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Deyson Gilbert + Leopoldo Ponce
#30IlusãoAmarello Visita

Amarello Visita: Habita-me

por Renato Oliveira

Fotos de Leka Mendes

Tramas da Cidade

Depois de onze anos vivendo longe de Ribeirão Preto, quando retornei para a cidade, alguns lugares tinham desaparecido. Bairros inteiros foram construídos, e os problemas de uma cidade que acabou de alcançar o status de “cidade grande” surgiram como em um passo de mágica macabra. Como em todas as cidades médias e grandes do Brasil, Ribeirão Preto passa pela seara da degradação ambiental e decadência do seu Centro. Edifícios que são símbolos da verticalização ribeirão-pretana (anos de 1930-1960) encontram-se abandonados, sem uso social, além de palacetes e casarios que são referências da Belle Époque e que também se encontram no mesmo estado de abandono, ou desapareceram no espaço das demolições que, à surdina das altas horas, aconteceram sem que um só ouvido ou olho mais atento tentasse impedir. Assim, os vazios pouco a pouco foram tomando o centro de Ribeirão Preto.

O vazio sempre é preenchido. Sem a mediação e ocupação desse mesmo espaço com políticas públicas, planejamento urbano, a fim de desenvolver novas potencialidades e descobrir a sua vocação, o Centro de Ribeirão Preto vai sendo ocupado pela população em situação de rua. Hoje, segundo dados de 2018, somam três mil indivíduos que estão espalhados pela cidade. Aos poucos, o Centro vai perdendo sua “centralidade” em meio à avalanche da especulação imobiliária e da indústria da construção civil que (re)cria novas espacialidades, privatizando e selecionando novos usos e quem poderá usufruir dos benefícios dessa “nova cidade” que surge a partir de outros vazios que vão atender às demandas de mercado.

As minhas reflexões são compartilhadas a partir de um olhar estrangeiro para a cidade em franco crescimento (Georg Simmel, 1858-1918). Não deixando de ser realista para os problemas crônicos e estruturais da cidade, sou também um entusiasta quando percebo mudanças interessantes nos termos do uso e ocupação de uma região degradada como o Centro de Ribeirão Preto.

Poderíamos destacar a organização e a ação da sociedade civil organizada para a ocupação de espaços que outrora estiveram abandonados, sem uso social, a começar pela ação da classe teatral e do audiovisual que, depois de tanto tempo, transformou espaços de um antigo galpão num centro de formação e apresentação teatral e uma antiga cervejaria em um estúdio de cinema. Temos que destacar a ação da sociedade civil organizada através do órgão de defesa do patrimônio cultural da cidade de Ribeirão Preto na preservação dos poucos imóveis ainda existentes na região central, que vem retomando, de forma marcante, os vestígios do que foi a paisagem precedente.

O arquiteto e historiador da arte Camilo Sitte (1843-1903) diz que “o planejamento urbano deve levar em consideração o princípio não só do ordenamento, também seu volume, princípios artísticos (forma) que caracterizam diferentes fases da produção humana no campo material, da técnica e da tecnologia e dos diferentes saberes, a presença humana deixa seus rastros” – esse seria o fio condutor da memória e da identidade de um povo. Karl Marx (1818-1883), na sua obra O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, faz uma crítica à grande reforma urbana realizada por Luis Napoleão Bonaparte na cidade de Paris, dizendo que, ao “varrer do mapa” os bairros populares com suas construções medievais e modos de vida tradicionais, conseguiu destruir também parte da herança cultural dessas comunidades que lá viviam, facilitando o controle social, já que as referências de identidade foram perdidas (Quem sou? Para onde vou?). Se não existem rastros da memória social, não há resistência a qualquer tentativa de controle.

A cidade é o lugar da disputa, onde classes sociais, comunidades, ideologias, culturas se misturam, dialogam no tecido urbano. A cidade é construída segundo os princípios das demandas de uma sociedade. Sabemos, é certo, que, na história do urbanismo brasileiro, sempre prevaleceu o interesse privado. Na esfera pública, com seus largos espaços vazios gerados pelos governos autoritários, o público e o privado tornam-se ou confundem-se conforme os projetos são pensados para a cidade, que ora não atendem à cidade com os serviços básicos como saneamento, moradia, segurança e saúde, ora são responsáveis pelo desaparecimento do patrimônio cultural em detrimento de interesses privados. A cidade também é o lugar do encontro, das vivências, contato com as diferenças e da participação ativa do cidadão.


Escola Normal, de Marcelo Amorim.

Rastros da arte: a exposição Habita-me

É nesse contexto que me inseri na exposição de arte contemporânea Habita-me como um estrangeiro. Sem ser um outsider, mesmo sendo carioca, passei boa parte dos meus anos nessa terra, mas o distanciamento, por algum tempo, criou um olhar diferente, não só para a cidade, mas também para o seu povo, seu modo de pensar e agir. Fiquei surpreso quando recebi a notícia, no Museu de Arte de Ribeirão Preto, onde desenvolvo um trabalho junto ao setor educativo, que o Palacete Jorge Lobato tinha sido restaurado e que, no dia 24 de agosto, abriria suas portas para a exposição de artistas de São Paulo e de Ribeirão Preto que teriam como proposição estabelecer o diálogo das suas obras com o espaço arquitetônico e com a memória que reside nesse palacete.

A convite da artista Silvia Jábali, idealizadora e produtora do projeto, com curadoria de Paula Borghi, aceitei o desafio de trabalhar como mediador na exposição Habita-me. Para mim, foi um enorme desafio. Há quatro meses em Ribeirão Preto, tive que sair do conforto de um cidadão comum para entender o contexto paulista e ribeirão-pretano. Lembro-me que, há muitos anos, mudava de calçada antes de me aproximar do Palacete Jorge Lobato. Para quem não o conheceu antes da restauração, era chamado pelos transeuntes da Rua Álvares Cabral, endereço do Palacete, como “o lar dos gatos”, “favela dos gatos”. Por estar desocupado por tanto tempo e sem manutenção, exalava um cheiro que incomodava antes mesmo de passarmos em frente. Curioso, um lugar que outro momento era um dos símbolos da propriedade gerada pelo café, o Palacete Jorge Lobato, tornara-se mais um entre tantos imóveis da região central da cidade que se encontrava vazio, em ruínas, e sem o uso social que dá sentido à existência de uma construção.

Adquirido em 2016 pelos irmãos Hector e Ingrid Sominami Lopes, eles logo empreenderam a restauração, que ainda está em fase de conclusão, depois do Quarteirão Paulista, conjunto histórico arquitetônico composto pelo Teatro Pedro II, o Palacete Meira Júnior (onde está localizada a choperia mais famosa do Brasil, o Pinguim) e o antigo Palace Hotel (hoje Centro Cultural Palace), para estabelecer mais um marco de recuperação do patrimônio histórico edificado no centro de Ribeirão Preto.

Os preparativos para a abertura foram interessantíssimos! Um lá e cá para a montagem das obras no espaço do Palacete. Na verdade, todos nós estávamos descobrindo pouco a pouco os pedacinhos, os lugares escondidos e as linhas arrojadas do madeiramento, os vitrais, a fachada, os pisos de mármore europeu e a madeira de lei.

Para os artistas de Ribeirão Preto, aquele lugar era uma descoberta, uma incursão nas entranhas do tempo de uma cidade que não mais existe e que, talvez, pudesse ser desvendada e recuperada através de suas paredes, seus vitrais e suas jabuticabeiras quase centenárias. Já para os paulistanos, uma doce aventura no tempo e no lugar, desvendando a memória do outro, isto é, aqueles que são da terra, de fato, é algo interessantíssimo, pois o café, fonte dos recursos que deram origem àquele palacete, diz respeito a uma história comum de ribeirão-pretanos e dos paulistanos.

Pois bem, é o café, origem da projeção nacional e internacional de Ribeirão Preto entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX, que deu forma à trama de tijolos, azulejaria, piso, vitrais, materialidade que se misturou às obras dos artistas: instalações, pintura, escultura, performance, fotografia. Numa relação simbiótica, estabeleceram o discurso da incorporação do tempo, da arquitetura, do lugar (leia-se o espaço carregado de vivências e memória), procurando captar os sons do Palacete.

Pouco a pouco, como subindo uma escadinha para ter acesso a cada “piso da história” de Ribeirão Preto e do modo de vida que lá existia há noventa e seis anos, as diferentes linguagens se ramificaram, penetrando o espectro da casa, se apropriando também do que restou da história da cidade – como no trabalho da artista ribeirão-pretana Adriana Amaral. Através da fotografia e da projeção, ela utilizou o recurso analógico para fazer os registros da casa, o olhar da janela do Palacete Jorge Lobato, buscando, através dos pontos de fuga, manipular a imagem e os próprios vestígios do tempo que ainda residem no Palacete, captar e recuperar o tempo e a paisagem que não mais existem, criando um simulacro para o espectador, fazendo-o pensar que os registros fotográficos, bem como a projeção, eram imagens produzidas na época em que a residência era habitada pela família Lobato. Tais conexões formaram uma grande rede mental, tecendo a trama temporal da cidade e o Palacete como uma referência importante para vivenciar o passado.

O trabalho de Marcelo Amorim, assim como o de Adriana Amaral, cria raízes profundas no espaço da sala de recepção – chão, paredes, madeiramento, janela – e parte de uma reflexão crítica do sistema educacional brasileiro – ainda voltado para a doutrinação comportamental, ainda desvinculado das demandas da sociedade brasileira contemporânea – para nos fazer repensar o papel da escola na vida e na cultura brasileira. Amorim utiliza o mobiliário (carteiras de escola enfileiradas) numa sequência binária, onde as carteiras unidas e vigilantes nos passam a ideia de um só corpo. A imagem da Série de leitura Proença, livros didáticos utilizados massivamente entre os anos 1920 e 1950 no Brasil, com fim de difundir os ideais republicanos, doutrinários, em especial na chamada Era Vargas (1930-1945), nos coloca no campo reflexivo sobre o papel da escola como espaço de formação e reprodução ideológica.

O ato de habitar

Depois da Luz, de Nino Cais.

O ato de habitar tem dois sentidos na língua portuguesa. No transitivo direto, significa “ocupar como residência; morar”; no transitivo indireto, “prover de habitantes; povoar, ocupar”. O Palacete foi o lugar de residência e morada da família Lobato, o lugar como espaço de vivência, experiência, espaço simbólico de uma conjuntura política, econômica, social e cultural de Ribeirão Preto.

Depois de duas décadas desocupado, esquecido no seu tempo, a paisagem em seu entorno mudou rapidamente: os palacetes e sobrados da vizinhança desapareceram, dando lugar aos edifícios; o endereço deixou de ser nobre, sendo hoje uma região que reflete a diversidade social, ponto de intersecção das diferentes classes sociais, com comércio popular, bancos, lojas mais “grã-finas” e o já conhecido problema de segurança pública. O tempo da história se fez presente, avançando de forma implacável, seguindo o ritmo da humanidade, as coisas, a natureza, as relações do ser humano.

Segundo Paul Ricœur (1913-2005), “a memória é a celebração, nos traz o significado de algo que aconteceu, existiu e existe, resultado das relações humanas e essas com a natureza, que dá legitimidade às nossas atitudes no tempo presente, que representa a realidade para si e para os outros”. Através da iniciativa dos quatorze habitantes, o Palacete Jorge Lobato passou a ser habitado. Os trabalhos propuseram a simbiose, o enraizamento; penetraram, de forma orgânica, a materialidade do Palacete, (re)estabelecendo-o como alguém que deixa os rastros das experiências e vivências naquele lugar e ocupando não só a matéria, mas também o silêncio, simbolizado pela desocupação de muitos anos.

O trabalho de Carla Chaim, “Campo Neutro”, vincula-se a essa trilha da experiência do tempo vivido quando (re)constrói os caminhos, os vestígios daqueles que lá estiveram e daqueles que agora ocupam o espaço, com a proposição artística e o público que teve a oportunidade de ter um lugar que, num outro momento, esteve desabitado. Chaim materializa tais vestígios em duas salas do piso superior; uma através do pó de grafite aplicado no piso de madeira, em linhas retas, passando-nos a sensação de linearidade, ao mesmo tempo sem ponto de chegada ou partida, caindo no infinito, como o tempo, a história (que é cíclica) e a própria memória, que pode ser imortalizada. O vídeo é apresentado como o “espelho nosso de cada dia”, como num ponto de reflexão ou inflexão, onde podemos olhar para nós mesmos, percebendo nossos trajetos e percursos, onde a ação da nossa existência de forma alguma pode ser linear ou, simplesmente, onde de tempos em tempos podemos revisitar a nossa memória.

No piso térreo, ao fundo, no espaço da antiga cozinha da casa, a dupla Deyson Gilbert e Leopoldo Ponce, assim como Carla Chaim, se apropriaram dos escombros, paredes, piso, teto, que possibilitam dar visibilidade ao processo de restauração do Palacete Jorge Lobato. Gilbert e Ponce conseguem nos fazer entender, através de grandes e pequenas escalas do seu trabalho, a ação transformadora do tempo, os vestígios que deixamos – das nossas preferências pessoais por objetos, utensílios do dia a dia, à religiosidade –, representados pelas peças de madeira suspensas na parede ou pelas ferramentas utilizadas no processo de restauração do Palacete, celebrando seu processo de revitalização, de volta à vida, com uma nova função e, ao mesmo tempo, a tentativa de reconstituir a materialidade da casa.

Rosa da janela, de Estela Sokol.
Obra de Yasmin Guimarães.

Saindo através de uma enorme porta de madeira sustentada por um pé direito duplo, a sensação é de uma “saída abrupta”, mas necessária, para sermos confrontados com uma pequena, porém simbólica, construção de um orquidário, muitas vezes confundido com uma capelinha pelos visitantes da exposição. O orquidário também divide o espaço com jabuticabeiras e outras espécies originárias da época da construção do Palacete, também uma referência ao gosto e ao cotidiano dos seus antigos moradores.

A curiosidade despertada pela formosura do antigo orquidário nos convidou a imergir naquele pequeno espaço. Ao entrar, o espectador tinha uma surpresa, as referências de corpo, sexualidade, gênero, sexo, o universo homoerótico explorados no site-specific “Borboleta Radio Passiva”, de Marcelo Brasiliense. A obra era ora confrontada por olhares curiosos, ora trazia incômodo devido às discussões apresentadas (tradição, conservadorismo religioso, homofobia), o que muitas vezes se manifestava na fala do público, em reações mais inflamadas no espaço da exposição ou na rua, com declarações de ataque à comunidade LGBTT. A obra de Marcelo Brasiliense traz à discussão um tema político, social, cultural, artístico e convenientemente contemporâneo.

Os quatorze habitantes disseram à casa que o tempo da história mudou. A própria estrutura onde a obra fez residência deu o suporte necessário para que ela se enraizasse como as espécies vegetais que estão no seu jardim.

Dando continuidade ao percurso pelo jardim, encontramos os trabalhos de Simone Moraes, Estela Sokol e Pedro Gallego. O trabalho de Simone Moraes estabelece uma singela comunicação com a casa e seu ambiente externo, restabelecendo laços afetivos e temporais, trazendo referências ao modo de vida da casa, o jardim, o universo feminino, as rosas e as árvores, que encontravam-se numa situação de reclusão e cumplicidade com seus primeiros habitantes. As noventa e seis rosas plantadas na performance da artista – anos contados da casa – na terra “vermelha” do jardim também nos remetem à memória feminina, na figura de dona Ana Junqueira Lobato, e o lugar das mulheres de sua época: a reclusão e a vida ditada por rígidos padrões de comportamento, onde o espaço da casa, no caso da elite cafeeira, imitava os padrões da boa arquitetura europeia: o jardim era o lugar da beleza, saúde e o passatempo de algumas senhoras no cuidado com as plantas. Ao identificar cada espécie de planta e árvore no jardim, Simone Moraes também fez uma terna homenagem à casa e seus primeiros habitantes. Às 15h, sob o reflexo da luz do sol, a frase “Rosa é uma rosa”, referência ao poema de Gertrude Stein, é projetada na parede da fachada do Palacete, fechando o diálogo sutil e singelo com a casa.

A instalação de Pedro Gallego, “Objetos autoportantes”, no térreo do sobrado do antigo dormitório dos funcionários do Palacete Jorge Lobato, traz referências do universo midiático, como programas e séries de televisão da década de 80 e 90, distribuindo suas peças sobre o corpo do espaço expositivo, tentando se conectar com o público através da memória afetiva trazida por esses ícones da cultura popular. A obra exibida na abertura da exposição, “Screensaver”, que consiste em várias colagens de imagens representativas da cultura pop, não só nos fala da velocidade de produção e disseminação de imagens no mundo digital, mas também da produção em série e a manipulação dessas imagens, criando ícones para a indústria cultural e o mercado midiático.

A obra de Estela Sokol, assim como o trabalho de Simone Moraes, trilha o caminho de um diálogo silencioso. Partindo do espaço interno para o externo e vice-versa, “Rosa da janela” se movimenta no sentido da projeção de uma memória que tem a pretensão de se mostrar para o público. Cada peça que se espalha no jardim é como fragmentos de um quebra-cabeça, memórias que existem e podem ser tocadas e (re)organizadas, reatando o cordão que une presente e passado.

Subindo alguns degraus da escada, encontramos o hall do Palacete, piso de mármore italiano, e, à esquerda, a antiga sala de música e piano de Silvia Lobato, filha mais velha de Jorge Lobato. Nesse cômodo está a instalação de Nino Cais, “Depois da Luz”. Ele coloca a escultura no universo expandido; peças, partes de um momento de celebração, corpos e objetos se confundem, se espalham sobre o chão da sala. Cada fragmento dos objetos que compõem a sala são representativos, testemunhas daquilo que não mais existe. O vinho, com seu odor e sua decomposição frente ao tempo, dá um caráter orgânico e sinestésico – o vinho, como os sólidos espalhados pela sala, se expandiu a ponto de tocar o público. Poderíamos considerá-la como a “instalação dos sentidos”.

Olhando para cima, vemos as escadas de pinho de riga que dão acesso ao segundo piso, assim com uma bela visão para o vitral representando São Jorge – até então, não conhecia a imagem do santo sem o cavalo e liquidando o dragão, mas, segundo um visitante, é assim que São Jorge é representado na Irlanda.

Chegando ao segundo piso, nos deparamos com a instalação de Claudio Cretti, que utiliza diferentes materiais para compor sua escultura – mármores, madeira, chumbo, borracha, pedra. Como uma grande vara de pescar, a tridimensionalidade da obra nos convida a compartilhar seu espaço, o espaço da casa, como se tivesse a intenção de pescar o público, chamando sua atenção.

A artista Silvia Jábali traz um dos suportes mais antigos da história da arte, a pintura, como meio de referenciar o lugar da obra, buscando suscitar a discussão do espaço da arte, a quebra da tradição, ao suspendê-la a partir do chão com bases de pedra, deixando-a escorada na parede em vez de pendurada nela. Sua pintura orgânica distribui cores e formas, remetendo-nos à onipresença do passado e das personagens que habitaram o Palacete Jorge Lobato através de figuras soturnas e disformes.

A jovem artista Yasmin Guimarães, assim como Silvia Jábali, utiliza a pintura como suporte para sua obra. Recorrente na história da arte, o tema da paisagem nos remete ao imaginário e ao sonho, como se a artista quisesse nos convidar a recuperar, a partir da janela do Palacete Jorge Lobato, o “olhar da janela”, buscando estabelecer, a partir de dois tempos, passado e presente, vínculos afetivos com a história e a memória da casa.

Já Keyt Mendonça tem a linha, o ponto e a tinta negra sobre o papel branco como os principais elementos para a construção de sua obra. É bonito observarmos como ela consegue, com tão poucos recursos, construir imagens tão complexas.

Sem título, de Silvia Jábali.
Obra de Claudio Cretti.

Outros habitantes

Há algum tempo trabalhando na área de preservação do patrimônio histórico, confesso, mesmo com o olhar estrangeiro, me causou grande surpresa não só a visita de centenas de ribeirão-pretanos à exposição, mas como estes guardavam em relação ao Palacete Jorge Lobato um carinho, memórias de infância, demonstrando curiosidade e surpresa quando o imóvel foi restaurado e aberto ao público.

Interessante pensar que a arquitetura, a história, a memória e o imaginário dos visitantes foi um convite à exposição. O mesmo poderíamos dizer em relação à exposição, que foi um convite para aqueles que não conheciam a história do Palacete Jorge Lobato.

Mesmo sendo um espaço privado, o público se apropriou, se relacionou, digamos, com a materialidade e a memória do lugar. Diferentes faixas etárias, classes sociais, gente de várias partes da cidade, inclusive da região metropolitana, turistas, passaram pela exposição.

Num momento em que a sociedade civil vem se organizando para a defesa do patrimônio cultural de Ribeirão Preto, foi curioso perceber a alegria, satisfação e celebração da população ao ver o Palacete Jorge Lobato protegido e restaurado. Tanto descaso com a preservação dos bens históricos da cidade não corresponde à opinião da população sobre o tema.

Ao fazer a mediação entre as obras, o palacete e o público tiveram acesso à memória do lugar sobre diferentes perspectivas: descendentes dos empregados da casa, membros da antiga aristocracia cafeeira, ambos compartilharam histórias sobre os modos de vida da primeira metade do século passado, suas vivências no Palacete, assim como o contato com a família Lobato. Foi interessante perceber o nível de vinculação da história de muitas dessas pessoas que por lá passaram com o Palacete: “quando eu era criança, sonhava entrar no jardim e conhecer a casa por dentro”, “casa tão bonita, uma judiação ter ficado abandonada por tanto tempo”, “bom saber que os proprietários estão nos dando a oportunidade de ter acesso a esse lugar tão bonito”, “precisamos ter ações positivas como essa em Ribeirão Preto, precisamos preservar o pouco que restou do patrimônio histórico em nossa cidade”, “perfeita essa mistura de um lugar tão bonito, que faz parte da história da nossa cidade, com a arte; isso deve permanecer, a região central de Ribeirão Preto precisa de ações como essa”.

Borboleta Radiopassiva, de Marcelo Brasiliense

Percebe-se a valorização da comunidade em relação à importância do tombamento e preservação dos bens históricos. A cultura material e imaterial é representativa de uma comunidade específica ou do conjunto de uma sociedade que compartilha uma história em comum. A crítica de arte, arquiteta e historiadora da arte Françoise Choay, na obra Alegoria do Patrimônio (2006), diz que todo objeto do passado pode ser convertido em testemunho histórico sem que tenha sido destinado para esse fim, ou seja, todo artefato humano, técnica, modo de vida, costumes, arte, pode ser investido de uma função memorial.

Os novos habitantes circularam, estabeleceram a conexão com o passado e o presente através de todos os sentidos. Nessa relação sinestésica com o Palacete Jorge Lobato, homens, mulheres, crianças, idosos, pobres e ricos tomaram para si esse bem representativo da história econômica, política e social da cidade de Ribeirão Preto.

Quanto à função social da arte, esta aconteceu onde foram estabelecidas conexões históricas e artísticas, utilizadas como um meio para conectar o público no aspecto espaço-temporal, exercitar diferentes leituras do presente e do passado, a importância da preservação da memória, de quando a utopia de uma jovem cidade que nascia dos ramos de café se concretizou no que hoje é Ribeirão Preto.

A memória social foi despertada através dos gatilhos disparados pelas obras, como a instalação de Marcelo Amorim, “Escola Normal”, fazendo os mais velhos compartilharem com os mais novos, filhos e netos e até bisnetos, “como as coisas funcionavam naquele tempo” – o que também ocorreu na obra de Nino Cais, “Depois da Luz”, fazendo suscitar no imaginário do público as festas da elite cafeeira no suntuoso Palacete. O espaço privado tornou-se um espaço público (acesso livre), lugar da esfera pública, onde os assuntos da cidade, seus problemas e soluções, a preservação de sua memória cultural, foram discutidos pelo público à luz das experiências proporcionadas pela exposição Habita-me e da arquitetura, que se tornou elemento simbiótico, parte do discurso de cada uma das obras expostas.

A exposição, fruto do intercâmbio de artistas de Ribeirão Preto e São Paulo – que aconteceu paralelamente ao 43º Salão Nacional Contemporâneo de Ribeirão Preto no Museu de Arte de Ribeirão Preto, também um edifício histórico e contemporâneo do Palacete Jorge Lobato –, foi um dos marcos da ação artística na cidade, inaugurando um novo tempo para a reflexão sobre o papel da arte no espaço urbano, seu papel político e sua função social em tempos tão sombrios.

Em relação à importância do passado como pré-condição para assegurarmos nossa identidade cultural, existirmos e definirmos os próximos passos, o filósofo Walter Benjamin (1892-1940) diz que “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido”.

Projeto Carla Chaim.
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A ilusão nossa de cada dia

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Muito se fala da necessidade de superarmos ilusões e de criarmos coragem para confrontar a verdade sobre nossas vidas. No entanto, pouco se reflete sobre o determinante papel das ilusões na construção de tudo aquilo que acreditamos ser enquanto indivíduos e sociedades. Afinal, como poderíamos suportar a dureza da vida e criar nosso próprio mundo em um universo desprovido de fantasia?

Em O Nascimento da Tragédia, Friedrich Nietzsche argui como a antiga tragédia grega é capaz de transcender o vazio de um mundo carente de significado, erguendo a hipótese de que “toda vida repousa sobre a aparência, a arte, a ilusão, a óptica, a necessidade do perspectivístico e do erro”.

De maneira semelhante, em Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte, Sigmund Freud refere-se às ilusões como um componente essencial da experiência humana: “as ilusões são-nos gratas porque nos poupam de sentimentos displicentes e, em seu lugar, nos deixam gozar de satisfações”.

Nesse mesmo texto – publicado em 1915 por ocasião da Primeira Guerra Mundial –, Freud expressa descontentamento com a natureza humana, que, em tempos conflituosos, insinua despir-se de todas as suas fantasias e hábitos civilizados para regredir à vida meramente instintiva. Destarte, na conclusão do seu texto, Freud sugere que nossa atitude cultural deve incorporar certa dose de primitivismo. O que implica regredirmos sempre ao perdermos de vista a complexa dinâmica entre realidade e fantasia que impulsiona o projeto de nossa civilização.

Uma vez perfeitamente iludidos sobre nossa natureza – tal a crença de Ruskin de que sua mulher não deveria ter pelos no corpo – ou imersos na mera satisfação de nossos mais básicos instintos, corremos o risco de perder nossa humanidade de vista. Ora, adverte-nos Freud: “suportar a vida é e sempre será o primeiro dever de todos os viventes. [Mas] A ilusão torna-se sem valor quando de tal nos impede”.

Iludimo-nos todas as vezes em que retemos uma percepção distorcida da realidade e damos às pessoas, aos objetos e aos fatos uma dimensão que eles não possuem. Desta maneira, sem que percebamos, algumas memórias de infância ou da primeira juventude ganham proporções agigantadas em nossas vidas adultas; ora competindo para o nosso sucesso e a expansão dos nossos horizontes, ora para o nosso fracasso e a atrofia da nossa visão de mundo.

Em recente viagem ao Brasil, estive no Mosteiro de São Bento, em Olinda. O prédio pareceu-me bem menor do que guardara na lembrança das tardes em que lá estive com a minha avó. Comparando-o a outros prédios históricos que visitei em diversos países, pareceu-me diminuto em relação à perspectiva que desenvolvi: o tamanho da igreja e a opulência dourada do seu altar barroco desvaneceu.

Também nos iludimos ao buscarmos uma sequência cronológica para eventos determinantes em nossas vidas, como a morte de uma pessoa querida ou nosso primeiro contato com os livros. Afinal, só reconhecemos a importância desses momentos em retrospectiva, ao tentarmos dar um significado às sensações e emprestar uma ordem às memórias que interferem neste processo.

Assim, em coletânea de ensaios sobre a década de sessenta, a escritora Joan Didion descreve essa experiência como a tentativa de retermos a incessante confusão de impressões que compõem nossa experiência do mundo: “Nós interpretamos o que vemos, selecionamos [a explicação] mais viável entre múltiplas escolhas. Vivemos inteiramente, especialmente se formos escritores, pela imposição de uma linha narrativa sobre imagens díspares, pelas ‘ideias’ com as quais aprendemos a congelar a fantasmagoria cambiante que é nossa experiência real”.

Essa é a sensação de quem enfrenta o divã psicanalítico pela primeira vez e percebe que alguns dos seus valores e interpretações de mundo não passam de artifícios para suportar a realidade. Afinal, a ilusão é um dos mecanismos de defesa que criamos para lidar com o fardo existencial de eventos ou de relacionamentos traumáticos.

É nesse sentido que hoje nos iludimos ao cobrarmos em público que todos tenham direito ao amor e que toda experiência amorosa seja essencialmente segura, desinteressada e construtiva.

Outro dia, ouvi dizer que, independentemente de sua aparência ou seu comportamento, nenhum ser humano deve sentir-se em posição de mendigar afeto e aceitação. Não creio que isso seja admissível. Ora, nossas primeiras experiências afetivas em família não escapam da dinâmica da rejeição e dos conflitos de interesse. Nem podemos negar que a vivência de harmonia ou divergências familiares em nossos anos de formação acarreta, muitas vezes, uma futura apreensão distorcida dos afetos e a ambivalente experiência de seus estímulos.

Em suas memórias, Jean-Jacques Rousseau descreve o fenômeno da ambivalência afetiva ao relembrar-se de como, aos oito anos de idade, a punição física pelas mãos de Mle. Lambercier – uma mulher vinte e dois anos mais velha – despertaria sua sexualidade e reforçaria o prazer que sentia ao relacionar-se com ela: “(…) eu tinha encontrado na dor, e até na vergonha, um misto de sensualidade que, mais do que o receio, me deixara o prazer de o receber novamente da mesma mão. (…) Ao passo que os meus sentidos despertaram, os meus desejos enganaram-se a tal ponto que, confinados no que houvera experimentado, não trataram de procurar outra coisa”.

Quase todo tempo, ignorantes das nossas próprias motivações, buscamos experiências que nos sejam comuns, sem compreender os caminhos tortuosos que nos levam a aceitar a violência e a rejeição como fontes de prazer e formas de afeto. No amor e na vida, iludimo-nos a tal ponto de não nos reconhecermos necessários para preenchermos nosso próprio vazio existencial, e nisto nossas ilusões passam a ser alienantes. Por fim, o que há de extraordinário nesse texto de Rousseau é a advertência ao leitor de que precisamos estar sempre abertos a questionar nossas experiências.

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Proud South: o futuro é agora e está no Sul

Arte

Mas tudo mudou

#15 Tempo Cultura

por Vanessa Agricola Conteúdo exclusivo para assinantes

#30IlusãoCulturaLiteratura

Colóquio dos cavaleiros

por Marcelo Ferreira de Oliveira

Suponhamos que, numa de suas noites insones, em meio ao bosque ventoso e ao murmúrio de um riacho, com o corpo moído das pelejas dos dias, mas altaneiro na ânsia de espalhar seu renome para além das fronteiras do mapa e do tempo, o engenhoso Dom Quixote de la Mancha, vulgo cavaleiro da triste figura, proclamasse à escuridão que se sagrou cavaleiro para lutar pela justiça no mundo e para amar de amor cortês sua dama Dulcineia de Toboso, e que as palavras ecoadas no ar obscuro se condensassem num torvelinho faiscante, de onde partisse um relâmpago a fulminar a entrada de uma gruta ao pé da montanha, em cujo interior se encontrassem os ossos e a armadura de um cavaleiro derrotado numa batalha, mas que ferido cavalgara até a Mancha para lá morrer. O ser espectral saído do relâmpago entra na caverna, chacoalha a couraça, limpa-a dos restos mortais e a veste por completo, recompondo o cavaleiro inexistente que seguia dissolvido no ar, para então sair à procura do autor das comoventes palavras.

A armadura sem corpo caminha até o bosque e, ao encontrar o cavaleiro da triste figura, já meditabundo, com as pernas de gafanhoto de fora, a boca banguela aberta, um penico na cabeça e a lança em riste, como se esperasse um ataque do céu, se anuncia: “Fui Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez e paladino de Carlos Magno, e procuro agora pelo indivíduo cuja evocação dos ideais da cavalaria me fez retomar a vontade de estar na terra, tirando-me do autoexílio nas nuvens. Peço a vós o favor de indicar aonde devo ir para encontrar esse ser de tão distinto pensamento”.

Quixote deixa de contemplar o vazio, vira os olhos na direção de quem o chama e, depois de observar o nada através da fresta na celada do elmo, mas sem demonstrar qualquer surpresa com aquela não presença improvável, responde: “Vós, cavaleiro desencarnado, de linhagem nobre e façanhas gloriosas, buscais quem aqui está, humildemente, à vossa presença”.


“Mas não pode ser!”, replica Agilulfo um tanto exaltado. “Como que um sujeito de aspecto assim maltrapilho e indecoroso poderia ter dito as palavras tão exatas que me acordaram do sono de séculos? Como bem sei, o ser humano é instável, ambíguo, nada confiável, e tem ainda um corpo que dorme, ronca, envelhece, que bebe, tem fome e se lança em jogatinas lúbricas. A essa desordem sempre contrapus minha força de vontade, minha devoção às regras, e com isso sempre venci a modorra, a inquietude, a melancolia, mantendo a mesma lucidez e comedimento usuais. Somente um corpo asseado e vestido conforme as normas, sem defeitos, poderia agasalhar um espírito puro e perfeito que produzisse o canto que me trouxe até aqui, mas nunca vossa figura de degradação e sarro, que tantas vezes vi igual, e repreendi, em acampamentos e campos de batalha.”

“Vós vos enganais, triste cavaleiro de ar, porque partis de premissa equivocada; esqueceis que as regras, patentes no exército, graus de nobreza e códigos de boa aparência são criações perecíveis do homem, e que o espírito e o desejo de ser grande terão sempre a liberdade de ultrapassá-los e recriá-los. É uma ilusão acreditar que a vontade possa dominar a vida e suas paixões irrefreáveis; nada importa se o indivíduo esteja enclausurado num presídio, numa armadura, num posto hierárquico, em vestimentas asseadas; seu espírito desejoso poderá não só livrar-se desses grilhões, como também expor suas limitações, confrontando-as a sentimentos e ideais tanto mais altos quanto valorosos, quais o amor e a justiça, que, aqui no mundo, se acham traduzidos em poemas, novelas, ações heroicas. Eu, por exemplo, me sagrei cavaleiro para salvar donzelas de feros inimigos, para libertar cativos sob o jugo de reis bárbaros e impostores, para distribuir, enfim, justiça pela terra e alcançar a glória eterna. No tocante ao amor, seguirei amante casto e dedicado à mais formosa dama, Dulcineia de Toboso, sofrendo a delícia de sua ausência, gravada em minha medula, e gozando-a enquanto a lembro e a celebro em canções nas noites solitárias; pois, como já disse o poeta, ‘amor é um fogo oculto, uma agradável ferida, um saboroso veneno, uma doce amargura, uma deleitável doença, um jucundo suplício, uma afável morte’.”

Agilulfo jamais havia questionado suas rigorosas orientações, mas isto lhe ocorre agora ao perceber que, para Quixote, pouco importavam as ordens e os juízos de fora, já que seu sonho demasiadamente humano se tornara a única e verdadeira regra de sua existência, transformando a realidade banal em sublime – onde coexistem gigantes, hipogrifos, ninfas douradas brotando de árvores, situações patéticas ao luar –, não se sabendo mais o que é ilusório ou efetivamente real, e que, no interior desse sonho, havia uma ordem caótica, uma chama oculta a arder.

Pela primeira vez, o cavaleiro inexistente se acha totalmente desprovido de verdades e normas, e não resiste mais ao apelo da dissolução. Dentro da ausência definitiva, aquela vaga inveja que sempre sentira dos seres existentes súbito ganha nitidez, e a sua voz, agora diáfana, ecoa do além esta mensagem: “Nada fui querendo ser insígnia de comando e compostura, mas, olhando só agora para a chama fria que arde, talvez venha a compreender algum dia como me expandir nessa luz amorosa, que me confunde e me convida a existir”.

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Offline

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4 shots

1

Um diário, um fotolivro, um pedaço de si — Offline, este objeto que costura textos e imagens produzidos pela fotógrafa Ana Rovati durante residência artística em Madri, é parte fundamental de sua vida. Digo isso não como mais um lugar-comum, mas, tendo acompanhado de perto as idas e vindas do processo, sei o quanto ele tem de vísceras. Quando saiu do país, o projeto ainda não era algo totalmente delineado, mas uma intuição, se me lembro bem, de retratar velhinhos e velhinhas, ou melhor, pessoas que estavam fora do mundo conectado pela internet. Desde já, portanto, havia o embrião não de um projeto fotográfico propriamente dito, mas de investigação intelectual e artística, que extrapolava os limites da linguagem fotográfica. Tanto é assim que lembro de conversarmos sobre como essa ideia poderia ser transposta em imagens, e não vislumbrava nada.

2

Já em Madri, em algum dos Skypes trocados por nós, ela me contou que o projeto havia chegado a um ponto de inflexão radical: tinha decidido ficar sem conexão alguma com a internet, pois, assim, através da própria experiência, conseguiria pensar verticalmente o tema em questão. A princípio, pretendia ficar seis meses (se aguentasse até lá) fora da rede, período que acabou se prolongando por um ano. Durante esse tempo, sentiu as dores e delícias do contato imediato com pessoas e coisas. O raciocínio foi a mil. O pendor telúrico da virginiana aflorou. A lucidez crítica explodiu. O resultado final foi menos foto do que o esperado e muito pensamento. Sem nenhuma dúvida, pode-se dizer que, nesse breve intervalo, sua personalidade artística — de uma intuição sempre franca com a vida e consigo — se avolumou sobremaneira, engendrada por um aprendizado ético de matriz spinoziana.

3

Um projeto fotográfico sem fotos poderia ser um belo exemplar da vanguarda conceitual. A esse ponto chegou Offline sem pretender. Mas Ana é uma artista sem filiações. Como então solucionar o impasse à sua maneira? Passou a escrever textos sobre. Com leveza e bom humor, descreveu situações por que passou à margem da rede, levantando questões profundas, que de tão óbvias já não podiam ser vistas por qualquer um. Sem e-mail, não conseguiu emprego; sem WhatsApp, perdeu noitadas; sem dinheiro, voltou para o Rio. Em casa, passou a entender aquilo tudo que já tinha inscrito no corpo. Leu importantes pensadores da contemporaneidade: Christoph Türcke, Hal Foster, Jonathan Crary etc. (com este último, trocou cartas). De intuitiva passou a especialista.

4

O projeto artístico Offline — que aqui está — é um diário crítico ilustrado com fotografias feitas por Ana durante esse momento crucial de sua vida. Imagens e textos vão melhor se acompanhados. É o primeiro objeto (de muitos, espera-se) concebido e produzido minuciosamente pela artista, como parte de sua produção. Na esteira, surgiu convite para uma exposição. E, assim, fotos e sensações vão ganhando corpo em diversos tamanhos, cheiros e texturas antes desconhecidos através da tela do computador. Ao tornar Offline matéria táctil, Ana dá o termo mais justo àquilo que lhe arrancou pedaços. E com coragem, oferece esses pedaços — carregados de inteligência, contemplação, alegria, solidão — a quem quiser mordê-los.

Vou sair da internet. Um ano. Calma. Ainda não sei quando. Calma. Ainda é só uma ideia. Sim, estou falando sério. Isso, eu não entraria mais no Skype. Não, eu não vou desaparecer.

Sou brasileira e moro em Madri há alguns meses. Quando vim para cá, minha mãe não chorou. Não na minha frente, pelo menos. Quando eu contei a ela que ia sair da internet, ela chorou.

Já existem teorias que relacionam a ausência no mundo virtual com a morte e, obviamente, não cabe a mim explicá-las aqui. Por outro lado, é possível encontrarmos um argumento bastante lógico e direto: uma pessoa morta não poderia postar fotos na rede. A minha irmã, numa conversa, me falou: “Se tu for mesmo sair da internet, melhor fechar tua conta do Facebook ou as pessoas vão pensar que tu morreu porque não está mais respondendo”. Sábia observação.

Ao começar a experiência e deixar de estar disponível vinte e quatro horas por dia, causei uma disfunção social, “desapareci”. As pessoas já não têm “fácil” acesso a mim nem à minha imagem, já não sabem se vi ou não as mensagens no celular, por quais lugares tenho andado ou o que tenho feito. A não ser que façam parte da minha vida “real”.

Obviamente, minha mãe sabe que não estou morta e, se ela chorou, foi pela possibilidade de deixar de ter contato com a minha imagem a qualquer momento que desejasse. Eu sigo tendo celular, que, por acaso, deixo ligado vinte e quatro horas por dia. Mas isso já não parece ser suficiente.

Depois de alguns dias sem acessar a internet, me dei conta de que, apesar do meu aparente “desaparecimento” (é verdade, o número de contatos que eu tinha caiu brutalmente), a intensidade e o valor de cada uma das conversas que eu passei a ter se multiplicaram. Ou seja, se, por um lado, talvez eu tenha morrido virtualmente, por outro, confesso, fazia muito que não me sentia tão viva.

De volta ao Brasil, e ainda desconectada, converso com algumas amigas. O mundo, a criatividade, projetos, a vida.

Ana – […] mas foda mesmo é o David Bowie, que não tem medo de se reinventar.
Josi – Era, né.
A – Como assim “era”?

Não pode ser. Pode. Esse foi o diálogo responsável pela minha descoberta sobre a morte de David Bowie. Sete meses depois da morte dele. Sete!

A – É sério?
J – Tu tá falando sério ou tá te fazendo?
A – Meu deus.
J – Então tu também não sabe do Cauby Peixoto.

Ok. Podemos parar por aqui e começar a fazer as relações. Porque está claro que, como eu vivi em Madri no período em que David e Cauby morreram, eu provavelmente só teria fácil acesso à informação da morte do primeiro, venerado internacionalmente. Assim, vamos a ele.

J – Mas, Ana, foi comoção internacional. Será que os espanhóis não gostavam dele? Ninguém comentou nada por lá?

Análise 1 – Era domingo. Eu não costumava comprar jornal no domingo! Além disso, na verdade, as notícias de domingo não saem no jornal de domingo, pois jornal de papel é impresso. Se é impresso e tem que estar na rua cedinho, não dá tempo. Exato. E como o mundo conectado provavelmente se inteirou da notícia instantaneamente após a morte do artista, as capas de segunda-feira já não priorizaram o fato. A notícia ficou “velha” e, se apareceu, foi nas páginas internas. O que me faz concluir que, provavelmente, eu também não comprei o jornal naquela segunda-feira. Lógico. Para ajudar, não tive aula, local onde eu encontraria muitas pessoas e aumentaria as chances de ouvir algum comentário sobre o assunto. Ou seja, passei batido.

Análise 2 – Se você não utilizasse mais a internet para se informar, então quais seriam as suas alternativas?

– jornal diário (quantas opções e variações de opinião? Três? Sem esquecer do detalhe “descartável” do material);
– revista semanal ou mensal com as principais informações;
– amigos e pessoas na rua;
– televisão;
– rádio.

Ao somarmos todas elas, talvez cheguemos mais perto do potencial da web. É inegável que a internet é uma fonte de possibilidades para a diversidade em informação, na qual encontramos opiniões de diferentes posições políticas, especialistas e não especialistas. Uma lindeza só! Sério, por que eu não usava isso assim antes? Porque potencial não quer dizer necessariamente prática.

Análise 3 – Os dois lados da moeda
Quando descobri sobre a morte do David Bowie, eu me senti a pessoa mais alienada do mundo. O que mais eu estou perdendo? E, mesmo com a sensação de que estava lendo mais sobre notícias diárias no modo papel e dialogando sobre política com amigos mais do que quando online, prometi a mim mesma que, ao voltar à internet, dedicaria um tempo diário a notícias importantes e sites com olhares mais amplos (o oposto do monopólio informacional impresso ao qual estou limitada agora, ufa). Opa. Espera. Lembrei por que eu não usava a internet assim antes.

Acontece que, junto com essas notícias, também acabamos nos informando (sendo engolidos?) de outros detalhes do mundo, como: casamentos e términos de celebridades, qual jogador de futebol deu escândalo, tendências de maquiagem, último bafo da semana de moda, a # mais lida no Twitter, quem engordou e quem emagreceu, top 10 de receitas com ovo ou de animais fofinhos, decoração, dieta paleolítica ou do carboidrato ou de qualquer outra modalidade, a última viagem do príncipe inglês com sua linda família, a comida que o seu amigo almoçou ontem, etc.

De fato, estar offline pode ter me deixado alienada para algumas coisas. Mas, quando há o tal potencial de informação, qual é a parte do potencial que você usa? #ficaadica

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Ópera ou a máscara da ilusão

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De algum modo, a ópera é o mais inverossímil dos gêneros dramáticos. A ideia mesma de pessoas que cantam em vez de falar, muito antes da revolução brechtiana, já realizaria o “efeito de estranhamento”, tão estimulante quanto mal entendido entre os tantos seguidores do dramaturgo alemão. O fato é que, desde seus primórdios, em finais do século XVI, a ópera existe a partir de um pacto absolutamente fantástico. E o pacto se dá em dois níveis: na criação, entre o compositor e a narrativa, e na performance, entre o palco e a plateia.

E o que reza o pacto? “Deixai fora toda vossa inteligência, vós que entrais”; pois, a partir da premissa de que nada daquilo que será produzido diante de seus olhos é possível – e da ilusão de que não pode sequer pretender sê-lo –, o libretista e o público precisam resignar-se ao papel eventualmente secundário que todas as artimanhas de sua inteligência podem eventualmente fazê-los construir – ou desfrutar. Como na máxima de Jep Gambardella, protagonista do filme A Grande Beleza, é importante, no universo da ópera, reconhecer que “é tudo um truque”.

Mas qual a natureza deste truque? A ilusão a partir da qual funciona a ópera é muito diferente daquela realizada pelo circo, por exemplo. Primeiro pois não há enigma a ser desvendado – o encanto da ópera não se dá a partir daquele maravilhamento da adivinhação e do quebra-cabeça que temos pelos mágicos e suas cartolas, os coelhos desaparecidos ou pessoas cortadas ao meio. A ilusão da ópera tampouco se dá pelo fascínio acerca do sobre-humano, aquele que, em alguma medida, as vozes em toda sua projeção e agilidade podem sugerir, tais como nos sugerem contorcionistas ou corredores de olímpicos. Não: o tipo de encanto que Usain Bolt nos faz ter, embora um elemento inequivocamente presente, é sempre tangencial numa boa performance operística.

A ópera tem suas raízes numa ruptura: a de tentar fazer com que a música deixe de pintar o significado das palavras e passe a ilustrar a emoção do texto no qual as palavras se inserem. Como diz um dos importantes colaboradores na inquieta produção teórica que antecedeu o advento da ópera, o compositor e teórico Vincenzo Galilei (1533-1591), pai do famoso astrofísico Galileu Galilei, a música deve passar a “expressar os conceitos da alma”. Desde lá, até aqui, com todas as suas transformações de estilos e propostas, é nisso que fundamenta-se o gênero. E é nestes termos que deve ser lida uma passagem preferida do livro “Altos voos e quedas livres”, do escritor britânico Julian Barnes:

“Durante a maior parte da minha vida, essa tinha me parecido ser a forma menos compreensível de arte. Eu não compreendia realmente o que estava acontecendo (apesar de ler atentamente os resumos da história) (…) Óperas parecem peças inteiramente implausíveis e mal construídas, com personagens berrando ao mesmo tempo na cara uns dos outros. (…) Mas agora, na escuridão de um auditório e na escuridão do luto, a implausibilidade do gênero, de repente, desapareceu. Agora parecia natural que as pessoas entrassem no palco e cantassem umas para as outras (…) Em ‘Don Carlo’, de Verdi, o herói acabou de conhecer sua princesa francesa na floresta de Fontainebleau e já está de joelhos cantando: ‘Meu nome é Carlo e eu te amo’. Sim, pensei, está certo, é assim que a vida é e deveria ser, vamos nos concentrar no que é essencial. É claro que a ópera tem um enredo (…), mas sua função principal é levar os personagens o mais rápido possível ao ponto em que eles possam cantar a respeito de suas emoções mais profundas. A ópera vai direto ao ponto, assim como a morte (…). Aqui estava meu novo realismo social.”

Não é nossa inteligência que trabalha a todo vapor num espetáculo operístico. Devemos, ao contrário, estar abertos ao arrebatamento de uma espécie de contra inteligência, as emoções que nos levam pelo peito, nos colocam sob vertigem. Um bom espetáculo de ópera é sempre realista, no sentido mais objetivo da palavra.

Mas isso não é uma contradição? Claro que não. Todos que em algum momento da vida estudamos roteiros e narrativas – sejam elas novelescas, cinematográficas ou teatrais – sabemos da importância da eleição dos elementos da trama, das menores às maiores, com fins de construção de um todo coerente e orgânico; numa boa trama, tudo deve concentrar-se ao redor dos “problemas” dos protagonistas e tudo – antagonistas, coadjuvantes, cenários, figurinos, objetos de cena e quetais – deve funcionar para dar sentido à história.

Mas apenas a ficção tem esse compromisso com o sentido. A realidade, não. A realidade é a soma de todas as exigências feitas pelas casualidades, as forças intempestivas, as escolhas estultas e maquiavélicas que as pessoas fazem. Uma trama profundamente realista é, de fato, aquela onde tudo escapa, nada pode ser planejado, cada incidente é decorrência de uma cadeia infindável de incidentes cuja participação não é nem pode ser prevista.

E a ópera segue essa máxima. Ela “vai direto ao ponto, assim como a morte”. Os amores acontecem à primeira vista, pois todos sabemos que, na realidade, os outros amores inexistem; os personagens morrem cantando por horas a fio, pois é assim a vida: morremos não de uma hora para outra, mas a cada segundo, até o suspiro final. A ópera organiza-se a partir da ilusão aparentemente mais ordinária, a de que aquilo que vemos e ouvimos é falso – se os cantores cantam, claro, nada daquilo pode ser de verdade. Mas, em algum lugar, sabemos que não é assim: e ali, todo aquele nonsense, aqueles personagens movidos pela intensidade e verve, a construir e destruir sonhos e relacionamentos, a tramar planos inexequíveis e julgar por valores impensáveis quem deve ou não deve viver, é ali, naquele caldeirão de som e fúria, que podemos de fato ver por que a vida é mesmo uma história contada por um idiota, sempre vazia de significado.

Na ópera, como na vida, sentimos intensamente. Sua ilusão é a de se fazer passar por impossível. Mas, como nos diz Julian Barnes, ela trata “de como a vida é” – e deveria ser.

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Conferi se comeram legumes. Orgânicos. Para evitar agrotóxicos. Que perigo. Passei filtro neles antes da praia. O buraco da camada de ozônio só cresce, li no jornal. Protetor é para evitar câncer; achei uma camiseta que tem FPS 50, comprei logo duas. Coloquei rede na janela, para evitar que caiam lá embaixo. “Tears in heaven” foi a canção que Eric Clapton compôs para o filho que caiu da janela. Embalou minha adolescência. Enquanto eu dançava bailinho e começava a minha juventude, essa era a trilha sonora das festas. Ingenuidade minha, nem percebia do que se tratava. Estava tão distraída com a vida que me convidava para dançar, deslumbrada, que quase esquecia que também existe esse negócio chamado morte.

A empresa que contratei para a rede se chamava alguma coisa Angel. Tem que ter. Eu que não fico sem esse anjo da guarda chamado rede de proteção. Começou a me dar arrepio ouvir essa música no rádio depois que eu pari. De vez em quando, ela aparece. Sempre me emociona. Como esse homem conseguiu, meu Deus, cantar outra vez? É possível voltar a ter voz com um impacto desse na vida? Não sei. Não quero saber. Sempre tento mudar de estação. Mas a música é forte demais e permanece. É que a melodia da morte nunca deixa de estar à espreita, como uma música que fica sempre de fundo.

Sei que os cobri à noite para evitar pneumonia. Fechei a janela por causa da ventania. Saí correndo no meio da madrugada para acolher um filho que teve pesadelo. Levantei com tanta rapidez que travei o pescoço. Está tudo bem. Era só um sonho ruim. Voltemos a nos distrair com o cronograma do dia seguinte. Voltamos à programação normal da vida.

Dei também a vacina de sarampo, a terceira dose, já que há uma epidemia voltando, minha sogra falou. Própolis garante uma melhora da imunidade, assim eu li numa notícia do mercado de comidas naturais da esquina, e minha amiga confirmou. Lá mesmo onde compro macarrão integral para evitar a farinha branca, que, pelo que dizem, é um veneno. Não custa tentar. Eu estava tão atrapalhada essa semana que nem fiz a inalação direito na minha filha mais nova, conforme o pediatra orientou, para que o tempo seco não lhe cause alergias respiratórias.

Quando teve a epidemia de Zika, comprei mais de dez repelentes de uma só vez. Dez Exposis, que era o único eficaz para dengue, tal qual li numa matéria da revista.

Fui também a primeira da fila da vacina de gripe no Cedip para evitar um surto de H1N1 que acabou de ocorrer. Era 7:30 da manhã. Estavam eu, minha mãe de 80 anos, as crianças e meu marido. Por que a pressa em plena segunda? Meu marido me perguntava. Eu não respondi na hora, pois estava preocupada com onde eu tinha guardado o papel do manobrista, como sempre, mas a verdade é que eu tenho pressa em fugir da morte, por isso corro.

Eu tomo banho depois dos velórios, tiro o sapato. Quero tapeá-la. Quero ela longe da minha casa. Quero combatê-la, embora eu saiba que eu estou fadada a perder essa luta no fim do meu jogo. Eu tenho certeza que ela é esperta, entra no buraco da fechadura, pela janela, pela fresta da porta.

Na semana passada, outro susto: chegamos a tempo no pronto-socorro no meio de uma crise de laringite do meu mais velho. Eu achei que ele ia parar de respirar. Ufa. Deram remédio, voltamos para casa. Dormi calma. O fantasma daquele dia tinha dormido. E eu dormi, triunfante: enganei você, velha senhora. Não foi dessa vez que a morte nos encontrou. Consegui me esconder direitinho.

Dessa vez, a ambulância dobrou a esquina. Fiz um sinal da cruz quando ela passou. Que cheguem a tempo na casa do doente, pensei solidária. Ao mesmo tempo que comemorei, egoísta, que dessa vez não foi comigo. Entrei no supermercado, atendi o celular. Não é comigo dessa vez. Posso comprar carne para o almoço com calma. Para ela, não tem vaga na porta de casa. Hoje não.

Eu não vou conseguir proteger vocês para sempre, meus filhos. Mas eu queria. Então, enquanto eu posso, faço esses paranauês, que, no fundo, não adiantam tanto, estão além do meu controle, mas me dão a ilusão de que nada de mal vai chegar perto de vocês. Eu queria ter a certeza que ninguém vai quebrar o coração de vocês. Que vocês nunca vão ver no canto de uma festa o amor de vocês gargalhando e jogando a cabeça para trás com outro alguém. Queria também que vocês nunca fossem traídos, maltratados, excluídos. Que nunca sofressem um assalto. Um assédio.

Que nunca recebessem a notícia de que alguém que vocês amam está morrendo.

Enquanto eu puder, eu vou lutar para enganar essa nossa inimiga. Vou viver para tentar tapear a velha senhora. Tamparei os ouvidos para não ouvir seu canto, tal qual Ulisses fez com suas sereias. E nessa tentativa ilusória de drible, vou me movimentando. Construo muros, mudo de casa, trabalho, produzo, transito, sem me paralisar. Fecho as janelas. Faço inalação. Blindo o carro, se preciso for. E amo vocês com mais força. Tenho pressa, tenho urgência. Ser a mãe de vocês me criou a maior de todas ilusões: a de que eu posso tentar ser super-heroína. Foram vocês que me ofereceram essa coragem. São vocês meu amuleto. E eu sei que, dentro vocês, viverei para sempre. Serei imortal, finalmente, nessas memórias que construí.

Essa luta é o meu único caminho possível. Embora eu saiba que a maratona termina de frente com essa tal bandida. E que ela vai roubar minha tão suada medalha.

Por isso, corro demais. Ainda.

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por Léo Coutinho

Um garoto nova-iorquino de dezessete anos desenvolveu um programa de computador capaz de reconhecer padrões e sintetizar a obra de compositores clássicos. Sofisticado, o sistema pode criar suas próprias peças musicais.

A novidade causou frenesi nos Estados Unidos. Na TV aberta, o programa de auditório I’ve Got a Secret recebeu o prodígio com sua invenção, que apresentou uma peça de piano composta pelo computador. Ato contínuo, o presidente americano convidou o rapaz à Casa Branca para dar-lhe os parabéns pessoalmente.

Ainda estudante do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o mesmo jovem criou uma empresa para administrar outra invenção: um novo programa de computador, agora capaz de identificar matches da turma do ensino médio com universidades, cruzando as características das instituições com as respostas de um questionário preenchido pelos candidatos interessados. Qualquer semelhança com os atuais algoritmos não é mera coincidência.

Nota necessária antes de prosseguirmos: o presidente no segundo parágrafo é Lyndon Johnson. As datas de apresentação das invenções são respectivamente 1963 e 1968. O jovem é o hoje setentão Raymond Kurzweill, filho de judeus austríacos que escaparam do nazismo pouco antes da Segunda Guerra Mundial e um dos pais do conceito de Singularidade tecnológica.

O termo original vem do campo da astrofísica e é utilizado para denominar o lado de lá do horizonte de eventos dos buracos negros, onde o tempo e o espaço como os conhecemos desaparecem. Mas, nos anos 1990, a Singularidade foi reapropriada por Vernor Vinge e Ray Kurzweill para definir o lado de lá do entendimento vigente sobre a relação entre biologia e tecnologia, homem e máquina, consciência e matéria. A quem se interessar por uma introdução ampliada ao tema, recomendo a leitura do artigo “Singularidade e Convergência”, da doutoranda em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, Renata Lemos.

O que importa aqui é que ninguém discorda de Kurzweill sobre se a Singularidade tecnológica vai acontecer. Tudo o que se discute é quando, como e em qual intensidade ela virá. Isto é, sabemos que a inteligência artificial, somada à internet das coisas e incluindo nanorobôs capazes de coexistir com o organismo humano, é só uma questão de tempo. As perguntas que restam são filosóficas: quais limites éticos e morais devem ser observados?

Líderes religiosos se destacam entre os mais aflitos. Perguntam-se até que ponto convém à Humanidade “brincar” de Deus. É um debate que deve ser respeitado e realizado. E com alguma urgência. Imagino que o primeiro ser humano que foi capaz de controlar o fogo sofreu questionamentos semelhantes. Onde chegaríamos produzindo algo que acontecia como um fenômeno, quiçá divino, depois de um raio, de chuva ou de sol? A diferença principal é o tempo para o amadurecimento do debate. Parece que, naquela época, havia tempo de sobra e deu no que deu. Cá estamos. Agora, o tempo urge, a tecnologia avança num ritmo difícil de ser acompanhado. A Lei de Moore vigora, sem falhar, desde de 1965: a cada dois anos, a capacidade de processamento dos computadores dobra. Se vier a falhar, deve ser para mais, ou seja, triplicando ou quadruplicando a cada dois anos, posto que as máquinas evoluem muito mais depressa do que os seres vivos. Misturados organicamente, qual será a velocidade do passo?

Entre as previsões do futurista Kurzweill estão os nanorobôs que vão morar dentro do nosso cérebro e, de lá, poderão se conectar com a nuvem, arquivo virtual de toda a informação já produzida pela Humanidade. Será o fim dos lapsos de memória, e a criatividade humana não terá limites. Também poderão combater doenças e regenerar órgãos danificados pelo uso, provavelmente acabando com a morte morrida ou permitindo que nosso corpo aguente correr dez maratonas seguidas – confesso que não sei o que é mais assustador.

Mistérios e segredos também estarão com os dias contados. Inclusive os dos nossos ancestrais. Kurzweill é um tipo curioso. Podemos conhecer um pouco dele no filme documentário Homem Transcendente: vive no subúrbio, numa casa clássica americana repleta de memórias, bebe vinho, usa carro, terno e gravata. Pensa muito no futuro, mas não se esquece do passado.

Muito pelo contrário, quer lembrar mais. Guarda tudo o que pode sobre sua família, notadamente seu pai, para um dia poder digitalizar toda a informação e, de alguma maneira, ressuscitá-lo. Mais: já implicou muito com a presença dos extensos cemitérios dentro das cidades nos Estados Unidos, mas hoje olha para cada um deles como preciosos bancos de dados. Ele imagina que poderemos resgatar o DNA presente nos cabelos e outros tecidos dos mortos e, consequentemente, parte da memória neles contida.

Kurzweill diria: cuide bem do seu arquivo e serás imortal. Estamos preparados?

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Eu guardei o primeiro correio elegante que recebi de um menino da quarta série. Ele me escreveu: “eu adoro a sua amizade”. Daí para frente, o menino da quinta série só passava lá em casa para trocar fitas de videogame. Eu colocava um trevo de quatro folhas dentro do bolso da minha calça jeans nova e lhe emprestava as melhores fitas. Não tive sorte com trevos de quatro folhas. O menino do Rio Grande do Sul, próximo da lista, namorava a menina mais linda da escola. Pensa numa garota linda. Sabe quanto tempo eles demoraram para terminar? Cinco anos. Quatro anos depois do começo, a namorada dele foi passar o final de semana no Rio, e a gente ficou. Ele me disse que estava solteiro e que sempre gostou muito de mim. Beijei de língua, de orelha, pescoço. Eu e o menino do Rio Grande do Sul quase transamos no sábado. Na segunda-feira, ele passou com a namorada de moto.

Sabe quanto tempo eu demorei para ter o meu primeiro namorado sério?

Ele não está tão a fim de você foi o nosso primeiro filme. Ele me mandou uma mensagem perguntando se três encontros seguidos era muito, eu respondi que a única coisa que era muito era a vontade de ficar com ele. Tomei um banho, coloquei uma calça jeans nova (não tive sorte com calças jeans novas), fui para a casa dele e nunca voltei para casa. A gente assistiu Ele não está tão a fim de você como os namorados novos assistem filmes. Cada vez que a personagem, Gigi, se enganava com um homem, ríamos, como se estivéssemos para sempre livres de não dar certo. Até que, no mês passado, ou retrasado, já nem sei, ele começou a cantar a música da Frozen.

Eu demorei para entender a música da Frozen. Claro que eu já vi o filme umas quinhentas vezes, mas a letra tem todo um significado; de longe, tudo muda, parece ser bem melhor, livre estou, livre estou, etc. Que eu só entendi o dia em que ele começou a cantar “Livre Estou” na cozinha. Enquanto eu estava na sala cantando a música do Maná. A nossa música do Maná. A música do Maná que ele escolheu para ser minha. Foi só aí que eu me dei conta. Ele na cozinha, “livre estou, livre estou”; eu na sala, “con un cachito de corazón, con un cachito de corazón”.

Às vezes, a gente não tem escolha. Tem dias em que eu coloco a música do Maná no carro e pego a Marginal. Preciso instalar um insulfilm; não sei por que só consigo chorar no carro. Coloco Marília Mendonça, Vanessa da Mata. Essa semana peguei a Ayrton Senna escutando Cartola e Caetano. Achei melhor descer a serra, curvas estreitas de Frozen, silêncio, gelo do meu primeiro namorado sério. Desliguei o ar-condicionado, abri todos os vidros. A gente gostava tanto de viajar de carro. Cheguei na Rio-Santos com “Meu Coração Vagabundo”. Quero guardar o meu primeiro namorado sério em mim. Fui, fui, até Paraty. No trevo de Paraty, dei a volta para São Paulo. Fim.

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Amarello Visita: Biblioteca Brasiliana e José Mindlin

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Cristina, você poderia nos contar um pouco de sua trajetória, como você começou a trabalhar primeiro com a coleção Mindlin, em sua casa no Brooklin, até chegar aqui nesse prédio que estamos dentro do campus da USP São Paulo?

Olha, quando eu ainda era estudante da faculdade, fiz um concurso na USP para trabalhar no IEB (Instituto de Estudos Brasileiros), onde trabalhei por sete anos. Mas, naquelas alturas, eu já tinha casado, minha filha tinha nascido, e eu pedi uma licença no IEB, porque naquela época não existia berçário onde você pudesse deixar um bebê. Eles negaram minha licença, e então eu pedi demissão.

Isso foi quando?

Isso foi em 1975. Eu pedi demissão e trabalhava para uma editora, fazendo tradução e revisão de livros. Quando minha filha cresceu e entrou na escolinha, eu tinha uma amiga que era professora aqui na USP e trabalhava no Mindlin que me perguntou se eu tinha vontade de trabalhar com ela. Eu já tinha ouvindo falar nele, obviamente, mas eu não tinha ideia do que era aquela biblioteca. Então fui à casa dele um dia à tarde para passar por uma entrevista – que eu achei que não ia dar certo, porque ele me perguntou, de imediato, se eu era bibliotecária, e falei que não, que era pedagoga, e ele falou, “você sabe fazer ficha?”, e eu falei, “mais ou menos” [risos]. “Você gosta de fazer ficha?”, e eu falei, “nem um pouco”. Aí eu pensei, “bom, agora ele vai dizer ‘pode levantar e ir embora’”. Então ele disse, “o que agrada você acima de tudo?”, eu falei, “ler”. Ao que ele falou, “pronto, agora podemos começar a conversar”. Esse encontro foi em uma quinta-feira, e na segunda-feira seguinte eu já comecei a trabalhar na biblioteca. A Alice (minha amiga) ficou lá durante mais ou menos dois anos e foi embora, e eu fiquei trabalhando sozinha durante uns vinte anos. Era só eu. Depois, entrou uma moça, que foi me ajudar com as revistas – porque a gente tinha uma coleção enorme de revistas – e, depois de muitos anos, entrou uma outra pessoa, que foi trabalhar com o arquivo pessoal do Mindlin, que ficou lá na biblioteca durante uns cinco anos. Quando a biblioteca foi doada para a USP, eu fiz concurso para poder acompanhá-la, porque eu era a única pessoa que conhecia o acervo; não tinha ninguém aqui, além de mim, que conhecesse a biblioteca. O Mindlin acreditava que era muito simples. A biblioteca vinha, e eu vinha. E eu disse para ele que não era bem assim…

A Biblioteca foi incorporada pela USP antes de o prédio ser construído?

A doação envolvia a construção do prédio. Mas o processo da doação em si foi uma coisa que durou dez anos. Foi muito a longo prazo. E, depois, a construção do prédio também demorou muito. Foi a última coisa e não foi feita com verba da USP, a não ser na fase final. Foi feita com captação de recursos. O processo da doação começou na gestão do Marcovitch, que era o reitor na época, aí passou por mais quatro reitores e terminou na gestão do Rodas. No final, quando a verba acabou, o Rodas bancou a finalização da obra, e nós terminamos o prédio.

E como você acha que o novo prédio influenciou o seu trabalho?

Minha relação com os livros não mudou, mas meu convívio com os livros é completamente diferente aqui do que era na casa do Mindlin. A construção no Brooklin era completamente diferente, era uma coisa muito mais intimista, os livros ficavam muito mais perto… Eu trabalhava no meio deles. Quando o pesquisador ia à biblioteca, ele não mexia nas estantes, mas sentava no meio dos livros. O Mindlin tinha uma relação com livro que, quando alguém ia lá conhecer a biblioteca, ele tirava o livro da estante, colocava na mão da pessoa e dizia, “pegue, leia, olhe, folheie, porque livro existe para ser manuseado”. Ele tinha uma visão um pouco diferente da maioria dos colecionadores. Já aqui na USP existe um distanciamento, quer dizer, os livros estão protegidos dentro de um anel, que tem acesso muito restrito. O anel tem controle biométrico de acesso, então só o meu dedo e os dos três bibliotecários, além do especialista em pesquisa, abrem as portas. Nem os diretores têm acesso ao anel. Os livros ficam ali dentro, protegidos e guardados. Na biblioteca do Brooklin, era uma relação muito mais afetuosa, digamos assim, do que é hoje, embora eu reconheça que é necessário isso, porque agora a gente está num órgão público, não está mais numa casa de um colecionador.

Como foi o processo de digitalização do acervo?

O processo de digitalização começou a ser feito antes da mudança, ainda na casa do Mindlin. Foi comprado um robô da Kirtas, um robô automático, que a gente chamava de Maria Bonita.

Por quê?

Porque todos os servidores da biblioteca tinham nomes de cangaceiros: Corisco, Sabino, Lampião… Quando esse robô da Kirtas chegou, ele era muito fresco, tudo era delicado, sensível, e aí a gente achou que ele era muito feminino e colocamos o nome de Maria Bonita.

Isso aconteceu uns três anos antes da mudança para cá (campus da USP). Ela era uma máquina que digitalizava o livro sozinha, virava a página do livro sozinha, mas a gente usava mais esse recurso quando era um livro moderno ou um livro muito antigo, de papel de trapo, porque o papel de trapo é muito resistente, permite que a máquina o manuseie com muita facilidade. Com os livros do século XIX, a gente não fazia isso, porque papel de celulose é muito frágil, então o trabalho foi feito manualmente. Montamos um esquema de fazer uma seleção do que seria digitalizado, com alguns critérios, uma mescla de livros de História, de Literatura… Começamos basicamente com o século XIX e, depois, digitalizamos obras mais raras dos séculos XVI, XVII. Um pouco antes da mudança para a USP, esse processo de digitalização foi interrompido, porque, na época, quem havia assumido a direção da biblioteca – o Mindlin já tinha morrido – emprestou as máquinas para se fazer uma digitalização para o SIBi, aqui na USP. Então elas ficaram, durante dois ou três anos, na Poli, e foi uma fase que, para nós, foi muito difícil e muito incômoda, porque as coisas não foram feitas de uma maneira muito clara.

O empréstimo?

Pois é, a gente não conseguia reaver as máquinas. Foi um processo. Aí, quando elas voltaram para a biblioteca, vieram para o laboratório de digitalização e, depois de uns dois anos, nós compramos mais três máquinas mais modernas. Atualmente, temos sete máquinas de digitalização.

A digitalização não é uma coisa tão simples, porque o livro tem que sair da estante, passar primeiro pelo laboratório para higienização, onde ele é todo limpo a mão – porque, se o livro for colocado em um equipamento sem limpeza, ele libera muita poeira, e isso compromete a máquina. Depois disso, ele vai para a digitalização, após o que passa por um tratamento de aparar as imagens e, depois, por um tratamento de OCR, que é o programa que permite que você faça busca por palavra no texto digitalizado. Então, se você pegar uma digitalização nossa e quiser, por exemplo, procurar a palavra “casa” no texto, é só você digitar e ele vai procurar no livro inteiro a palavra “casa”.

A última fase é pegar esse arquivo e colocá-lo no site. É um processo relativamente lento. Costumamos fazer quinze livros por semana. Não é muito – aliás, é bem pouco. E tem uma questão, que eu acho que é o maior agravante, que é o fato de você só contar com estagiários para trabalhar nessas máquinas. Porque, aqui na USP, você deve saber bem disso, é difícil conseguir montar uma equipe de estagiários e, principalmente, conseguir manter esses estagiários por um longo período.

Difícil pela burocracia ou pela falta de verba?

Pela falta verba. Às vezes, quando contratávamos, conseguíamos um estagiário só de 10 horas. Isso é muito ruim, porque é muito pouco tempo, e esse estágio dura somente 6 meses, quer dizer, a cada seis meses você tem que treinar toda a mão de obra novamente.

Durante dois anos, tivemos o apoio do BNDES, porque, quando construímos o prédio, o BNDES tinha muito interesse em participar do projeto. O que eles poderiam fazer para a BBM? Doar equipamento, doar mobiliário – todos esses móveis lindos de design brasileiro a gente comprou com verba do BNDES – e, também, financiar estágios e algumas bolsas.

Para nós, foi ótimo. Nessa época, existia uma bolsa que mantinha a uma conservadora no laboratório, mas, mesmo assim, a gente ficava o tempo inteiro empenhado em ter uma vaga aberta para um concurso para ter uma conservadora da biblioteca, porque essa pessoa que estava aqui era temporária. Não conseguimos que nenhum concurso fosse aberto, mas conseguimos uma coisa muito mais interessante, que foi uma permuta entre instituições. Existia uma pessoa que era especialista em restauro de fotos e que trabalhava no SIBi. Ela queria sair do SIBi e queria vir para cá. O SIBi não estava muito interessado em ceder, mas acabamos conseguindo que essa pessoa passasse a ser funcionária da BBM e, atualmente, ela é nossa conservadora.

Qual é o percentual de livros digitalizados, em relação ao acervo da biblioteca?

Existem, mais ou menos, uns 4,5 mil livros digitalizados. A biblioteca tem 60 mil livros. Mas, obviamente, a gente não vai poder digitalizar tudo, porque existe a questão de direitos autorais. Só digitalizamos e disponibilizamos na web o que está em domínio público. A única maneira de você digitalizar uma coisa que não está em domínio público é digitalizá-la apenas para consulta interna, sem disponibilizá-la na web.

Então, apesar da existência da internet e de todo o acesso que ela nos permite, ainda faz muito sentido o leitor vir até a biblioteca, porque ele vai ter um acesso a muito mais coisas.

Pois é. Bem no início da mudança para a USP, o Mindlin tinha, na biblioteca dele, uma coleção praticamente completa das obras do Vinicius de Moraes. Aí a família do Vinicius entrou em contato conosco e perguntou se nós não queríamos digitalizar todos os livros, que eles dariam autorização para isso. Nós digitalizamos todos os livros do Vinicius, e eles ficaram durante seis meses no ar. Aí, uma hora, um membro da família resolveu que não queria mais, “não brinco mais, não quero mais”. Ele criou tamanha confusão que, enquanto a família ficava batendo boca, nós resolvemos tirar todos os livros do ar. Quando fizemos isso, recebemos uma tonelada de reclamações. A partir disso, não colocamos mais nenhum livro que tivesse problemas de direito autoral – mesmo que tivesse autorização de um herdeiro.

Como é a sua relação com os livros digitais?

Leio muito no iPad, mas todo livro que eu leio no digital eu compro a versão física também. Tenho uma biblioteca em casa, então é difícil não ter o livro físico.

Mas, depois de ter lido no iPad, em algum momento você vai até o livro físico?

Ah, vou. Muitas vezes. Se eu quero reler o livro, ou se eu lembro de alguma coisa que eu li naquele livro, eu vou procurar no livro físico. Uma citação que eu queira usar em alguma coisa, eu vou no livro físico, não tem jeito.

Você acha que existe alguma diferença de leitura entre ler no papel e ler no iPad?

Toda. O conforto de deitar na cama com o livro aberto, você vira de lado, vira de outro… A luz do iPad me incomoda. Quer dizer, quando você está lendo um livro físico, você tem que acender a luz, então você usa o abajur, e tudo bem. O cheiro do livro – o iPad não tem cheiro, o Kindle não tem cheiro. O prazer de virar a página, de ir e voltar, o tato mesmo. É tudo muito diferente.

Qual você acha que é a importância dos livros nesse mundo tão raso que estamos vivendo, de informação tão superficial?

Bom, o livro não tem fake news, né? [risos] Começa por aí. Mas eu não consigo imaginar jamais um mundo que não tenha livro. Para mim, é fundamental, em todos os aspectos. Na educação, no prazer, no lazer, em qualquer coisa o livro se encaixa. Uma vez, perguntaram para o doutor José, “se você tivesse que ficar numa ilha, o que você levaria?”, e ele falou, “livros”. Ele só queria os livros. Comida, água – ele nem pensava nisso.

E como que você vê hoje esse mundo da informação que a gente está vivendo, de informação instantânea e fake news?

Acredito que não podemos ficar à mercê desse tipo de informação, porque senão enlouquecemos. A quantidade é tamanha que você não consegue abarcar tudo que está disponível na internet. Mas é muito fácil quando você pode confiar numa fonte que vai te dar uma resposta adequada. Claro que também tem tudo que é bobagem, que é mentira, que é lorota que está por aí.

Não acho que os livros vão deixar de existir, nem que o mundo digital vá deixar de existir. Acho que as duas coisas vão coexistir. Eu vou morrer, outra geração vai vir, e essas duas coisas vão continuar coexistindo. Enquanto existirem bibliotecas por aí, gente que gosta de livro – e vai sempre ter alguém – irá atrás delas.

Você participou de alguma maneira da construção do prédio?

Total. Éramos uma equipe com dois arquitetos, o diretor da biblioteca, eu – que era curadora da biblioteca –, uma moça que fazia captação de recursos… E, desde o começo, eu participei.

Às vezes, fico pensando que, se não houvesse falado algumas coisas durante o processo todo, não sei o que teria acontecido. Por exemplo, quando o Rodrigo (Mindlin Loeb) e o Eduardo (de Almeida), os arquitetos, me deram o projeto, eles falaram, “olha e vê o que você acha que precisa mexer, se você quer alterar alguma coisa”… Fiquei olhando aquele projeto, e uma hora eu chamei o Eduardo e falei, “Eduardo, que parede é essa aqui?”, e ele falou, “essa parede é do fundo da biblioteca”. E eu falei, “e o que tem aqui do lado?”, e ele disse, “banheiros”. Eu falei, “você acha que vai poder colocar uma parede com encanamento fazendo limite com a biblioteca no mesmo lugar?”. Aí foi feita uma alteração. Realmente, foi uma alteração que foi fundamental, porque jamais poderíamos colocar uma parede limitando estantes que tivesse encanamento passando dentro.

E em relação à disposição dos livros, como eles ficam dentro dos anéis, você teve envolvimento nisso também?

Os livros ficaram exatamente como eles ficavam na casa no Mindlin. Eles vieram e foram arrumados aqui tal e qual eles ficavam na biblioteca do Brooklin.

A casa tinha sua estrutura original. Depois, um prédio de dois andares foi construído em 1965, em uma parte do jardim. Depois, em 1985, foi feito mais um prédio de dois andares ao lado desse. Algumas coisas foram anexadas à construção original da casa. Tinha uma casa que tinha sido alugada do outro lado da rua, onde ficavam as revistas. Depois, um apartamento desse lado de cá foi comprado, onde ficavam os livros que estavam chegando, os livros novos. Aí a casa também ganhou algumas salas, o laboratório de restauro da dona Guita, um quarto – que a gente chamava de “quarto do caos”, porque, quando as coisas chegavam, eram enfiadas lá dentro. Tinha livro na casa inteira, menos na cozinha e no banheiro. Na cozinha ainda tinha livro de culinária.

A única coisa que foi remanejada na mudança é que os primeiros livros da biblioteca ficaram na sala da casa. Tinha uma estante que era de livros de Literatura, outra de livros de História, outra de livros de história do livro… Então todos esses livros de brasiliana saíram da sala da casa e foram para esses dois prédios da biblioteca. Literatura entrou junto com Literatura, História entrou junto com História…

Eles foram todos numerados, com um papelzinho que ficava dentro do livro em pé, e com cores diferentes. Literatura era rosa, História era azul, Arte era verde… Então, aqui na USP, temos, no primeiro andar do anel, a biblioteca do Rubens Borba de Moraes, que é um conjunto enorme, que foi uma biblioteca que foi doada em testamento ao Mindlin. Nesse andar, também ficaram os viajantes todos, os jesuítas, manuscritos e originais literários e, depois, toda a parte de História. No segundo andar, tem Literatura, que pega mais da metade do anel, e os livros de Sociologia, de folclore… No terceiro andar, tem os periódicos, os livros de Arte e as obras de referência. E aí tem, no arquivo, que é no subsolo, os fundos de arquivo da biblioteca, onde estão os fundos do Mindlin, do Rubens Borba de Moraes, do Vicente do Rego Monteiro, do Francisco de Assis Barbosa, da Zila Mamede, do Cunha de Leiradella…

Vocês ainda fazem aquisição? Ou só recebem doações?

Aquisição é mais difícil, porque obra rara custa caro, muito caro, não temos verba para isso. Temos verba para comprar livro novo, uma verba pequena que vem do SIBi, então compramos livros para pesquisa, dicionários, essas coisas. Geralmente, as editoras pedem para usar algum livro nosso para fazer uma edição fac-similar, ou para fazer uma 2ª, 3ª, 4ª, 5ª edição… Então elas mandam para nós dois exemplares. Esses livros todos, quando chegam, não ficam no anel. No anel está exclusivamente o que veio da casa do Mindlin. Eles vão para o subsolo. No subsolo, nós temos uma reserva técnica para 90 mil livros, então temos muito espaço para a biblioteca crescer.

Houve uma vez que – foi uma coisa muito rara que aconteceu, mas aconteceu, graças a Deus – um empresário telefonou dizendo que iria acontecer um leilão aqui em São Paulo de livros de brasiliana que era da Fólio, uma livraria que faz leilão, um antiquário muito bom, e que tinha livros bem interessantes. Ele disse que tinha muito interesse em fazer uma doação para a biblioteca, [e perguntou] se eu podia ler o catálogo e selecionar coisas que fossem importantes para nós. O catálogo era realmente fantástico. Ele me mandou o catálogo no fim da tarde e falou, “o leilão é amanhã”. Então eu varei a noite lendo esse catálogo. E aí, logo de cara, eu achei um livro que foi o primeiro da minha lista – porque nós temos uma coleção das obras de um editor do Maranhão chamado Paula Brito, com todas as obras, menos um livro, e este foi o primeiro que eu achei nesse catálogo: Iracema de Itamaracá. Foi o primeiro que eu botei na minha lista. Depois, eu percebi que o catálogo também tinha uma série muito grande de livros sobre a Guerra do Paraguai. Como eu tenho banco de dados no computador da minha casa, eu pude comparar o que a gente tinha e o que não tinha. Aí eu fiz uma lista de livros da Guerra do Paraguai que completava nossa coleção e, depois, incluí obras de alguns viajantes, que eram importantes e que a gente já tinha, mas eram edições diferentes. Então eu falei, “olha, eu fiz uma lista grande, você decide o que você quer doar, e a lista está em ordem de prioridade”. Ele doou a lista inteira.

Isso é assim: acontece uma vez na vida, outra na morte. Houve um outro caso que alguém ofereceu um livro que era importante para nós, e aí eu liguei para alguns dos amigos do Mindlin, que eu conheço todos: “você não quer fazer uma doação para a biblioteca?”, “ah, eu faço”. Mas não é comum.

Quais são os livros mais raros que existem na coleção?

Difícil dizer, mas tem algumas joias. Por exemplo, temos a 1ª edição do Hans Staden, de 1570. Doutor José levou anos e anos procurando essa edição, e conseguiu comprar em Londres, se não me engano. E ainda, por sorte, o exemplar que ele encontrou tem encadernação feita na época, de 1570. Uma encadernação de couro de porco, toda em relevo. E a pessoa que possuía esse livro encadernou três romances de cavalaria alemães – porque o texto do Hans Staden é em alemão –, então tem o livro do Hans Staden, depois tem um romance sobre um viajante persa e um romance de viagem na África – esses títulos eu não me lembro, mas são todos romances de cavalaria superimportantes. Não são de Brasil, mas o Hans Staden é de Brasil, e ele é o primeiro na série.

Esse é um livro muito importante, porque ele foi muito, mas muito publicado assim que o Hans Staden o lançou. Saíram várias edições. Ele foi tão publicado que, quando saiu em Marpurg em 1557, saiu uma edição em Frankfurt no mesmo ano. O Hans Staden havia ilustrado todo o livro a mão – são xilogravuras das aldeias, dos índios comendo braço, comendo gente, as praças de aldeia, as caravelas chegando e saindo do Brasil… Mas o editor de Frankfurt não tinha as matrizes das ilustrações dele, então resolveu ilustrar o livro usando ilustrações de uma viagem ao Oriente, de um autor chamado Varthema. Então, nessa edição alemã, só tem gente de burca. Temos essas duas edições aqui.

Uma outra rara que temos é a edição da Marília de Dirceu publicada no Brasil em 1810, que só existem quatro exemplares no mundo. Ela é muito mais nova do que a 1ª edição portuguesa, que é de 1790. A 1ª brasileira é de 1810, mas é infinitamente mais rara. Tanto é que o doutor José e o doutor Rubens, que era esse que doou a biblioteca para o Mindlin, procuravam esse livro a vida inteira. E aí o Rubens dizia para o doutor José, “se um dia você encontrar, não me conta, porque senão eu vou ter um infarto”. Aí, um dia, um colecionador de Minas estava na biblioteca, foi visitar o Mindlin e perguntou – colecionadores têm uma mania que é engraçada: se eu sei que você não tem determinado livro, então eu vou perguntar exatamente desse –, ele chegou para o doutor José e perguntou assim, “você tem a primeira edição da Marília de Dirceu publicada no Brasil?”, e ele respondeu, “claro que não! Eu não tenho e ninguém tem”. “Pois eu tenho”. Aí o doutor José falou, “não, você está brincando”, e ele falou, “estou falando sério. Quando você for a Minas, vai à minha casa que eu te mostro”. Aí, claro, na mesma semana o doutor José voou para Minas para ver o livro. Esse amigo falou assim, “sua mulher é restauradora, né?”, aí o doutor José falou que sim, “então leva e fala para ela restaurar o livro”. O livro estava perfeito, mas ele tinha, na página de rosto e na primeira e segunda página, alguns furinhos de bicho, mas não comprometia o texto. “Leva para ela, pede para ela limpar, arrumar, costurar de novo” – que estava descosturado – “e, se ela arrumar isso, o livro é seu”. Aí o doutor José nem acreditou. Trouxe, entregou para a dona Guita e falou “olha, Marília!”. E a dona Guita levou seis meses restaurando esse livro. Ela desenhou uma máquina especial para a refibragem do papel e tudo, e fez o livro inteiro. O doutor José, em troca, deu de presente para ele, já que ele era mineiro, documentos dos Autos da Inconfidência. Então ficou uma troca da Marília pelos inconfidentes.

O livro mais antigo aqui da biblioteca é de 1508, chamado Itinerariū Portugallensiū, de Fracanzano Montalboddo, e tem também os livros do viajante do Carl Friedrich Philipp von Martius. Ele veio para o Brasil e publicou os livros da viagem toda dele e, também, livros sobre a flora brasileira. São 41 volumes de flora. Todos ilustrados. E aí tem 18 volumes de viagem, sendo que três descrevem a viagem e os outros sobre animais – pássaros, peixes, lagartos, cobras, tudo colorido a mão. Aí depois tem os álbuns, que pesam uns 10 kg cada um, sobre palmeiras do Brasil – partes das palmeiras, semente, caule, tronco, depois a palmeira dentro do habitat dela na floresta… E tem macacos, também. E o nosso exemplar é o exemplar que pertenceu à imperatriz Maria Luísa, com os brasões dela nas lombadas.

Para digitalizar, vai dar trabalho. A pintura dos livros dele, nos grandes formatos, era feita em série, ficava numa mesa bem grande, com vários pintores, e cada um pintava uma cor – um pintava o marronzinho da palmeira, outro a folhinha verde, outro o verde-escuro… Era uma produção em série.

E quais são os objetos de desejo da Biblioteca Brasiliana?

Cultura e Opulência do Brasil, do Antonil. A 1ª edição, que não temos. Eu acho que esse é o livro que a gente mais queria. Talvez um exemplar de A Divina Pastora, que só existe um também.

E vocês sabem onde está a 1ª edição?

Não existe. Não está nem à venda em algum lugar.

Então é um desejo inalcançável.

Não, pode ser que apareça. O Cultura e Opulência do Brasil deve ter uns quatro exemplares no mundo. Todos eles estão em instituições, então não vai sair de nenhuma instituição para ser vendido.

Na casa do Brooklin funciona o que hoje?

É uma escola de criança pequena. A casa não era gigante. Ela tinha muito espaço para os livros, mas a casa em si era normal, com três quartos. Tinha um terreno muito grande, um jardim super bonito… A escola está instalada nos prédios que foram sendo construídos ao longo dos anos para receber os livros. Hoje, a escola fica no prédio onde eu trabalhava.

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Atlas Mnemosyne: busca infinita por arquivar imagens e pensamentos

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As imagens construídas pela humanidade, por seus artistas, desaguam com ímpeto na memória. Segurar a lembrança, deter o encantamento, sentir o deslocamento do olhar por imagens, as quais vislumbrem interpretar o mundo, é recurso ontológico do arquivo. O fio que tece e costura os meandros da expressão humana é imaterial, subjetivo, gira em torno da experiência sensível da apreensão sobre o vasto e indomável território dos sentidos. A estética de modo dual permeia as relações não aparentes e as lógicas iconográficas.

O gesto em arquivar, em domar o tempo, o espaço das coisas criadas a partir da arte, deixa-se espelhar pela força heurística, seja do plano da imanência da consciência (desta construção do saber) em conjunção com a fluidez efêmera do encontro com o visível. Seria o arquivo, portanto, a transposição da existência das coisas propriamente representadas, ou mesmo criação do objeto (da cultura, da linguagem, das imagens elaboradas como ideias)? O arquivo discorda de sua própria hegemonia de ser inconteste, de ser o espaço de um tempo remoto. A discórdia é uma particularidade desmistificadora do estado de existência. A primazia da discórdia, nesse caso, faz-se por inconfidência e insurgência ao criar movimentos de articulação em si num tempo novo, num lugar de destreza com fronteiras porosas.

O que poderia e parece ainda hoje fugir do provável, no sentido de pensar um arquivo de possibilidades infinitas pela ideia da constituição de um volumoso atlas, trata-se, no entanto, de algo real. O inexorável e antológico Atlas Mnemosyne (1924-1929), obra capital (e inacabada) do historiador da arte alemão Aby Warburg (1866-1929), reflete essa busca complexa sobre o pensamento visual. Tal como estendesse o braço para Mnemósina, deusa grega que representa a memória e cujo significado é lembrar-se, o historiador criou algo de princípios e proporções legendárias, ligados diretamente a operar a natureza do arquivo através de pesquisa incessante de imagens da arte e da cultura. Suas articulações por colagens e montagens, ao eleger determinadas obras, visavam principalmente discutir as intermitentes perspectivas de significados e símbolos. Vale lembrar o filósofo alemão Goethe, ao refletir que a viagem estética é também a busca de uma herança. No caso de Aby Warburg, ela se dá sem a determinação da palavra, da expressão verbal, mas com uma profunda viagem pelas imagens.

O método do iconologista era claro. Seu interesse era norteado pela arte da Antiguidade Clássica e do Renascimento Italiano. De tal maneira, por meio da execução de vários painéis (até antes de sua morte, deixou um conjunto de cerca de 63 painéis), Aby Warburg agrupou por temáticas um verdadeiro inventário a partir de ícones da história da arte, fotografias, desenhos, signos ancestrais e reprodução de textos. Enfim, elementos visuais para a compreensão estética e criadora da percepção do homem a respeito do mundo, assim como da mente humana ao desencadear-se por associações imagéticas.

Aby Warburg coloca a complexidade do saber por imagens que dialogam diretamente com a memória (seja individual ou coletiva) como o centro, o lugar onde ocorre o processo de criação e, por conseguinte, o pensamento. Para ele, a imagem da memória tem certa fase de guarda consciente nas representações, que se pode definir como “o modo simbólico do pensamento”.

Entre seus tantos desejos intelectuais de investigação, o Atlas Mnemosyne revela, em seu incansável colecionismo hermenêutico de imagens – por associações, aproximações, semelhanças e diferenças –, narrativas simbólicas pela estética. As reproduções fotográficas das obras reunidas por grupos em painéis configuram certo corpus de alinhamento, no qual perfilam realidades temporais e atemporais na discussão da ciência, religião, astrologia, antropologia, filosofia, sobre magia, atitudes psicológicas, desejos, o dionisíaco… A extensão das leituras visuais é incomensurável, de modo que não há como finalizar tais relações em seu Atlas. Não há margens, barreiras de contenção. Era comum Warburg estabelecer novas configurações, ramificações, rizomas; imagens que trasladavam de um painel a outro. Para o historiador, era justo em novas configurações que os sentidos se oxigenavam e se ampliavam. Assim, cada imagem nunca era fixada definitivamente, pois seria impossível mantê-la em um só contexto.

Espontaneamente, o Atlas Mnemosyne constituía, num sopro poético, a dinâmica das constelações, da espacialidade possível de desfiar novos significados, infinitas repercussões para reflexão. Antiguidade oriental, antiguidade ítalo-meridional-árabe, imagens de planetas, ninfas, Ghirlandaio, Botticelli, Ovídio, Laocoonte se misturam e dialogam entre tantas outras referências. Tentar compreender o Atlas precede também interpretar o pensamento de seu criador através das constantes temáticas em oposição, associações e recorrências. Fernando Checa, historiador da arte, ajuda a sintetizar a tão vasta obra de Aby Warburg. “A finalidade do Atlas foi de explicar, através de um repertório muito amplo de imagens, e outro muito menor de palavras, o processo histórico da criação artística no que hoje denominamos Idade Moderna, sobretudo em seus momentos iniciais do Renascimento na Itália, centrando-se em alguns aspectos essenciais de final do século XV em Florença e procurando seus fundamentos na Antiguidade.”

De tal forma, o arquivo, como meio, reunião e preservação, é também protagonista de algo substancial – isto é, de um tempo que se habita não pelo passado, pela cronologia, mas pelas frestas e lacunas da expressividade artística. São germinados, assim, espaços para a imaginação. Nesse limiar do entre-imagens, que encontra na dialética o arcabouço mais condizente, Aby Warburg concentrava seu olhar na dicotomia ente o eu (a subjetividade) e o viés do fora, o mundo (em sua objetividade). O que o historiador define como “o ato fundamental da civilização humana” nos faz refletir sobre como a criação artística coloca em suspensão símbolos passíveis de ressignificação a cada montagem, entre as cerca de 2 mil imagens depuradas por Warburg.

O arquivo passa a ser, para o pesquisador ou qualquer artista, exercício narrativo, num fluxo de desterritorializar zonas de conforto, cujo tempo e espaço se agarram organicamente. O encanto em ampliar os símbolos, que perscrutamos diante do arquivo, é um dos pontos inquietantes para avançar na compreensão de metáforas e antíteses.

Em Mnemosyne, Warburg relata, pelas imagens, os primórdios da história ocidental, que ele nomeia de “diversidade de sistemas de relações nas quais o homem se encontra envolvido”. Ciente do quão inesgotável é aproximar imagens por suas diferenças ou distinções, ele não almejava sintetizar nem descrever, mas provocar, como situa o próprio Warburg, o encontro de certas relações íntimas e secretas, correlações no saber transversal ad infinitum da relação complexa entre história e imaginário. A aposta, como diria o filósofo Georges Didi-Huberman, inerente ao Atlas de Aby Warburg possuía, dentre suas inclinações, um sentido conotativo e imaginativo em busca de montagens. “O atlas é uma forma visual do saber, uma forma sábia do ver.”

Aby Warburg deixa em seu legado não apenas um profuso arquivamento de imagens, mas sobretudo o acontecimento da hibridez, do poder da montagem por descobertas, um ponto de partida e acolhimento das coisas que se espalham pelo mundo e pela filosofia do sensível. Ideias que, representadas, transcendem a realidade através da imaginação, dos signos e dos significados. Esta foi a magia epistêmica de Aby Warburg: um atlas para ser mais horizonte do que superfície.

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“Todas as coisas pelas quais me sinto atraída estão prestes a desaparecer”, afirmou certa vez Tacita Dean. A artista tem, de fato, um fascínio pelo limiar da ruína, notável tanto no mote de suas obras quanto nos próprios suportes de que ela se utiliza. Estes servem como forma de resistir e, ao mesmo tempo, refletir sobre a essência por trás da construção de toda e qualquer memória: o desejo de combater a própria ameaça do tempo, do esquecimento. Dele surge a criação de arquivos, a consagração de lugares e as efemérides. Não à toa, o uso do filme, por seu caráter documental e ao mesmo tempo ilusionista, tornou-se uma das maiores ferramentas de Dean.

Essa escolha fez com que a britânica nascida em Canterbury (1965) venha sendo enquadrada por críticos como nostálgica diante de uma inevitável supremacia digital. Dean, que é considerada uma das artistas mais importantes de seu país e que só este ano ganhou mostras no Pompidou (Paris, França) e no Shrem Museum of Art (Califórnia, EUA) e atualmente possui duas exposições individuais em importantes instituições (Still Life, que ocupa a National Gallery e a National Portrait Gallery até 28 de maio, e Landscape, na Royal Academy of Arts até 22 de agosto, em Londres), rebate a crítica dizendo que nostalgia é uma saudade de um tempo passado, quando seu trabalho trata do presente.

Ela considera tanto os filmes 16 e 35 mm quanto a pintura e o giz — presentes na grande maioria de suas exposições — meios que, se bem “seguidos” pelo artista, podem trazer algo totalmente inesperado, “um cachorro que cruza um campo seguindo seu próprio nariz”, como ela definiu ao The Guardian em março deste ano. Uma troca que não ocorre com a mídia digital, na qual “nada pode realmente acontecer que não seja planejado”, ela completou na mesma entrevista. Seu trabalho se efetua de maneira intuitiva, exatamente como ela descreve. Observá-la trabalhando concentrada em seu laboratório, em meio às milhares de fitas de negativo as quais ela corta, cola e pinta, um a um, confere uma coerente imagem a essa afirmação.

Sob a premissa de seguir o próprio meio até seu fim, a artista encena verdadeiros “réquiens” em loopings contínuos de quadros longos e lentos realizados com a câmera estática, conferindo uma atmosfera contemplativa aos seus filmes, que hoje já somam mais de quarenta, todos produzidos em 16 mm. Ela assume que a lentidão recorrente é, em parte, determinada pela evolução de sua artrite crônica, mas também deixa claro que, de longe, essa condição agrega qualquer significado a eles.

Em meados dos anos 1990, a britânica lançou uma série de filmes que traziam como pano de fundo a paisagem marítima — influência natural do mestre conterrâneo J. M. W. Turner, cujas pinturas eram dominadas pelo mesmo gênero —, sendo os mais notáveis aqueles que aludem à trágica desventura do velejador amador Donal Crowhurst, como Delft Hydraulics (que registra as últimas ondas produzidas num laboratório marítimo na Holanda) e Disappearance at Sea, ambos de 1996. Este segundo, que registra os últimos faróis da Inglaterra e da Escócia, foi o que fez a artista ser indicada, em 1998, ao Turner Prize, um dos mais importantes da arte contemporânea mundial.

De sua produção nos anos 2000, destaca-se Kodak, filmado em 2006 na fábrica da marca, a última a produzir filme 16 mm na Europa, em Chalon-sur-Saône, na França. Dean precisava de rolos para sua câmera e foi informada por um vendedor em Nova York que aquela era a única que ainda os produzia. Munida de seus cinco últimos rolos, ela decidiu gastá-los para registrar a fábrica, partindo da ideia de um filme que representaria “seu próprio estoque obsoleto em si mesmo (…), um meio que está prestes a ser exaurido”, como definiu para a revista Kultureflash. Em 44 minutos, Dean se vale tanto do preto e branco quanto da cor para apresentar close-ups do maquinário, sequências de seus já conhecidos quadros estáticos de espaços misteriosos, alternados com vistas abertas que capturam a rotina dos operadores, encerrando com uma imagem da área, já desértica, destinada à embalagem do produto.

Mais adiante, ela definiria a produção de Kodak como uma homenagem ao filme analógico e um lamento por seu desaparecimento, além de ser a captura de uma bela jornada que, se não estivesse em incipiente obsolescência, ela jamais teria o interesse em registrar. Sua paixão pelo esmaecer das coisas sempre a leva a criar essas belas despedidas. Esta acabou sendo uma ação premonitória da artista, que não tinha conhecimento de que a a fábrica anunciaria o fim da produção do filme 16 mm poucas semanas depois de sua visita. No ano seguinte, ela seria finalmente demolida. Kodak traz a mesma melancolia do limiar do desaparecimento presente em produções anteriores, mas acaba se sobressaindo por trazer como protagonista algo muito caro à artista.

Essa sensação de luto que envolve o prelúdio da perda pode ter sido também o que a motivou a examinar, nos últimos quinze anos, a terceira idade de artistas como o radical italiano Mario Merz — ao qual a artista atribui certa semelhança com seu próprio pai, falecido em 2010, aos 88 anos —, o coreógrafo norte-americano Merce Cunningham, bem como Julie Mehretu, Claes Oldenburg, Cy Twombly, entre outros. Uma série de nove deles estará na mostra Still Life, na National Gallery. Com eles, a artista parece completar sua mensagem ao mostrar que o filme pode servir como metáfora da vida: mesmo que por um breve momento possa se criar a ilusão de um tempo suspenso, todas as coisas ligadas a ele terão um começo, um meio e um fim. Quando um jornalista a questionou com qual frequência a “narrativa da jornada” levava à morte em seu trabalho, ela respondeu: “Bem, sempre. E esta é a parte mais aterrorizante.”

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Existe uma história a se contar toda vez que acontece um encontro. Há rastros desse encontro. Memória. Arquivo. Fetiche. Notícias humanas.

Em O Museu da Inocência, o escritor turco Orhan Pamuk, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 2006, narra uma história de amor impossível entre dois primos que acaba se transformando em uma adoração fetichista dos objetos relacionados a essa paixão. Na história, o protagonista coleciona obsessivamente coisas que foram tocadas por sua amada. Em paralelo, o escritor colecionou esses objetos, advindos de mercados de pulgas e casas de amigos. Objetos estes que estão abrigados no “Museu da Inocência”, em Istambul, em um espaço dedicado à memória dos personagens do livro.

Escondido perto da Avenida Istiklal, pulmão da moderna Istambul na costa europeia, um prédio vermelho abriga um museu curioso. No museu, não há paredes brancas, obras de arte famosas, tampouco objetos raros. Há uma coleção de objetos ordinários, comuns, rastros físicos de uma cena de amor – como, por exemplo, uma parede dedicada a abrigar mais de três mil cigarros dispostos em ordem com uma etiqueta de identificação. São pistas da angústia de um amor mal resolvido. O valor não está na natureza de cada objeto em si, mas sim em sua capacidade de despertar e trazer à tona todos os sentimentos e sensações ali colocados.

A criação do “Museu da Inocência” nos propõe uma reflexão profunda sobre o potencial dos museus em contar histórias nessa escala, de seres humanos individuais. Construções monumentais, que acabam distanciando o público, dariam lugar a cenários da vida real com objetos ordinários que lhe dão cor de vida – assim como nossas casas, a exteriorização do nosso universo particular, o lugar onde colecionamos aquilo que escolhemos, que colocamos a nossa energia e usamos de abrigo e proteção. Seriam nossos próprios lares os futuros museus?

Em seus estudos de Análise da Imagem, Walter Benjamin estabeleceu uma relação em que a imagem, como obra de arte, depende de sua aura, do seu valor de culto, da sua autenticidade e unicidade para existir. Relacionando esse conceito com o valor afetivo que colocamos em objetos tão próximos e presentes no nosso dia a dia, podemos considerar que tais objetos são dotados de aura e valor de culto. Uma releitura contemporânea do “ready-made” de Marcel Duchamp.

Se os museus são territórios de experiência e reflexão onde podemos repensar histórias e memórias, espaços que nos conectam com mundo, é urgente usar esses espaços para se aprofundar em universos particulares.

Os grandes museus sempre trataram de observar as civilizações, os Estados, a sociedade e os conglomerados, mas nunca o indivíduo em particular. Observamos as passagens históricas sem nos ater aos seus personagens, estudamos as guerras sem nos aprofundarmos a respeito da vida dos soldados que ali estiveram. O que sabemos sobre suas famílias, seus amores, seus desejos e medos?

Entrar no profundo do ser humano é compartilhar sentimentos e emoções em comum. É nos aproximarmos. Dar lugar ao íntimo em vez de abrigar a impessoalidade do coletivo é extremamente necessário para compreender o mundo de maneira mais humana. Assim, podemos mergulhar naquilo que há de mais singelo: nossas histórias pessoais, nossas memórias, coleções de uma vida dotadas de significado. Se há vida, há arte.

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Comecei com as cartas logo que me alfabetizei, aos sete anos, em 1969. Mamãe me ditava o que ela precisava dizer para o José Maria e, depois, colocava no correio. Suas cartas eram curtas, eu me lembro. E falavam, em primeiro lugar, de saudade. Diziam que, desde que ela o vira pela última vez… – e, aí, eu escrevia como escutava, em maiúscula: “Deus que te vi pela última vez…”

Em janeiro deste ano, comecei a fazer apresentações de minhas músicas nas casas dos amigos. Eu ofereço o show em suas salas e, depois, passo o chapéu. Nós chamamos essa série de shows de De Casa em Casa. Quando fizemos o De Casa em Casa no Márcio, na hora em que estávamos saindo, Edil disse que tinha uma surpresa. No caminho, acabei descobrindo-a: entre uma música e outra, ele iria ler as cartas que lhe mandei no fim dos anos 80 e início de 90. Eu não tinha ideia do que elas eram, mas, pelo entusiasmo dele em trazê-las para as músicas, pedi que já abrisse o show com uma.

Fiquei com um pouco de vergonha, achando uma bobagem todo aquele assunto que eu criava nelas – ocos, só pelo prazer de escrever e, então, perder um pouco de minha tristeza jovem. Mas o Edil disse que eram cartas de poeta e leu de um modo muito emocionado, bonito, porque ele é um poeta, e leu poeticamente, e chorou, porque não há outro modo de um poeta ler uma carta. Todos os amigos que escutaram a leitura acharam minhas cartas muito bonitas. E eu, mesmo assim, continuei não conseguindo ter ideia do que elas eram, mas também as achei bonitas, assim, com eles, no fluxo, na vibe.

Depois, em mais outros dois De Casa em Casa, Edil levou as cartas para ler, e comecei a perder aquela primeira impressão de que eram muito bobas, muito nada a ver. Comecei a sentir o quanto de verdade tinha em toda a fantasia que eu desenvolvia nelas. E entendi melhor por que a Vilma, naquele dia, na sala do Márcio, depois do show, depois da primeira leitura delas pelo Edil, veio me dizer que eu era um cara de fronteira e que eu só não enlouquecia porque escrevia cartas, fazia músicas e era artista.

Eu escrevo cartas desde menino, com os assuntos de mamãe, mas, quando fiquei adolescente e nos mudamos para Niterói, seus assuntos, além do que escrevia para seus irmãos, começaram a ser também os meus assuntos, para uma amiga de ginásio que tinha ficado em Cachoeiro. Depois, quando a nossa amizade acabou por conta da distância, eu escrevia para os amigos adolescentes daqui mesmo de Niterói. Quando me mudei para uma cidade do interior do estado do Rio de Janeiro, já um rapaz adulto, elas se intensificaram. As do Edil são dessa época, enquanto ele vagava por cidades do interior de Minas Gerais.

Escrevi para outros amigos, porque nós gostávamos desse negócio de manuscrever no papel, colocar no correio, esperar pelas respostas que vinham pelo carteiro. Era um entusiasmo isso. E o Edil ter levado suas-minhas cartas para ler nos shows me fez ver que elas foram, algumas vezes, o embrião de alguma música, um tema que, depois, virou música, como o tema de “Poltrona”, por exemplo, do meu disco Antigo (2013). Também me fez ver que, dentro dos limites do que me aconteceu na vida, elas também são o embrião dos livros que escrevi. No fim, os livros são como elas. Vou inventando o que dizer sobre mim e, aí, eles vão tomando esse aspecto meio ficção, meio verdade, por conta da fantasia com que me deixo envolver para contar uma coisa que é minha.

Penso que eu tenha herdado isso de mamãe. Ela, nas cartas para o Edil, está quase sempre presente, assim como nos livros e músicas. Eu adorei saber de uma carta que fala dos bolinhos que ela fazia e que comíamos na cozinha, fritos na hora. Nela, falo do meu desejo de que comer aqueles bolinhos continuasse como aquela lembrança que eu tinha, de olhar para as rolinhas ciscando a palha de arroz, quando eu não era nem mesmo menino, ainda bebê, e o sol era um sol branco, azul e dourado, inclinado sobre elas, as rolinhas. Só que o desejo não se realizou, não fosse a carta. As rolinhas estão até hoje pastando sob o sol branco, azul e dourado. Os bolinhos só estão na carta.

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por Revista Amarello

Conversa Polivox: Jards Macalé

#38 O Rosto Arte

A regra deste jogo é adivinhar

#28 O Feminino Cultura

por Léo Coutinho Conteúdo exclusivo para assinantes

#29ArquivoCulturaSociedade

Dois e dois são dois: Jorge Caldeira e Alexandre Villares

Jorge Caldeira, escritor, doutor em Ciência Política, mestre em Sociologia e bacharel em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, se encontrou, na Rua Líbero Badaró, no centro de São Paulo, com Alexandre Villares para conversar. Alexandre é arquiteto e urbanista por formação, pesquisa o ensino de programação em um contexto visual e trabalha como professor e educador de tecnologias e artes em diversas instituições. Ele é integrante de arteprog – arte e programação e foi editor convidado da Revista Amarello #27.

Alexandre Villares: Essas questões de arquivar as coisas estão cada vez mais interessantes. Tenho um amigo programador que foi estudar Biblioteconomia depois de mais velho, e ele fala que tem um problema, por exemplo, imaginem que o pessoal da saúde tivesse um funcionário chamado hospitalecário. Isso não funciona, porque teria o hospitalecário da administração, o hospitalecário… Mas a Biblioteconomia ficou com esse nome. O cara é um bibliotecário. Mas dentro da Biblioteconomia você tem todo um universo de especialidades e de discussões, como na saúde você tem as especialidades e tal…

JC: E arquivo tem também: se chama Arquivologia e o cara se chama arquivista. A diferença da biblioteca e de um arquivo é que na biblioteca você sabe o que tem em cada unidade, cada livro é uma unidade; no arquivo, não necessariamente. Às vezes, tem um monte de caixas e você cria as unidades do que está guardado, dependendo do tipo de material, de onde veio, etc. E existe toda uma ciência para fazer isso. E os arquivos existentes, eu uso muito – comecei a usar, como historiador, estudando em arquivos. Era basicamente papel, mapa e coisas do gênero. Então as classificações básicas tinham sido criadas para isso. Quando veio a imagem em movimento, o cinema, você quer arquivar um filme, mas o filme tem um timetable, que é descrito minuto a minuto. Já é uma coisa bem mais complicada de fazer. Para você saber o que foi guardado num vídeo, no arquivo de uma emissora de TV, a cada minuto, era complicado há vinte anos. Ainda assim, tudo tinha uma base física. A internet e a programação eletrônica criaram uma coisa difícil, porque não existe um original como havia o máster da fita que faz o disco, o negativo da foto, quando se usava negativo, e até mesmo o papel. E você não tem um testemunho confiável que liga aquele documento a alguma coisa, um fato. Isso quer dizer que, quando você pega uma certidão de nascimento, um papel, ela foi escrita para dizer que fulano nasceu naquele dia, então o papel liga um evento a uma pessoa de uma determinada maneira. Na eletrônica, é difícil, porque você até consegue guardar um e-mail, mas ele pode sumir facilmente na nuvem; a linguagem de programação muda, e começa a complicar. Mesmo as citações acadêmicas online que dizem “visto no dia tal em tal site”, você imprime aquilo para certificar, mas é uma certidão que não certifica nada.

Então você tem uma desmemória na eletrônica, ou uma desclassificação – no sentido de classificado, de arquivado, que não existe no eletrônico. Pelo menos não se sabe ainda como que isso vai ser feito.

AV: O pessoal está tateando. Eu vejo os bibliotecários com o problema de guardar obras de arte digitais e os suportes mudarem, quer dizer, o equipamento que rodava aquele programa que fazia funcionar a obra não tem mais manutenção. Então vários programas que sabiam ler aqueles arquivos não existem mais. Como é que você faz? Você consegue emular o programa, existe o archive.org, que fizeram um trabalho incrível. Um emulador de hardware que você pode emular computadores antigos que rodam os softwares que eles guardaram. Já é uma tentativa.

E eles tentam também guardar páginas de internet antigas, então, se um site sai do ar, você tem o que se chama wayback machine. Se eles guardaram aquela página, você consegue consultar mesmo que ela não exista mais. Muitos jornalistas usam isso em certas investigações. Você vai lá e vê como era a página do cara naquela época na data tal ou num período próximo. E quanto ao que você estava falando, dessa questão da ligação do fato a um documento, existe a ideia da assinatura criptográfica hoje em dia, que talvez, com o avanço dos documentos assinados digitalmente, você consiga pelo menos estabelecer que, em certo momento, alguém assinou aquele documento. Foi assim que resolveram, por exemplo, a questão da nota fiscal eletrônica. Todas as notas fiscais eletrônicas são assinadas criptograficamente, o que garante a integridade de cada uma, que ninguém vai forjar, mudar o valor da nota e as informações contidas nela. Então, talvez, para o futuro, se tivermos mais assinaturas criptográficas, ou pelo menos em algumas classes de documento, vamos conseguir ter alguma noção melhor da integridade documental digital.

JC: Lentamente, está se tentando criar um arquivo. O equivalente do arquivo físico. O arquivo físico é uma invenção do século XVII, XVIII. O primeiro arquivo foi o arquivo das Índias – o primeiro grande arquivo que guardou toda a documentação de toda a América espanhola. Ele fica em Sevilha. Eu não sei nem se ainda está aberto. Eu cheguei a pesquisar nele ainda no papel, nos originais. E eles fizeram algo que era uma criptografia simplérrima: cada sala tinha um nome, Buenos Aires 1, Buenos Aires 2, que é a documentação vinda de lá, e o armário, a prateleira e a caixa.

AV: Codificação da localização.

JC: Dessa maneira, eles guardaram bilhões de documentos, com uma chave de classificação muito simples. E a ideia era o quê? Era ter isso que você falou: alguma coisa que comprovasse uma coisa única, por exemplo, o juiz da cidade de Buenos Aires condenou aquele cara naquele dia tal, e aquele atestado ficava lá e era usado para os fins que o governo quisesse, vamos dizer assim, e depois virava um arquivo público, que todos podiam ver. Agora está tudo digitalizado, mas tinha o original que garantia autenticidade. Ao se recriar isso na internet, se repõe a possibilidade de fazer um arquivo. Quer dizer, na verdade, o que está na eletrônica não tem memória e, além disso, o dado eletrônico é perecível – uma folha de papel ruim dura 500, 300 anos, papel jornal dura 150, 200 anos.

AV: Arquivista gosta de papel. Papel dura.

JC: Sim, por exemplo, meus arquivos eletrônicos, para manter vivos eletronicamente, eu tenho que trocar o software regularmente, a cada dois anos.

AV: O CD, que a gente achou que ia ser uma mídia ótima de arquivística, é um lixo. Dez anos passam, e dá mil problemas.

JC: Mas é um rolo esse negócio. Porque, além de você ter essa coisa de criar a originalidade do documento e comprovar que aquilo é o original, ele tem que ser mantido íntegro, e manter íntegro na rede é um trabalho de Sísifo. Todo dia está morrendo uma linguagem de programação, algum formato, e os programas não abrem mais aquilo que antes abriam. Existiam programas extraordinários, mas, se o computador não roda mais o programa, você perde seus documentos.

AV: Nesse sentido, o software livre tem um pouco de vantagem. Por exemplo, eu usava o Freehand para ilustração editorial. A Adobe comprou a Macromedia por causa do Flash e matou o Freehand, porque queria vender o Illustrator. Os materiais que eu tinha do tempo de faculdade não abrem mais, porque o programa não roda nos computadores de hoje. Então, agora, a chance de resgatá-los é rodar um emulador de um Mac antigo para tentar rodar um Freehand velho e tentar abrir, para salvar em EPS. É importante pensar nessa questão dos formatos abertos. O software livre e os formatos abertos dão uma sobrevida a isso, porque o código que gerou o formato pode ser inspecionado, pode ser traduzido por alguém.

JC: Sim, mas ainda está muito longe de ser parecido com o que era o tratamento com documentação histórica num arquivo clássico. Falta mais ou menos tudo. É muito aquém. Como tenho muita documentação histórica arquivada, que usei para minhas pesquisas, tive que criar um programa de arquivologia que simula a ficha de um arquivo para linkar a esse programa.

AV: Você trabalhou com vocabulário controlado, com thesaurus? Como você faz a organização no seu arquivo?

JC: Não. Na verdade, vocabulário controlado e thesaurus são muito complicados de fazer, mesmo em arquivo. Porque você só pode fazer vocabulário controlado depois que você tem tudo classificado de alguma forma, não antes. O vocabulário controlado é o que você está fazendo em processo, enquanto você está entendendo o material já organizado.

Eu tenho praticamente toda a História do Brasil arquivada em documentos. Sei lá, umas 3 milhões de páginas de documentos históricos. A Biblioteca Nacional, por exemplo, tem 9 milhões na sessão de manuscritos. É bastante documentação. Cobre tudo. Desde as primeiras notícias do Brasil até coisas recentes, tiradas de vários lugares, vindas de várias fontes. Por isso, pesquisar nesse arquivo é algo complicado. Na verdade, acho que só eu mesmo hoje em dia consigo pesquisar nele, porque eu sei mais ou menos a história de tudo que está lá.

AV: Qual é o seu próximo projeto? O que vai envolver de pesquisa?

JC: Eu gostei do mundo digital muito cedo. Fiz um CD-ROM de História do Brasil em 1995, que era CD-ROM associado a site. A World Wide Web é de 1993. Mas, naquela época, eu já percebi que aquilo não era estável. Agora, acho que está começando a estabilizar. Está começando a deixar de ser, como eu dizia, empresas eviscerando, pedaços de coisas. E, enfim, não tem muito mais passado, vamos dizer assim, para eviscerar. Agora, eles vão ter que reconstruir. Por exemplo, o streaming já é a principal fonte de receita da indústria fonográfica. As pessoas agora estão começando a pagar pelo conteúdo – o que antes não faziam, porque pirateavam tudo. A Netflix está começando a produzir, quer dizer, está virando um estúdio. Antes, o cara da internet só passava para frente o conteúdo dos outros. Não produzia seu próprio, nem pagava para produzir.

Falei tudo isso porque, se isso se estabilizar, eu vou fazer tudo na internet, não mais em papel. Embora eu goste muito de escrever livro em papel, a rede estando mais estável torna-se um ambiente interessante para fazer as coisas diretamente dentro dela.

AV: Ah, tem uma noção que as pessoas têm da nuvem, que nada mais é que você colocar suas coisas no computador dos outros. É um jeito meio bobo de falar do computador dos outros, e aí o grau de confiança que você tem depende do grau de confiança que você tem nessas empresas e instituições. Quer dizer, quando colocamos um material na internet, precisamos pensar um pouco sobre a permanência dessas instituições. Não se sabe se daqui cem anos o Google vai existir, se a Amazon, que vende muito espaço de armazenagem, vai existir. Eu espero que, por exemplo, o pessoal do archive.org tenha permanência, porque eles fazem um trabalho importante.

JC: Ao mesmo tempo, o que orginalmente era aberto e colaborativo na rede ainda é o que anda, é o que sustenta ela, a base. As grandes empresas que estão sendo montadas flutuam em cima dessa base. Elas conseguiram achar nichos que dão muito dinheiro e conseguem vender informação classificada por um bom preço, quer dizer, o Google vende a informação de quem faz pesquisa para quem não sabe e está do outro lado querendo anunciar. Essa é a mercadoria dele. Então alguns conseguem fazer isso como mercadoria. Mas a rede ainda está pouco organizada como mercado, ainda é muito faroeste, selvagem.

AV: Agora, um ponto muito legal que você levantou é essa questão da colaboração, do crowdsourcing, que é essa capacidade que a rede traz para as pessoas colaborarem para criar recursos.

JC: Mas, na verdade, se o cara tem capacidade técnica, ele deveria receber. Uma das razões pelas quais eu não faço coisas na rede é que eu não sou rico para trabalhar de graça. Preciso ganhar a vida [risos].

AV: Mas existem mecanismos. Por exemplo, o pessoal do software livre encontrou mecanismos de remunerar o trabalho. O produto final é compartilhado livremente, mas você garante o ganha-pão de quem está produzindo.

Isso acontece de muitas maneiras. Tem pessoas que trabalham em empresas que se beneficiam de software livre, aí elas locam aquele funcionário para integrar ou parcialmente contribuir para a comunidade de software livre. Então o cara ganha para fazer o trabalho dele, mas o trabalho dele tem um impacto num software livre que, por sua vez, beneficia a empresa. A própria fundação Mozilla, que faz o Firefox, consegue doações e tem funcionários pagos fazendo o serviço deles. Então tem vários jeitos de se organizar. Uma ferramenta de programação que eu uso muito, voltada para as artes visuais, chamada Processing, é tocada hoje por uma fundação. E aí as pessoas que usam fazem doações – eu mesmo ponho muito pouco lá de doação, mas, como é uma ferramenta que eu uso, eu colaboro. E eles também conseguem doações de instituições que veem sentido nessa ferramenta. Então existem maneiras. Eu não sou muito especialista na questão de financiamento de software livre, mas eu posso dizer que é um ecossistema que tem crescido, então economicamente é possível.

JC: Meu primeiro trabalho foi fazendo enciclopédia físicas… Abacaxi, ábaco, abacate… até Z. Fazer isso profissionalmente é um negócio muito complicado. Porque uma enciclopédia é um conjunto de especialistas e um conjunto de pessoas com capacidade de divulgar o que os especialistas conhecem. Então eu escrevia o verbete de Física, e existia um físico que dizia “isso aqui é bom”, “isso aqui não é”, “isso aqui está certo”… Eu não entendia de Física e escrevia sobre Física, e isso só era possível porque tinha um físico que avalizava tudo. Iniciativas abertas como Wikipédia supõem que você, só porque tem a boa vontade de escrever, faz sem o físico. Não faz.

AV: Mas você pressupõe também que o físico vai olhar e falar “ah, isso aqui está errado” e vai corrigir.

JC: Supõe. Não aparece. Nenhum físico vai fazer isso.

AV: O Wikipédia é polêmico. Algumas validações foram feitas com especialistas, e dizem que a taxa de erros não é tão alta assim.

JC: Se você pegar um verbete “Coca-Cola”, não vai ter crítica à Coca-Cola.

AV: Alguns verbetes são polêmicos. Existe uma guerra de edição. Eles tentam evitar muito as polêmicas através de uma política do ponto de vista neutro.

JC: A certificação é baixa, porque acaba sendo um consenso meio sem pé nem cabeça. Se você pega um país como a França e lê o verbete de História da França, você não entende. Alguém escreve, outro edita, e vira uma maçaroca, e não uma coisa simples, sintética.

AV: Não tem um crivo, mas existem algumas regras – por exemplo, para estar na Wikipédia, precisa ter uma relação com um documento fora da Wikipédia. Você só pode mencionar uma coisa que foi citada numa outra obra publicada.

JC: Por isso que a enciclopédia antiga funcionava, porque era um cara que fazia isso. Na famosa enciclopédia Britannica de 1911, deram a filosofia para o Wittgenstein, e tudo que era relacionado. Aí a coisa toma rumo. Esse tipo de coisa ainda é muito difícil de conseguir dentro da rede. A rede tem muita opinião e pouca autoridade, ou nenhuma autoridade – o que é bom para a diversidade, mas não é bom para guiar.

AV: Agora está tendo outra guerra complicada, que é a guerra dos publishers das revistas científicas. Está vindo um movimento de open science e da publicação de artigos revisados por pares fora dos sistemas dos grandes publishers. Várias universidades na Alemanha resolveram parar de pagar a Elsevier (a maior editora de literatura médica e científica do mundo) e mudar a negociação de certos journals. Podem contar que nos próximos dez anos vai ter uma grande mudança a respeito disso.

JC: É, vai, mas isso, enfim, é rearrumar a autoridade na área. A autoridade de curador.

AV: E os fluxos de dinheiro e de funcionamento também.

JC: Sim, mas os fluxos seguem o que tem autoridade. Ninguém faz fluxo de dinheiro para onde não há autoridade.

AV: Mas eu acho que o Elsevier, no fundo, não tem autoridade. É aí que está. A autoridade está nos autores, não nesses intermediários. Eu acho que é por isso que eles vão morrer.

JC: Não é assim. Um dos problemas centrais da rede é o seguinte. Quando eu comecei a trabalhar em mídia, quarenta anos atrás, a autoridade da mídia vinha do fato de que muito pouca coisa passava pela máquina de imprimir. Para você fazer a revista Veja, existia uma máquina gigantesca que imprimia 400 mil vezes em três horas e ninguém mais conseguia fazer uma coisa naquela velocidade e espalhar tão depressa. Então, o cara que aparecia noticiado lá, aparecia como notícia para muita gente, e era o único que emitia opinião a respeito de um assunto qualquer – um médico, um artista, um político, o que fosse, dependendo da seção da revista. Aí o entrevistado falava umas frases e ficava famoso no Brasil inteiro. Na internet, todo mundo é emissor e todo mundo é leitor. No Facebook, qualquer pessoa emite sua “honesta opinião” a respeito de qualquer assunto, em geral sem se saber se é verdadeiro ou falso, e as pessoas leem. A sensação de virar emissor é universal. OK. E fica a questão de que aquele grupo, que era um conjunto de grandes autoridades –

AV: O gatekeeper, né?

JC: Isso está desaparecendo na internet – ou melhor, virou o Google ou o algoritmo, que é uma autoridade fake. Qual era a função do cara que tinha o juízo de autoridade? Era apontar o dedo, dizer “esta ópera é boa”, aí todo mundo ia na ópera, ou “essa ópera é ruim”, e ninguém ia naquela ópera. Esse cara era um representante, não eleito, de uma opinião média. Esse poder de fazer isso está desaparecendo na internet. É um poder que está sub judice na internet. E se ele desaparecer, aí não vamos mais saber o que é besteira e o que não é.

AV: Mas você ainda tem os grandes influenciadores. Eles são escolhidos de uma maneira diferente.

JC: O grande influenciador não tem autoridade. O maior influenciador na internet se chama Whindersson Nunes. Essa é a grande autoridade que diz o que é bom e o que não é no Brasil hoje. Ele tem 15 milhões de seguidores, que é muito mais do que qualquer emissora de televisão tem, e ele é um ser humano comum, que não diz nada, e comprou um avião. Essa é a nova autoridade. O cara que morreu da Academia vai ser substituído não por uma coisa melhor, mas por alguém que representa a massa de gente que o país tem, a opinião média, e isso não quer dizer que essa pessoa tenha efetivamente autoridade em qualquer área – afora, no caso, a da comunicabilidade. Isso vem no bolo da internet, onde todo mundo emite e todo mundo consome. A internet é como se fosse todo mundo entrando na máquina da Veja e publicando suas palavras. O problema é: quem diz qual palavra presta? Esse problema não vai ser resolvido por consenso.

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Pindorama, índios e o brasileiro

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Névoas densas envolvem o que às vezes supomos claro. Dois equívocos e um enigma intitulam o presente artigo. O primeiro equívoco é imaginar que o termo tupi-guarani “Pindorama” seja o nome que precedeu o terceiro escolhido pelos portugueses para a terra cuja descoberta os lusitanos reivindicam apesar das evidências de que navegadores de outras nacionalidades estiveram aqui antes de Cabral.

O equívoco consiste na suposição de que todos os habitantes desnudos que os portugueses aqui encontraram em 1500 falavam tupi-guarani. Chestimir Loukotka, em Línguas indígenas do Brasil (Revista do Arquivo Municipal, v. 54, 1939, São Paulo), reconhece 237 línguas nas terras descobertas por Cabral, enquanto Aryon Dall’Igna Rodrigues, em Línguas brasileiras (Loyola, São Paulo, 1986), estima que fossem mais de trezentas, das quais 170 ainda estão vivas. Considerando as distâncias que separavam as tribos do Oiapoque ao Chui, as guerras frequentes e as animosidades ancestrais, é fácil concluir que, afora os falantes de tupi-guarani, centenas de outras etnias provavelmente ignoravam o termo Pindorama e chamavam a sua terra por nomes em suas próprias línguas.

O segundo equívoco é um desdobramento do primeiro e consiste em se referir aos índios supondo uma unidade étnica e/ou cultural. Estima-se em mais de duas centenas as etnias que aqui viviam em 1500. Quando se fala em cultura indígena, é preciso primeiro perguntar a qual delas se está referindo e, em seguida, é preciso indagar como se demonstra a unidade que o singular na expressão supõe, pois evidente é a diversidade que havia então e ainda hoje remanesce.

Sobre os dois equívocos impera uma suposição igualmente equivocada quando se atribui aos índios em 1500 a posse do território que hoje chamamos de Brasil. Em suas cartas, Américo Vespúcio menciona a inexistência do sentimento de posse da terra entre os aborígenes. Além disso, as tribos deslocavam-se em virtude do esgotamento do solo, devido à coivara, e também em decorrência das guerras.

Outro equívoco espantoso é a fantasia edênica que vicejou no imaginário Europeu desde os relatos dos primeiros viajantes e que persiste ainda hoje, apesar dos fatos evidenciarem a falácia da projeção. Antes da chegada de Cabral, em torno de um milhão de ferozes Tupinambá espalharam terror desde a foz do Amazonas até a Lagoa dos Patos, matando e expulsando para o interior os índios das tribos que antes viviam na costa. Consolidada a sua supremacia, deram início a guerras entre eles próprios. “A prática da antropofagia ou canibalismo entre os Tupinambá estava associada diretamente com a intensificação da guerra intestina e fratricida”. (Os índios e o Brasil, Mércio Pereira Gomes, ed. Contexto, São Paulo, 2012).

Quando Américo Vespúcio indagou a razão de estarem constantemente em guerra, descobriu que os índios não sabiam explicar e respondiam dizendo “os índios das outras tribos devem ter feito alguma coisa ruim para os nossos pais”. Cabral não imaginava a sorte que teve ao aportar em Porto Seguro, onde viviam Tupiniquins pacíficos e amistosos. Iludido pelo relato de Caminha, Vespúcio, em 1501, deixou alguns tripulantes em Cabo Frio enquanto navegava mapeando a região sul. Ao voltar encontrou somente as ossadas churrasqueadas. Portugueses, franceses e holandeses sempre se valeram dos ódios intertribais para estabelecer alianças que assegurassem apoio para se fixarem aqui.

Quem pacificou o convívio entre as diferentes tribos (um esforço de séculos) foram os portugueses, com decisiva contribuição dos padres. No século XVIII, os Mundurucus, caçadores de cabeças que, após a degola, as miniaturizavam retirando o crânio e fervendo a pele, aterrorizavam as tribos do baixo Amazonas, e muitos índios fugiam para Belém buscando proteção. Ali, portugueses salvaram índios ameaçados por índios. O termo então usado pelos Mundurucus para designar outros índios era a mesma palavra que designava “caça”. Só a persistente catequese dos padres durante gerações conseguiu convencer os Mundurucus a abandonar o hábito de caçar cabeças. O convívio entre as diferentes tribos nessas plagas abaixo do Equador não diferia muito das guerras e morticínios que incendiavam a Europa, a África e a Ásia. O idílico paraíso tropical povoado por “bons selvagens” só existia na cabeça de alguns intelectuais europeus cuja quimera idealizada persiste crível para alguns intelectuais contemporâneos que rápido “esqueceram” a capa da revista Veja que estampou a ferocidade na face de um estuprador. Para salvar a idealização, o “politicamente correto” apagou da memória nacional a barbárie do crime cobrindo-o com um manto pétreo de silêncio. O estuprador era índio e a vítima, uma professora brasileira.

De seres humanos são constituídos todos os povos. Em lugar de idealizar ou demonizar (erros equivalentes), melhor lembrar um velho ensinamento budista: “Na natureza não há o melhor nem o pior. Os ramos primaveris crescem, uns longos outros curtos”. Em todas as culturas e comunidades humanas há pessoas admiráveis e criminosos perigosos. Entre os indígenas não é diferente.

Vamos agora ao enigma que acompanha os dois equívocos no título do presente artigo. Brasileiros. O que significa isso? Santo Agostinho dizia que, se não lhe perguntassem o que era o tempo, ele sabia. Quando perguntavam, ele já não sabia. Algo semelhante acontece com o brasileiro. Se não nos perguntam, julgamos saber o que é. Quando nos indagam como é o brasileiro, descobrimos que estamos diante de um território nebuloso. No presente artigo vamos nos ater ao enigma apenas no que diz respeito ao segundo equívoco, isto é, índios e o brasileiro.

Todo brasileiro traz em si um pouco de índio. Em caso de dúvida basta ler a narrativa a seguir. “Ao entrar numa biboca em Ipanema, ele ouviu ‘Oi’. Pensou, será uma arapuca? Quem o chamava fedia como gambá, mas ele riu ao ver que era o xará que andava capenga. Pediram abacaxi, caju e pipoca. Conversaram só lengalenga, mas não ficaram de nhenhenhém”. Todos os substantivos, adjetivos e a interjeição “oi” são termos tupi-guarani, do que talvez nem suspeitassem a estonteante garota que passava e o poeta embevecido que lhe cantarolou um samba que ainda hoje encanta onde o cantem mundo afora. Quem entendeu a breve narrativa, seja brasileiro filho de alemão, italiano, japonês, espanhol, português, polonês ou zulu, também tem um pouco de índio, pois “a linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o homem”. (Sobre o Humanismo, Martin Heidegger, Tempo Brasileiro, 1967). Palavras não apenas designam coisas, elas constituem o mundo atribuindo-lhe sentido.

Observemos a toponímia brasileira e veremos que os índios batizaram nossos rios, vales e montanhas, nossas praias, frutas, peixes, árvores, pássaros. O poeta que no exílio cantou a saudade de sua terra escolheu o sabiá para cantar a sua dor. Há mais de índio no brasileiro do que ele o sabe. As jovens que nas nossas praias prodigalizam aos olhos embevecidos a majestade de sua anatomia são herdeiras esquecidas de quem as precedeu.

“Ali andavam entre eles, três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas abaixo; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as olharmos muito bem não tínhamos nenhuma vergonha”. (Carta de Pero Vaz de Caminha, O Brasil de Américo Vespúcio, Ricardo Fontana, UNB, 1994, pág. 202.)

O erotismo que marca a cultura brasileira não veio de além-mar; ao contrário, cativou quem de lá veio. Por que dois grumetes de madrugada fugiram da caravela cabralina para se esconder na mata e ficar no Brasil? O ferro em brasa da paixão até hoje converte neófitos gringos à suave e doce malemolência das redes onde a sobrevivência da raça mestiçada é assegurada entre risos e cochichos, seja dia ou seja noite. Os índios do lado de baixo do Equador desconheciam o “pecado”, essa criação das religiões abraâmicas. Desde os portugueses temerosos da Inquisição, quem não vem do Oriente sempre traz na bagagem da alma os seus pecados. Quando escolhem ficar, é porque aqui se descobrem liberados. Assim foi desde 1500, assim será enquanto ainda viver em nós o índio que também somos.

“São pouco ciumentos mas sumamente libidinosos, mais as mulheres que os homens: julgamos que devemos aqui calar, por pudor, os artifícios delas para satisfazer sua libido insaciável.” (Américo Vespúcio, in Novo mundo, Eduardo Bueno, Ed. Planeta, São Paulo, 2003, pag.74.)

Nós, brasileiros, ainda não sabemos quem somos. Quando o enigma for resolvido, no prato cozido em fogo baixo rescenderá um sabor que vem de ocas ancestrais nas quais ainda hoje crepita o lume em torno do qual famílias se reúnem. A fumaça atravessa a palha que recobre a morada e sobe ao céu, livre de chaminés. Isolados, arredios, ou mesmo nas reservas indígenas, ainda há muitos que não falam português, não sabem o que é Brasil, nem imaginam que ajudaram a formar os brasileiros.

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Mulher Africana (1641), de Albert Eckhout

A palavra que designa atualmente o país é de origem ocidental. A versão mais antiga que se conhece de “Brasil” aparece num mapa de 1367.  Eram os tempos em que os vikings tinham bases em várias áreas celtas (Irlanda, por exemplo) e dali se aventuravam para o Ocidente pelo mar incógnito. Por isso, não é de se estranhar que o vocábulo “O’Brazil”, que em celta significa “Ilha Afortunada”, aparecesse no mapa para nomear uma das várias ilhas que existiriam a oeste do continente europeu, em pleno Atlântico. Eram tempos nos quais a vida dos deuses e dos homens se misturavam, de modo que os mapas também registravam ilhas como Atlântida.

A separação entre deuses e homens nos mundos material e espiritual, que conhecemos hoje como apanágio da civilização ocidental, começou a ser construída em Portugal. Para possibilitar a navegação oceânica regular foi preciso separar a astronomia da astrologia, a química da alquimia, a física da metafísica – o relato de viagens da narrativa fantástica, a religião da ciência.

Como o objetivo era navegar, o conhecimento livresco era revisto a partir do resultado de cada viagem. Dessa forma, o “Tratado da Esfera”, obra do século 14, de João de Sacrobosco, foi sendo atualizado  a cada navegação. Começou como guia das projeções astrológicas da esfera terrestre sobre a terra plana e acabou como a representação de globo terrestre. Não à toa, Adam Smith considerava a criação da navegação oceânica “a maior descoberta da humanidade”.

A projeção da palavra celta sobre um território incerto seguiu o mesmo processo – tendo como contraponto a própria Bíblia. Os europeus que vieram a bater no Brasil viviam um momento delicado. Haviam saído  de um continente onde a fome e as pestes eram constantes, a morte, um fantasma permanente — e os sonhos da mitologia bíblica do paraíso, a maior esperança para um futuro numa outra vida.

Para gente tão amarga, a chegada a um lugar onde a luz era exuberante o verde das matas permanente, a comida farta e o clima ameno lembrava uma descrição: a do paraíso no livro bíblico do Gênesis. Ali se falava que Deus, ao criar Adão, o tinha colocado num horto “da banda do Oriente”; que ali, por toda parte, havia plantas agradáveis à vista e boas para comida; que neste horto havia um lago, do qual saíam quatro grandes rios; que ali havia ouro e pedras preciosas em abundância.

A visão da natureza tropical, somada à de índios que pareciam viver no mais perfeito estado de inocência, coincidia perfeitamente com as muitas discussões escolásticas medievais, nas quais padres e ocultistas debatiam os trechos da Bíblia, procurando situar o lugar do paraíso na Terra. O próprio Cristóvão Colombo, grande leitor desses textos, foi um dos que acreditou piamente ter chegado ao Paraíso: 

“Creio que, se passando pela linha equinocial, e ali chegando, lá está o Paraíso Terrestre”.

Como ele, muitos dos primeiros aventureiros que andaram pela América correram atrás desse lugar mítico. Dois eram os maiores objetos de buscas: a árvore da vida, que daria todo o conhecimento e vida eterna a quem colhesse seus frutos, e uma cidade inteiramente feita de palácios cravejados com pedras preciosas. Na primeira vertente, mais espiritual, andou o espanhol Juan Ponce de Léon; na segunda, mais terrena, Francisco de Orellana.

Descrita numa série de textos medievais, a árvore deveria estar plantada bem no meio do Jardim das Delícias. Os anjos, tendo à frente os querubins, a defenderiam do acesso dos mortais. Para se chegar até ela, era preciso guiar-se pelo clima: nem frio nem quente, ameno o ano inteiro. E, se os homens não conseguissem vê-la, não importava. Ao menos poderiam tomar a água da fonte que nascia a seu pé e que garantiria a eterna juventude. Ponce de Léon procurou essa árvore onde hoje está a Flórida, mas morreu antes de encontrá-la.

A segunda versão do Paraíso terrestre falava de um lugar mágico logo atrás de uma região de terras fertilíssimas e árvores sempre cheias de frutos, rios de ouro, palácios de ouro e prata cimentados por pedras preciosas: jaspe, safiras, esmeraldas, jacintos, topázios… Nos muros desses palácios, resplandecentes como o sol, havia doze portas, cada uma de uma gema. Torres de cristal, com laços de ouro puríssimo, completariam a visão. E, para se chegar até lá, caminhava-se por ruas também revestidas de ouro.

Tal cidade deveria estar num lago chamado Eldorado, no centro do continente do Paraíso. Francisco de Orellana não conseguiu encontrar o lago quando desceu o Amazonas, mas o relato de sua viagem deu a muitos a certeza de que estaria no interior do Brasil — e dele nasceriam o Prata e o Amazonas. Até o século 17 foram feitos centenas de mapas nos quais este lago e a cidade de Eldorado aparecem na região hoje chamada Pantanal, que fica exatamente no centro do continente e em torno da qual partem rios da bacia do Prata e Amazonas.

A passagem do registro mítico para o realista foi complexa — e durante esse tempo a cultura portuguesa foi perdendo sua característica única de pioneira do processo de separação. O primeiro livro intitulado “História do Brasil”, publicado em 1627 pelo Frei Vicente do Salvador, começa descrevendo um confronto entre uma designação metafísica, “Terra de Santa Cruz”, e outra, “Brasil” — esta já não mais empregada no sentido mítico celta, mas em sua materialidade comercial corrente na terra, da seguinte forma:

“O capitão Pedro Álvares Cabral pôs nome à descoberta de Terra de Santa Cruz e por esse nome foi conhecida por muitos. Porém, como o demônio com o sinal da cruz perdeu todo o domínio que tinha sobre os homens, receando perder o muito que tinha sobre os desta terra, trabalhou para que se esquecesse o primeiro nome e lhe ficasse o de Brasil, por causa de um pau de mesmo nome de cor abrasada, e vermelha, com o qual se tingem panos, do qual há muitos nesta terra, com o que importava mais um pau que tingem panos que o daquele pau que deu tinta e virtude a todos os sacramentos.”

O processo de pensamento já era o inverso daquele que permitiu as navegações: em vez de afirmar a física e separá-la da metafísica, afirmava a verdade do livro divino contra a realidade humana da qual fazia a história — e contava como pecado ou derivação para além do mundo religioso a vida e a obra real dos que por aquela terra passavam.

Paradoxalmente, o modo original português de privilegiar a observação real, mesmo quando isso significava contrariar crenças metafísicas, foi inaugurada como representação de “Brasil” pouco mais de uma década depois do livro de Frei Vicente do Salvador — por um holandês, o pintor Albert Eckhout, que desembarcou no Brasil em setembro de 1637, na comitiva do príncipe Maurício de Nassau.

Eckhout era apenas um dos vários pintores, inicialmente de menor importância. Começou como auxiliar dos naturalistas Piso e Marcgraf, desenhando em pequenos cadernos os animais e espécimes vegetais que os dois descreviam. Mas aproveitou os intervalos para ir registrando também as pessoas, dos índios aos nobres. Sua habilidade acabou sendo reconhecida e ele ganhou do príncipe encomendas de maior escala.

Embora não haja total certeza a respeito, existe boa possibilidade de que ele tenha recebido de Nassau a incumbência de pintar telas monumentais para a decoração de um salão no palácio que o príncipe construía em Recife, por volta de 1643.

As pinturas foram terminadas na Europa e organizadas como uma tetrarquia: quatro casais de pessoas em quatro estágios de civilização, indo dos povos mais brutos aos mestiços mais civilizados. Assim, fez mais que os primeiros grandes retratos de pessoas vivendo no Brasil: criou uma chave de interpretação para ilustrar uma civilização — que nasceria do casamento entre pessoas de origem étnica diversa.

Um dos casais é formado pelo par intitulado “Homem Brasileiro” e “Mulher Brasileira”. Este é um dos mais antigos registros que se conhece do gentílico “brasileiro”, cuidadosamente evitado pelos portugueses para impedir a disseminação de uma consciência própria na colônia. Ele mostra um casal de índios de aldeamento, talvez miscigenado. Está um ponto abaixo do casal mais ocidentalizado, composto pelas telas “Mulato” e “Mameluca” — filhos do cruzamento de raças que seria próprio do Brasil.

Estavam formados assim os dois grandes paradigmas analíticos a partir dos quais até hoje se constroem as interpretações da vida no território. De um lado, um intérprete que, mesmo na terra, se identifica com o europeu exilado em território estranho e fala como alguém que tenta impor essa civilização a bárbaros. Do outro, alguém que interpreta os fenômenos locais a partir de sua especificidade, empregando a diferença em relação ao caso geral europeu para entender aquilo que há de próprio nela.

A primeira forma marcará o pensamento de uma elite que se define por contraste da massa que seria incivilizada, cujo protótipo arquetípico é a imagem do ocidental como “caranguejo que arranha o litoral”, criada pelo Frei Vicente do Salvador. No período colonial, o discurso característico era aquele da autoridade metropolitana em sua luta para se impor ao barbarismo dos coloniais. No Império, aquele do homem próximo à coroa civilizadora e distante do súdito não europeu, interesseiro e mercantil. Na República, aquele do detentor de conhecimento técnico que se distingue do cidadão ignorante.

A segunda forma de entendimento marcará entrada nos textos de intelectuais apenas muito mais tarde, pela altura da independência. Seu arquétipo é a frase de José Bonifácio de Andrada e Silva, que define a missão nacional brasileira da seguinte forma, em 1823:

“É tempo também que vamos acabando gradualmente com todos os vestígios da escravidão entre nós, para que venhamos a formar uma nação homogênea, sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, respeitáveis e felizes. É da maior importância ir acabando com tanta heterogeneidade física e civil. Cuidemos, desde já, em combinar sabiamente tantos elementos discordes, em amalgamar tantos metais diversos, para que saia um todo homogêneo e compacto.”

Esta atitude interpretativa de “Brasil”, em vez de separar o autor do narrado em planos que não se tocam, exige colocar num mesmo plano o sujeito que analisa e o objeto que está sendo analisado — que já teria algo próprio de ambos numa unidade nova que seria a nação. Essa nação não seria mais parte do mundo ocidental metafísico, mas variante real na qual se constrói um todo capaz de lhe dar substância. Do ponto de vista intelectual, traz um grande desafio. Ao contrário do caranguejo, que é simples, fechado em si, o vira-lata é complexo, pois a unidade no termo vem do múltiplo autor/objeto.

Jorge Caldeira é o editor convidado da edição Delírio Tropical

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Há alguns anos Gabriela Machado encontrou um novo espaço criativo em sua vida. Ao lado da pintura — ofício que vive intensamente na beleza bucólica de seu ateliê — ela elegeu a música como outro cerne de sua relação com a arte. Mas não é qualquer música. É o samba, e mais especificamente o samba que emana da batida do pandeiro, que, assim como as tintas nas telas em branco, espalha sua vida rumo ao mar do prazer estético. É nas rodas de samba, na sua prática comunitária, democrática, sem hierarquias e organizada apenas pelo intuito da alegria sonora, que Gabriela passa seus dias quando não está pintando ou vivendo o lado cotidiano de sua vida

Lembremos que o samba e as artes visuais sempre foram parceiros felizes no Brasil. De Heitor dos Prazeres e Di Cavalcanti a Hélio Oiticica e Carlos Vergara, esse diálogo criativo resultou em belos momentos. No caso de Gabriela, o samba impregnou seu olhar para o mundo, batizou suas telas com nomes de cabrochas, lhe mostrou as gingas e as filosofias de vida que só os sambistas atingem em formato sublime e, ao mesmo tempo, popular. A beleza de Cartola ou Guilherme de Brito, a crueza de Nelson Cavaquinho ou a assertividade de Candeia entraram em sua vida e vazaram, em todos os sentidos, nas suas tintas.

A relação estreita entre música e pintura se torna óbvia quando evocamos uma palavra em comum para ambas: ritmo. O ritmo da música e o ritmo da pintura são elementos fundamentais em qualquer composição. Ambos nos remetem a jogos temporais e espaciais em que a dinâmica ou a cor regem contrastes entre cheios e vazios, entre lento e veloz, entre claro e escuro, entre dobras e recuos. Músicas e pinturas são arranjos cuidadosos de ocupação de espaços — sejam sonoros, sejam pictóricos.

Uma das primeiras apropriações que podemos fazer da pintura abstrata de Gabriela diz respeito ao seu ritmo de cores e à sutil observação do caminho que elas seguem, esparramadas em telas de tamanhos variados. Em seus amplos fundos brancos, as cores ditam o ritmo do olhar como partituras dessa música silenciosa e, contraditoriamente, explosiva.

Essa explosão sincopada e essa abundância de cor em um espaço limpo e equilibrado são movimentos que fornecem a base para sua Força Bruta. E aqui esqueçamos todos os sentidos negativos ligados à derivação de uma brutalidade. No trabalho de Gabriela, Bruta é a matéria cor em sua plena potência física e poética. Bruta é a força que nos move quase inconscientemente para um mundo onírico, de puro prazer das formas, em detrimento do circuito opressor diário do real ou do documento. Como na roda de samba, entramos na pintura de Gabriela sem saber a que horas vamos sair, pois são espaços cujos regimes são os do prazer. É esse o Bruto que toma os sentidos e nos arremessa para uma zona em que cada um de nós pode se desarmar dos lugares comuns e inventar novas narrativas sobre a vida e as cores.

Espalhada, orgânica, em movimento, a ocupação do espaço em suas telas pode, quem sabe, parecer gratuita na sua sinuosidade sensual. Não atravessemos o samba. Essa ocupação é, ao contrário, fruto de uma relação íntima e delicada de Gabriela com o seu ofício. Suas pinturas nos apresentam os meandros do embate diário do pintor com cores, pigmentos, óleos, resinas e texturas. Na composição aberta, espontânea, em progresso, suas cores não competem, se abraçam. Aos poucos as formas dão as mãos e se reinventam no lento caminho da mistura.

Em um trabalho paciente, a pintora aplica camadas de cor em suas telas e as deixa repousar em pleno processo de entrosamento. Assim, as grandes manchas de cor ganham intensidades diferentes a cada operação. Aquilo que parece ser traços velozes é, na verdade, caminhos da cor maturados com a calma de um fim de tarde.

No atual contexto da pintura brasileira, Gabriela Machado traz em seu trabalho uma afirmação da abstração em contraponto a realismos e perspectivas fotográficas do mundo. Sua abstração, porém, não se fecha em diálogos internos da forma ou silêncios monocromáticos. Suas telas de pura cor em movimento oferecem o frescor de uma narrativa encapsulada, prestes a eclodir em frente aos nossos olhos. Há nos trabalhos e na obra de Gabriela Machado uma alegria incontida de braços dados a uma fruição contemplativa. Alegria e contemplação que nos remetem ao prazer da pintura, ao vitalismo da arte. Talvez resida aí essa força bruta que nos leva a suspender alguns momentos da vida prática para mergulhar em uma exposição de arte. Ou em uma roda de samba.

Frederico Coelho é professor de Literatura na PUC-Rio, escreve ensaios, artigos e textos sobre música, literatura, artes visuais e história cultural brasileira, entre eles o livro Pintura Brasileira Séc. XXI (Cobogó, 2011).

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Alguns registros ancestrais falam sobre a existência de um povo muito antigo no norte europeu que tinha o costume de fazer desenhos definitivos no corpo e que, devido a esse hábito, foi denominado Pictus.

Os Pictus não se tatuavam por vaidade. Acreditavam que aquelas inscrições lhes davam poder e força, e que os desenhos, além de representarem a interconexão de todas as coisas sobre a terra, ficavam impressos na alma para que pudessem ser identificados por seus antepassados após a morte.

A tatuagem sempre existiu como forma de expressão da personalidade ou como marca de pertencimento a um grupo. Os primitivos se tatuavam para marcar os fatos da vida biológica: nascimento, puberdade, reprodução e morte.

Depois, para relatar os acontecimentos sociais: virar guerreiro, sacerdote ou rei, casar-se, celebrar a vida, identificar os prisioneiros, pedir proteção ao imponderável, garantir a vida do espírito durante e depois da existência física.


***
Esta matéria é ilustrada com o estudo The Special Signs (os símbolos especiais), da polonesa Katarzyna Mirczak — trabalho composto por pedaços de pele humana tatuados encontrados pelo Departamento de Medicina Legal da Universidade Jagiellonian em Cracóvia, na Polônia.

Mirczak afirma que é muito difícil resistir ao vazio que se sente ao perceber o quão aparente é a realidade. Quando se sai da zona de conforto, é difícil regressar e fingir que nada aconteceu.

Katarzyna Mirczak recorreu a ambas, arqueologia e fotografia, para criar o estudo. Camada por camada, o projeto despe nossa percepção, colocando-nos frente a um objeto fechado, preservado, muitas vezes de maneira rudimentar, mas sempre com um impacto cínico e inegável. Propositalmente, Mirczak deu uma estética adocicada ao trabalho, cujas cores cativam e seduzem o espectador até que este perceba do que se trata realmente. Jogando com o contraste entre o que é visto e o que é compreendido, a artista levanta questões emocionais, provoca uma sensação de impotência e, depois, abandona o espectador — para que lide, sozinho, com as emoções.

As peças não são acompanhadas de explicações ou descrições. Não há o histórico da coleção, tampouco meios de decifrar o inevitável significado das tatuagens. Mirczak introduz um novo espaço e nos deixa lá.

Henrique Fogaça, chefe e proprietário do Sal Gastronomia, vocalista da banda de hardcore Oitão, pai de Olivia e João.

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