#25EspaçoCulturaSociedade

Dois e dois são dois: Tereza Artigas e Rubens Amatto

Tereza Artigas e Rubens Amatto conversam com a AMARELLO sobre o projeto que vêm maturando há mais de três anos: levar a Casa de Francisca para um palacete de 1910, na rua Quintino Bocaiúva, no centro de São Paulo.

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TEREZA ARTIGAS – (…) Eu recebi o prédio há doze anos, quando meu pai faleceu. Naquela época, havia um preocupação muito grande de todos com a possibilidade do prédio cair, pois estava em péssimas condições. Então, todo esse processo foi muito complicado. Demorou anos. Tinha que destrinchar as questões familiares, todas as possibilidades, mas aos poucos a gente foi conseguindo encontrar caminhos. Até chegar o dia em que me falaram que você tinha batido lá. Eu falei: “O quê?! Da Casa de Francisca?” – eu já conhecia – “Que barato!”.

Era uma possibilidade de trazer, de verdade, uma vida para aquele prédio. Porque não adianta você arrumar o espaço por fora e não ter gente que o ocupe. Fica apenas uma casa bonita e sem vida… A possibilidade de trazer uma revitalização não só externa, mas interna, com música, arte, é um sonho, ainda, para mim. Acho que o dia em que isso acontecer vai ser igual à Virada Cultural, que a gente chorava como duas crianças, né?

RUBENS AMATTO Verdade! A gente teve uma pequena experiência alguns meses atrás, com os shows que a gente fez abrindo a Virada. Uns shows com os artistas na varanda e o público ainda no calçadão histórico, que era uma tradição do prédio. Corrija se eu estiver errado, mas sempre, desde o início, a música transitou ali. Não só abrigando a primeira loja de instrumentos de São Paulo, que existe até hoje mas com outro nome, mas também como sede da rádio Record, no auge do rádio, nos anos 1940, 1950. (…) com as pessoas passando pelas ruas, assistindo a essas performances. Até já vi algumas fotos da época da Guerra, o Repórter Esso anunciando as notícias da Guerra para o público ali, em primeira mão. É tudo muito recente e impressionante.

TEREZA ARTIGAS – Tem uma coisa que eu acho que nunca te perguntei. Quando você chegou a primeira vez lá…?

RUBENS AMATTO – Era um final de semana, eu estava com um amigo, então muito chateado, porque tinha brigado com a mulher. Aí ele falou: “Preciso conversar, vamos dar uma volta”, e aí a gente foi andar pelo Centro. O Centro é interessante porque, pelo fato de não poder entrar carro, é um dos poucos lugares de São Paulo em que as pessoas podem andar…. Mesmo com todo esse mito que existe em torno do Centro, principalmente à noite, pela falta de segurança, se fala muito de revitalizá-lo, mas o Centro é extremamente vivo, e a questão de não ter carro ali favorece demais a convivência das pessoas, que podem não só se olhar, como olhar um pouco mais a cidade. Então estávamos andando por lá, e conversamos sobre a vida, sobre nossas angústias, e numa dessas a gente dá de cara com o palacete. Eu falei: “Me parece que está desocupado, eu preciso saber o que tem aqui”. Mas o que me deu o clique foi quando vi uma plaquinha do Adoniran Barbosa, que existe até hoje e que coincidentemente é de um projeto de uns amigos que mapearam os principais pontos da cidade que o Adoniran frequentava. Já tinha visto essa plaquinha em outros lugares, aí eu fui ler e vi que era a sede da rádio, e descobri que aquela esquina chegou a ser conhecida como Esquina Musical de São Paulo. Fiquei muito encantado com aquilo, com a imagem do palacete na cabeça, com a plaquinha do Adoniran me perseguindo…

Mandei um e-mail falando: “Olha, tenho um projeto, eu não sei se vocês conhecem, é a menor casa de shows de São Paulo, é um projeto assim assado, e queria muito a oportunidade de conversar para, quem sabe, fazer alguma coisa aí dentro”. Eu mandei e juro que não esperava resposta. Quando recebi a resposta de que queriam conversar e tivemos a primeira conversa, quando soube que você era frequentadora da casa desde o início, quando soube da sua ligação com as artes, da sua relação com a cidade e do desejo de restaurar esse patrimônio histórico, foram coisas muito fortes para mim. Eu me lembro de uma frase sua que até hoje me norteia: “Olha, o meu desejo é devolver o palacete para a cidade”. E eu jamais imaginaria que alguém que pudesse estar por trás da administração de um imóvel desses tivesse a sensibilidade e o desejo de olhar para a cidade, porque geralmente a gente tem uma visão mais estereotipada de que quem está por trás de um imóvel desses está pensando no próprio umbigo e dane-se.

TEREZA ARTIGAS Não temos muitos espaços públicos na cidade, salvo os parques. Faltam espaços na cidade, e o Centro – meu pai sempre me falava isso –, “o Centro vai voltar” … Só depende do tempo.

Quando as coisas foram se resolvendo, eu fui ganhando fôlego para ter coragem e dar mais um passo. E a sua presença e o projeto fortaleceram minha vontade de continuar, porque o que adianta ter o espaço e não ter quem circule, quem visite, quem viva aquilo? Eu não gosto de casa vazia, eu gosto de casa cheia, as pessoas têm que estar lá, têm que ver, é bonito para ver. Todos os lugares bonitos do mundo as pessoas vão lá e veem. Tudo bem, existe a parte comercial, que tem que se autossustentar, não sou também uma cabeça maluca, mas se a gente puder juntar as duas coisas… No dia do show da Virada Cultural, tinha uns mendigos ali que dançavam, dançavam, dançavam felizes… Claro que vai ter um grupo de pessoas que vai entrar, mas a gente também vai fazer coisas para fora, para a rua. Aí vai ser para todo mundo. Porque a gente não está falando só do palacete e da Casa de Francisca, a gente está falando da ideia de que esse Centro consiga irradiar para outros lugares da cidade.

RUBENS AMATTO – A origem do Centro, que é a origem da cidade, tem uma vocação de encontros, uma vocação das mais democráticas, onde se encontra a maior diversidade de públicos e de pessoas, e a riqueza cultural do país é essa. Tanto o Centro quanto as periferias vêm nos ensinando que a cidade só vai sobreviver havendo essas convivências, senão cai no que a gente está começando cada vez mais a perceber, a intolerância, a segregação. Poxa, é um momento importante. A gente está vivendo um momento político tenso, e essa tensão manifesta exatamente como a sociedade está se relacionando. Muita gente nem conhece o Centro e, quando conhece, vê quão vivo é. À noite, sim, à noite é morto, fecha tudo, e acho que existe um potencial absurdo ali. Aos poucos. Temos que ir aos poucos. Mas iniciativas como a sua, de resgatar um patrimônio histórico, de recuperar a memória não só desse imóvel, mas uma memória que está naquele entorno, uma memória da cidade… A gente tem a tendência de soterrar nossa memória.

TEREZA ARTIGAS Eu acho que a gente carece de autenticidade. A vida carece de autenticidade. Vivemos plastificados. As conversas são plastificadas. Estamos precisando de relações mais íntimas para ter uma proximidade, para despertar o humano. Despertar o alimento para a alma. As pessoas vão para a academia, fortalecem o corpo e fazem milhões de coisas para a cabeça. E a alma, fica onde? A alma fica tristinha e fala “e agora?” A música é algo que revitaliza e alimenta.

RUBENS AMATTO – Nossa, a gente só está sobrevivendo esses anos todos por amor e por alimento a essa música. Vamos torcer para que as pessoas também saiam da zona de conforto e frequentem o palacete.

#25EspaçoDesignInteriores

Pequeno mapa do tempo

por Bárbara Mastrobuono

Esta é uma história de amor. Uma vez me disseram que todos somos especialistas em algo que só nós conhecemos. Acho que sou especialista em não deixar o tempo passar. Em não esquecer que os nossos espaços carregam memórias, em encontrar amor dentro do silêncio. Esta é uma história de amor, por mais que nenhuma das pessoas envolvidas acredite nisso.

Meus avós me ensinaram a guardar tudo que tenho. Eu sempre soube que minha avó me ensinava isso, mas os efeitos das ações do meu avô só me foram revelados meses após a morte dele, enquanto fazíamos o inventário do apartamento. Talvez eu devesse começar do começo.

Minha família cresceu toda no mesmo prédio. Só a minha geração passou
a infância lá, mas todos crescemos, daquele jeito de aprender coisas, de perder pessoas e mudar. Um dia meus pais decidiram deixar o prédio de Pinheiros e ir para o Guarapiranga, morar em uma casa, e eu fiquei com medo, já que em uma casa não saberia exatamente onde todo mundo estava o tempo todo. A Victória está no quarto. A mãe está na sala. Enquanto minha família ocupava os cômodos de um lado, a família de minha tia ocupava os cômodos do outro, e minha avó e outra tia ocupavam os de cima, em um apartamento que tomava o andar inteiro e nos acobertava como uma tampa de jarro.

Minha avó sempre conversa de olhos fechados e, se fosse possível, eu gostaria de gravar tudo o que fala, porque o ritmo dela é como eu imagino ser o ritmo do meu sangue. Ela não chorou com a morte do meu avô porque sabe que todos nós morremos um dia e, se algum dia eu conseguir aprender isso, sei que vou ser uma pessoa melhor.

Quando ainda morávamos no prédio e minha avó nos emprestava um pirex ou uma caixa de sorvete vazia da Kibon, ela ligava meia hora depois no interfone para pedir de volta. Preciso dela, dizia. Na casa da minha avó, todos os objetos têm funções secretas que não teriam na de outra pessoa. A caixa de balas Valda serve para guardar remédio, assim como o pote vazio de iogurte grego e as latas de panetone escondem pães que já foram torrados e agora só esperam ser comidos.

A dona Marta parece ter guardado tudo o que nossa família já possuiu. Um dia, meu pai me levou pelo apartamento e explicou de onde veio cada um dos móveis. O gaveteiro grande veio da minha bisavó, a mesa entalhada meu avô comprou durante os dois anos em que moraram no Peru fugidos da ditadura. O quadro logo em cima, que mostra a família do menino Jesus, também foi feito por artistas peruanos e era da coleção do vovô, assim como a Sereia do Volpi e todos os outros que estão no apartamento. Uma vez, quando era pequena, um homem me falou que todas as luas em volta da sereia eram unhas que ela tinha roído e agora estavam dentro da barriga dela, e a moral da história era a de que não devemos roer as nossas unhas. Eu não roía minhas unhas e não passei a roer, mas é engraçado o tipo de besteira que os adultos contam para as crianças achando que não vão se lembrar para sempre da deles.

Todo mundo da família sabe que minha avó é uma acumuladora nata. No apartamento onde ela vive com minha tia, tem uns quatro quartos dedicados exclusivamente a guardar coisas, todas as coisas. Uma vez, encontrei uma lista, dentro de um dos armários, que tentava contabilizar todos os objetos do quarto. É uma lista de origem desconhecida, cujo cabeçalho exibe uma letra de mão arrumada, que nos informa: “Armário escritório lado esquerdo” e, logo abaixo: Tapetes e abajur; canos de aspirador de pó; mala de viagem (vazia); suporte p/ TV; bengala; bengala canadense/muleta; sacolas de papelão e papeis pardo e sacos de papel e cx papelão; ultrassom; saco c/ palha; sacola c/ sacolas; comadre; assento de cadeira de banho; banheira; argolas e pano de cortina; cx de papelão e sapato vazias; gavetas; 3 ap. de telefone; livros. A lista continua até se encerrar de maneira brusca com pisca pisca e aparelho de telefone, livros, mas seu esforço é louvável e penso nela como uma das grandes obras da literatura experimental.

Os nossos objetos são como mapas das pessoas que fomos um dia. Assim como minha avó, guardo tudo que já me pertenceu. Isso inclui todos os bilhetinhos que eu passava no colégio, escondidos em um estojo dentro de uma gaveta do meu quarto antigo na casa de meus pais. Todos os desenhos que já fiz na adolescência. Agendas de 2001 e 2002 que nunca preenchi e nunca virei a preencher. Fantasmas da pessoa que já fui, agora morta na passagem do tempo, mas viva por meio desses fósseis que escolho acumular. E toda vez que penso em jogá-los fora, já que sua existência pesa em mim ao entrar naquele quarto e porque meus pais até hoje me ligam perguntando se vou finalmente jogar fora aquele container de cadernos da sexta série, penso “mas e se um dia eu for arrumar o quarto e folhear esse caderno e ver essa frase que anotei na margem?” Não consigo roubar minha versão futura desse pequeno momento de surpresa e prazer. Assim nos comunicamos, por meio de objetos, através do tempo. Talvez desse jeito todas as versões de mim consigam se manter vivas.

O interessante da acumulação da minha avó é que, por muito tempo, conseguimos fingir que era só dela. Agora entendo que, dentro da casa dela, a família inteira se comunga por meio dos objetos. Todo integrante da família tem um móvel guardado na casa da minha avó. Aquele apartamento funciona como um museu vivo de nossa trajetória conjunta. A cama de solteiro do meu pai. A primeira cama de casal dos meus tios. A cômoda vermelha que comprei para o meu primeiro apartamento, que não tinha armário embutido. A fantasia de carnaval da Martina (a prima alemã que morou no prédio durante seis meses em 2009), que encontrei em uma sacola que havia sido sorrateiramente enfiada dentro de um Farnese guardado no quarto dos fundos. Deixar um móvel lá é praticamente um ritual de pertencimento, e eu me senti adulta talvez pela primeira vez no dia em que liguei para minha avó e perguntei “posso deixar o criado-mudo da menina que morava comigo aí no seu apartamento?”.

Agora que meu avô foi embora, aprendi que existem muitos tipos diferentes de acumulação e que, assim como olhos verdes, eles são transmitidos por genes recessivos. Minha avó era filha de acumuladores e, por casar com um acumulador, o gene sucedeu em fazer seu caminho silencioso pela nossa árvore genealógica. Agora, fica claro que eu não deveria me sentir culpada por ter encontrado uma entrada de cinema de 2007 no meu quarto, apesar de já ter me mudado quatro vezes desde o ano em que fui assistir a Zodíaco. Sinceramente, nunca tive chance.

Existe um corredor na casa da minha avó que contém todos os livros que já passaram pelas mãos da família, mas que não foram importantes o suficiente para seguir com os donos em seus novos lares. Desde a coleção de enciclopédias Larousse até o Apanhador no campo de centeio do meu tio, até os livros de adestramento de cachorro de meu pai da época do dálmata D’Artagnan. No apartamento do meu avô, existe um armário igual, que contém pastas e mais pastas azuis, todas rotuladas com um nome de artista e um ano, com reportagens e publicações a respeito de cada um. O meu avô deixou para trás uma biblioteca com mais de 3 mil títulos, entre eles coisas extremamente específicas, como A luta contra o analfabetismo em Minas Gerais e mais de cem gramáticas. De repente, o fato de eu possuir livros como Ataques de ursos pardos: onde ocorrem e como sobrevivê-los fez muito mais sentido. Assim como minha coleção de impressos de exposições, que junto já há mais de cinco anos e que se encontra cuidadosamente etiquetada e arquivada. Nunca havia entendido antes que aquilo também era uma forma de acumulação, mas, parada no meio do arquivo morto de meu avô, composto de prateleiras após prateleiras de caixas de papelão cheias de papéis, entendi que a acumulação vem em diversos formatos e cheiros, inclusive escondida atrás do formato da utilidade. Meu avô colecionava tudo quanto é coisa. Além de sua coleção de arte, também passou a vida a colecionar documentos e agendas, juntar rastros do seu ser ao longo dos anos, cada pasta como aquelas células mortas que descamamos ao longo da vida. Pequenos pedaços invisíveis de seu corpo deixados para trás em um apartamento vazio. Uma semana depois que meu avô morreu, um homem pulou do prédio ao lado e caiu morto na sua varanda. Do lado de dentro, os arquivos observavam tudo em silêncio.

Um dia, todos esses quartos estarão vazios. Os quartos do apartamento da minha avó, os armários dentro deles, as gavetas dentro daqueles armários. O armário do quarto onde cresci já não contém minhas coisas, e me dá uma sensação estranha o fato de eu não saber o que guarda agora. Minha família me ensinou a segurar o tempo perto do peito e sentir dor quando ele vai embora, mas talvez isso seja algo que todas as famílias ensinam aos seus. Minha avó, ao rezar seu terço todas as noites na sala escura, andando de olhos fechados na escuridão em torno da mesa, passando as bolinhas uma por uma entre os dedos. Meu avô, sentado na mesa da sala da casa dele, a escrever artigos a lápis sob a luz do abajur, a mesa uma pequena ilha na escuridão do resto do apartamento.

O tempo vai passar, o deles e o meu. Mas esta é uma história de amor. E o dia em que não tiver mais nada lá, nem todos os objetos que arrebanhamos cuidadosamente ao longo de tantos anos, embrulhados em plástico bolha e guardados em quartos fechados, ainda estaremos naqueles corredores; nossa pele, amor e os genes recessivos dos olhos verdes acumuladores.

#25EspaçoCidadesCulturaLiteratura

São Paulo Riviera (Sofia)

por Kathleen Maccaul

Hotel Banri
Liberdade

Sofia Othani estava se sentindo nebulosa. Tinha parado de contar os saquês quando ela e seu ex-marido decidiram pedir uma garrafa. Perguntou se estava corada. Levou as mãos ao rosto para sentir suas bochechas. “Não se preocupe”, disse Lorenzo. “Ainda não começou. Você está bem”.

A primeira refeição com o novo namorado de Melissa. Rato. Que tipo de nome é esse? Ele não tinha respeito pelos pais dela, por decoro, os braços em torno da filha deles, que estava radiante, feliz. Sofia se perguntou se ele a tinha drogado. Ele não tinha nada da graça de Melissa, nada de sua beleza. Ele tem um carrinho de cachorro-quente. De vez em quando, sua mão surgia rapidamente e fisgava seu cocktail de coco, do qual tomava um longo gole.

“Cachorro-quente dá dinheiro. Dá mesmo. É um clássico, né? Clássico São Paulo”, ele disse, “mas não vamos parar com o carrinho. Vamos expandir. Pegar um mercado mais alto escalão. Vamos tomar o antigo bar Riviera, na Avenida Paulista. A Melissa não vai passar fome. Não mesmo. Sei que ela ama comida.”

Rato deu risada e deslizou sua mão do ombro acetinado de Melissa, ao longo de seu braço fino e moreno. Sofia engoliu e desviou o olhar.

“O bar Riviera? O verdadeiro Riviera? O antigo?”, disse Lorenzo, deixando seu devaneio.

Rato se endireitou.
“Sim, o antigo, mesmo.”
“Era famoso. Antigamente. Minha mãe falava sobre aquele bar. Meu pai levava ela lá”, disse Lorenzo.
“Uma vez”, disse Sofia.
Lorenzo fez uma careta.
“Pertencia a uma família de Amalfi. Era um lugar fino”, ele disse.
“E vai ser fino de novo”, disse Rato. “Como antigamente. Como sua filha. Ela só merece classe, essa menina. Não me incomodo em te dizer. Ela é uma menina linda.”

Sofia mordeu o lábio e tentou não encarar. Quem era esse menino? Como que uma criança conseguiria gerenciar um imóvel privilegiado no centro da cidade? Um carrinho de cachorro-quente era uma coisa. Mas reabrir o antigo Riviera? Bem na Paulista? Onde o Rato conseguia seu dinheiro?

Sofia segurou os palitinhos pronta para um niguiri de salmão, mas encontrou o prato vazio. André, o amigo de Rato, tinha arrebanhado os últimos pedaços. Seus braços envolviam seu prato e sua cabeça estava abaixada. Ele comia de forma constante, ocasionalmente lançando olhares sorrateiros à mesa. Zona Leste, pensou Sofia.

Sofia olhou para seu relógio. Como só haviam passado quarenta minutos? Talvez a bateria estivesse fraca. Ela escutou pela batida do segundo.

Justo quando confirmou que o tempo estava fluindo como sempre, tudo se acelerou. Um jovem veio até a mesa e falou com Rato, falou para ele sair. Um tiro. Sofia viu o reflexo de dois homens no espelho, que rachou e caiu, estilhaçando no chão. Um grande e um pequeno, vestidos de maneira comum, com exceção da meia calça preta cobrindo suas cabeças e os revólveres que empunhavam. Enquanto todos gritavam, Sofia virou para vê-los de verdade.

“Todos no chão”, gritou o homem menor.
Enquanto ficava de joelhos, Sofia reparou no vinco da calça jeans do homem menor, se perguntando que mulher passou esse jeans com tanto cuidado.

“Todo mundo cala a boca”, gritou o homem maior. Ele vestia uma camiseta apertada que exibia os músculos. Ele era forte. Deve ir a uma academia, pensou Sofia. Deve ter amigos que treinam com ele. Ela se perguntou se eles sabiam o que ele fazia.

O restaurante estava silencioso. De vez em quando um grito escapava debaixo de uma das mesas.

“Fiquem no chão. Não se mexam. Não tentem usar o celular senão vão levar tiro”, disse o homem menor. “Vocês no fundo, os sushimen com as facas, soltem as facas e venham para a frente.”

Uma pausa. Silêncio. Um tiro disparado contra o teto baixo. Quatro chefs vestindo quimonos, mãos na cabeça, saíram de trás do sushi bar.

Os passos do homem maior ecoavam pela sala conforme andava devagar por entre as mesas, movendo sua cabeça de um lado para o outro, como um professor monitorando provas. “Ele não está de tênis”, pensou Sofia. “Ele está de sapato, só sapatos fazem esse tipo de barulho.”

Seu parceiro ficava na frente, balançando sua arma de um lado para o outro, observando. Vestia uma camiseta que dizia Keep Calm and Carry On. Sofia não achava que ele entendia o que estava escrito na camiseta. Ela se perguntou como foi que ele acabou vestindo essa camiseta hoje. Talvez fosse apenas a primeira camiseta em sua gaveta.

Melissa estava perto, embaixo de uma cadeira, sua mão estendida. Ela estava tentando encostar no Rato, mas ele estava encolhido em si. André estava deitado ao seu lado, se remexendo desconfortável no chão. Ele parecia alheio ao perigo em que se encontrava; algo não estava certo com aquele menino. E Lorenzo. Onde estava? Sofia percebeu que ele estava segurando a cabeça dela.

O homem parou em frente à mesa deles, em frente ao Rato, deitado de lado, olhos bem fechados, seu cocktail de coco derramado como uma nuvem.

“É você, não é? Você é o sobrinho do Coelho.”
Claro, claro, pensou Sofia. O Coelho. Rato cerrou os olhos e não se mexeu.
“Preciso pegar seu RG? Sei seu nome verdadeiro. Francisco Moraes. Seja homem, Francisco.”

Rato manteve os olhos fechados. O homem suspirou e bateu o pé duas vezes. Sofia estava cara a cara com os sapatos agora. Sapatos pretos, pesados, com cadarços. Ela conhecia esses sapatos. Sapatos de polícia. Ela achou que esses dias tinham terminado. Era para terem terminado.

“Vai dificultar, né moleque? Fica de pé, vamos lá pra fora.”

Os homens armados levantaram Rato pelo braço. Ele voltou à vida, se debatendo, tentando ficar no chão, virando um peso morto. Ele abriu os olhos e Sofia viu, pela primeira vez, que eram de um castanho delicado. Ele tinha olhos lindos.

“Por favor, não. Não sou ninguém. Por favor, não faça nada comigo.”
“Ordens, menino, vamos. De pé. Você sabe o que está acontecendo.”

Melissa gritou. Rato olhou para ela, estendeu a mão. Melissa tentou alcançá-la, mas o homem empurrou Rato para longe. Sofia pulou e arrastou ela de volta para o chão. Ela chorou e gritou e estendeu a mão novamente. Rato estava tentando se desprender do homem, lutando, tentando se aproximar dela. Houve mais um estrondo quando o homem menor atirou em outra parede espelhada.

“Sai de perto dele”, ele gritou, enquanto Rato era arrastado para a cozinha.
“Mãe, faz alguma coisa!”, gritou Melissa.

Sofia não queria fazer nada. Tudo que queria fazer era manter a cabeça no chão, com a mão de Lorenzo protegendo ela. O revólver dela estava na bolsa ao seu lado. Isso era muito perigoso.

“Mãe, por favor”, implorou Melissa.
Ela ficou de pé.
“Pare. Polícia”, ela gritou.
O homem arrastando Rato ignorou-a. O homem na frente riu alto. Foi aí que André ficou de pé e apontou a arma para o homem que tinha seu amigo pelo pescoço.

“Morra maldito”, ele gritou, atirando quatro vezes.

Ele errou feio. Gritos e gritos e gritos. O homem pequeno na frente balançou de um lado para o outro, confuso. Ele atirou no ar. O homem arrastando Rato pegou a arma e atirou em direção ao André, mas errou. Ele então virou sua arma para o menino em suas mãos e atirou em sua cabeça, lá mesmo no restaurante. Sangue nas mesas e pratos, nos copos e na comida.

É um final de tarde de verão, você está com seus amigos bebendo uma cerveja, e finalmente o sol está brilhando, depois de uma longa semana de trabalho. O rio próximo de vocês brilha na luz. Você segue seu curso, seus olhos gradualmente se movendo para cima, para cima, sobre a cabeça e, em seguida, para baixo, para o outro lado. Eventualmente, a água encontra-se em um círculo perfeito, de volta a onde você começou. Tudo é como deveria ser. Você é um residente de um Bernal sphere, flutuando no lado mais distante da Lua – você já está acostumado com gravidade artificial.


Em 1975, a NASA Ames Research Center encomendou uma pesquisa a Gerard O’Neill, professor de Princeton que recebeu uma bolsa do programa espacial norte-americano para realizar um estudo de dez semanas em estruturas off-mundo. O’Neill e sua equipe trabalharam com arquitetos, pesquisadores, engenheiros e cientistas em Mountain View, Califórnia, e avaliaram se suas ideias eram viáveis, elaborando três conceitos para apresentar à NASA: Bernal Sphere, Toroidal Colony e Cylindrical Colony.

Na década de 1970, a Guerra Fria estava governando os assuntos internacionais, e a conquista do espaço foi uma prova de poder. Após o sucesso da missão Apollo 11, muitos sonharam com a vida humana no espaço. Durante uma série estudos de verão da NASA dedicados à vida humana no espaço, os artistas Don Davis e Rick Guidice ilustraram suas ideias sobre colonizar lugares em uma galáxia muito, muito distante.

As ilustrações são baseadas no trabalho do físico Gerard O’Neill. De fato, as estações espaciais têm a forma de um donut, esféricas e cilíndricas, de modo a transformarem-se em órbita e simularem a gravidade, e contêm grandes espelhos para refletir o sol em todos os interiores.

Esse projeto não está mais na agenda da NASA, mas os desenhos são muito, muito impressionantes – e são uma boa alternativa para os gráficos de computador genéricos que usados hoje em dia.

#25EspaçoEditorial

Editor convidado: Lourenço Gimenes

por Lourenço Gimenes

É curioso quando um tema familiar se torna complexo, uma vez que nos propomos enxergá-lo sob outros ângulos. Em princípio, ‘espaço’ deveria ser um assunto elementar para mim – é, no limite, o meu objeto de trabalho como arquiteto.

Mas destacá-lo do contexto estrito da arquitetura exige, simultaneamente, uma dose de aventura e o reconhecimento de uma desconfortável ignorância. Espaço é uma palavra que assume contornos diferentes e, sendo parte necessária da vida de todos, torna-se um assunto perigosamente amplo. Na tentativa de entender alguns de seus outros possíveis significados, deparei-me com interpretações variadas. Filosofia, sociologia, física ou matemática oferecem ideias muito ricas, e, por isso mesmo, não faria o menor sentido discorrer aqui acerca do conceito de espaço para Aristóteles, Hegel ou Kant; para Simmel ou Dürkheim; para Euclides ou Descartes; para Newton ou Einstein. Eu nem seria capaz, mesmo que quisesse.

O espaço ao qual estou acostumado é normalmente composto pela arquitetura. Ele é o vazio (fim) resultante de uma intervenção construtiva (meio), no qual pessoas habitam, trabalham, interagem, divertem-se, agem… O espaço também se encaixa naquela categoria de vazios formados por massas arbóreas, formações rochosas, colinas, corpos d’água e – de novo – construções humanas que, como objetos, constituem o cenário da vida numa outra escala. De maneira que, quando alguém se refere a um espaço vazio, isso nada mais me parece do que um pleonasmo engraçado. Afinal, espaço é o próprio vazio, cujo significado é criado por quem o percebe ou ocupa.

Talvez o vazio seja uma chave interessante para um passeio pelas próximas páginas. Ele pode ser conduzido à interpretação de lugar, e o registro de sua própria antítese (o não lugar) pelas lentes de Rose Klabin é, nesse sentido, impactante. Não por acaso, alguns trabalhos abordados nesta edição são assinados por artistas-arquitetos, treinados na arte da construção e formatação de vazios-lugares. Na obra de Fabio Flaks, por exemplo, o vazio pode ser físico, familiar à sua formação acadêmica, mas também flerta com o vazio do cotidiano, do depois, das reminiscências. Uma técnica precisa e quase obsessiva revela um processo de investigação solitária, contaminada pelo próprio espaço do seu ateliê – cuja representação termina por tornar-se objeto de alguns trabalhos.

Bruna Canepa, por sua vez, a partir da investigação da linguagem arquitetônica, representa o espaço em função de sua contraposição sólida e precisa, onde a escala humana se entranha num espaço de linhas e massas.

No espaço proposto por Camila Sposati, cria-se um estranho paralelo com os teatros anatômicos do século XVI e a arquitetura (construir) cede à arqueologia (escavar). Aqui, o vazio é um meio para visualizar as entranhas da terra e um fim em si mesmo: o olhar é dragado para o centro, enquanto o trajeto nesse curioso buraco insiste na dicotomia entre ele e a sólida envoltória geológica.

Nesse embate entre o cheio e o vazio, que pode ser puramente físico ou psicológico, corpos humanos se entrelaçam pelas lentes de Ute Klein; paisagens urbanas revelam suas contradições nas empenas de Ivan Padovani, povos desafiam fronteiras políticas. E, já que tecnologia é assunto recorrente em qualquer esquina, o espaço (ilusório) encontra eco cada vez mais presente na realidade virtual, nos filmes imersivos e nos jogos eletrônicos, enquanto o espaço (sideral) se impõe como fantasia para a reposição de um espaço de vida humano, que em breve teremos sucesso em destruir completamente.

#25EspaçoCulturaLiteratura

Retardo Espacial

por Vanessa Agricola

Algum lugar no meu cérebro, onde os caminhos ficam gravados – eu acho que eu não vim com esse lugar no meu cérebro. Estou no carro agora; vim dar uma volta com meu filho para ver se ele dorme. Saí de casa na Francisco Isoldi, a esmo, e eu nem te conto onde é que estou. Daqui a pouco, chegaremos na Mooca, e eu não sei voltar para casa da Mooca.

Na época da faculdade, voltando para uma outra casa, que ficava no Morumbi, fui parar no McDonald’s da Imigrantes. Minha mãe me avisou de manhã, Vanessa, volta pela Marginal hoje à noite, porque vai ter jogo, e lá fui eu pela Marginal. Não sei como entrei na Bandeirantes, aí fui indo, fui indo, paguei pedágio, comecei a chorar.

Minha grande explicação, para mim mesma, é que eu ainda não sabia dirigir direito naquela época, e fiquei com medo de fazer os retornos, sabe? Quando você começa a dirigir e tem medo de subir ladeiras, fazer retornos – essa é minha grande desculpa. Mas e hoje, eu aqui na Mooca? A Vivo cortou minha internet, me deixou sem mapa. Essa cliente, essa Vanessa, vamos cortar a internet dela, hahaha! Devia ser assim a propaganda da Vivo, empresa sem alma.

Mas, só por hoje, Vivo, eu te perdoo. Ficar sem mapa é bom para eu lembrar que sou uma pessoa espacialmente retardada – justo o retardo que mais me preocupa em mim mesma. Eu, que andava me achando evoluída, porque estou fazendo ginástica e escutando o Prem Baba no YouTube, e o Prem Baba tem me ensinado que tudo bem a gente ter defeitos, que faz parte do evoluir diagnosticar e aceitar o que somos. E a Vivo me lembrou que eu não aceito esse meu retardo.

Outro dia, alguém me falou, “ali na Major Sertório”, e eu fiquei pensando… “Ali do lado de onde vocês moravam!”. Eu me odeio por não ter lembrado da rua Major Sertório. Eu trabalhei na rua Major Sertório. Como que alguém me diz “Major Sertório” e eu fico pensando? Por que junto do meu retardo, da disfunção do registro fotográfico das ruas e esquinas de São Paulo e de qualquer lugar, eu tenho também o retardo dos nomes das ruas, das coisas e das pessoas, Prem Baba?

Filho, calma. Daqui a pouco a gente chega. Quer ouvir o Pedro e o Lobo? Com a Rita Lee ou o Roberto Carlos? Droga, não está pegando. Vamos ter que escutar a rádio, Antônio. Porque a internet não está funcionando, filho. O Pedro e o Lobo está na internet, entendeu? Mas escuta essa música, Amy Winehouse. Não gostou? Antônio, não seja chato. Não tem Seu Lobato, filho.

Logo na capa desta edição da revista Amarello se vê como Bruna Canepa reage às pinturas que cobrem fachadas cegas nos arredores de Gênova. Em 2015, em viagem à Itália, os murais trompe-l’oeil da Ligúria lhe causaram forte impacto; nas suas próprias palavras: “essas pinturas não condizem com o interior do edifício. Atrás delas, há algo diferente do que anunciam”.

Assim, provocada, Bruna responde com uma série de desenhos, sempre aos pares, como dípticos que seguem uma mesma estrutura sucessiva: [1] vista frontal, aquela que coloca o observador no ponto preciso para que se produza a ilusão, e [2] projeção axonométrica, aquela em que o truque se desvela. Na primeira, é puro efeito. Na segunda, está desfeito. Por isso, ver a segunda equivale a conhecer o plano. Vendo-a, é possível inferir como se quer iludir o observador da cena projetada. É justamente esse segundo tipo que estampa a capa da nossa revista. Ou seja, ela não nos mostra o efeito, mas a chave. Uma chave é sempre um belo convite. Neste caso, a artista nos apresenta os elementos que devem figurar na cena para que a gente possa, por conta própria, imaginá-la. Como se a beleza não estivesse na obra, mas no modo como cada um a lê. Ela nos toma como se fôssemos todos artistas.



Quando atendemos ao convite e passamos ao corpo da publicação, às obras reproduzidas dentro da revista, como quem passa de Gênova a São Paulo, confirma-se ainda com maior clareza que a fonte de onde Bruna extrai os elementos constitutivos dos seus desenhos, as imagens que ela põe em movimento para a construção do seu trabalho, é outra vez a cidade. Sempre. Ali, o que sustenta [como edifícios], o que navega [como barcos] ou o que voa [como foguetes] é sempre uma elaboração sensível de sua vivência urbana.

As duas obras da casa fluxo [trabalho colaborativo / Estúdio Miniatura] também funcionam como um par ou uma dualidade. Não por acaso, aqui os dois elementos do díptico estão reproduzidos. [1] A casa, com suas paredes negras, destaca o efeito de uma luz acesa ali dentro, acentua a sensação de abrigo, lugar adequado ao recolhimento. Vista assim, por fora, ela, a casa, paira serenamente. [2] Então, quando na sequência se atravessa suas paredes externas, a ideia de aconchego se desfaz, e nós a percebemos como parte de um sistema que lhe escapa e a coloniza. A casinha sem paredes se mostra completamente atravessada por feixes de conexões a que a artista chama de fluxo. Inversões presentes que, a seu modo, Bruna pressente e registra. Assim, justamente dentro da casa, onde estaria o espaço da intimidade, é onde o sujeito, como a casa, se pulveriza em muitas direções a partir daquele nó de fluxos.

Uma obra das obras que não tem seu par tem duas imensas janelas. É a única ilustração de um ambiente interno. A altura do cômodo e as dimensões das aberturas são agigantadas. O sujeito ali olha através da janela, cujo peitoril está à altura dos seus olhos, e, portanto, seu ângulo de visão só abrange o quadrante superior. Ele olha um céu noturno salpicado de pontos brancos, como estrelas, e dois círculos, como duas órbitas concêntricas nitidamente desenhadas. A imagem tão sintética nos instiga de alguns modos: [1] as órbitas fazem ver que ali o céu é plano e está em movimento [2] enquanto a sala, representada em perspectiva, tem as duas paredes laterais escapando para mais de um ponto de fuga, todos verticalmente alinhados no segmento definido entre a cabeça do sujeito e a abertura mínima, como uma inesperada seteira, na parede do fundo acima dele. O piso e o teto não seriam planos paralelos, e as grandes janelas, de fato, não seriam retângulos. Perspectiva fingida ou, de novo, o trompe-l’oeil. Outra vez o contraste, ou a mediação, entre o que é verdadeiro e o que é simulado. Justamente o alinhamento vertical dos pontos de fuga coloca em destaque uma abertura ínfima e fora do domínio visual daquele sujeito; a seteira quase perdida na parede que é coplanar ao céu poderia eventualmente enquadrar um foguete. Seria uma casa ou uma espaçonave?

A seguir, um pedaço de cidade se prepara para zarpar. Primeiro, ele se descola da malha urbana pela escala. Parece ser justamente quando mais se verticaliza e se adensa que ele se põe em condição de navegar [cidade à deriva]. Em certa medida, todo navio é exatamente assim, uma parcela urbana, como território itinerante de um país, que se lança ao mar. Do mesmo modo acontece no trabalho de Bruna Canepa, pois aqui também a carga que aquela embarcação carrega é a matéria-prima com a qual ela constrói sua obra. Por isso, a obra que ilustra a cidade à deriva em seção transversal [drifting city, trabalho colaborativo / Estúdio Miniatura], e planta em malha ortogonal representada logo acima, é tão significativa. Nesta carga cultural, estritamente urbana, incluem-se a montanha e as árvores; a infraestrutura, as embarcações e os aviões; os edifícios e as esculturas; enfim, o todo existente no mundo já descrito pelo homem [construído ou não por ele] faz parte dessa bagagem cultural sobre a qual essas obras tecem a sua reflexão.

É porque está munida deste acervo, ou carga cultural, que Bruna propõe com clareza didática as quatro operações sobre um cubo [denominados platônico, à primeira vista, impossível e ideal]. Ainda aqui, quatro dípticos, como se [a] o primeiro descrevesse o propósito e [b] o segundo desvendasse a estratégia. Em platônico, [a] ligar um ponto na base de uma face ao topo da face oposta; [b] uma fresta e uma escada. Em à primeira vista, [a] ligar um lado ao lado oposto em mesmo nível, próximo à base; [b] atravessar por um túnel plano. Em impossível, [a] ligar dois pontos altos em faces opostas; [b] uma combinação dos dois primeiros, mas em vez de escada, um fosso vertical, elevador, e o plano vertical subtraído para a conexão horizontal entre os dois. O ideal lança mão dos mesmos elementos, que são a escada e o fosso, a fresta e o túnel, como estratégias de conectar como um caminho a percorrer ou apenas visualmente. Mais que a soma, aqui também se sugerem ocupações ou volumes cavados dentro dos volumes. São operações arquitetônicas que evidenciam a proximidade da artista com esta abordagem.

E, seguindo ainda por esse mesmo caminho, ela vai mais longe. Em proposal for a gym [trabalho colaborativo / Estúdio Miniatura], a sugestão de arquitetura é tão nítida que ganha inclusive programa. A gente imagina, de fato, aquela parede espessa como um edifício estreito para abrigar a atividade solitária em que o sujeito, preso ao próprio corpo, esgota-se ativamente na mais extrema solidão.

É sobre a beleza dessas obras, extraídas da experiência de cidades a partir de uma sensibilidade notável e uma racionalidade e realizadas com extremo apuro técnico em desenhos rigorosamente executados que Bruna Canepa funda sua plataforma artística. Então, sobre a plataforma, o foguete. Aquelas mesmas duas cores, azul e vermelho, usadas sempre com tanta parcimônia sobre o branco do papel e o preto dos traços, aqui neste artefato elas parecem explodir. É um foguete de carga, que pode transportar a qualquer ponto do espaço toda riqueza cultural que constitui o acervo do nosso imaginário urbano.

É assim, embarcada em seu próprio trabalho e no comando dessa espaçonave, que a artista Bruna Canepa decola.

Paisagem Lunar
#25EspaçoAmarello Visita

Amarello Visita: Fabio Flaks

por Mariana Tassinari

Conte um pouco sobre sua formação. Você é arquiteto, certo?

Sim, me formei na FAU como arquiteto e urbanista em 2000, mas, na metade do curso, já comecei a me interessar pelas artes e querer experimentar um pouco a pintura. Foi quando fui fazer um ateliê aberto no MuBE com o Sérgio Romagnolo. Eu lembro bem a conversa que tive com ele, que eu queria aprender a pintar, e ele simplesmente falou: “OK, então pinte”. Esse talvez tenha sido o melhor direcionamento que poderia ter recebido naquela época. E, no fundo, é exatamente isso. Vá lá e pinte. E foi assim que comecei. Ainda na faculdade, participei de alguns salões, e fiz uma individual na galeria Adriana Penteado. Meus colegas de galeria eram Carla Zaccagnini, João Loureiro, Debora Bolsoni, tinha uma turma muito legal. Foi nessa exposição que expus todos os meus quadros pretos. Esse quadro é um que eu estava preparando para essa exposição e não terminei. Não deu tempo e está aí até hoje [pendurado na parede de sua casa/ateliê].

Você chegou a trabalhar como arquiteto?

Sim. Bastante. Eu participei de projetos com o Loeb, com o Eduardo de Almeida… E trabalhei no Rocco Associados, que é um escritório que já mudou de nome, que foi incorporado. Projetava prédios e ficava produzindo, tentando levar essa coisa da arquitetura adiante, mas sempre tendo como foco as artes. Por vezes eu me distanciei, por vezes me aproximei, também trabalhei com design gráfico; tudo isso para sustentar a introdução às artes.

E quando que você começou a trabalhar mais como artista, de realmente ser o principal e o resto ser secundário?

Bom, mais ou menos em 2006 eu saí do escritório de arquitetura em que trabalhava e comecei a trabalhar com ilustração e design gráfico, o que me permitia ter um horário mais flexível e me dedicar cada vez mais à arte. Em 2007, eu acho, entrei no mestrado na ECA, em Artes Visuais. E aí, sim, comecei a pôr as artes plásticas na frente de todo o resto. Eu estudava artes plásticas, pensava artes plásticas e trabalhava com artes plásticas. Mas foi só quando terminei o mestrado, em 2009, que comecei de fato a me apresentar como artista plástico. Eu não era mais arquiteto, mas, sim, artista plástico. Mesmo assim, antes desse período, participei de várias exposições, editais, fiz algumas individuais. Todo o percurso do jovem artista.

E no mestrado você começou a ter ligação com vários outros artistas, e também com uma geração mais velha, e críticos, curadores…

Pois é. Isso me faz lembrar uma coisa muito interessante, porque, como eu vinha da arquitetura, não tinha uma ligação direta com essas pessoas e esse mundo. Então, de algumas das exposições que fiz no começo, não tive nenhum retorno, mas, depois de anos, cruzei com alguém que falou: “sabe aquela sua exposição de 2001? Eu vi. Muito legal”. Isso foi um retorno que tive depois de muitos anos contra essa distância. Além de outro círculo.

E aí no mestrado é quando você se insere de fato, pelo menos no ambiente, e conhece as pessoas e seus trabalhos. Ah, um detalhe interessante: quando eu ainda estava na faculdade, junto com um amigo da FAU, tive um ateliê no Bom Retiro, que, no final das contas, só eu usava. O espaço exclusivo para produzir é um momento importante. É um espaço onde você chega e não tem mais nada para fazer além de trabalhar. Não tinha nem onde sentar. Tinha só aquela cadeira. Era para chegar e trabalhar. Se fosse para não fazer nada, não dava, porque era muito desconfortável, inóspito até. O lugar era uma antiga borracharia e funcionou muito bem para aquele momento. Fiquei lá um tempo, e depois encontrei esse apartamento, onde também me encaixei muito bem.

Você considera aqui mais casa ou mais ateliê?

Então, não consigo separar. Eu não consigo praticamente separar horário de trabalho do horário de descanso. É tudo muito misturado. Estou sempre pensando no trabalho – não necessariamente materializando o trabalho, mas estou 100% envolvido com ele. Eu moro aqui sozinho, não dá para escapar, e nem quero escapar. Mas, por outro lado, também tem uma coisa quase simbólica que faço quando estou aqui trabalhando [na sala/ateliê], que é fechar a porta do corredor [risos]. Eu tenho que fechar. Não é por causa do cheiro da tinta, não é nada. Porque, de qualquer maneira, o conforto está lá.

Isso tudo requer muita disciplina, né?

Sem dúvida. A questão da disciplina é algo que, inclusive, é tema do meu trabalho. A maneira como faço essas pinturas, a escolha da técnica, da maneira de pintar, requer muita disciplina – a pintura a óleo tem o tempo dela. Então isso tudo está aí no que você vê. Na verdade, uma das coisas que carrego no meu trabalho e que talvez não fique muito visível para quem olha, algo que norteia meu trabalho, tem a ver com essa disciplina que a pintura impõe, tem a ver com o trabalho em si – a quantidade de horas para chegar nisso, conseguir essas diferentes nuances de cinza e tal. Tem muito essa coisa da contenção dessa pintura, para chegar nesse quesito dos tons; é uma pintura relaxada. E por vezes eu escolho temas que sugerem completamente o oposto, mas, também, como é que posso falar, não se realiza. Vou dar um exemplo: essa pintura que se chama “Festa!”

Da garrafa?

É, se chama “Festa!” – ponto de exclamação no final. É uma garrafa de cerveja, e tem também garrafa de champanhe, de vinho e de uísque. E, bom, o tipo de objeto sugere descontração; são festivos, claro, e sugerem extroversão, extravasamento e tal. Mas a feitura dessa pintura é completamente o oposto. É demorada, é trabalhosa, requer uma contenção dos gestos e uma disciplina, uma precisão. Essa gravura também; ela se chama “Amplificador” e surgiu quando eu ia a alguns shows, que tinham muito barulho, todo mundo feliz, pulando, se divertindo, e a única coisa que parecia ter uma qualidade, de um silêncio sepulcral quase, eram os amplificadores. E, na real, é de onde está vindo o som. Eu gostei desse paradoxo. Então a ideia desse trabalho foi ficar cobrindo de onde viria o som, quase que abafando ele.

É gravura em metal?

É. Eu fiz com a ponta seca mesmo. Foi chato. Foi heavy metal [risos]. Um trabalho realmente trabalhoso, repetitivo, maçante e demorado. Gosto de trabalhar essas bipolaridades. As caixas têm todo esse trabalho dos degradês de cinza, com algumas áreas de cor. Fala do interno e do externo.

Foi o primeiro trabalho que vimos e associamos ao tema dessa edição. como ele surgiu?

Deixa eu pensar… Faz tempo que não penso sobre eles… Teve uma época em que meu trabalho estava caminhando, estava se tornando muito branco, limpo, e eu estava lidando com a ideia de espaços internos silenciosos, protegidos. Que são as fotos que tenho dos cantos… Estava indo por esse caminho. Até que chegou num ponto em que começou a ficar muito branco, protegido, interno e silencioso. Foi aí que comecei a colecionar caixas de remédio, de xampu, de Tabasco, de qualquer coisa, porque achava interessante e bonito que, por dentro, elas fossem brancas. E eu comecei a abri-las, mexer, virar. Mas também foi uma ideia que demorou para eu materializar e resolver. Elas me interessavam abertas, e eu não sabia o que fazer. E comecei a achar muito interessante olhar para elas assim por dentro e ver que só tinham essas pequenas sobras do design gráfico, a parte impressa do lado de fora, sugerindo o que elas poderiam ser. Eu estava lidando com o mesmo tipo de esvaziamento, de vazio, com que estava trabalhando até então e fazendo essa sugestão do que seria aquilo. Um tipo de referência a espaço interno versus espaço externo, espaços protegidos versus espaços desprotegidos.

Quais artistas você gosta de olhar como referência?

Sei lá… Richter, claro. Não posso evitar falar dos hiper-realistas americanos – embora eu não esteja muito preocupado com a questão do hiper-realismo, minha questão é outra, é carregar o trabalho com disciplina, como falei antes. Olho muito para as pinturas holandesas e flamengas dos séculos XVII, XVIII, Vermeer e aquela gama toda, além dos pintores mais próximo como o Morandi, que é um cara que olho com uma grande admiração. Mas também tem um pouco do universo pop, o Andy Warhol. Quando eu estava começando a pintar as caixas, ficava pensando que aquilo que estava fazendo era um Brillo Box ao contrário, estava olhando outro lado do Brillo Box. Acho que, de certa maneira, trabalhar com a caixa vem um pouco da Tomato Soup e do Brillo Box. Não dá para dizer que não. E também esse pintores mais recentes, tipo o Luc Tuymanse o Borremans.

E você tem algum trabalho preferido, entre todos os seus?

Sim. Acho que os amplificadores foram uma grande coisa. Principalmente a gravura. Acho que aqui está, de certa maneira, tudo com que eu sempre quis trabalhar. Todas as minhas referências. Aí está tudo muito condensado. Tenho também um trabalho bem estranho, comparando com todos os outros que já fiz, que é esse quadro aqui. Ele destoa, e parece que não é nem meu. Fiz ele em um outro momento, foi o primeiro trabalho em que trabalhei cor, e comecei a trazer referências de um mundo lá fora, digamos assim. Para falar de algo contrário também. O nome da pintura é a estrofe lá, “When routine bites hard”. Eu fiz esse trabalho para uma exposição que falava de coisas muito próximas e cotidianas, os espaços vivenciados no dia a dia…

E tem também as bolinhas de papel que surgiram num momento em que eu estava trabalhando muito mas não estava terminando nenhum quadro. É um desses momentos na produção do artista em que se trabalha mas não se chega a lugar nenhum, e estava abandonando muitas telas, estragando tela e destruindo tela. Abandonando tela mesmo. Aí comecei a ficar com isso na cabeça e, de repente, pensei que poderia trabalhar justamente isso. Comecei a pensar que, do jeito que estava fazendo, eu já estava trabalhando pensando que ia dar errado. Por um breve momento me veio isso na cabeça. Quando dá errado, você destrói e joga fora e começa de novo. Então seria interessante começar o trabalho com ele já dando errado, entendeu? E era isso. Foi quando me veio a imagem da bolinha de papel. Eu visualizei essa imagem e comecei a achar muito interessante que, além de ter essa ideia, que gerou essa imagem na minha cabeça, tinha uma questão muito interessante em relação à pintura disso, que a bolinha de papel, se você chega próximo dela, é basicamente um amontoado de formas abstratas – na verdade, como tudo, mas que lá estava literalmente trabalhando com algo abstrato. Tem uma hora que você junta tudo e constrói essa imagem. Então eu comecei pelo contrário, comecei pelo que supostamente deu errado, por esse momento de extravasar, amassar e jogar fora. E é um trabalho muito concentrado, tem muitas e muitas e muitas horas, e algumas semanas, nessa pintura de 40×40. E aí eu tiro o título dessas pinturas do papel mesmo, “A4, 90 gramas por metro quadrado”, para realmente sugerir que é um papel em branco ainda, que já deu errado antes. Faço esse tipo de jogo. E também é um objeto que tem os côncavos e os convexos, os externos e os internos, tem tudo isso concentrado nessa bolinha.

O que você ainda não fez e quer fazer? Tem alguma coisa que te persegue esses anos todos?

Putz, tudo. Acho que a melhor resposta é essa. Tudo que eu ainda não pensei em fazer. Não sei. Acho que a gente está sempre meio que à beira do tédio, a gente nunca sabe o que vai fazer. Eu tenho um monte de estudos e projetos que são coisas que vão seguindo um fio condutor diferente, mas, às vezes, parece que estou fazendo a mesma coisa desde o dia em que comecei. Na verdade, acho que é isso que a gente faz. Não sei te responder.

Conta um pouco sobre a relação do espaço da sua casa/ateliê com as suas obras, que muitas partes da sua casa/ateliê já viraram tema do seu trabalho.

Sim. Às vezes eu uso de fato a imagem do meu espaço, que é o caso do teto, dos cantos, da lâmpada vermelha. Com raríssimas exceções, tudo acontece aqui dentro. Tem realmente um embate entre espaço interno e espaço externo. O espaço interno, esse espaço íntimo, silencioso, protegido, espaço meu, próximo, está representado, e tem essa sugestão do espaço do lado de fora. Então, por exemplo, no caso da luz vermelha, é de fato esse espaço, mas a luz vermelha faz menção a uma vida noturna de, sei lá, Baixo Augusta, inferninho e tal. Mas tudo acontece aqui. Sem esse espaço, dessa maneira como o organizei, esses trabalhos não aconteceriam. Tem um trabalho que fala muito do lado da parte externa, que é um trabalho de que gosto muito, muito mesmo, é um trabalho importante até para mim, que são os aéreos. E lá foi uma vantagem mesmo de sair desse espaço e falar de paisagem, de sair dessa relação muito próxima, tátil até, para algo de paisagem, que é algo que a gente não alcança. Mas, de qualquer maneira, nesse trabalho eu não consigo tirar, me desvencilhar desse espaço fechado, que sugere a rampa côncava. Essa relação não é muito clara, eu não quis deixar clara, mas tem essa volta para o espaço interior.

Você tirou foto dessas rampas ou você já tinha?

Eu fui lá e fiquei fotografando a rampa, e foi divertido, foi bem legal. Mas a história era essa coisa, que tinha um resquício de algo interior, que é o côncavo, e essa coisa da paisagem. O que eu queria trabalhar mesmo era falar um pouco de pintura holandesa do século XVII, essa coisa do céu, e relacionar com essa paisagem de hoje, super de agora, no máximo de trinta anos atrás…

O céu é o céu do dia da foto ou você fez a referência à pintura holandesa?

É, não, não me preocupei em fazer o céu dos holandeses. Não era o céu do dia da foto. É um céu construído. Eu construí esse céu. Dá para ver a evolu- ção, esse foi o primeiro… É difícil fazer céu.

Mas você tem prazer enquanto está pintando?

Ah, sim… De ver a coisa se formando. Mas eu não caio nesse romantismo do “ai, que delícia, a tinta, a cor”… Não. Trabalho é trabalho. É difícil, e é suado e custoso. Não caio nessa conversa. Não tenho esse tipo de romantismo. O trabalho de pintura requer o embate. Eu lembrei de um artista muito importante para mim e brasileiro, por conta principalmente da relação com os objetos que ele trabalha, que é o Iran do Espírito Santo. Ele é um cara que me identifico muito com o trabalho, apesar de nem ser pintura nem nada, as questões são outras e tal. Mas me identifico muito mesmo.

Você limpa todos os dias os seus pincéis? Como funciona a organização?

Ah, tem que limpar.

Pintura a óleo requer isso?

Acho que qualquer pintura… Acho que acrílica também. Senão você vai ter que comprar um pincel por dia, não tem como.

E, desde que você se mudou para cá, a configuração foi sempre essa?

Não. Muda bastante. A mesa é assim justamente para arrastar para lá e para cá. Sou eu que preparo as telas. Eu compro ela enrolada. Então quando eu vou prepará-la, que tem que passar a base acrílica e o gesso, a mesa ou vai para lá ou deixo ela em pé e estico aqui um plástico e passo com rolinho, fica uma outra coisa. Quando eu estou produzindo, fica uma guerra isso aqui.

As paredes todas cheias, as coisas penduradas. Uma zona. Os objetos, que estão agora mais ou menos arrumados, mas aí fica caixa de remédio aqui, outras coisas lá. E esses objetos que eu pinto eu começo a colecionar, para ter como referência. Então eu tenho caixas e mais caixas. Eu às vezes peço, às vezes me oferecem, às vezes me dão e falam “você podia pintar essa caixa, que é legal”, às vezes eu vou na casa das pessoas e olho uma caixa e pergunto se posso levar [risos].

#25EspaçoCulturaEducação

Espaço do brincar

por Roberta Rodrigues Alves

Ao ser convidada para escrever sobre educação nesta edição, cujo tema é espaço, a imagem primeira que me veio é a do “jardim interno” – o jardim que cada um de nós, cada criança, cada educador, cada pai ou mãe tem dentro de si.

Por muito tempo, a grande maioria das pessoas entendeu a educação como passagem de conteúdo e cultura para aquele ser em formação. Apenas mais recentemente vêm tomando força as correntes que reconhecem a potência intrínseca do ser humano – que a riqueza, o potencial de ser uma pessoa em sua plenitude já faz parte da criança, e que cabe aos adultos possibilitar que esse potencial seja revelado.

Qual, então, o papel do educador, senão abrir ESPAÇO e oferecer oportunidade para que aquela semente germine, cresça e floresça, e ofereça ao mundo sua cor, textura, formato e beleza única, seu jeito próprio de estar no mundo?

Claro que tantas coisas deste mundo a criança precisará entender; compreender seu funcionamento, suas leis, as regras de convivência. A criança tem o mundo a descobrir e uma infinidade de coisas para apreender.

A experiência da observação da criança, uma observação atenta e cuidadosa, traz a nós, adultos, muitas descobertas a respeito não apenas da criança, mas de nós mesmos, de nossa humanidade. Ao observar o brincar espontâneo da criança a partir de um lugar de contemplação, e conseguir admirar e se surpreender, nos conectamos com nossa própria potência.

Junto com um grupo de educadores, estivemos durante dois anos exercitando a observação do brincar espontâneo da criança. Dialogando com os registros e imagens do Território do Brincar (Instituto Alana), que percorreu o Brasil documentando a criança e seus gestos nas mais diversas paisagens e culturas brasileiras, estivemos em contato não apenas com aquela criança que observávamos, mas com as crianças em nosso entorno, alunos, filhos, e também a criança que vive dentro de nós.

Como mãe de três filhos, educadora e psicóloga, quero compartilhar que essa experiência foi muito transformadora para mim. No decorrer do meu mestrado em Prática Social Reflexiva e em interação tão profunda com as crianças em seus gestos genuínos do brincar espontâneo, o exercício da observação foi proporcionando uma ampliação do olhar muito marcante. Percebi, no decorrer do processo, em mim e nos educadores envolvidos, uma compreensão mais aguçada da criança – uma maior possibilidade de conexão, de presença, de interesse mais profundo e genuíno pela criança! Foi ficando muito claro que a transformação que queremos ver no mundo se inicia em nós mesmos, e que a conexão e a relação que estabeleço com a criança dependem da conexão e da relação que estabeleço comigo mesma.*

Na conexão com a criança, é fundamental a nossa presença. E presença no sentido mais pleno, no aqui e agora, em contato comigo mesma, com meu jardim interno, minhas potências e vulnerabilidades, minha consciência, minha humanidade. É muito importante que eu consiga diferenciar o que é parte do meu jardim e o que é parte do jardim da criança. O espaço de cada um neste mundo. É muito importante que eu tenha consciência do que são minhas expectativas para esta criança, o que eu gostaria para ela, e o que é potência, interesse e movimento natural dela. Cada ser humano é diferente e único, e, se nos abrimos para o novo, nos surpreendemos.

Ao adulto, cabe dar espaço e oportunidade para que a criança floresça. Isso significa impor menos, ter menos expectativas, e se surpreender mais. Respirar três vezes antes de intervir em momentos que, a princípio, não compreendemos; mantermos, antes, a conexão com nós mesmos para poder nos conectar com a criança, com toda sua potência, para que ela possa florescer em seu jardim e oferecer suas cores e aromas.

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O brincar livre da criança é absolutamente fundamental para que ela possa entrar em contato com seu jardim – suas potências, suas limitações, seus desejos, interesses, caminhos. Brincar pressupõe movimento interno e externo – a criança brinca com seu corpo todo e, nesse brincar, conecta seus mundos interno e externo.

A criança brinca porque tem necessidade de se movimentar, de explorar, conhecer, vivenciar, experimentar. Brincando, ela aprende sobre si e sobre o mundo que a rodeia. Além do desenvolvimento do seu corpo (e cérebro), a liberdade no brincar exercita a imaginação, escolhas, coragem, confiança, atenção, concentração, entusiasmo, frustração, perseverança, memória, tolerância. Na convivência e na relação com os outros, a criança vai aprendendo a esperar, ajudar, observar, ceder, seguir regras, organizar, cumprir ou propor ordens, resolver, organizar. Tantas coisas acontecem nesse exercício do brincar livre, espontâneo e natural das crianças!

Entretanto, é muito desafiador, nesses nossos tempos, que a criança tenha a oportunidade de brincar verdadeiramente, livre e espontaneamente – com toda sua potência. As crianças, com suas agendas cheias, passam a maior parte de seu dia na escola e em atividades após a escola que ocupam seus tempos e limitam as possibilidades de brincar. Ainda desafiador para todas as famílias, no curto tempo que lhes resta ficam distraídas de si mesmas com jogos eletrônicos, internet e rede sociais. As crianças ainda não têm discernimento suficiente para brecar a vontade de ficarem distraídas nos joguinhos e raramente fazem a escolha de se desconectar de seus aparelhos para brincar. Cabe a nós, adultos, garantir que esses espaços existam na vida da criança. Somos nós os responsáveis por garantir as coisas realmente fundamentais para o seu desenvolvimento. Por vezes, nos tornamos “impopulares” ou chatos diante dos nossos filhos ou alunos ao impor restrições e colocar limites – seja para os eletrônicos ou outra situação cotidiana. Mas, em contato com o nosso jardim e nossa consciência, faremos as escolhas e encararemos a árdua tarefa de educar e garantir o espaço externo e interno para que o brincar espontâneo, tão fundamental, possa acontecer na vida das crianças.

“Todo jardim começa com um sonho de amor.
Antes que qualquer árvore seja plantada
ou qualquer lago seja construído,
é preciso que as árvores e os lagos
tenham nascido dentro da alma.

Quem não tem jardins por dentro,
não planta jardins por fora
e nem passeia por eles…”
– Rubem Alves

*Para assistir ao documentário sobre esse processo com os educadores que observavam o brincar espontâneo da criança, acesse http://territoriodobrincar.com.br/videos/documentario-territorio-do-brincar-dialogos-com-escolas/

#25EspaçoArquiteturaDesign

Perpétua Mutabilidade

por Francesco Perrotta-Bosch

Imagens MoMA

Em meados de 1952, o Museu de Arte Moderna de Nova York montou a exposição Two Houses: New Ways to Build [Duas Casas: Novas Maneiras para Construir], propondo-se a demonstrar os dois caminhos que a arquitetura mundial poderia trilhar dali por diante. A curadoria do MoMA selecionara duas alternativas antagônicas, bem ao espírito de um mundo dicotômico que assistia ao surgimento da Guerra Fria. De um lado estava a precisão geométrica de uma residência sob a cúpula geodésica de Buckminster Fuller; do outro, a estranheza causada pela Endless House de Frederick Kiesler, com sua rugosidade, seu espaço sem qualquer indício da presença de planos e ângulos retos, sua forma informe.

Poucos anos depois, Philip Johnson definiu Frederick Kiesler como “o maior arquiteto não construtor de sua era.” Da sua cabeça saia uma miríade de projetos fantasiosos; porém, tal como a Endless House, praticamente nenhum era construído, e muitos nem mesmo eram exequíveis. Afinal, punha-se em dúvida um argumento de autoridade da disciplina: a ponte entre o pensar (projeto) e o fazer (execução) na arquitetura é feita eminentemente pelas relações matemáticas, pela geometria, pela proporção, pela perspectiva. Tais parâmetros arquitetônicos são explicitamente questionados na Endless House.

Kiesler insistia em “correlacionar” e não “segregar”, fazendo com que sua atividade abrangesse e hibridizasse pintura, escultura, colagem, arquitetura, filosofia, poesia, design de objetos e gráfico, cenografia e dança. Em manifesto de 1925, Kiesler já bradava “não mais muros” entre arquitetura e arte. No ano anterior, ele tinha feito seu primeiro eminente projeto: o Space Stage (1924). Era como se se apropriasse do Monumento à Terceira Internacional (1919) de Vladimir Tatlin e depois o achatasse para caber dentro do Konzerthaus de Viena, criando um palco circular que se ativava quando invadido pelos atores em movimento – uma estrutura sem adornos que proporcionava ao artista teatral uma apropriação específica do espaço.

De origem romena, Frederick Kiesler foi para Viena ainda criança, onde passou sua adolescência e juventude vivendo a Viena fin-de-siècle. Naquele ambiente, teve a possibilidade de se aproximar das vanguardas modernas da década de 1920, em especial dos neoplasticistas. Com eles, concebeu a espacialidade da exposição parisiense City in Space, na qual extraiu o sistema de Mondrian da planalidade da tela de pintura para aplicá-lo no espaço.

Em virtude dos dois projetos, é convidado para a International Theatre Exposition de 1926, em Nova York. Lá, deu uma guinada radical, apresentando seu primeiro trabalho “sem fim”: o Endless Theater, uma edificação de forma ovoide, onde o palco e a plateia circulares misturavam-se em meio a rampas e planos inclinados, impelindo a tudo e a todos naquele universo teatral a estarem em perpétuo movimento. Chegou até a receber um convite para construir seu teatro no Brooklyn. A execução não prosperou, mas Kiesler seguiu morando em Manhattan até o fim da vida.

A plenitude da incorporação do movimento na arquitetura de Kiesler ocorreria na Space House – uma casa não estática que interagiria com o morador por meio de um intercâmbio de forças e energia. Os ambientes dessa Casa Espacial deveriam se movimentar, em uma franca analogia à respiração: afirmava que era uma edificação em contínua modificação por meio de movimentos de “contração” e de “expansão”, ou seja, a Space House seria uma espécie de organismo vivo tal como é o corpo humano.

De alturas variantes, os pisos da moradia seriam uma espécie de esponja elástica que se transformaria de acordo com a pressão do peso do morador exercida em cada passo. Portas, janelas, todos os elementos constituintes da casa seriam capazes de se transfigurar. Pensava em paredes e tetos deslizantes, ou algo como uma pele que poderia ser rasgada e costurada pelo próprio mecanismo gerenciador dessa arquitetura mutante. Portanto, a Space House precisava ser constituída por uma membrana moldável e adaptável, capaz de ser tanto uma camada protetora quanto conter a permeabilidade que permitisse as transferências de energia entre interior e exterior, isto é, entre morador e mundo.

A Space House foi apresentada numa feira nova-iorquina de mobiliário, em 1933, mas o próprio Kiesler admitia ainda não existir a tecnologia capaz de materializar o que vislumbrava. Os textos do arquiteto visionário são mais elucidativos que o modelo construído. Afinal, o tempo é o agente principal da configuração desta casa. Kiesler concebia um edifício modificável de acordo com as necessidades dos moradores, das transformações inerentes à vida. É uma arquitetura que se recusa a resultar em uma forma inerte, mais que isso, uma arquitetura que refuta a ideia de resultar.

Kiesler estava lançando as bases da Endless House. As intenções contidas nos textos da Space House, que não encontravam rebatimento no campo visual e tátil, passam a se transfigurar, quinze anos após, na Casa Sem Fim. Paredes, piso e teto eram um todo contínuo e fluido. Uma edificação que não se pacificava em uma geometria. Sua completa irregularidade corporificava-se em uma materialidade estriada, aparentemente rudimentar (nas maquetes), que borrava qualquer idealidade estrutural ou funcional.

Não que estrutura e função inexistissem. Por meio da diferenciação de texturas, cada espaço teria um caráter distinto de acordo com seu uso. Arquitetava-se (de modo inconclusivo) uma estrutura que amalgamasse concreto com telas metálicas, entremeados por uma matéria moldável transparente. Não haveria chuveiro, mas piscinas de banho conectadas por filetes de água. As atmosferas sensoriais de cada ambiente seriam complementadas por efeitos de iluminação. Kiesler desejava que a Endless House operasse como um grande cristal que filtra a luz do sol para o seu interior ao longo do dia: a luz difusa no interior conteria as variações de cor dos raios solares, assim permitindo que as ações cotidianas dos moradores estivessem em pleno concatenamento com as condições naturais. Muito antes do mundo da Apple e Google, Kiesler vislumbrava a presença de estímulos multimídia na vida, introduzindo projeções ilusórias nos planos contínuos que envolveriam o ser em cima, embaixo, ao lado.

É esclarecedor o fato de a Endless House ter tido diferentes versões ao longo de mais de uma década e nunca ter sido construída. É um projeto que não se encerra com a morte de Kiesler. Permanece na história da arquitetura como uma antecipação do que a disciplina pode vir a se tornar. Tal como sua aparência, a Endless House é áspera a tentativas de execução, de materialização dela em escala real. Sua forma não se pacificou em uma solução única, exequível. A matéria que a constituirá ainda está por vir. O morador que a habitará ainda está por vir. É uma casa informe na sua recusa à geometria, à materialidade, à configuração da sociedade tal como ela era em meados do século XX e ainda é no começo do século XXI.

Dentro de casa, piso de madeira, sofá confortável e com tudo a fácil alcance. Do lado de fora, um jardim agradável, pedriscos e gramados. Abre a porta e sente aquela brisa fresca da madrugada. Tudo parece muito normal, não fosse o fato de o estar fazendo para suprir uma emergência fisiológica no meio da noite. Situação meio incômoda nessa aparente falta de conexão entre interior e exterior. Pode parecer algo inusitado, um dia num camping, uma aventura, quiçá apenas mais uma ideia para lá de absurda, quando paramos para pensar sobre isso nos dias de hoje. Já estamos demasiado acostumados com as comodidades de uma vida prática, conectados com as mais modernas tecnologias, tendo serviços feitos e entregues da forma mais instantânea. Nossas atividades mais simples são feitas de maneira semiautomática, sem que quase precisemos parar para pensar. Uma ideia como essa gera ao menos uma estranheza, um sentimento de dúvida.

É que, de fato, nem sempre foi assim. Mas, sobre isso, tomo a liberdade de emprestar a descrição de Junichiro Tanizaki, em seu ensaio sobre as sombras, e a forma inusitada como ele devaneia a respeito de alguns elementos aparentemente irrelevantes, mas de forte significado, da tradicional arquitetura japonesa.

…the Japanese toilet truly is a place of spiritual response. It always stands apart from the main building, at the end of a corridor, in a grove fragrant with leaves and moss. No words can describe that sensation as one sits in the dim light, basking in the faint glow reflected from the shoji, lost in meditation or gazing out at the garden.

Depois de ler esse trecho – e mais tantos outros – de uma descrição tão vistosa de algo aparentemente banal, é fácil se convencer da vontade de conhecer esse banheiro e, quem sabe, até mesmo tentar sentir a mesma comoção da qual Tanizaki se inebriava quando, há quase um século, estava a escrever seu livro. Parece que ele reflete sobre um momento, uma pausa do cotidiano da qual surge esse devaneio.


Nos dias de hoje, pela praticidade e pelo conforto que estimamos, salvo raras exceções, não nos permitimos mais passar por situações como essa. Mas a Casa Moriyama (Office of Ryue Nishizawa, 2005) se aproxima dessa reflexão. Em plena moderna e vibrante Tóquio, um conjunto de casas é ordenado sob o princípio muito claro de explodir o programa e o volume construído. Se, por um lado, funciona atualmente como conjunto residencial, foi projetado para facilmente ser também uma única residência, caso o proprietário assim a desejasse. Nessa hipótese, seria, no mínimo, ainda mais ousado.

Como um experimento, a noção de quarto, corredor e limites na Casa Moriyama se altera através de uma ordenação dos volumes que se apoia nos espaços livres que circundam, envolvem e conectam as áreas interiores. Por serem diminutos em sua escala, os cômodos são percebidos isolados como pequenos volumes desde o lado de fora; internamente, envolvem o morador como aconchegantes abrigos. Essa relação direta de tamanhos entre o homem e a edificação aproxima os moradores da arquitetura da casa e da percepção das diferenças entre os cômodos.

Dessa forma, a mudança de um cômodo para outro adquire um sentido que vai contra a atual tendência das plantas abertas e multifuncionais, que, em termos muito simples, busca unir os espaços compartimentados em apenas um grande e único salão. Na hipótese do conjunto ser uma única casa, os cômodos poderiam ser percebidos um a um, de forma individual. De certa maneira, na mesma forma como descreve Tanizaki. Sair de um aposento não significa mais sair do quarto apenas, mas passa a ter a mesma relevância que o sair de dentro de casa. Para fazer essa troca, é inevitável percorrer os vazios entre os volumes construídos, perceber o exterior – o frio de um inverno rigoroso, o calor úmido do verão japonês, a brisa que anuncia o outono e mesmo as flores que desabrocham durante a primavera. É a proposta de experiência de uma casa que convida – para não dizer obriga – seus moradores a conviverem diariamente com o mundo exterior.

Apesar de separados e entendidos individualmente, os espaços têm a relação intensificada. Os cômodos, complementados pelos espaços livres envolventes, são percebidos tanto como um conjunto de blocos quanto como dentro de suas próprias especificidades. Assim, o espaço e os sentidos se arranjam num experimento em que fora de casa se torna, mais do que nunca, dentro de casa.

#24PausaDesignEstilo

Enjoy the silence

por Camila Yahn

Quando fui convidada para escrever sobre o tema desta edição, a pausa, percebi logo de cara o desafio que seria. Eu me engano observando e acompanhando pessoas e movimentos que lutam contra essa era do speed, pois o ritmo acelerado está dentro de mim (de nós). Não tem yoga, respiração, meditação, nada que me ajude a desacelerar porque, para começar, não consigo nem criar a disciplina para uma prática constante.

Primeiro, porque o celular virou uma extensão dos meus braços. Segundo, porque trabalho com moda, o mercado que mais abraçou a velocidade como sinônimo de performance e sucesso.

Estamos todos cada vez mais conectados e presos a um ciclo vicioso, que a sociedade atual nos faz acreditar ser o caminho mais curto e certo para a realização. Mas será o melhor?

O mundo está apressado, agitado, frenético. Essa loucura virou o ritmo normal e tem ditado nossos trabalhos, relações, experiências e o convívio com outras pessoas. Na velocidade acelerada, é mais fácil e rápido mostrar superficialmente quem somos, pelas lentes das redes sociais, que são as máscaras do nosso tempo.

Na moda, presenciamos o passo a passo na construção de uma indústria global e ambiciosa, que não poupa o meio ambiente nem as pessoas. Se antes as marcas desfilavam duas vezes ao ano, hoje têm oito apresentações anuais, incluindo aí desfiles de todos os segmentos em que estão presentes, como masculino, alta-costura e as linhas de pré-inverno e pré-verão. Apenas grifes que são verdadeiras corporações (Dior, Chanel, Gucci, Burberry…) conseguem dar conta de tanta eficiência, produção e dinheiro.

Ainda assim, mesmo pessoas preparadas para esse nível de pressão têm feito escolhas que trazem mais tempo, liberdade e espaço, como aconteceu com o belga Raf Simons, que deixou a direção criativa da Dior de surpresa, após três anos na casa. Raf tem uma marca masculina, que desfila na semana de moda de Paris, e com ela pode fazer do seu jeito, no seu tempo.

Dois fenômenos detonaram esse movimento: a formação dos conglomerados de moda e o fast fashion. Daí vem o aumento no consumo, que reflete em mais oferta e mais produção, que resulta em mais vontade de comprar, em um jogo de presa e predador em que consumidor e indústria têm os dois papéis ao mesmo tempo. Precisamos de tanto? Não! Nosso impulso, nossa ansiedade, nossas inseguranças podem ser saciadas de outras maneiras, vivendo uma vida mais real, menos digital, dando atenção ao que é importante de verdade. Entender o que é essencial, mais do que um exercício, é uma escolha.

A moda sempre viveu de novidade. O problema é que as novidades de ontem ficam velhas hoje e você tem que sair em busca das de amanhã. É matar no almoço para comer no jantar. Um ciclo vicioso em que estilistas, empresários, produtores e fornecedores pagam um preço caro para sustentar a demanda por novidades.

Por que a obsessão com velocidade e quantidade? Se a ideia é produzir coisas boas, que tenham vida mais longa, correr não é a melhor forma de fazê-lo. Acelerar não aquieta a mente, só produz barulho e ansiedade.

Para todo grande movimento, há sempre uma oposição. Ela é formada por pessoas que decidiram dar uma pausa. Repensar, refletir, refazer, só que de outro jeito. Cada vez mais, no Brasil e no mundo, aparecem estilistas, designers e iniciativas que trabalham o tempo de outra maneira: a seu favor e não contra. Que atuam de forma horizontal, quebrando normas e hierarquias antigas.

Nesse silêncio, descobrem novos valores e maneiras de ir contra o que está se provando insustentável. Há um novo pensamento na moda, que inclui a otimização de tempo e dinheiro, a criação de algo durável e autêntico, a humanização dos processos e o não desperdício (de tempo, material, trabalho, mão de obra, ansiedade etc.). E isso não quer dizer que a tecnologia não seja aplicada, que o resultado não cause desejo, que a empresa não seja lucrativa e saudável.

Como exemplos, posso citar Paula Raia, Isabela Capeto, À La Garçonne, Flavia Aranha, Fernanda Yamamoto, Ronaldo Fraga, Carol Baum, Comas + Japonique e Helen Rödel. Marcas totalmente diferentes umas das outras, mas que têm em comum esse ideal e vão, bravamente, contra o fast.

A maioria tem uma operação pequena, com apenas uma loja em São Paulo e alguns canais digitais, como online shops próprias ou multimarcas. Como qualquer empresa, seu processo de criação tem uma meta: virar um produto. Mas o durante é tão importante e prazeroso quanto o fim.

Fernanda Yamamoto, Flavia Aranha, Paula Raia e Carol Baum capacitam mulheres de comunidades Brasil afora, ensinando novas técnicas manuais que podem ser aplicadas em suas peças. São muitas idas e vindas até ficar do jeito certo, de experimentos com tingimentos naturais e processos em cima de tecidos à criação de novos pontos de renda.

A Isabela tem uma história conhecida pela forma como faz suas peças, com trabalho manual, arte, beleza e amor. Suas roupas parecem que vêm carregadas de boa energia em cada bordado. Em sua mais recente coleção, ela usou peças já usadas para dar vida a novos vestidos e saias trabalhados a mão. Nada perto do que encontramos na nossa fast mais próxima.

Na À La Garçonne, nova empreitada de Alexandre Herchcovitch com seu parceiro Fábio Souza, encontramos peças que são feitas a partir de outras roupas mais antigas ou com tecidos vintage. Histórias que passaram transformam-se em novas histórias.

O não desperdício também é o foco da Comas + Japonique, que tem como lema a total otimização de tempo, dinheiro, mão de obra e materiais. Já Ronaldo Fraga tem uma estrutura maior, mas há tempo encontrou um ritmo próprio que o permite se aprofundar nas suas ideias e transformá-las não apenas em roupas, mas também em exposições, desenhos, livros e contos.

Um novo tempo, emoções sinceras, inspirações originais, esforço, inteligência, estratégia, sabedoria em técnicas, processos e materiais, trabalho honesto, horizontalidade e respeito nas dinâmicas estão entre os valores dessa proposta.

Em um momento em que mais de 500 milhões de mensagens são compartilhadas por dia no WhatsApp e o avanço da tecnologia tem feito o mundo enfrentar mudanças complexas, a pausa é o nosso calmante, nosso ácido, nossa receita contra o império da ansiedade e da busca por algo que perde a graça assim que encontrado.

#24PausaCulturaSociedade

As coisas mudam no devagar depressa dos tempos

por Bruno Fujii

Em 1952, Guimarães Rosa acompanhou oito boiadeiros em uma viagem pelos caminhos do sertão de Minas Gerais. Esse foi o início de um dos mais importantes livros da literatura brasileira: Grande Sertão: Veredas (1956). Inspirado pelo universo do escritor, e no cenário vivido por Riobaldo, é que minha experiência pelo sertão se inicia — mas sem pensar em um fim, pois, como diz o próprio Guimarães Rosa: sertão é dentro da gente.

A região está muito diferente do que foi há mais de sessenta anos, já não se encontram veredas vicejando vida pelos caminhos; e os surubins, uma vez em abundância ao longo do rio São Francisco, hoje estão escassos.

Seu Norberto e o rio São Francisco são um só. Desde o primeiro momento em que nos recebeu, com um grande sorriso no rosto, em Três Marias, foi possível sentir que para ele não há separação entre natureza e homem. O que o rio ensinou a Seu Norberto não se aprende nas linhas de nenhum livro, e isso foi o que mais deu forças para ele ser um ribeirinho militante consciente e respeitado por todos que já o encontraram um dia.

Na comunidade quilombola de Ribanceira em São Romão, Vilson foi chegando com sua bicicleta e, num momento, encostou perto de uma árvore, ficando em silêncio e observando. Sua curiosidade acompanhada de um olhar sonhador aos poucos se mostrou tão amigável como uma pessoa próxima da família. E deve ser isso viver em Ribanceira: uma grande família. Mas uma família que traz no sangue a resistência da história quilombola como força vital para superar todas as adversidades cotidianas.

Antes das 5h, ainda escuro, o horizonte começando a clarear o dia, descendo as margens do rio São Francisco na altura de São Romão, encontramos Seu Vital e seu barco prontos para começar a lida diária. Assim começava um dia quente, mas com muita sombra, conversa e barus impossíveis de contar. Depois fiz o convite: “Seu Vital, topa fazer uma foto no seu barco na beira do rio São Francisco, bem como te conheci hoje pela manhã? Se for muito cedo vou entender…”, e a surpresa na resposta veio na afirmação positiva, com a cabeça, de Seu Vital: “Essa hora pra mim o dia já começou faz tempo, tou acostumado.”

Valdemiro criou as três filhas através do artesanato. Conversando e trabalhando, no começo não deu muita atenção, mas aos poucos foi se abrindo e se mostrou tão acolhedor como todas as outras pessoas. Nos detalhes do trabalho ele vai mostrando e explicando, e noto: nas mãos, na fala e no olhar, o amor e dedicação que tem pela arte transbordam e causam admiração.

Seus Zezo é, com certeza, o maior exemplo de que é possível buscar um equilíbrio entre tradição e modernidade. Nos Vãos dos Buracos, onde seria o Liso do Sussuarão, andamos pela mata até chegar a um olho-d’água. Eu, impressionado, matando a sede, tento achar palavras para explicar o momento. Seu Zezo sabe que para algumas coisas, na natureza, não há palavras, e fica em silêncio.

#24PausaArteArtes Visuais

Tecido

por Marina Weffort

O tecido, material escolhido por mim para esta série, é constituído de uma estrutura de fios que se cruzam ordenadamente. As direções são sempre as do urdume, vertical, e da trama, horizontal. Essas linhas, perpendiculares entre si, criam minúsculos encontros, perfeitos e estáveis, que possibilitam ao todo a realização de uma superfície única, um plano outro, maleável e resiliente. Meus trabalhos com tecido se valem da lógica construtiva inerente ao próprio material para explorar questões como cheio e vazio, leve e pesado, tensão e distensão, superfície e profundidade, e a passagem do tempo. As ações de cortar e desfiar, pregar e esticar são os únicos elementos do jogo.

Os trabalhos, em sua maioria de cores claras, são esticados diretamente sobre a parede, fazendo com que sua sombra seja incorporada à imagem da obra. Esse sútil rebatimento de luz e sombra entrecruza o desenho da nova trama, ao mesmo tempo que a insufla de ar, formando uma espécie de caixa vazada de linhas reagentes ao mínimo sopro. Revela um procedimento de escultura àquilo que, em um primeiro momento, pode parecer algo bidimensional, como um desenho ou uma pintura. Os padrões de movimento, que aparecem com a ação da mais sutil entrada de ar, muitas vezes assemelham-se à imagem do sopro do vento em uma superfície de água. A rarefação da superfície e sua fragilidade visual e física contribuem para sua dissolução no espaço. Essa relação com o espaço e com a luz que atravessa as tramas dos tecidos exige do observador um permanente esforço para corporificar essas estruturas-limite.

#24PausaArtigo

Dois e dois são dois: Bruno Herrera e Yuka Okuyama

Rodolfo Herrera, 33, formou-se em Design Gráfico. Há três anos, trocou o mouse, tabela Pantone e monitor pelas xícaras, moedores e aromas do café. Barista e cofundador do Beluga Café em São Paulo, acredita no envolvimento direto com seus meios produtivos – a origem dos grãos, o esmero no processo -, criando a ponte entre o produto e seu público consumidor.

Yuka Okuyama, 28, formada em Arquitetura e Urbanismo. Divide seu tempo entre a arquitetura e a produção de café em Rio Paranaíba-MG. Filha de agricultores, sempre compartilhou com a família a paixão por café. Há dois anos desenvolve um trabalho na parte de qualidade, focado em microlotes de cafés especiais para o mercado interno.

Rodolfo Herrera – Quando começamos o Beluga, eu trabalhava com design gráfico já havia uns dez anos. Aí passei por esse momento de certo declínio do mercado de comunicação em geral, quando tudo começou a ficar muito bagunçado por conta da internet e de todas as transformações que o mercado sofreu. Como sempre tive uma questão de que quem trabalha com comunicação tem cada vez menos influência sobre o resultado final das coisas, isso começou a me gerar uma frustração muito grande. Começou-se a falar muito que as pessoas têm que procurar satisfação no trabalho, uma ideia de que o trabalho quase deixa de ser trabalho. E a história do café surgiu justamente dos momentos de pausa que eu tinha em relação ao meu trabalho com design. Queria estudar alguma coisa nova, e comecei a estudar café – um tema que me interessava. Consequentemente, comecei a tomar cada vez mais café, café de melhor qualidade, e tentar entender por que esses cafés eram melhores, eram diferentes, por que o Brasil, que é o maior produtor de café do mundo, não deixava esses cafés aqui. Era muito difícil encontrá-los aqui e, quando você os achava, eram muito caros. Eu achava que eram caros. Hoje já não acho que sejam. Acho que são baratos até. Nesses pequenos momentos de pausa, fui entrando cada vez mais nesse tema, até o momento em que isso começou a tomar mais tempo do que imaginava que deveria tomar na minha vida, sabe? E aí foi um ponto sem retorno, em que olhei e pensei: por um lado, eu tinha uma profissão que ia relativamente bem, era sócio de um estúdio de comunicação legal, mas, por outro, não via um futuro naquilo, não via aonde aquilo poderia chegar com essa configuração que se deu, e achava que o momento era o ideal para criar alguma coisa nova.

Tomei essa decisão em 2012, passei 2013 ainda trabalhando com design e estudando cada vez mais, e em 2014 foi quando larguei tudo. No final do ano, eu e Flávio abrimos o Beluga. E, de lá para cá, de certa maneira, acabaram esses momentos de pausa [risos], porque começamos a trabalhar muito. Mas aí comecei a sentir uma coisa que não sentia havia muito tempo, uma satisfação muito grande de estar trabalhando com algo em que o esforço individual tem influência gigantesca no resultado daquilo que você entrega. É o seu trabalho, junto com o trabalho de sua equipe, que diz: “o resultado está aqui”, na xícara. Se é uma xícara ruim, você falhou em algum momento; se é uma xícara boa, acertou. Simples assim. Só que existe por trás uma cadeia complexa, que só trabalhando nisso começamos a entender. Quando abrimos o Beluga, tínhamos uma visão muito estereotipada do que seria trabalhar com cafés especiais, e fomos aprendendo, trocando a roda do carro com o carro andando, sabe? E foi muito legal, mas exige muito esforço no dia a dia. Começamos a fazer um trabalho de nos conectarmos cada vez mais com quem produz o café, porque, no nosso ponto de vista, é ali que está realmente o ponto mais importante da cadeia toda. Não é só pensar no consumidor, porque o consumidor, de certa maneira, está afoito a receber novidades. Mas é olhar para o produtor, se conectar com ele, e trazer, para quem entra na loja, essa conexão direta de certa maneira. É fazer as pessoas pararem em algum momento e olharem para aquilo que estão consumindo, prestarem atenção. Acho que, obviamente, sempre vai existir o lugar onde você vai pegar um café rápido e vai embora, mas acho também que o que estamos fazendo aqui, e que outras cafeterias estão fazendo, é provocar um momento de ruptura, em que você entra e se interessa por uma cadeia, não só pelo produto final que consome. Você quer saber quem é o produtor, de onde vem, como é a relação, enfim… Isso que estamos esboçando aqui. E, assim, a relação com o campo vai nascendo aos poucos. Estudando cada vez mais, vamos conhecendo mais um percurso, tentando nos aproximar dos produtores, e a Yuka foi uma dessas pessoas, nos conhecemos aqui.

Yuka Okuyama – Eu também estava bem desanimada com a arquitetura, quando meu irmão, que morava aqui em São Paulo, acabou voltando para Minas, para a fazenda de café da nossa família. Sempre fui entusiasta do café. Acho que, da família, sou a que mais curte beber café. Para mim, é uma pausa mesmo. De lá, meu irmão se envolveu com café e me fez uma proposta de trabalharmos a qualidade do café da nossa fazenda. Isso foi mais ou menos na época em que o Beluga abriu, e ver todo esse movimento, que estava crescendo aqui em São Paulo, deu um gás ainda maior para nós. Ter contato com vários cafés do Brasil também. Porque, como produtores, é difícil ter o produtor que provou o próprio café. Normalmente existe uma pessoa que avalia o café e precifica, aí você vende. Até mesmo isso, de provar seu próprio café, é raro. É um absurdo, mas é muito raro. Eu não tinha muito repertório de café, e então começamos a pegar alguns lotes e dar uma caprichada. Aprendemos mais sobre o pós-colheita, que é o que traz qualidade para o café. Se você não dá um bom tratamento no pós-colheita, a qualidade pode cair muito. É um dos momentos mais importantes para o café. A fazenda da minha família fica no serrado mineiro, região conhecida pela produtividade. Temos algumas vantagens, digamos assim, porque o terreno lá é plano, então a gente tem colheita com máquina. Só que, como o Brasil tem o pensamento de quantidade, e não de qualidade, somos o maior produtor de café mas não somos conhecidos como o melhor café do mundo. Quando você tem muito café, é muito difícil ter tempo e cuidado com todos os lotes. Meu pai consegue uma qualidade e uma produtividade no café dele, mas começamos a dar mais atenção para alguns lotes com mais potencial, e no ano passado, em nosso primeiro teste, e pontuamos muito bem. A primeira vez que meu pai provou o próprio café foi no Beluga. Em casa a gente só tomava o café dele.

RH – Mas era uma coisa torrada na fazenda, né?

YO – É. Daí é outra história, você fecha o círculo, né? Você produz um café bom, tem um mestre de torra que torra bem, que vai buscar o melhor perfil para o seu café, e ele chega à cafeteria onde o barista vai servir-lo da melhor forma. Para o meu pai foi muito especial, mesmo.

RH – E nossa relação nasceu muito espontaneamente. Você vinha aqui como cliente, a gente nem sabia que você produzia café, fomos conversando cada vez mais, e um dia você trouxe uma amostra, nós provamos e falamos: “Caramba, esse café é incrível, dá para sair muita coisa boa daí”. E a gente foi aprendendo meio junto também.

O café tem uma relação com o tempo que é primordial para seu desenvolvimento. Vocês tiveram essa primeira safra focada em qualidade, nós provamos e demos feedback, além de outros feedbacks que vieram também, mas isso será aplicado somente na safra do ano seguinte. Existe uma espera de um ano para que isso aconteça de novo, e você nem sabe se realmente vai sair da maneira que quer que saia, porque há a influência do clima, dos processos pós-colheita, enfim… O café é um negócio que exige muita paciência e muita dedicação.

Por isso que é importante a proximidade com quem produz e com o campo. Aqui, tudo é muito rápido, para nós que estamos preparando e servindo. Produzimos centenas de xícaras ao longo dia. Só que, para que isso aconteça, para que a qualidade chegue de maneira padronizada nas xícaras, exige-se todo esse tempo “pré” do produtor. Se você experimenta novas variedades, plantando diferentes espécies, vai esperar essa planta crescer, e vai demorar três, quatro anos para dar a primeira colheita. Por isso o café exige outro tempo mesmo, e é muito difícil de conciliar. Isso de que você falou, que o Brasil é um país que sempre focou muito em quantidade e agora está aprendendo a trabalhar com qualidade, é uma mudança de paradigma enorme na maneira como a gente lida com o café. Mesmo para o consumidor é uma experiência diferente chegar aqui ou em outros lugares que trabalham com cafés especiais e consumir. O cliente pede um café coado e ele não está pronto. Preparamos na hora, moemos na hora, e demora mais tempo para ser feito e servido. Existe uma relação, que as pessoas vão aprendendo pouco a pouco, com o preparo das coisas, que toma um pouco mais de tempo, que não é tão mecânica.

YO – A onda do slow, né? Slow food, slow fashion… Está voltando um pouco agora, com o mundo tão acelerado. Acho que pouco a pouco estamos retomando essas coisas que demandam mais tempo, que são feitas com mais calma e mais qualidade. Talvez uma volta desses momentos de pausa.

RH – É. E o café especial está inserido justamente nessa mudança. É o que falei das pessoas se reconectarem um pouco com o produto e entenderem que existe um tempo para ele ser feito. Por exemplo, faz dois dias que estou sem café na prateleira – isso não deveria acontecer, em teoria, mas é porque a gente está num momento de entressafra, então os lotes que a gente tinha estão acabando, e não conseguimos tê-los imediatamente. Eu dependo do café que está no torrefador, sendo torrado, e ele vai me entregar agora à tarde para poder empacotar e colocar na prateleira. Não é um processo automatizado, industrial; são pessoas que estão envolvidas ali fazendo isso manualmente. E isso é muito legal, porque a pessoa que está aqui consumindo vai aprendendo esse timing, que toda semana eu recebo um lote de café torrado novo, então sempre vai ter esse frescor. A pessoa chega aqui – e isso é uma mudança de comportamento muito grande que acontece – e a primeira coisa que faz é olhar embaixo do pacote para ver qual é a data da torra do café. Isso é demais! É quebrar com a coisa do supermercado, que você pega e você nem sabe quando aquele café foi colhido, quando aquele foi torrado, quando foi moído.

YO – Validade de um ano. Café que já está moído…

RH – Um ano de validade. O café não dura um ano! Nenhuma comida deve durar um ano! [risos] Ela perde sabor, perde frescor, uma série de coisas. Óbvio que estou falando de uma coisa muito específica. Entendo que a industrialização da comida seja importante para uma série de coisas. Não conseguiríamos alimentar tanta gente se não tivesse uma indústria de alimentos, mas, nesse nicho, é muito importante esse processo para manter o frescor, para manter o café sempre novo.

Vemos essa mudança acontecer aqui diariamente. De gente que chegava, um ano e meio atrás, quando abrimos, e que só tomava café espresso com açúcar, e que agora toma um copo enorme de café coado sem açúcar e sai daqui feliz.

YO – Os cafés especiais têm uma doçura muito presente. Esse que a gente tomou agora… é muito suave.

RH – Isso tem a ver com essa história de saber a origem das coisas. Começar a entender que o café é uma fruta, e fruta tem doçura, tem acidez, tem tudo. Então você começa a olhar para o café de uma maneira diferente, o seu paladar muda. E quando o paladar muda, já era. Não tem volta. Uma vez que você provou uma coisa boa, dificilmente você volta. E aí entra também um trabalho nosso, de toda a cadeia, de tentar fazer com que esse café seja cada vez mais acessível, que tenha mais pontos para as pessoas consumirem e poderem levá-lo para casa.

Hoje, os nossos momentos de pausa têm sido quando conseguimos sair daqui, ir atrás de novos produtores, visitar fazendas, nos envolver mais nos processos. É uma das partes mais gratificantes, e todo ano é diferente. Todo ano você vai provar um café do mesmo produtor, e ele vai ter produzido alguma coisa diferente, porque o clima naquele ano foi diferente durante o plantio, durante a colheita, a maturação foi diferente, teve mais sol, menos sol, mais chuva, menos chuva… É um momento que paramos a loucura da cafeteria e nos reconectamos com o produto para entender como é que ele se desenvolveu naquele ano e como é que você vai trabalhá-lo depois que sair dali. As receitas de preparo vão mudando, as receitas de torra vão mudando, muda tudo a partir desse momento em que nos conectamos com a produção. E isso tem sido muito importante para nós, para vivenciarmos também uma mudança muito importante que tem acontecido no campo no Brasil. Se ficamos só em São Paulo, ignoramos um pouco o que existe no cenário do campo. Recentemente estivemos no sul de Minas comprando café de uma cooperativa de que sempre compramos, e ficamos assustados de chegar num lugar em que não tem uma placa escrita em português. O campo no Brasil é um troço muito, muito, muito avançado. Existe um nível de desenvolvimento e de tecnologia envolvido que a gente fica abismado quando vê. Isso quando falamos das regiões que trabalham com volume. Óbvio que, quando você vai para um lugar como o Espírito Santo, que é onde esses cafés são produzidos em pequenas propriedades, ainda tem a colheita manual, tudo acontece num outro timing. Mas, em alguns lugares de Minas, é outro mundo. Muito high-tech.

YO – É agricultura de alta precisão, né?

RH – De alta precisão, exatamente. Você sai da cidade achando que está entendendo muito do que existe de mais moderno, quando você está muito para trás. Existe um desenvolvimento interessante, principalmente relacionado ao café, em que o Brasil tem certa liderança de domínio tecnológico em relação à produção que é muito legal de ver.

YO – Vou passar esse próximo mês em Minas. Lá na fazenda estamos já colhendo, mas o trabalho que vou fazer lá é avaliar o café – eu não sou Q-Grader* nem nada, mas vou acompanhar.

Trabalhamos junto com uma cooperativa lá, e o meu papel vai ser basicamente acompanhar essas provas e ir separando os lotes que têm potencial para avaliarmos. Como é só uma vez por ano só que temos a oportunidade de testar novas formas de secagem, novos tratamentos do café, então vou pegar esse mês agora para fazer alguns testes. Como a nossa colheita é quase 100% a máquina que faz, a minha ideia agora é reunir um pessoal para fazer uma colheita seletiva manual. Aí vamos pegar esse café, secá-lo, fazer o beneficiamento… E só depois vamos provar.

RH – Vamos ter esse café pronto quando?

YO – Bom, já estamos provando alguns, mas começamos a colher no começo do mês. Então ainda tem um processo demorado, né? Porque ainda tem que secar o café, deixar descansar, e descascar até virar o grãozinho.

RH – Então, em uns dois meses depois de colhido?

YO – Sim, acho que uns dois meses até chegar aqui. Todo mundo está colhendo, está uma loucura, mesmo para o provador lá da cooperativa. Ele prova vários cafés por dia…

RH – E quando chegar aqui tem a outra parte, que é começar a fazer os testes de perfil de torra, sentar com o torrador e começar a procurar qual o perfil adequado para aquele café que você nos entregou. Existem, sei lá, cinco, seis perfis diferentes, provamos várias amostras dos mesmos perfis, escolhemos um que está mais ou menos no caminho ideal, e aprofundamos mais essa torra. A gente não tem uma estrutura de torrefação ainda. Quem faz a torra pra gente é um parceiro chamado Hugo. Até chegar na xícara exige muito tempo e esforço.

Depois que o perfil está pronto, ele é replicado naquele café semanalmente, enquanto existir ali. Mas ainda existem ajustes que fazemos nesse perfil, porque o café vai envelhecendo, perdendo suas características e ganhando outras. É uma coisa viva. É muito dinâmico. Todo dia é diferente.

YO – Na fazenda também é assim. Muito difícil. Se um talhão teve boa pontuação, o dividimos em partes, e, se no ano passado esse talhão bebeu bem a bebida, nesse ano pode ser que não seja assim.

RH – Se um café de um determinado talhão ficou melhor na xícara, no ano seguinte pode ser que não seja tão bom…

YO – Então, mesmo para nós, temos que identificar qual a melhor forma de trabalhar com aquele café. Acho que isso que é o que dá mais prazer de trabalhar com café; é muito complexo, são muitas variáveis… Porque é uma planta. Então tem ano em que o fruto vai estar mais doce. Daí, se ele produziu muito, no próximo ano talvez não produza tanto, porque a árvore dá uma descansada…

RH – Você estressou muito a planta.

YO – E também tem esse tratamento da secagem do café, que é muito importante, que pode também estragar um ótimo café. Temos que ficar de olho em todas as etapas, para poder trabalhar só esses lotes especiais. E fazer testes, mesmo. Acho que não estamos muito maduros ainda. Meu pai já faz isso há muito tempo, mas a gente está aprendendo muita coisa, testando muitas coisas agora. E é uma vez por ano. Você tem que dar uma avaliada geral e ver o que aconteceu com aquele café.

RH – E já começar a planejar a safra seguinte.

E tem uma coisa interessante também em relação à pausa, que é a relação das pessoas com a cafeteria. Eu sempre frequentei cafeteria, mas acho que nunca tive esse olhar que tenho agora. Agora que estou do outro lado do balcão, eu consigo observar o comportamento das pessoas que estão dentro da cafeteria. E é muito engraçado ver como as pessoas que procuram a cafeteria têm diferentes padrões. Um deles é o mais comum, que é o da pessoa que está no escritório e sai para tomar um café em algum momento do dia, para passar um tempinho fora do escritório, pensando na vida. Um outro perfil, que se repete cada vez mais, é o de gente que vem trabalhar aqui. E isso tem feito a gente olhar para relações muito interessantes que têm se desenvolvido. Pensando na região aqui, que é uma região que tem diversos escritórios de arquitetura e tal – a cafeteria começa a ter um papel muito importante em conectar as pessoas que estão por aqui por um motivo ou outro. Vemos cada vez mais reuniões de pessoas que trabalham na mesma rua e que não se encontravam constantemente, e acabam se encontrando aleatoriamente para conversar e acabam conversando sobre projetos, sobre o que estão fazendo… Vemos pessoas, também, que sabemos que são de escritórios diferentes e que vêm juntas para cá. O café tem essa capacidade social, de alavancar relações, que, para nós, de trás do balcão, é muito interessante. Reparar como esse ambiente propicia esse tipo de coisa, das pausas ao longo do dia.

Isso me fez lembrar de um livro do Steven Johnson, que é um jornalista que escrevia sobre ciência, física, vários temas diferentes, e começou a se interessar cada vez mais por tecnologias, e por como a tecnologia interfere na nossa vida. Ele escreve pequenos ensaios. Os livros dele são bem interessantes. Mas tem um livro chamado Where Good Ideas Come From que fala que ideias inovadoras nem sempre – quase nunca, na verdade – nascem daquela coisa da luz que acende, sabe? Ele diz que nascem de uma construção social. E tem um ponto muito interessante no livro, que é bem no início, em que ele fala sobre uma transformação que acontece na Inglaterra a partir de mil seiscentos e pouco, que é quando surgem as primeiras cafeterias, os primeiros lugares para consumir café. Porque, até então, se pensarmos na Inglaterra pré-revolução industrial, não existia água encanada, água limpa nos lugares, então a coisa mais segura que tinha para você beber não era água, mas álcool, porque era garantido que estava esterilizado, e eles tomavam cerveja ou destilados. Então você tinha uma população que basicamente – obviamente ele estereotipa isso – vivia bêbada 24h por dia, que se reunia para beber, e os encontros eram sempre à base do álcool. Quando começam a surgir as cafeterias, começa a haver um reagrupamento das pessoas em torno do café, para conversar e discutir ideias tomando um estimulante, e não mais uma coisa que as derrubava. E ele começa a relacionar isso a uma série de desenvolvimentos tecnológicos que começam a surgir na Inglaterra a partir desse momento, porque o café propiciou esses encontros e começou a estimular as pessoas a ficarem mais produtivas, mais sãs. É só um parênteses histórico que acho interessante, mas que, no final, vemos acontecer aqui diariamente. A pausa para um cafezinho é muito diferente da pausa que acontece ao final do dia, quando as pessoas se encontram para beber.

Em um ano e meio desde que o Beluga está aberto, eu nunca conheci tanta gente na minha vida, e nunca conheci tanta gente interessante. São muitas histórias diariamente. Quando você sai daqui e vai para o campo, também são outras histórias incríveis que você conhece; são outras realidades, vamos nos conectando. O café te obriga, de uma certa maneira, a se conectar com muitas realidades diferentes. Sou uma pessoa muito melhor, muito mais aberta, muito mais compreensiva por conta dessa convivência que tenho aqui na cafeteria. Você é obrigado a isso, sabe?

#24PausaArteCidadesMúsica

Temporada

por Bem Gil

Uma das grandes especulações em torno do nascimento de uma criança diz respeito à data em que virá ao mundo. Nascemos datados. Isso faz com que a passagem do tempo se revele impiedosa e constante desde sempre. A música me faz estar alheio a esse imperativo. Observando de perto as estruturas “datadas” do período Inca, assim como todas as características da região que as preserva, tive uma grande sensação de liberdade nesse sentido.

Há quem sinta o tempo como sendo um acumulado de planos, todos simultâneos, além ou apesar de contínuos. E penso que, para essas pessoas, a impossibilidade de acessar os diferentes planos provoca o que chamamos de saudade. Um dos sentimentos universais relacionados ao nosso período de vida consciente, mas que sinto pouco. Ou, pelo menos, a angústia causada pela falta de algo que já não se acessa mais (descrita e cantada pelo rei do baião como sendo amarga “qui nem jiló”) não costuma ser latente em mim.

Estive recentemente no Peru, minha segunda passagem pelo país vizinho, a primeira com foco turístico (havia estado por lá anteriormente para uma apresentação musical). Dessa vez, também por conta da música, tive a oportunidade de adentrar um pouco mais o território habitado e transformado alguns séculos atrás pelo povo Inca. Como um dos criadores do projeto Terramundi Creators, recebi a encomenda de um olhar (específico e próprio do meu ofício) por essa região e acabei me deparando com essa associação direta entre a música e a capacidade de transmutação da nossa percepção em relação à passagem do tempo.

Como ferramenta de trabalho, faço uso constante de um equipamento eletrônico ligado ao instrumento, que provoca repetições programadas e controladas por parâmetros diversos em todos os sons gerados. Uma espécie de eco artificial, conhecido entre os usuários como delay (atraso). O uso desse tipo de recurso me faz perceber o som gerado como algo vindo das duas direções do tempo, passado e futuro. A natureza da região de Cusco é também especial nesse sentido. São paisagens circulares, como se um eco gigante e infinito estivesse o tempo todo atuando.

O curioso é que minha relação com a música sempre se desenvolveu a partir da oposição diametral entre o que está por vir e o caminho percorrido até aqui, e me acompanha a sensação de que tudo está na mesma linha multidirecional. Por ter um pai músico e trabalhador no campo da música como entretenimento, me acostumei desde cedo a viajar em função de shows e gravações. E foi muito por conta da expectativa e da vontade de seguir circulando por aí que acabei por me dedicar à mesma atividade.

No Peru, fomos aconselhados por guias locais a não apenas observar os sítios arqueológicos por si só (apesar do elevado grau de encantamento provocado pelas construções para além da engenharia ou da arquitetura), mas sim a procurar entender o porquê da escolha daqueles pontos específicos.

Já havia tido uma experiência, na Itália, muito interessante nesse mesmo aspecto. Um anfiteatro romano na região de Florença é considerado por muitos como tendo uma das melhores resoluções acústicas do mundo. E, ao questionar sobre essa especialidade, argumentei que não havia ali nenhum tipo de estrutura aparente que me fizesse crer no mérito da engenharia como responsável por tamanho equilíbrio entre absorção e reflexão de som. Responderam-me que o lugar era especial (não só a construção) e por isso havia sido escolhido para abrigar o teatro.

Lembrei exatamente disso ao chegar em Machu Picchu. A beleza e a magnitude da cidade são constantemente ofuscadas pelo que se observa no entorno. Toda circundada por montanhas que parecem moldadas a mão, o complexo nos transporta para uma dimensão além do alcance do tempo, ficando claro o porquê da escolha de um lugar tão específico para se construir e viver, e o porquê do encantamento e do envolvimento de gente do mundo todo com o lugar, para além de um simples passeio turístico. Estar ali é viajar no tempo e, mais do que isso, é abrir mão dele.

Alguns anos atrás, durante nossa lua de mel, eu e minha mulher fomos a um show de música country incomum em Los Angeles. O cantor pigarreou e pediu desculpas no início, dizendo que só cantava em raras oportunidades, quando estava de folga entre seus trabalhos, e que a música era uma profissão de fé; ele fazia por amor mesmo. Pudera, a 25 dólares o ingresso, o show definitivamente não deixaria Jeff rico. Sim, Jeff Bridges tem um lindo hobby, a música. O ator oscarizado canta e performa muito bem, por sinal.

Para muitos atores, a pausa entre trabalhos normalmente é dedicada a atrações em teatro, séries, publicidade ou ao puro e necessário ócio. Alguns, porém, preferem desenvolver o que meu mais novo ídolo de infância Jeff descreveu como “uma profissão de amor”, em que podem expressar-se através das mais variadas formas.

No final dos anos 1960, o mundo das corridas automotivas ficou boquiaberto quando o jovem e talentoso ator Steve McQueen começou a pilotar, mas pilotar mesmo. E não eram apenas carros. Esnobava seus pares também em corridas de motos. Ele quase afundou sua carreira no cinema quando confundiu as bolas e resolveu coproduzir uma aventura cinematográfica caríssima sobre o que significava uma corrida. O filme Le Mans é incrível, por sinal.

Ao longo dos anos, outras estrelas seguiriam seus passos: Paul Newman, Patrick Dempsey e Eric Bana, por exemplo. Apesar das críticas, eles mostraram que estavam nas pistas porque eram verdadeiros corredores, além de ótimos atores.

O fascínio das pistas não foi o único hobby estranho a que atores se dedicaram. Temos ainda o sapateiro artesanal obcecado pela qualidade final de suas peças, feitas no norte da Itália, Daniel Day-Lewis; o pintor mediano Jim Carrey; o boxeador Mickey Rourke; o piloto de jato John Travolta; os músicos Johnny Depp, Kevin Bacon, Hugh Laurie, Liza Minnelli, Lucille Ball, Barbra Streisand, Jared Leto, Kris Kristofferson, e Jennifer Lopes; e, ainda, o carpinteiro Harrison Ford.

No Brasil, alguns atores também revelaram seus dotes em outras áreas, tais como os cantores Maurício Mattar, Alexandre Nero, Wagner Moura, Marjorie Estiano, Hebe Camargo e o romântico Fábio Júnior.

A lista é longa, e a grande maioria leva muito a sério suas carreiras paralelas tocadas nos momentos de ócio. Artistas são multifacetados por natureza e desenvolvem carreiras sólidas concomitantes a hobbies que, associados ao que é público, os definem.

O ócio muitas vezes é assimilado como um momento em que nos espreguiçamos e curtimos o dolce far niente, e, quando desenvolvemos hobbies, normalmente os guardamos para nós mesmos ou para a família e os amigos próximos. Esses artistas, contudo, não precisam provar nada a ninguém. Eles performam em público pelo prazer de dividir essa paixão com outras pessoas. Claro, pode-se ganhar um bom trocado com isso, mas creio que, em geral, dinheiro não seja a motivação principal.

Algumas vezes, o que se faz em momentos de pausa beira o inacreditável. Nos anos 1940, uma atriz austríaca debutava em Hollywood. Sua carreira no cinema e no teatro foi, no máximo, discreta. Mas, apesar disso, devemos reverenciá-la todos os dias. Hedy Lamarr era (além de lindíssima) uma inventora de mão cheia. Ela e o compositor George Antheil patentearam, em 1942, o “Sistema de Comunicação Secreto”, que visava mudar simultaneamente as frequências de rádio para impedir que os inimigos conseguissem detectar as mensagens de acionamento de torpedos aliados. Com a evolução dos transístores e chips, suas ideias foram aplicadas a diversos usos, e não apenas militares, mas também à futura telefonia celular. Sim, o Wi-Fi e o Bluetooth existem, em grande parte, graças ao hobby da estonteante atriz de Sansão e Dalila.

Bom, se em tempos de mídia invasiva, paparazzi e redes sociais, você ainda acha que viu e sabe de tudo sobre alguém, reflita sobre o que meu chapa Jeff cantou em “Falling Short”, de 2011:

Jeff Bridges

“We’d all like to think that we gave our best
But you’ll have to learn like all the rest
Until you seen it all, you ain’t seen nothing yet
You ain’t seen nothing yet
No, you ain’t seen nothing yet.”


#24PausaCidadesCulturaLiteratura

São Paulo Riviera (João)

por Kathleen Maccaul

Segunda-feira à noite
Hotel Banri
Liberdade

João da Silva se afundou na sombra da entrada do restaurante, desviando do vapor com cheiro de peixe que vinha da cozinha. Estava quieto, os bares na rua eram pequenos, discretos. Portas pretas, luzes vermelhas, às vezes uma placa com escritos em japonês, às vezes nada. Só o Hotel Banri exibia uma placa luminosa. Comida barata na Liberdade. João se perguntou se o hotel também funcionava como bordel. Aquelas garotas asiáticas matando tempo no lobby, seus olhares cautelosos e rostos cobertos de pó de chumbo branco.

Ele respirou fundo. O ar estava pesado, uma tempestade se aproximava. Ele esfregou a testa, pegou o maço e tirou um cigarro. Era um trabalho sem futuro: sabia disso. Era um tédio. João estava entediado até não poder mais. Tudo que ele fazia era segurar uma arma e ignorar os crimes. Ele havia tido uma péssima sorte, fora assinalado para a pior DP de São Paulo. A 18ª DP da Brasilândia, uma favela difícil. Fazia a Vila Matilde parecer Paris, ou outro lugar do tipo. Traficantes vendiam crack do lado de fora da delegacia. João não ia fazer eles pararem. Ele tinha que pegar o ônibus para casa. Talvez, se ele tivesse sido colocado em algum outro lugar, teria jeitos de se provar, teria uma chance. Mas não na 18ª. Você só podia baixar a cabeça.

João balançou seu isqueiro, apertou a roda e assistiu a chama dançar em frente ao cigarro. Ele inspirou a fumaça e fechou os olhos, se afundando no gosto, tentando pensar em uma forma de mudar a própria vida. Ele ficou daquele jeito até que um facho de luz, muito mais forte que o seu isqueiro, mas tão rápido quanto, atingiu seu rosto. Ele abriu os olhos, mas só conseguia ver manchas de cor. Estremeceu por alguns segundos, se acostumando com a escuridão. De repente, sentiu silêncio. O vibrar metálico de antes havia sumido. João espiou a rua silenciosa. Vislumbrou a silhueta de uma moto. Dois homens. Pareciam estar mascarados. Esperando no escuro. Alguns anos atrás, isso significava um esquadrão da morte, a parte mais corrupta de um sistema já podre: policiais fora do horário de serviço que eram contratados como matadores de aluguel. Eles se tornaram tão poderosos que dominaram os bairros, cobrando por proteção, matando quem quisessem. Seu próprio quartel havia se tornado famoso por esses casos. Mas os esquadrões da morte supostamente não existiam mais. Um Brasil novo.

Ele olhou de relance para as cinturas dos homens. Eles estavam armados. Mas já haviam conferido João com a lanterna e não iam gastar munição nele. Estavam atrás de outra pessoa. Alguém que estava comendo no restaurante. Ele não havia treinado para isso. Deixara o distintivo e a arma em casa.

“Cara, o que você está olhando?” falou uma voz ríspida.
“Sou polícia”, ele disse, e fechou os olhos.

Uma risada abafada e, então, outra voz, mais baixa que a primeira.

“Pode voltar para dentro. Finge que não está acontecendo nada. Não cria confusão.”

João se virou lentamente e entrou no restaurante. Sentia a parte de trás de sua cabeça muito frágil e seus passos estavam longos e distorcidos. Ele não tinha muito tempo. Sua visão começou a escurecer enquanto olhava as mesas: a família japonesa comendo macarrão? A menina encurvada sobre um prato de sopa? O casal de mãos dadas comendo um barco de sushi? Não, não. É claro que era Rato, seu braço nos ombros de alguma garota, tomando uma bebida idiota. A pele de João se arrepiou enquanto assistia ele rindo. Ele era feio e idiota e criminoso. Mas mesmo assim, era apenas um garoto. João tinha que alertá-lo. Talvez algo bom pudesse vir disso, para ele mesmo, se fizesse a coisa certa.

#24PausaArteArtes Visuais

Eu sou a montanha

por Cassiana der Haroutiounian

Transitar pela Armênia é transitar pelo silêncio, pelo tempo suspenso. O vazio que se esparrama e se dilata. Mulheres como paisagens. Que me atravessam e me inquietam, sem se darem conta.

Fui para a Armênia fotografar as mulheres, em busca de suas histórias e da identidade armênia. Depois de quatro meses captando essas personagens, me dei conta de que todas eram como meu próprio espelho. Em todas há o meu silêncio, o meu vazio e a minha solidão por viver nessa terra, que me preenche de tanto eco.

A montanha me abraça, me alimenta, me preenche, me aquieta, como um útero. São dois mundos, o externo e o interno. E não importa qual é qual.