber com os nossos tributos. Dificilmente nos alegramos quando vemos outros usufruindo dos nossos tributos. Dificilmente percebemos que recebemos da sociedade — e também do Estado — muito mais do que damos. Essa frase nos parece uma completa loucura. Estamos convencidos de que somos credores, e não devedores, da coletividade.
Temos uma visão distorcida da lei. Reclamamos que os outros não cumprem a lei, que a lei é frequentemente desrespeitada. Entretanto, facilmente nos vemos em situações nas quais julgamos merecer uma exceção. Neste caso concreto — no trânsito, na construção da casa, na declaração de renda, na contratação de um serviço, no acidente de carro do meu filho, nessa viagem, nessa fila, nessa inadimplência, nesse esquecimento não intencional —, a lei não se aplica a mim. Ela não entende a minha situação específica, e seria injusto e exagerado aplicá-la de maneira impessoal. Afinal, a lei exige uma cuidadosa interpretação.
Temos uma visão distorcida do Estado. Ele seria uma espécie de nosso prestador particular de serviços. Quando achamos que ele não funciona, recorremos ao setor privado e falamos mal do público. Distanciamo-nos do público. É assim com a saúde, com a educação, com a segurança. Mal reparamos que nossas opções afetam os outros: que elas prejudicam a coletividade, que elas prejudicam o outro. Se o Estado não está satisfatório para mim, substituo-o por prestadores de serviços privados. A ideia de batalhar para que o Estado melhore, afinal, ele não vem servir apenas a mim — e a quem tem, neste momento, meios de recorrer ao serviço privado —, é considerada uma ingenuidade, coisa de gente boba.
O setor público, quando não nos serve, torna-se desinteressante, existencialmente distante. Temos, portanto, enquanto sociedade, uma visão patrimonialista de Estado. Ele é bom na medida em que me serve. As palavras adquirem um significado peculiar. O público não é para o público, para o outro. É para mim. Ele recebe o meu aplauso só quando atende os meus interesses.
A política para mim, não para o outro
Nossa falta de alteridade é especialmente sentida na política, que deveria ser o locus por excelência da alteridade. A política deixou de ser espaço para a discussão do bem comum, do cuidado com o outro, com quem é mais vulnerável. Ela é vista sob o prisma dos problemas do meu entorno social.
Sejamos sinceros. Com o que nos preocupamos ao escolher nossos candidatos? O que valorizamos neles? O que buscamos em cada eleição? Sobre quais assuntos falamos quando discutimos política? São os nossos problemas ou são os problemas dos outros, daqueles que não têm meios de recorrer ao setor privado para a educação de seus filhos, para a saúde de seus pais, para a segurança de sua família?
Há um imenso espaço de aprendizado democrático. A democracia não é só a possibilidade de que cada um participe das decisões públicas por meio do voto, por meio de seus representantes eleitos. Não é apenas poder dizer o que quero. O regime democrático envolve uma qualificação desse querer. O Estado democrático vem servir à coletividade, a quem mais precisa na coletividade.
Isso não é uma bela ideia altruísta. Ela é constitutiva do poder público. Tanto é assim que a Constituição de 1988 define quais são os objetivos fundamentais do Estado e da política brasileira: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Se a democracia fosse mero querer majoritário, a definição prévia desses objetivos na Constituição seria contrária ao ideal democrático, uma vez que ela molda e limita a atuação do governante eleito pela maioria.
Democracia é um querer qualificado, orientado à construção do bem comum. Não é impor as nossas vontades. Não é realizar os nossos interesses. É cuidado com o outro — e essa perspectiva modifica inteiramente o olhar sobre as diferenças políticas, sobre a indignação que as opções alheias despertam em nós.
Olhar o outro
Democracia não é uma concessão que fazemos aos outros. Por ser democrático, tolero o que a maioria escolheu, como se estivesse perdendo algo, numa aceitação de cara feia. Numa democracia, nunca perdemos (ou ganhamos) nada individualmente. A política não me pertence. Ela não é sobre mim. A política é sempre sobre o outro, o que é o mesmo que dizer: ela é sempre sobre a coletividade.
Não significa aplaudir as escolhas dos outros. Não é dizer: se a maioria escolheu, então é bom e saudável. Há muitos exemplos, históricos e contemporâneos, dos retrocessos que uma maioria é capaz de produzir. Trata-se de compreender que, na política democrática, as construções, os caminhos são sempre coletivos. Ganhando ou perdendo eleitoralmente, é sempre necessário entender as necessidades dos outros, suas aflições, suas demandas.
Justificadamente há hoje grande receio em relação às concessões autoritárias de parte da população. Muita gente não vê a democracia como um valor inegociável. A reação imediata é condenar — excluir — tais pessoas, marcá-las como inaptas a viver no regime democrático. Mas se democracia é coletividade, é fundamental enxergar essas pessoas, escutá-las, dialogar com elas, entender o que as move. Insisto: não é celebrar suas opções políticas, nem minimizar os problemas daí decorrentes, mas entender que elas também são a coletividade. O outro — real, não imaginário — são elas.
Este é o desafio de hoje da democracia. Esta é a beleza de sempre da democracia. Ver o outro. Por mais estranho que ele nos pareça, vê-lo como um igual, não como um estranho. Eis o fundamento de tudo: ele é igual a nós e merece ser visto.
A construção do homem brasileiro é um processo de transformação contínua. Ele surge dos encontros e desencontros, das narrativas sobrepostas, da fusão entre as matas e a urbanidade, dos ecos das tradições ancestrais e do impacto das mudanças sociais. Se a modernidade ocidental tenta nos propor uma identidade única e homogênea, o Brasil — com sua diversidade e multiplicidade cultural — revela uma narrativa de identidade plural e em constante movimento, que desafia e subverte qualquer tentativa de aprisionamento em um molde fixo.
“Na resistência dos povos africanos e indígenas, o homem não é separado da natureza ou do divino”
O “homem” brasileiro não pode ser visto exclusivamente através da lente biológica ou do gênero, e nem pode ser capturado em um conceito único. Ele é, antes de tudo, uma representação social que abarca tanto o feminino quanto o masculino, o sagrado e o profano, o indígena, o negro e o branco, e tantos outros elementos que conflitam entre si. A identidade nacional brasileira é uma teia de fios desiguais, nascida do violento encontro entre diferentes civilizações e culturas, forjada em séculos de opressão, incidências e sincretismos. Como escreveu Euclides da Cunha em Os sertões, ao descrever a luta dos sertanejos em Canudos, somos uma “civilização em gestação”, inacabada e, talvez, sempre inacabável.
Essa “inacababilidade”, de certa forma, pode ser lida com uma das essências do “ser nacional brasileiro”. Isto numa leitura de certa forma didática e homogeneizante, uma vez que é importante compreender que não há uma única identidade em um país continental como o Brasil. Em uma terra de disputas, em que o sangue, as tradições e os valores de diversos povos se mesclam, o homem brasileiro é fruto de uma luta pela sobrevivência, de uma espiritualidade resiliente e de uma identidade que se forma tanto pela assimilação quanto pela rejeição das influências externas. Nesse caldeirão de forças e contradições, a pergunta que permanece é: o que significa ser um sujeito social, um “homem” brasileiro, nesse mosaico que é o Brasil?
A história da formação do Brasil começa pela violência, marcada pelo colonialismo que impôs uma ordem social hierárquica e racista. Os colonizadores trouxeram consigo um modelo europeu de masculinidade e poder, no qual ser “homem” significava ser dominante, ser dono e estar acima dos outros. Mas a tentativa de impor essa visão linear esbarra nas estruturas culturais que o colonizador não conseguiu apagar completamente: a espiritualidade africana, a cosmovisão indígena, o respeito pela natureza e a ideia de comunidade.
A identidade, seja ela individual ou coletiva, não é um dado imutável, mas sim um processo contínuo de construção e reconstrução. O homem brasileiro, assim como qualquer outro sujeito histórico, é moldado pelas relações sociais, pelas instituições, pelas experiências vividas e pelas narrativas que circulam em sua sociedade.
Na identidade do homem brasileiro, essas influências convivem com uma sociedade que, desde o início, impôs um sistema patriarcal e racista. Os colonizadores exploraram o indígena, escravizaram o negro e tentaram exterminar todas as formas de resistência. Mas mesmo sob o peso do jugo colonial, essas populações resistiram. E, ao resistirem, mantiveram vivos elementos fundamentais de suas culturas, que passariam a fazer parte, de forma inevitável, da identidade nacional brasileira.
A noção de masculinidade, por exemplo, é um constructo social que varia ao longo do tempo e entre diferentes culturas. No Brasil, a masculinidade hegemônica, muitas vezes associada à força física, à heterossexualidade e à repressão das emoções, tem sido desafiada por novas formas de expressão de gênero. A luta dos homens negros por reconhecimento e respeito, assim como a crescente visibilidade da comunidade LGBTQIA+, têm contribuído para a desconstrução de estereótipos e a construção de masculinidades mais diversas e inclusivas. A figura do “homem” brasileiro carrega, portanto, a dualidade do colonizador e do colonizado, do opressor e do oprimido. Ele é, ao mesmo tempo, fruto de uma violência histórica e da resiliência daqueles que resistiram a essa violência. A influência do catolicismo ibérico é visível, mas o que se percebe nas práticas e nos rituais do cotidiano é um sincretismo que incorpora o candomblé, a umbanda, a pajelança e tantas outras tradições, revelando a face espiritual desse homem — e aqui não estamos falando do ser biológico, estamos falando do ser humano carregado de brasilidade — plural e híbrido.
O que é, afinal, a “alma” do homem brasileiro? Se olharmos para a espiritualidade que permeia o país, podemos ver um retrato evidente de como esse homem se define para além do material e do visível. Na resistência dos povos africanos e indígenas, surgiram religiões e práticas que representam uma forma de identidade espiritual e cultural única, em que o homem não é separado da natureza ou do divino. Nessa visão de mundo, o homem brasileiro é um ser conectado, que pertence a uma comunidade espiritual e material. Ele é, ao mesmo tempo, um indivíduo e um coletivo. Essa espiritualidade integradora é uma resposta direta à fragmentação imposta pelo mundo ocidental. Ao contrário da visão eurocêntrica, que valoriza o individualismo e a separação entre corpo e espírito, a espiritualidade afro-brasileira e indígena oferece um caminho para a totalidade entre ser-estar e a harmonia. Essa busca por totalidade é, também, uma busca por identidade. O homem brasileiro não pode ser compreendido apenas como um indivíduo isolado, mas como parte de uma coletividade maior que envolve ancestrais, natureza, espíritos e forças invisíveis. Ele é, em suma, um ser em comunhão, cujas escolhas e ações reverberam em um contexto mais amplo e mais antigo do que ele próprio.
A espiritualidade, em suas diversas manifestações, desempenha um papel fundamental na construção da identidade. As religiões afro-brasileiras, por exemplo, com suas ricas cosmologias e práticas ritualísticas, oferecem um rico repertório simbólico para a compreensão da experiência humana. A figura do orixá, por exemplo, que encarna tanto o masculino quanto o feminino, desafia as noções binárias de gênero e abre espaço para uma compreensão mais fluida da sexualidade. A espiritualidade indígena originária, por sua vez, nos ensina a importância da conexão com a natureza e com os ancestrais. A visão de mundo indígena, que valoriza a coletividade e a interdependência entre todos os seres, oferece uma alternativa ao individualismo e ao consumismo que caracterizam a sociedade contemporânea.
No caso dos homens negros, as relações familiares são marcadas por uma longa história de opressão e violência. A escravidão, por exemplo, desestruturou famílias negras e impediu a formação de laços afetivos estáveis. A luta pela reconstrução das famílias negras é, portanto, uma luta pela reconstrução da própria identidade. A família é o primeiro núcleo social em que o indivíduo se insere e desempenha papel crucial na formação de sua identidade. As relações familiares, marcadas por hierarquias, afetos e conflitos, moldam nossas percepções de nós mesmos e do mundo.
No Brasil, a identidade de gênero e a ideia universal de homem também foi moldada por essas camadas históricas e culturais. A masculinidade brasileira, por muito tempo, se formou em torno do estereótipo do “machão” — o homem viril, forte e insensível, que não demonstra fraquezas. Esse arquétipo foi glorificado como uma tentativa de afirmar uma identidade nacional robusta, em oposição à fragilidade do “homem colonizado”. Contudo, o Brasil é muito mais do que esse estereótipo. Ele é o país das mães solos, dos homens que cozinham, dos pais que dançam e das crianças criadas por avós e tias em uma estrutura familiar extensa e comunitária.
A sociedade brasileira contemporânea passa, hoje, por um questionamento profundo sobre esses papéis de gênero. As novas gerações, influenciadas por movimentos globais de igualdade e diversidade, questionam o valor desse modelo tradicional de masculinidade e buscam alternativas mais inclusivas e fluidas. O homem brasileiro, assim como a mulher brasileira, é confrontado com a necessidade de redefinir-se e adaptar-se a um novo mundo, no qual gênero e identidade não são mais limitados a categorias rígidas.
Se pensamos no homem como um sujeito social, precisamos reconhecer o papel das influências históricas, culturais e políticas que moldaram essa figura ao longo dos séculos. Ele é o homem que foi escravizado, mas também o que lutou pela abolição. Ele é o homem que sofreu o apagamento de sua cultura, mas que também a resgatou e a reinventou. Ele é o homem das favelas, dos quilombos, das aldeias, dos centros urbanos e das margens.
Para o homem brasileiro, a identidade nacional é um projeto inacabado, uma tarefa sempre em andamento. Ela não está nos monumentos ou nos discursos oficiais, mas nas vidas reais, nas lutas cotidianas, nos gestos de solidariedade e de resistência. Ela está nas rodas de samba, nas celebrações do candomblé, nas danças indígenas e nas festas populares que transformam as ruas em templos e celebram a força de um povo que nunca foi apenas um, mas que, por isso mesmo, é único.
A história da construção do homem brasileiro é, assim, uma narrativa de resistência e reinvenção. Ele é fruto de uma pluralidade de influências que, ao invés de se diluírem em uma identidade única, se entrelaçam para criar uma tapeçaria rica e complexa.
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