Skip to content
Revista Amarello
  • Cultura
    • Educação
    • Filosofia
    • Literatura
      • Crônicas
    • Sociedade
  • Design
    • Arquitetura
    • Estilo
    • Interiores
    • Mobiliário/objetos
  • Revista
  • Entrar
  • Newsletter
  • Sair

Busca

  • Loja
  • Assine
  • Encontre

willian

Fotos de Derek Fernandes. Todos os direitos reservados.
#52SatisfaçãoAmarello Visita

Amarello Visita: Tuju e Ivan Ralston

por Carlos Alberto Dória
Fotos de Derek Fernandes

Em um fim de tarde agradável, o chef Ivan Ralston recebeu o editor convidado desta edição, o sociólogo Carlos Dória, para uma conversa livre e ampla — como deveria ser toda boa conversa — dedicada à alimentação. Inicialmente formado em música, foi no restaurante da família que Ralston viu despertar o interesse e o talento para o mundo dos sabores. Após trocar um sentido por outro, graduou-se na Escuela Hosteleria Hofmann e acumulou experiência em restaurantes renomados, como El Celler de Can Roca e Mugaritz, ambos na Espanha, e RyuGin, no Japão, antes de abrir o seu Tuju. Reconhecido pelo público e por seus pares como um dos principais nomes da cozinha no Brasil, foi com a mesma qualidade e verve criativa com a qual concebe seus pratos que o chef tratou de temas como gastronomia, ética, ingredientes, Brasil e, claro, os acertos e erros que somente o amor à comida pode proporcionar.

A primeira questão que eu queria colocar é a seguinte: conheci o seu pai logo que ele veio do exílio e começou a operar uma lanchonete no Conjunto Nacional. Também fui colega do seu tio, Eduardo. Cheguei a ir uma vez à fazenda Terra Roxa, onde ele tem o negócio de goiabada. Você sempre respirou esse ambiente culinário? E como é que você descobriu que tinha um cozinheiro dentro de si?

Ivan — Sempre respirei isso, com certeza. Talvez a primeira imagem mais marcante seja a abertura do [restaurante] Ráscal, em 1994, quando eu tinha nove anos. Nesse dia, lembro de queimar os crèmes brûlées. Eles me deram um maçarico, “fica queimando aí”, e eu fiquei me divertindo. Então sempre estive no universo dos restaurantes. Agora, meu sonho não era ser cozinheiro, mas ser músico. No colégio, era apaixonado por jazz, queria ser o Jaco Pastorius, o baixista. Mas não tinha aptidão. Até estudei numa escola de música nos Estados Unidos. Eu era um músico bem medíocre, não me destacava em nada. Nos Estados Unidos, você consegue fazer três semestres por ano, então terminei a faculdade com vinte anos. Quando voltei, fiquei alguns meses na casa dos meus pais, e meu pai, aquele pai judeu bravo, falou: “Você não vai trabalhar, cara, vai ficar aí tocando baixo o dia inteiro? Olha, semana que vem você começa no restaurante”. Lembro que, primeiro, eu fui trabalhar no Ráscal, com a Nádia, que até hoje está lá. Foi uma experiência muito legal, mas chegou uma hora que meu pai entendeu que eu precisaria trabalhar em um restaurante que não fosse da família para poder me desenvolver. E, na época, o Maní era um restaurante icônico na cena gastronômica de São Paulo. Foi uma experiência incrível, passei dois anos trabalhando lá. Só que eu nunca tinha feito faculdade de gastronomia, e a Helena [Rizzo] sugeriu “Ivan, deixa eu te dar uma dica, vai estudar nessa escola em Barcelona que, quando eu fui fazer estágio lá, era onde eu queria ter estudado”.

Qual escola?

Na Escuela de Hostelería Hofmann. Por influência da Helena, acabei indo lá fazer faculdade e depois fiquei mais um tempo trabalhando. Foi isso, acho que o cozinheiro talvez estivesse dentro de mim por tudo que eu vivi, mas nem valorizava tanto.

Interessante. Você fez essa trajetória, e, hoje, que tipo de gastronomia acha que faz?

A gente abriu o restaurante [Tuju] em 2014. Eu era aquele tipo de cozinheiro que se formava fora do país e chegava com um nível técnico razoável, não excelente, longe disso, mas razoável, e queria mostrar tudo que tinha aprendido. Acho que, num primeiro momento, a culinária que eu fazia era muito inspirada em coisas de fora. Pegava algo que havia aprendido no exterior e decidia que iria usar a jabuticaba no lugar. Essa era a minha cozinha, em que a brasilidade se encaixava através dessas possibilidades, talvez até uma cozinha superficial, porque era pouco flexível e muito parecida com o que se via lá fora, apenas com variações de ingredientes locais. Hoje, acho que o que eu faço é cozinha de mercado. E comida boa.

De mercado no sentido que o Paul Bocuse coloca?

Não, eu realmente vou três vezes por semana comprar peixes, frutos do mar e grande parte das verduras que a gente usa no cardápio. Eu vou bastante na Liberdade, numa peixaria chamada Fenglin, vou em algumas lojas de verduras de lá, que eu gosto bastante, vou nas feiras da Mourato. Enfim, eu frequento os mercados, vou passeando atrás de produtos, todo dia. Construo o menu a partir disso. Claro, como estou bem mais maduro, depois de dez anos, a comida é mais gostosa também.

Aproveitando que comentou, você acha que há essa demanda para os chefes de abrasileirar o que aprendem lá fora? Quer dizer, essa coisa de aterrissar na brasilidade? Eu pergunto porque isso está no livro Cozinheiro nacional.

Ivan — Sim, se você parar para pensar, a demanda por comida italiana em São Paulo é muito maior do que a demanda por comida brasileira, concorda?

Claro.

Os restaurantes italianos, no geral, estão bem mais cheios. Agora, eu também acho que tem algumas áreas do conhecimento humano que o Brasil se destaca culturalmente, num nível de excelência alto. Acho que a culinária ainda não é uma delas. O Brasil se destaca, por exemplo, na música. Você não acha que temos um repertório, uma estética muito própria? Acho que o Brasil se destaca também na arquitetura, por exemplo. Temos uma arquitetura entre as três melhores do mundo nos últimos oitenta anos. Você vê uma cidade como Brasília, que foi projetada do zero. O Tuju é uma tentativa de elevar a gastronomia ao que essas outras humanidades já conseguiram. Uma tentativa; não disse que é uma execução, é uma tentativa.

Você não acha que é tarde demais? Me explico: tem uma tese [Os chefs e suas criações] do Maurício Piatti Lages que é bastante madura sociologicamente. Ela demonstra de maneira bem convincente que os chefes hoje se formam num fluxo internacional, internacionalizados desde sempre. Quer dizer, o chefe não é daqui nem de lá, ele não tem nação, num certo sentido. Há uma universalização do discurso gastronômico. Você não se sente um cozinheiro do mundo, mais do que um cozinheiro brasileiro?

Eu sinceramente não me sinto um cozinheiro brasileiro, eu sou uma pessoa zero patriota. Essa coisa de Brasil nunca me pegou. Inclusive, apesar de eu ser uma pessoa de centro-esquerda, não de esquerda, eu acho que essa coisa de orgulho nacional é uma grande distração para a classe trabalhadora não olhar o que ela realmente devia olhar, que é ter uma vida boa. Acho que muita gente acaba se perdendo nisso. Então, respondendo, eu me sinto talvez muito mais paulistano do que do mundo, e muito mais paulistano do que brasileiro.

Mas do ponto de vista técnico, por exemplo, é difícil você estabelecer essa fronteira.

É difícil, mas tem casos de pessoas que… Por exemplo, hoje eu aprendi muito a respeitar cozinheiros sem formação, porque eles às vezes tem um olhar fresco para as coisas. Então você pega, por exemplo, o Michel Bras. Hoje a cozinha dele está mais conhecida, muita gente copia, mas, na época em que ele surge com aquilo, com uma cozinha tão vegetal, só alguém com a cabeça vazia poderia ir por esse caminho. Alguém que está tentando agradar críticos e guias jamais seguiria essa ideia.

Nesse sentido, é mais espontâneo, você acha?

Mais espontâneo. A espontaneidade é muito importante também.

Eu não conheço bem a biografia dele, mas ele é um cara que, quando desponta, já tem uma carga técnica.

Ele é um cara sem escola. Ainda mais na França, onde tudo é profissionalizado, isso é muito raro. Normalmente você entra com quatorze anos numa escola técnica para virar chefe, aí eles vestem você com aquela gola com a bandeira da França. A França tem um projeto nacional de comida. O Brasil não tem isso. E ele é um outsider desse projeto, é um cara que não sai daí. Em teoria, quando você tem um projeto desses, é esperado que a maior parte do talento do país venha dessa proposta. Então essa espontaneidade, essa capacidade do ser humano de criar coisas novas, foi algo relevante. Não sei agora, com a inteligência artificial, o que vai acontecer. Mas sempre surge alguma coisa diferente.

Vamos voltar pro Brasil. Se você pegar, digamos, até os anos 70, há um esforço muito grande de alinhamento com a nacionalidade, claro. E não apenas na gastronomia, também se pode ver na arquitetura, na música. Eu acho que essa dimensão nacionalista da cultura é incontornável. Depois, nos anos 70, aí voltando pra gastronomia com a nouvelle cuisine, você tem o relaxamento dessa exigência nacionalista, e acho que é nesse contexto que o Michel Bras consegue vicejar. Eu fiquei muito impressionado quando, nos anos 40, descobri o Paulo Duarte desenvolvendo um pensamento gastronômico que não existia antes. Nem Mário de Andrade tinha desenvolvido. E, dos 40 em diante, vemos uma separação entre o viés nacionalista e o viés internacionalista. Você teve também uma separação muito grande, que eu chamaria entre os ingredientistas — aqueles que veem no ingrediente uma materialização dessa ideia nacional —, que defendem que, afinal de contas, o cupuaçu é nosso, ninguém tira; e também os tecnicistas.

Engraçado que essa primeira ideia que você falou, sobre “o cupuaçu é nosso, ninguém tira”, nas minhas viagens, eu tenho visto que é muito delicada, porque, de repente, você vai para o Peru e o cupuaçu também é deles. Ou você vai para a Venezuela e eles têm um prato muito parecido com a feijoada. Então isso aí é muito relativo.

Sim, é relativo, mas hoje tem um aparato público que se apropria disso. O próprio Estado passa a fazer o elogio dessas características, promover os ingredientes, as matérias-primas nacionais como ingredientes de uma culinária nacional. Isso é algo inevitável. Eu não gosto, mas é inevitável. A gente sabe que a Amazônia é de vários países. A formiga não está só no Brasil, não é? 

O pirarucu também não.

O pirarucu também não. Fazer desses componentes da flora e da fauna algo nacional, imbuído de nacionalidade, é um projeto ideológico muito claro…

E raso, vamos combinar. Fazendo uma comparação com a arquitetura, por exemplo, com o brutalismo, a cultura moderna brasileira conseguiu desenvolver uma linguagem própria, a ponto de você olhar e identificar qual arquiteto projetou determinada obra. Eu concordo com você, os ingredientes não são suficientes para definir uma nação culinariamente.

O tucupi é muito mais.

E o tucupi também, porque agora, por exemplo, os peruanos também estavam falando que tem tucupi lá, uma vez que os povos indígenas também estão lá. O que torna, eu acho, justamente algo mais profundo. Imagina se a gastronomia japonesa falasse que o produto deles é a soja. Não é a soja, é o shoyu, é o que eles conseguem fazer com a soja. Então o tucupi é um exemplo de um produto que eu acho que tem essa força de puxar a gastronomia brasileira, porque ele não é um ingrediente natural, ele é uma ideia de como tratar esse ingrediente.

Um trabalho humano.

Um trabalho humano. O tucupi tem essa força. Agora, teria que ter mais tucupi.

*

“o Brasil é mais pobre que a Argentina. É mais pobre que o Uruguai, acho que é mais pobre que o Peru, não tenho certeza. É mais pobre que a Colômbia, que o Chile. Somos os mais pobres da América do Sul.”

*

Se a gente pegar pela vertente da técnica, claro, fazer o tucupi é uma técnica elaborada. A mesma coisa na farinha de mandioca e várias outras coisas. Sem contar aqueles produtos naturais que não são naturais, mas são culturais, arqueologicamente. Porque tem muita coisa que é domesticada por povos indígenas há milênios. Existe essa coisa da técnica que a gente não presta atenção. Não há um livro de técnicas brasileiras. Pode ter vários livros de técnicas francesas, até de outros países, japonesas, mas não existem técnicas brasileiras.

Vamos fazer uma reflexão. Qual é a primeira coisa que lhe vem à cabeça quando falamos em técnicas brasileiras? Me cite três.

Moquém, tucupi, farinha de mandioca.

Paramos aí. Você falou três técnicas que, vamos dizer assim, são oriundas dos povos indígenas, correto?

Que já existiam quando os portugueses chegaram.

Você já parou pra pensar qual era o PIB per capita do Brasil antes da chegada dos portugueses?

Não existia PIB.

É, não existia PIB, mas, se você fosse calcular, devia ser altíssimo, não concorda? Tinha pouca gente num ambiente riquíssimo, com muito recurso natural, sem pobreza. Então, para desenvolver técnica, você precisa desse tipo de ambiente. É que, no nosso mundo ocidental, a gente ainda vê a riqueza somente como a riqueza capitalista, mas eu acho que existia um ambiente de riqueza no Brasil antes da chegada dos portugueses. E hoje o Brasil é um país muito pobre. O brasileiro fica zoando a Argentina, mas o Brasil é mais pobre que a Argentina. É mais pobre que o Uruguai, acho que é mais pobre que o Peru, não tenho certeza. É mais pobre que a Colômbia, que o Chile. Somos os mais pobres da América do Sul. Enquanto não resolver a questão social, eu não vejo no Brasil um ambiente propício para você ter um desenvolvimento de técnica. Onde isso está acontecendo? Está acontecendo nos países ricos, na Espanha, na França, nos Estados Unidos, no Japão, na Alemanha, na China. É isso, essa é a realidade. Aqui no Brasil os restaurantes vivem com a corda no pescoço. Enquanto a gente não tiver um crescimento econômico exponencial importante isso não vai acontecer no Brasil.

Recentemente você se envolveu num projeto de pesquisa dentro do Tuju, um centro de pesquisas voltado a democratizar os estudos que fundamentam a prática gastronômica. O que você espera dessa atividade? Olha, me corrija se eu estiver errado, mas eu vejo nas ações dessa proposta, em um primeiro momento, apenas a finalidade de alimentar o Tuju, e não uma dimensão pública, digamos assim.  

A primeira obrigação é alimentar o Tuju, sem dúvida. Não vou ser hipócrita, os primeiros trabalhos que foram feitos nesse centro de pesquisa foram para catalogar a sazonalidade dos alimentos, que era algo para ser muito simples, mas não existia antes.

Algo parecido com o que fez o Virgilio [Martínez, chef peruano]?

Não, o que o Virgilio fez no Peru tem outros critérios. A gente quer saber algo mais básico, saber que época do ano tem jabuticaba. Isso não tinha sido catalogado. Então é uma coisa muito simples, mas que nunca foi feita. E o objetivo disso é que a gente soubesse no Tuju qual hora a gente deveria usar cada produto. A gente não sabia.

Quer dizer, ele visa suprimir a ignorância do Tuju.

Totalmente. Hoje a gente sabe muito mais do que sabíamos há três anos. Longe de saber tudo, claro, mas sabemos que devemos usar manga em determinada época do ano, por exemplo. Sabemos que a sazonalidade da lula está no mar, então deve ser usada em tal época do ano, quando conseguimos ela pescada na costa, na água quente, que é o ambiente propício para a lula se reproduzir. Assim ela chega mais fresca. A gente sabe que tem olho-de-boi, por exemplo, pelas correntes marinhas, também nessa época do ano. Até tem o ano inteiro, mas é nessa época que ele está gordo. Estudamos muito a parte do mar, das frutas e verduras. Hoje temos um bom conhecimento de em qual época devemos trabalhar com cada produto. Num primeiro momento, o projeto foi esse. Agora, nesse segundo momento, existe uma missão de tornar esse conhecimento mais público, fazendo com que o restaurante preste um serviço para a sociedade. Às vezes, quem olha de fora tem uma imagem extremamente superficial e elitista do nosso restaurante. Mas um restaurante como o nosso trabalha com pequenos agricultores, ajuda a formar em torno de trinta cozinheiros por ano, que passam por aqui no programa de estágio. Honestamente, a empresa é lucrativa, e acho isso essencial, pois recolhemos bastante imposto, e isso ajuda o país. Vamos ver o que vai sair disso. A ideia é oferecer cursos que não sejam caros, que as pessoas possam entrar no universo do Tuju. Elas podem não ter R$1.100,00 para pagar num jantar, realmente poucas pessoas têm, mas quero que, de alguma maneira, elas possam desfrutar e aproveitar esse ambiente de uma outra forma.

A pesquisa, você me disse, é um primeiro mapeamento de sazonalidade. Talvez de ecologia, correntes marinhas. Mas eu lembro de um jantar aqui que tinha de boi curraleiro até navajas, que você descobriu no Rio Grande do Sul. Essa diversidade, como ela é? Planejada, empírica ou você tem um propósito, por exemplo, de descobrir, além do curraleiro, outras carnes nacionais?

Depende. Algumas descobertas caem no meu colo, porque aparece alguém e me diz, “estou fazendo isso aqui”. Outras, eu realmente encontro, como as navajas. Hoje, o nosso principal fornecedor, aquele com que gasto mais dinheiro, é uma peixaria de chineses na Liberdade. Você sabe que São Paulo, o Brasil, teve uma migração chinesa muito grande nos últimos dez anos. Esse pessoal está chegando com uma mentalidade moderna, porque a China é um país muito desenvolvido atualmente. Então eles querem tudo vivo, com qualidade excelente, que eram condições que me faltavam dos produtos do mar. Esse pessoal consegue me suprir disso. Olha a importância da imigração e olha o momento que a gente está vivendo, em que você vê o presidente dos Estados Unidos expulsando os imigrantes. Eu tenho certeza de que ele é um símbolo da decadência americana. Porque a imigração, na verdade, traz diversidade, riqueza, trocas. E que bom que o Brasil ainda é um país que aceita imigrantes e promove encontros, essa troca positiva. E, por fim, algumas descobertas são apresentadas por colegas, como, por exemplo, o curraleiro, que chegou pelo Rafa Bocaina. O Rafa é um cara que se interessa muito pelo universo das carnes. Ele falou “Ivan, encontrei uma carne”, e a história por trás é muito interessante. Foi, realmente, a primeira raça de vaca que se estabilizou no território nacional. Eu não vou comprar somente porque a história é boa, claro. Antes de tudo, tem que ter qualidade. Então tem vários jeitos de descobrir as coisas, você tem que estar antenado, de ouvido aberto e atento.

A gente poderia falar, se fosse na música, de harmonia. Mas quando o assunto são os sabores, como é que você vê essa questão hoje? Eu tenho em mente, por exemplo, aquela sua entrada de caviar iraniano com curau. Você acha que é uma coisa da gastronomia brasileira moderna? O que te moveu a aproximar os dois sabores?

Primeira coisa: quando resolvi reabrir esse restaurante com a Katherine [Cordás, sócia-diretora do Tuju], uma das coisas que eu falei que não tinha feito e que queria fazer era trabalhar milho e mandioca. Porque, engraçado, apesar do milho ser a cultura principal no Brasil, junto com a mandioca, a gente não se apropria tanto disso no discurso como outros países, como México e Peru, por exemplo. A ideia de juntar vem do meu gosto por provocar. É um curau com um pouco de gelatina, sem o caviar. Talvez as pessoas achassem aquilo ali vulgar, que não poderia estar num restaurante desse nível. E a minha provocação é essa.

Lá atrás, há pelo menos vinte anos, o [Alex] Atala me falou algo semelhante, “se eu não puser foie gras…”

Não, mas não é no sentido de que se eu não puser foie gras as pessoas vão reclamar. A minha visão é outra: se eu colocar, então é que elas vão dar valor para o milho. E vou te falar, mais de uma vez cheguei a ouvir de clientes “Muito bom esse prato. O milho é melhor que o caviar”.

Gente pretensiosa [risos]. Mas o que o Atala apontava, acho que com razão, é que você tem uma pequena burguesia que frequenta os nossos restaurantes que demanda a presença desse valor agregado nos pratos. Esse valor é o foie gras, é o caviar, alimentos e ingredientes que, no universo de valores dessas pessoas, faz sentido e contamina, digamos assim, a experiência.

Nesse sentido, eu me inspirei muito na arquitetura brasileira, porque um dos desafios, como eu disse, era criar um senso estético único. E acho que o Tuju tem conseguido. Isso tem a ver com o êxito que o restaurante tem tido. Uma regra que eu coloquei aqui é: algo só vai entrar no prato se tiver uma utilidade, seja ela gustativa ou em termos de textura, para melhorar esse prato. Você está falando e tem toda razão. A pequena burguesia, vamos chamar assim, ela quer o show, ela quer o nitrogênio, ela quer as flores, ela quer uma estética que já existe fora do Brasil. O que eu quero é justamente o contrário. Eu quero apenas o que é preciso para aquele prato. Às vezes, escutamos elogios que eu não gosto. “Nossa, foi muito bom, nem parece que estou no Brasil”. É bem desagradável, mas as pessoas falam achando que a gente vai achar legal. Na verdade — e eu não falo isso no sentido nacionalista —, as pessoas que fazem esse país são capazes de produzir coisas incríveis.

Você acha que esse nível de consciência de trabalho, em restaurantes como o seu e outros dessa categoria, como o da Helena Rizzo, o do Alex Atala, etc., vão ter algum impacto na alimentação popular? Impacto estético.

Com certeza. Eu acho que o impacto vem não apenas dos restaurantes, mas também do mercado de luxo. Isso é comprovado, impacta o mercado mais popular, seja em moda, em arte, em gastronomia.

Em gastronomia, fale alguma coisa que lhe ocorre, além do dadinho do Mocotó.

Foi a primeira coisa que eu pensei, eu já estava com o dadinho em mente. Posso dizer várias, mas quero um exemplo provocativo. Veja o sushi, ele surge como algo caríssimo, para poucas pessoas. A partir disso, se desenvolve no Brasil, goste ou não, um estilo próprio e popular de fazer sushi, que vai com cream cheese, goiabada, seja o que for, mas que é uma expressão do que antes era somente para os ricos.

Está no buffet das churrascarias.

Está no posto de gasolina. 

O temaki é uma invenção brasileira.

Do jeito que fazemos, ele se torna brasileiro. Assim como esses sushis são brasileiros. Às vezes, as pessoas mais ricas debocham, sem perceber que é uma expressão popular, como a lambada. É o resultado de como o brasileiro entendeu determinada comida e criou a partir dela.

Você tem a perspectiva de criar algo que tenha esse lugar na alimentação?

Olha, sabe que, com quarenta anos e dois filhos para criar, as minhas ambições são bem mais modestas. Eu só quero que o restaurante seja rentável, que esteja cheio, que as pessoas que trabalham aqui estejam felizes. É evidente que produzir algo único ajuda nesse sentido. Agora, quem tem que falar se a gente faz algo único ou não são os clientes.

Claro. Você sente, da parte do público, alguma estima diferenciada por algo em particular?

Curioso perguntar, porque sinto que — lembra que você comeu e adorou a panacota de milho com caviar? —, temos tido sucesso com o prato de milho com caranguejo. É uma espécie de molho, uma sopa de milho com caranguejo. E, no menu anterior a esse, tinha lagostim com pamonha.

Milho de novo.

Milho de novo. A gente tem tido êxito em conseguir demonstrar que é possível fazer com milho uma comida legal, sofisticada, leve e saborosa.

E que é bem paulistana. Se você estivesse no Nordeste, provavelmente a mandioca falaria mais de perto. Interessante.

E esses pratos foram considerados pelos clientes o melhor de cada um dos menus.

Queria voltar e comentar o caso das navajas. Tudo bem, você encontrou no Rio Grande do Sul, mas elas me fazem pensar imediatamente no turu.

O que é turu, desculpe?

É um marisco.

Já sei, aquele que dá no tronco.

Exatamente, ele é parente da ostra.

Tem na Amazônia, não é?

Isso. Quando é a hora de ir atrás do turu? Ou essa é uma tarefa do Thiago Castanho?

Eu acho que é uma tarefa dele, que está na Amazônia. Na minha cozinha, 90% do que eu uso é comida de mercado paulistano. Eu não faço uma comida que me exige viajar pelo Brasil inteiro para procurar ingredientes endêmicos. Não, eu faço uma comida com produtos do agricultor que tem um sítio em Mogi, de outro que pesca peixe em Ubatuba, na Ilhabela. É uma proposta muito mais modesta. O Brasil tem esse desafio de ser um país continental, e, por isso, é difícil alguém realizar o trabalho como o que o Virgilio fez, de pegar cada região do Peru e botar isso no menu, porque o Brasil é maior do que a Europa. Então é impossível, a gente vai precisar repartir, ninguém vai poder ser dono da gastronomia brasileira. Não deveria ser assim, e não é.

Pois então, você cai num dos temas do Modernismo. O Mário de Andrade procurou expressar uma culinária nacional. Assim como o Câmara Cascudo, ele tinha um pensamento antirregional muito forte, eram muito militantes dessa visão, ao contrário do Gilberto Freyre. Você acha que o cenário futuro vai ser assim, de uma gastronomia nacional diferente, ou vai ser uma federação de gastronomias regionais?

Uma federação de gastronomias regionais, porque o Brasil é muito grande. Não regionais no sentido à paulista, em que a gente sabe que a comida do interior de São Paulo se torna igual à de Minas. Regional nas expressões, sem fronteiras ali.

Regional de verdade, regiões culinárias.

A tendência, na minha opinião, é nos tornarmos diferentes inclusive linguisticamente. Daqui a duzentos anos, devemos estar falando línguas quase diferentes entre Norte e Sul. O Brasil de hoje não tem esse projeto nacional, e acho isso bom, porque justamente dá lugar a mais diversidade, a mais expressões.

*

“Eu não tive essa cultura, não sei dizer se o tucupi está bom ou ruim”

*

Você acha que a perspectiva de uma culinária afro-brasileira é muito mais se individualizar e se expressar autonomamente do que se integrar nacionalmente?

Acho que sim, acho que a integração nacional é uma mentira. De verdade. Sobre esse assunto, quem você acha que tem que fazer uma culinária afro-brasileira, eu ou um chefe preto de Salvador?

Eu acho que os pretos estão fazendo em todo lugar.

Exatamente.

Eu acho que a matriz disso está no Manoel Querino. Inicialmente ele que procura dar uma expressão fidedigna do regional fora da Bahia, criar um cânone para a cozinha baiana que possa se universalizar. O Jorge Amado mete todas as receitas nos livros dele. As nacionaliza, num certo sentido.

Sim. Veremos muito mais complexidade nos projetos se as pessoas pararem de querer ser algo e passarem a ser o que elas realmente são. Eu admito isso: quando cheguei, eu queria usar tucupi, queria usar esses ingredientes, até que um dia pensei “eu não tive essa cultura, não sei dizer se o tucupi está bom ou ruim”. Então essa não é essa culinária que eu tenho que fazer. Se alguém sabe, ótimo, vai lá e faz, mas eu não sei, então não vou fazer.

Mas é isso, Ivan, existe uma força difícil de nomear que diz o seguinte: você tem a tarefa de implantar um bom tucupi.

Acho que os jornalistas gostam muito disso, é uma categoria que acredita muito nesse projeto nacional.

Porque eles vivem num país imaginário.

Eles estão totalmente errados, essa é a realidade. Jornalista não gosta de ouvir que está errado, é uma das categorias mais mimadas do mundo.

É, eles esperam que você fale o que estão dispostos a ouvir.

O que estão dispostos e o que querem ouvir, é isso. 

Sim, mas tem poucos segmentos da sociedade, da vida cultural, capazes de vocalizar criticamente essas questões, inclusive a respeito da nacionalidade. Sem dúvida, quando você diz que o Peru tem isso, tem aquilo, hoje está havendo um recorte que é transnacional, e não nacional. É algo universal. Se pegar produtos como mate, por exemplo…

Eu acho que o projeto gastronômico do Peru, como muita coisa no mundo, é uma bobagem feita para americanos. É como as pessoas que vão para a Disney, naquele Epcot Center. Meus pais nunca me levaram, mas eu vou levar meu filho esse ano, porque ele está viciado em Star Wars. E, no fundo, acho que também estou a fim de ver com os meus próprios olhos toda aquela encenação estética da paisagem no prato. Aquilo é algo feito para norte-americano, que, para conectar o cliente com a natureza através da comida, coloca musgo embaixo do prato. No fim, você ainda coloca um chocolatinho para o cliente pegar.

Mas isso está lá no começo da nouvelle cuisine, não?

Isso é tudo publicidade, porque comida é tão direta quanto a arquitetura, no sentido de que a boa arquitetura é aquela que produz bons espaços para as pessoas viverem e interagirem, e a boa comida é aquela que provoca sensações interessantes. Inclusive, não vou considerar que é o que dá “prazer”, porque não acho que comida boa tem que ser somente o que é saboroso, gostoso, mas, sim, aquilo que provoca, que faz a pessoa se sentir melhor depois de comer.

Você se sente à vontade para falar um pouco dos seus colegas chefes de destaque? Helena, Alex, etc.

Sim. A Helena Rizzo é uma pessoa brilhante. O certo seria ela falar de mim, porque eu que fui o aprendiz dela, mas já que é o contrário, acho ela uma pessoa com um dom artístico, uma sensibilidade estética muito apurada. Por vezes, até foi mal-entendida, porque o público, no Brasil e no mundo, está em sua fase mais infantil — a mais infantil de todos os tempos. As redes sociais, essas sim, deixaram todo mundo muito burro. Você fica o dia inteiro consumindo conteúdo de quinta categoria e, depois, qual será a sua capacidade cognitiva para julgar o trabalho de uma pessoa tão sofisticada quanto a Helena?

E o Alex?

Vejo ele como o primeiro chefe brasileiro a ter um restaurante de fine dining num formato mais… Tivemos outros antes, mas eram franceses que usavam produtos brasileiros. Ele foi o primeiro brasileiro. É um cara que ama a Amazônia, gosta de viajar para lá, que tem uma conexão com o lugar, e acho ser a pessoa capaz de fazer um pouco dessa culinária também em São Paulo. E, claro, os estrangeiros têm muita mais curiosidade numa culinária amazônica do que num restaurante de cozinha de mercado em São Paulo. O Alex me falou que no Dom, se não me engano, 60% do público é estrangeiro. No Tuju, esse número não chega a 10%. 

E o Rodrigo Oliveira, do Mocotó?

Rodrigo é muito bom cozinheiro, e caso raro. No Brasil, são poucas as pessoas que conseguem progredir financeiramente. Eu conheço poucas, uma delas é meu pai. Meu pai é uma pessoa que nasceu pobre e enriqueceu. O Rodrigo é outra pessoa assim. Eu acho que sempre que tem alguém que consegue furar a bolha no Brasil, a gente precisa bater muita palma, porque é bem difícil.

Qual é o papel cultural que você enxerga na cozinha dele?

Ele faz uma culinária que define como sertaneja. Eu não sou um grande conhecedor desse tipo de culinária, mas sei que gosto de comer lá quando vou. Sei que ele criou, talvez, o prato mais copiado da culinária brasileira no mundo, que é o dadinho de tapioca. Cheguei a ver Albert Adrià fazer dadinho de tapioca. Lembra que eu te mandei uma foto disso? Então ele é um cara fantástico.

Tem algo interessante na linguagem dele, porque, seguramente, a maior comunidade paulistana é nordestina. Aí ele pega essa culinária e põe para um público burguês lá no fim do mundo. Eu lembro que a primeira vez que eu fui lá, com a Nina Horta, ela falou “eu te pego na sua casa”. Daí chega ela com uma van, ela alugou uma van para irmos. “Nina, por que você não falou? A gente pegava um taxi”, eu disse. “Não, eu não sei voltar de lá, então aluguei uma van”. Então era uma excursão, literalmente uma excursão com a saudosa Nina.

Isso é lindo. Ele, durante muito tempo — e acho que até hoje, mas em menor medida, até porque abriu um Mocotó aqui na Zona Oeste também —, fez as pessoas saírem da Zona Oeste, da Zona Sul, dos bairros mais nobres e irem até a Vila dos Medeiros. Isso é fantástico. Aliás, dizem que a definição do Guia Michelin dos restaurantes de três estrelas, não sei se você já viu, mas eles falam dos restaurantes que valem a viagem.

Porque tem que viajar.

O Mocotó era um três estrelas desses, porque as pessoas viajavam para ir comer no Mocotó e voltar.

Interessante. Você pega — na Europa isso é muito comum — os bons restaurantes fora da grande malha urbana. No Brasil, não funciona muito.

É, teve o Mocotó, que não está na Zona Central; teve o Restaurante Cepa, que hoje está em Pinheiros, mas surgiu no Tatuapé. Você tem projetos que deram certo nesse sentido. A própria Casa do Porco — é bizarro falar isso —, mas é porque o centro de São Paulo não é hoje o centro econômico de São Paulo, ele virou um lugar……

Virou uma representação do centro, alegoria central.

É, as pessoas saíam daqui para ir até lá para comer na Casa do Porco. Tem projetos, de tempos em tempos, que conseguem se destacar nesse sentido. 

Compartilhar
  • Twitter
  • Facebook
  • WhatsApp

Conteúdo relacionado


Sonhos não envelhecem

#49 Sonho Cultura

por Luciana Branco Conteúdo exclusivo para assinantes

Jazz, colonialismo e as partituras do poder

Cinema

por Revista Amarello Conteúdo exclusivo para assinantes

Dois Cunha

#22 Duplo Cultura

por Léo Coutinho Conteúdo exclusivo para assinantes

Portfólio: Gabriela Machado

#8 Amor Arte

por Frederico Coelho Conteúdo exclusivo para assinantes

Sonho — Amarello 49

#49 Sonho Editorial

O que é ser verde?

#6 Verde Cultura

por Bruno Pesca

Minha vida é uma novela

#18 Romance Cultura

por Hermés Galvão Conteúdo exclusivo para assinantes

Call it magic, call it true

#18 Romance Cultura

por Helena Cunha Di Ciero Conteúdo exclusivo para assinantes

Sem presença na internet você não existe?

#44 O que me falta Cultura

por Manuela Bernadino

Itcoisa: chá da obatian

#44 O que me falta Cultura

por Raphael Nasralla

O caminho das águas na Chapada do Araripe

#42 Água Cultura

por Fabiana Pereira Barbosa

Em busca da pureza perdida

#18 Romance Cultura

por Eduardo Andrade de Carvalho Conteúdo exclusivo para assinantes

Amarello Visita: Ricardo Salem

#7 O que é para sempre? Amarello Visita
Fotos de Derek Fernandes. Todos os direitos de imagem reservados. Proibida a reprodução sem autorização.
DesignInterioresMobiliário/objetos

Um cafezinho com Alberto Renault

por Tomás Biagi Carvalho
“O som me interessa, a luz me interessa, a espacialidade me interessa. Todos os requisitos que alguma pessoa pode vir a querer ter no seu morar, eu sinto que conquistei na minha casa.”

Tomar café na casa de alguém é um convite para conhecer profundamente essa pessoa. Nossa casa é a casca que nos protege do mundo. Ela é parte importante de nossa cultura particular, e reflete a maneira como enxergamos e gostaríamos de nos inserir no mundo.

Aqui, dividimos casas de pessoas que gostam de casa. Que têm suas casas vivas, cheias de objetos que contam a história de uma vida, sem um lugar perene em seus espaços.

Alberto Renault é diretor de tv e documentários, e anda por aí de casa em casa há 15 anos, nos apresentando brasis diferentes dentro do Brasil. Com gentileza, poesia e competência, ele nos conta histórias de brasileiros que nos dizem sobre nós. 

E aí, como estão as coisas? Me conta o que tem feito de bom. Eu vi que vocês lançaram um episódio novo do programa no YouTube.

Tudo bem. É, estou trabalhando em uma temporadazinha de cinco episódios. Na semana retrasada estreou o com a Lia Siqueira, arquiteta. Amanhã, domingo, estreia um com projeto do Sérgio Rodrigues para a casa da Regina Casé. Nessa série, eu busco sempre ter o morador da casa. Por mais que sejam projetos assinados, ou são assinados por quem está morando ou a gente tem o morador e o arquiteto. No programa Casa Brasileira, que eu fazia, a proposta já era a de apresentar não apenas um projeto, mas a interação entre quem criava e quem fazia aquela demanda. Não existe arquitetura sem demanda, existe sempre para quem foi feita aquela obra. Estou editando e terminando de gravar essa série, e gosto muito, especialmente, do último episódio, que vai ser a Casa Cavanelas, um projeto do Oscar Niemeyer, com um jardim incrível do Burle Marx. 

Aí no Rio?

É, em Petrópolis. Já gravei essa casa para o especial Oscar Niemeyer, mas eu vou regravar para a série De casa em casa. Eu estou também em cartaz, circulando entre festivais, na Filadélfia e na Itália, com um filme, que é o Anna Mariani, anotações fotográficas. Ele está fazendo um circuito de filmes de arte e de arquitetura… E estou na preparação de roteiro de um segundo documentário, chamado Da oca ao concreto, onde eu conto a história do Brasil a partir das casas. Eu vou passando por uma oca, uma casa bandeirante, uma casa colonial, uma casa do Império, vou passando por todas as casas, vendo como estão um pouco hoje, até chegar num projeto moderno, senão contemporâneo. Estou pensando ainda o caminho aonde eu chego, mas então estou nos estudos dos textos desse roteiro.

A ideia é ser algo mais visual ou você também vai conversar com os moradores, algo mais histórico?

Para esse Da oca ao concreto, a gente está fazendo uma pesquisa de textos referentes a casas e suas épocas. Serão vozes em off e, eventualmente, a minha, que ilustrarão e acompanharão o percurso da câmera. Teremos textos literários, que podem ser mais epistolares, como cartas, textos em primeira pessoa, ou mesmo como um trecho d’A Moreninha, do romance que descreve uma casa em Paquetá, ou mesmo a carta de Pero Vaz de Caminha, que descreve uma oca. Serão textos históricos, daquela época, que fazem referência à casa. Não devemos ter entrevistas ou pessoas aparecendo.

Você tem narrado cada vez melhor. Está treinando muito?

Estou treinando. A gente é muito crítico consigo mesmo, mas acho que estou me acostumando com a minha voz, com a minha presença sonora nos vídeos, porque, realmente, eu não quero ser um apresentador, não me interessa isso. O que eu gosto de fazer é criar narrativa, conduzir, levar música. É o meu olhar que eu gosto de mostrar — desejo que as pessoas não olhem para mim, mas que olhem comigo. A linguagem, que eu fui desenvolvendo ao longo desses anos, é mostrar a casa no sentido mais amplo da palavra, porque não é só arquitetura, também não é só antropologia, não é apenas uma técnica construtiva, é um jeito de olhar para a vida.

De onde vem esse seu interesse por casas?

Freudianamente falando, acho que ele vem de uma infância, talvez, solitária. Eu brincava muito sozinho e isso me levava a construir mundos. Eu morava num prédio muito alto, e adorava passar por cada um dos andares para ver como era ali, o que havia naquele hall que não era o meu, onde ficava a casa dos outros. Esse interesse vem de alguém que é muito espectador. A vida foi me colocando numa posição de quem está observando. Então a casa é um dos elementos que eu adoro observar, assim como a natureza e o jeito que as pessoas se vestem. Vem de uma curiosidade, de querer procurar uma fresta aberta. Se alguém quer me contar algo, eu digo “conta logo, pelo amor de Deus”, eu sou extremamente curioso e interessado. Estamos conversando por vídeo e fico imaginando o que tem atrás de você. Vejo três luminárias e já penso, “será que é ali que ele lê?”. Tenho uma curiosidade plástica, estética e dramatúrgica. A primeira curiosidade sobre casas começou no meu quarto. Toda semana eu mudava a posição de tudo, mudava os quadros, os móveis e os brinquedos. 

A sua casa tem uma coisa que eu amo, que é uma casa que tem uma base branca. Qual você acha que é o papel do branco numa casa?

A minha não só tem a base branca como uma parede inteira vazia. Eu gosto muito do vazio e o branco é uma cor que sugere muito esse espaço. Gosto da possibilidade do vazio exatamente para poder preenchê-lo. Por sorte, tenho o privilégio de duas janelas para uma das vistas, que eu acho, uma das mais bonitas do mundo.

É bem impressionante.

Ainda coloquei espelhos na lateral das janelas para multiplicar essa vista, essa possibilidade de janela. Eu gosto da neutralidade do branco para que os livros, e qualquer coisa que entre aqui, possa acontecer. O branco é uma espécie de moldura serena para as coisas acontecerem.

A sua casa tem muitos objetos, muitos livros, mas ela não é uma casa cheia.

Tem uma brincadeira entre vazio e cheio, uma disposição bem minha do espaço. Não tem aquele desenho clássico de sofá, mesa de centro, poltrona em frente, essa estética que você pode repetir ad eternum em várias casas.  Naquele livro do Tanizaki, Em louvor da sombra, ele fala muito do espanto do oriental com a casa ocidental. Como pode ter uma fruteira em cima de uma mesa e, do lado, um quadro com frutas? A quantidade de coisas que tem enfeitando. Eu não gosto que os objetos estejam ali para enfeitar, e o branco ajuda as coisas a estarem ali por si só, enfeitando sem estarem propositadamente enfeitando, digamos assim.

Dá pra perceber que você tem muitos objetos, que, imagino, são objetos da vida, que você foi juntando em viagens. 

Sim, não tem nenhum objeto comprado para enfeitar. Se comprei um soldado numa feira em Macau, é porque queria trazer um pouco daquele lugar. Um objeto é, efetivamente, tempo e espaço. Ele me traz uma época da minha vida, traz um momento que eu pude estar ali, naquele lugar em Hong Kong. É um pedaço da minha experiência que está registrado ali. Mas aos 61 anos, estou bem menos acumulador de objetos.

Tudo que você tem está em uso, exposto, ou você guarda?

Na minha casa não tem gaveta ou armário. Tudo fica exposto. Esse sininho de cabra, por exemplo, é do sertão, quando estava filmando o filme da Anna. Mas a minha relação com os objetos é muito afetiva, como essa louça do Azumi, o restaurante japonês em Copacabana que fechou, ou esse potinho do Copacabana Palace. São objetos que realmente contam alguma história. Eu não sou etimólogo, mas a palavra “decorar” deve ter alguma relação com coração. Se não tiver, cai muito bem num texto.

O que a sua casa te oferece em termos de conforto e bem-estar?

Eu não seria a pessoa que eu sou, com as ambições que tenho, se não morasse aqui do jeito que eu moro. É um apartamento que fui comprando aos poucos. Comprei um, depois o outro, e juntei ambos. Financiei. Moro aqui há 25 anos e não pretendo mudar. Eu tive essa sorte, mas tem pessoas que gostam de mudar, que não têm muito apego onde estão. Normal. Eu, por outro lado, tenho muito apego. Quando pequeno, andava de ônibus, voltando do colégio, e pensava “quero morar aqui. Não, aqui. E nesse. E nesse”. Morar era um assunto que me interessava. Essa casa é um espaço sem paredes, algo excelente para quem mora sozinho. Eu sei que tempo está fazendo, não preciso olhar por uma fresta para ver como está o céu. Acordo muito cedo, então vejo o amanhecer e o anoitecer. Originalmente, esse lugar no Rio de Janeiro se chamava Fazenda da Lagoa. Pela manhã, às 6h, quando abro a janela, é um silêncio, um som de pássaros muito forte. Eu me sinto na Fazenda da Lagoa nos anos de 1800 e tanto. Para quem é ligado ao bem estar, seja ele sonoro, olfativo ou tátil, todos esses elementos estão reunidos aqui. O som me interessa, a luz me interessa, a espacialidade me interessa. E isso tudo me faz muito bem. Eu não tenho vontade de sair, e quando viajo, tenho vontade de voltar. Todos os requisitos que alguma pessoa pode vir a querer ter no seu morar, eu sinto que conquistei na minha casa. 

Qual é o papel da vista que você tem aí? Ela é bem impressionante

Diria que é para mim é essencial, mas, no geral, acho que a vista é bastante subjetiva. Às vezes, a pessoa não tem consciência de que certos elementos nos fazem bem ou que determinado lugar está nos fazendo mal. Quantas casas lindas e interessantíssimas eu visitei, por exemplo, numa favela, com uma vista inacreditável e a pessoa amava aquele horizonte. Quantas casas, também na favela,  tinham uma parede cobrindo a vista, e eu falava “pelo amor de Deus, faz um recorte aqui e você vai ter a visão mais incrível do que qualquer costa grega”, e a pessoa simplesmente não estava se importando com aquilo. É subjetivo no sentido de que podemos escolher não ter vista, buscando mais introspecção ou praticidade. No sertão, muitas pessoas não querem a vista, porque a claridade atrapalha. É relativo, mas, no  meu caso, ela não é uma paisagem a ser admirada, mas uma paisagem a ser vivenciada. Muitas vezes tenho a sensação de que estou no campo, em plena natureza. O Paulo Mendes da Rocha tem uma definição de arquitetura, uma das mais brilhantes que conheço, de que a arquitetura não é nada mais do que uma proteção em relação à natureza. Aqui eu me sinto na natureza, protegido numa caixinha, olhando para uma natureza exuberante. Quando perguntado, Lúcio Costa dizia que projetava prédios baixos, porque até o sexto andar uma mãe poderia chegar na janela e gritar para o filho: “vem, está na mesa, vamos jantar”. Moro no terceiro andar de um prédio de quatro andares, então é uma vista de detalhes, não um skyline como os de Manhattan ou São Paulo, e que às vezes podem ter a sua beleza. A escala aqui é humana, permitindo o detalhe. Abro a janela e vejo a coleira do cachorro ali embaixo. Vejo a pessoa que está passando na canoa, a roupa de quem está remando, de quem está correndo na pista em frente. Olho a rua para ver se as pessoas estão de casaco e isso me diz se está quente ou frio. É uma vista muito presente e sobre o presente. Pode parecer bobo, mas é um jeito de morar que as cidades poderiam replicar muito mais.

Sem dúvida. Você que rodou o Brasil com seus programas, sente que há uma diferença entre o morar em cada um dos estados do país?

São tantos estados e classes sociais. Diferença é difícil, porque o mundo caminha para uma pasteurização.

Você acha que temos ainda nuances? Ainda conseguimos encontrar alguma coisa que foi retida de originalidade regional?

Eu acho que talvez diferenças de construção. Das casas de palafitas da Ilha de Marajó para o Sertão Mineiro, efetivamente, a gente ainda tem marcas originárias vernaculares das construções desses lugares, ou dos telhados mais alpinos, digamos, no Sul. Ainda é possível rastrear algumas especificidades nas construções das casas, até nas populares.

Penso isso a partir do que você falou, das vistas de uma favela e de uma casa no sertão. Local, espaço, temperatura marcam diferenças?

Esses fatores influenciam, realmente. As casas do sertão têm janelas menores, pois o lavrador trabalha o dia inteiro na claridade, do lado de fora. De certa forma, também, a estrutura de uma janela impacta nos custos. Mas sinto que é algo mais de comportamento. Há uns 3 ou 4 anos, eu estava no Japão e observei que muitas casas tinham duas, três, quatro garrafas de plástico de água paradas na porta da casa. Eu não consegui descobrir o motivo. Corta. Três anos depois, estou no interior do Cariri, filmando casas com garrafas de plástico de água. Qual é a função delas? Para o  cachorro ou gato não vir fazer xixi. Corta. Rio de Janeiro, 4 anos depois, o porteiro aqui do lado, “de onde o senhor é?”, “do Cariri”, “por que essa garrafa de plástico está aqui?”, e ele me responde: “para o cachorro não vir fazer xixi”. É algo antropológico. Qual o circuito de uma coisa estar no interior do Japão, estar no Cariri e chegar no Rio? Esse circuito de jeitos de morar, bem ou mal, também é muito interessante. Mas a verdade é que a estética acaba bastante pasteurizada em quase todas as cidades em que fui visitar. No Nordeste, por exemplo, a maioria com porcelanato, muitas com grade, muitas com câmera, com parabólica. É incrível como alguém pode achar que aquela estética é superficial ou mundana, ou leve, mas estética é ética. A estética é agredida por uma ética distorcida. Ter o tanto que temos de grade, de arame farpado, de câmera. Veja como destruíram as portarias do Rio, que nos anos 60 tinham laguinhos, carpas, mosaicos, eram todas modernistas. Hoje você tem grades, tudo foi fechado. A estética brasileira foi totalmente agredida pela insegurança e pela falta de educação. Quando falamos de como o visual se reproduz nas cidades, todos os assuntos se esbarram. A gente está na época da praticidade.  Por que eu vou gastar dinheiro na manutenção da minha casa, se eu posso ter algo que é para sempre? Grade, parabólica, arame farpado. Nada é gratuito. Tem mil questões que passam pelo que é a estética do morar, sem que seja o julgamento do que é feio ou bonito. Aquela casa que é para rua, essa imagem icônica da porta aberta. Essa porta aberta acabou, e ela é uma metáfora. As ruas estão fechadas, as portas estão fechadas.

O que você acha que significa tomar um cafezinho na casa de alguém? Justo você, que deve ter tomado muitos pelo Brasil inteiro.

Nossa, quando não oferecem, eu peço. Até duas da tarde, eu sou viciado em café, mas depois eu corto completamente. Eu nunca sinto que estou indo gravar na casa de alguém, mas que estou indo visitar uma pessoa. Essa noção brasileira da visita resulta sempre em uma das primeiras perguntas: “quer alguma coisa?”, “aceita um copo d’água?”. Essa pergunta vem junto com a porta aberta. E, em muitos casos, ela acompanha cesta de pão de queijo, bolo, e muito mais. Inúmeras vezes eu aviso, “a gente não vai ficar para almoçar na casa”. Mas não interessa, me fazem almoçar independente disso. Nunca ser apenas um cafezinho me parece o jeito brasileiro de receber as pessoas, um movimento de muita gentileza, como uma deferência, uma comunhão. Algo, aliás, que me faz lembrar que sou péssimo, porque não tenho praticamente nada de café. Tomo café solúvel, não sou nem um pouco barista. Desde que seja sem açúcar, tomo café frio, meio gelado, no copo de requeijão.  Claro, prefiro quente, moído, vindo de um grão especialmente colhido numa sombra raríssima. Mas eu gosto tanto que tomo de qualquer jeito. O cafezinho é um hábito profundamente brasileiro, que, para além da energia e dos benefícios que proporciona, também significa carinho.

Objeto de carinho

Muitas peças da minha casa eu ganhei ou comprei em alguma viagem. Essas duas garrafas de porcelana da fábrica portuguesa Vista Alegre são as raras peças que comprei aqui no Rio, mais precisamente no Shopping dos Antiquários, em Copacabana. Adoro passear nesse lugar, e elas estavam na vitrine de uma loja fechada. Elas gritaram: me leva com você! Eu liguei para o dono da loja, que tinha uma eterna placa “volto já” na porta, e obedeci ao pedido delas. Faz alguns anos que elas moram comigo!

Compartilhar
  • Twitter
  • Facebook
  • WhatsApp

Conteúdo relacionado


Sonhos não envelhecem

#49 Sonho Cultura

por Luciana Branco Conteúdo exclusivo para assinantes

Desenhando o divino

#17 Fé Cultura

por Sofia Borges Conteúdo exclusivo para assinantes

Repaisagem

#10 Futuro Arquitetura

por Guilherme Wisnik Conteúdo exclusivo para assinantes

For_Eva

#28 O Feminino Arte

por Márcio Simnch Conteúdo exclusivo para assinantes

Itcoisa: Galinha de arame

#36 O Masculino Design

por Raphael Nasralla

A importância do Rio São Francisco

#37 Futuros Possíveis Cultura

por Ingrede Alves Dantas

L’enfer, c’est les autres: mas e se o inferno for estar sozinho?

#21 Solidão Cultura

por Leticia Lima Conteúdo exclusivo para assinantes

A moda como a radicalidade da identidade

#36 O Masculino Arte

por Bianca Coutinho Dias

Poesia: Miriam Alves por Heleine Fernandes

#43 Miragem Cultura

Pequeno manual para cena de crime

#35 Presente Cultura

por Berna Reale

Um dia de chuva no Sertão

#35 Presente Fotografia

por Zé Manoel Conteúdo exclusivo para assinantes

Insurreição perante a aniquilação: fagulhas de um novo tempo

#41 Fagulha Arte

por Aldones Nino Conteúdo exclusivo para assinantes

O futuro da mobilidade urbana

Sociedade

por Revista Amarello

Sem título VII, de Nati Canto. Série Pãologia (2021).
#52SatisfaçãoSociedade

Comer ou ingerir? A alimentação na era do insaciável

por Revista Amarello

Sob a pressão incessante do mundo contemporâneo, em que os dedos cibernéticos moldam hábitos, impõem tendências e pesam sobre nossas existências, a alimentação não saiu incólume. Entre listas que transformam o paladar em competição e dietas propaladas por influenciadores que fazem dos nutrientes um dogma, comer deixou de ser apenas uma necessidade fisiológica ou um prazer compartilhado. Chega a ser estarrecedor perceber que, no meio disso tudo, a alimentação se tornou um emblema de identidade, um afazer constantemente mediado por regras e validações externas. 

Diante dessa trama de significados por trás do simples ato de levar o garfo à boca, será que realmente gostamos do que ingerimos? Seria o prazer uma casualidade desta guerra?

A busca pela “melhor” experiência gastronômica, pelo “melhor” caminho para o “melhor” resultado não é novidade — as estrelas Michelin estão por aí há um bom tempo, e o mesmo pode ser dito sobre as dietas mirabolantes que pouco duram. Mas é inegável que o fenômeno ganhou proporções inéditas com a proliferação de influenciadores que desfilam por este ou aquele restaurante. O problema não se resume à exaltação do luxo e da exclusividade, pois a obsessão pela excelência nutricional ou alimentar, e isso é especialmente pernicioso, vai além dos restaurantes estrelados e se infiltra na alimentação cotidiana. É um processo artificialmente  impulsionado pelas demandas digitais, promovendo tendências efêmeras, dietas restritivas e modismos que fazem da comida um totem de reconhecimento social e distinção.

“A sociedade busca aquele alimento que vai curar e aquele que é responsável por trazer todas as doenças”, afirma a nutricionista Tarcila Ferraz de Campos. “Isso pode levar a um verdadeiro transtorno, uma obsessão pela alimentação saudável, na qual só determinados alimentos são permitidos. O problema é que essa visão rígida nos afasta da nutrição baseada nas necessidades reais do corpo e naquilo a que temos acesso. Hoje, há até uma categorização para isso: a ortorexia, um transtorno marcado pela obsessão por uma alimentação ‘perfeita’, capaz de trazer impactos negativos para muitas pessoas.”

O desejo por uma alimentação saudável pode se transformar em uma busca mais pautada pela aceitação social do que pelas reais necessidades do corpo. Há quem “se cerque de todos aqueles alimentos considerados saudáveis”, mesmo que não sejam os mais adequados para si. Essa escolha, no entanto, nem sempre está baseada em critérios nutricionais, mas sim no fato de que são “mais aceitos pela sociedade”. O comportamento, porém, pode oscilar: em algumas semanas, a pessoa segue regras rígidas; em outras, cede ao desejo de consumir tudo o que vinha evitando. Fechar-se para o prazer é, na verdade, um convite a mergulhar, de forma profunda e perigosa, exatamente nesse prazer que se tenta evitar.

À medida que evoluímos como espécie e passamos a criar cultura, consolidou-se a ideia de que comer pode, e deve, ser um ato de prazer — uma experiência sensorial que envolve sabores, memórias e encontros. No entanto, como esses momentos têm sido cada vez mais reduzidos a um mecanismo de controle e otimização do corpo, a coisa toda é quase como um retorno aos primórdios da humanidade, quando comer era apenas uma questão de sobrevivência, mas agora sob uma lógica que hierarquiza essa sobrevivência, determinando o que é mais válido ou aceitável. 

É claro que tudo está interligado. Conforme mais “besteira” foi sendo produzida pela indústria alimentícia — com níveis indecentes de açúcares, sódio e agrotóxicos —, mais restrições tiveram que ser impostas para que vidas mais saudáveis fossem vividas. Ninguém precisaria deixar de comer salgadinhos ou beber refrigerantes viciantes se eles não tivessem sido criados. Um fator foi levando a outro e, assim, os extremos começaram a se consolidar, tanto o da permissividade quanto o da proscrição.

Combinadas, as dietas da moda, a categorização rígida entre alimentos “bons” e “ruins” e a obsessão pela alimentação perfeita criam uma relação disfuncional com o ato de comer. É comum, inclusive, que o excesso de informação cause confusão. É como comenta Tarcila:  “Grande parte dessas dietas foca mais no ideal de corpo do que na saúde de fato, o que gera uma confusão alimentada por informações contraditórias: algumas recomendam cortar carboidratos, outras defendem o contrário; há quem pregue o jejum prolongado, enquanto outros o descartam. Quando a pessoa entra nesse ciclo de controle e não consegue sustentá-lo a longo prazo, essa contradição constante pode levar à frustração”.

Em muitos casos, a disputa entre os lobbies de alimentos e produtos se assemelha a um jogo de interesses. E, no fim das contas, quem sempre sai perdendo são as pessoas. “As dietas da moda surgem e desaparecem, muitas vezes trazendo promessas de soluções rápidas ou mágicas. Esses modismos acabam reforçando a ideia de alimento ‘mocinho’ e alimento ‘vilão’, sem considerar o indivíduo como um todo.” 

Estudos indicam que mais de 70% dos praticantes de musculação seguem perfis nas redes sociais que divulgam informações sobre alimentação, sendo que cerca de 45% relatam ter consumido suplementos específicos por influência das redes sociais. Quando falamos de alimentos em geral, o número passa dos 50%. Além disso, uma alta porcentagem das mulheres que praticam musculação sentem que seus corpos são inferiores quando comparados aos dos influenciadores.

Ou seja, como se não bastasse, essa mentalidade também alimenta, como os anos de prática de qualquer nutricionista mostram, a baixa autoestima e a culpa. “A crença de que certos alimentos são ruins ou responsáveis por algo negativo pode gerar sentimentos de culpa e vergonha”, afirma Tarcila, baseando-se nos seus mais de vinte anos de experiência. “No momento em que a pessoa consome esses alimentos, essa percepção pode levá-la a adotar restrições excessivas, desencadeando comportamentos prejudiciais. Isso pode incluir episódios de compulsão alimentar ou jejuns prolongados, pois ela passa a entender, equivocadamente, que se alimentar de forma saudável significa evitar o consumo.” 

A pressão para se encaixar em padrões alimentares impostos por tendências transforma cada refeição em uma escolha moral. Quem não adere a um estilo de vida ligado àquela ou essa alimentação é visto como descuidado; enquanto isso, quem segue à risca as normas da alimentação funcional muitas vezes subtrai do comer o prazer gustativo e afetivo. Nos extremos, não há vencedores. E é preciso lembrar: seguir esses padrões nem sempre significa ser saudável, assim como não os seguir não significa o contrário, porque “alimentos isolados não determinam a saúde”. Para manter um padrão alimentar equilibrado e um estilo de vida saudável, “é essencial valorizar a variedade e aprender a reconhecer os sinais de fome e saciedade”. 

A saúde alimentar, ao fim e ao cabo, vai muito além de nutrientes e calorias. Envolve bem-estar emocional, conexão social e respeito pelas tradições e preferências individuais. Do ponto de vista nutricional e de saúde pública, essa obsessão pela alimentação perfeita pode trazer consequências sérias: “acho que o mais importante”, afirma Tarcila, “é que existe uma questão totalmente desconexa entre o prazer e a cultura de se alimentar. Essas restrições não estão preocupadas com o prazer, as questões e os fatores culturais. Os hábitos alimentares não devem ser guiados por estímulos externos ou emoções. A gente precisa trabalhar a consciência: a que comida se tem acesso quando se tem fome, como incluir alimentos nutritivos e ainda fazer com que eles tragam prazer”.

O debate sobre a glamorização da alimentação e das dietas não é apenas sobre gosto, mas sobre o que significa comer em uma sociedade cada vez mais mediada por imagens e pelo consumo simbólico. A solução, felizmente, talvez seja mais simples do que imaginamos. 

“O foco deve ser comer bem, sem neuras, sem rotular alimentos como bons ou ruins. Podemos adicionar mais fibra, combinar com proteínas, distribuir as quantidades ao longo do dia.” Essa abordagem parece prática, mas a verdadeira dificuldade surge quando se trata de aceitar que essa forma de comer já pode ser considerada perfeita.

Você consegue aceitar essa ideia?

Compartilhar
  • Twitter
  • Facebook
  • WhatsApp

Conteúdo relacionado


Sonhos não envelhecem

#49 Sonho Cultura

por Luciana Branco Conteúdo exclusivo para assinantes

Leia o Norte!

#45 Imaginação Radical Cultura

por Izabela Nascimento

Linguagem e euforia

#1 Mudança Crônica

por Yasmine Sterea Conteúdo exclusivo para assinantes

As ambiguidades e os pequenos achados de Luiz Zerbini

Arte

por Revista Amarello

O exílio é uma insônia constante

Cultura

por Revista Amarello

Heitor dos Prazeres: CCBB celebra vida e obra de um artista único

Artes Visuais

por Revista Amarello

Sobre a capa: Bruno Moreschi

#23 Educação Arte

Lictzwang (de verde a vermelho)

#5 Transe Arte

por Daniel Steegmann Mangrané Conteúdo exclusivo para assinantes

Amarello Visita: Tuju e Ivan Ralston

#52 Satisfação Amarello Visita

por Carlos Alberto Dória Conteúdo exclusivo para assinantes

Diga-me por onde anda essa tal liberdade

#12 Liberdade Cultura

por Carmen Maria Gameiro Conteúdo exclusivo para assinantes

Sobre demolição e a antifragilidade da vida

#40 Demolição Cultura

Um dia de paz

#9 Obsessão Arte

A mulher na História do Brasil: a grande estrutura invisível

#28 O Feminino Cultura

por Jorge Caldeira Conteúdo exclusivo para assinantes

Construção de areia, de Lucas Rubly (2024).
#52SatisfaçãoCultura

I can’t get no satisfaction

por Helena Cunha Di Ciero

Foi preciso muitos anos para entender o que Mick Jagger cantava nessa canção. Trata-se de um grito de desespero de alguém que nunca está satisfeito, sempre em busca, numa atitude voraz que o consome, aprisionado num movimento repetitivo, uma busca extremamente angustiante, que não leva a nenhum lugar. Mas é também sobre alguém que não desiste de tentar…Cause I try, and I try… Foi preciso envelhecer para me dar conta de que essa canção tinha muito menos a ver com prazer do que eu imaginava, embora o rebolado de Mick Jagger permaneça tão hipnótico que quase esconde a dor da letra para o ouvinte distraído por hormônios.

Quando mocinha, achava que, para ser feliz, precisava da festa mais cheia, do maior número de amigos, do corpo perfeito e indefectível, da praia mais distante, do constante agito, do excesso. Na juventude, ficamos presos a um ideal que empobrece o que a realidade nos traz. O presente é sempre insatisfatório e parece que o futuro sempre guarda um “a mais” que o hoje não tem. O júbilo da juventude carrega um imposto, uma espécie de maldição, uma fome e uma voracidade de ter tudo, que mais nos afasta de um tempo tão precioso do que de saboreá-lo. Acredito que, quando jovens, estamos mais preocupados com a euforia do que com a alegria, e confundimos esses dois estados. Tudo é muito, ao mesmo tempo em que nada é o bastante. Essa inquietude, essa energia dos primeiros tempos da vida, é importante, mas tem data de validade. Enquanto escrevo, me ocorre a pergunta: de validade ou finalmente de libertação?

Na obra Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental (1911), de Freud, este descreve a dinâmica da relação entre o princípio do prazer e o princípio da realidade, estruturas fundantes de nosso psiquismo. Em resumo: nossa existência se dá nessa dualidade. O princípio do prazer está relacionado ao impulso de buscar a satisfação imediata e evitar a dor, refletindo os desejos primitivos do id. Essa parte da personalidade opera de forma impulsiva e busca gratificação instantânea. Por outro lado, o princípio da realidade surge como uma necessidade de lidar com o mundo externo. Ele representa a capacidade do ego de adiar a gratificação e buscar soluções mais realistas e sustentáveis. Dessa forma, o ego atua como um mediador, equilibrando as demandas do id a critério da realidade.

A eficácia do ego em regular os impulsos do id permite que o indivíduo funcione favoravelmente na sociedade, adaptando-se às situações e necessidades do ambiente. 

Existem buscas de satisfação que muitas vezes não confessamos nem a nós mesmos: elas provocam vergonha, são consideradas menos civilizadas, envolvem sentimentos que não são bem aceitos e podem ser mais brutais, gerando culpa, medo e inveja. Embora essas buscas de satisfação nos impulsionem, nem sempre conseguem ser abertamente expressas. Frequentemente, é necessário reprimir certos sentimentos para manter as escolhas que fazemos. Por outro lado, quanto mais reprimimos, mais intensa se torna a vontade de realizá-las. Nossos instintos tendem a ser persistentes e obstinados, e essa luta causa sofrimento. Assim, essa batalha constante gera uma tensão intensa: de um lado, a necessidade de satisfação; do outro, as regras, a moral e nossas decisões.

A busca pela satisfação surge de uma parte poderosa dessa psique inconsciente chamada id, que está em conflito com outra instância que exerce a censura, conhecida como superego. Este é igualmente forte e representa internamente a moralidade, as leis e os valores familiares. A civilização tenta controlar nossas buscas de satisfação, moderando tanto as sexuais quanto as agressivas, a fim de estabelecer certa ordem que proteja a humanidade de seus próprios instintos. Apesar das falhas da sociedade, o ser humano depende dela para se organizar de maneira relativamente eficaz.

O singelo filme Dias perfeitos, de Wim Wenders, traz essa oposição: um personagem jovem, cheio de planos, esfomeado, sempre apressado, e outro, num estado mais pacífico, mais contemplativo, que saboreia as pequenas coisas, que brinca com a sombra numa noite fresca, que sente o ar batendo no rosto quando pedala sua bicicleta no pôr do sol e que realmente escuta as canções, sua melodia, numa fita-cassete e não pula apenas para as faixas favoritas. Fiquei pensando se esses dois personagens não seriam a representação desses dois estados, um de um primeiro tempo da vida e outro já de um segundo, negociando com seus cabelos brancos, com dias mais simples, mais rotineiros, mas vívidos, com mais inteireza. 

Um dos maiores presentes que ganhei conforme o relógio do tempo correu foi aprender a me satisfazer com menos. Não preciso mais da melhor praia; basta que esteja limpa e não muito cheia para que eu possa me refrescar no banho de mar e sentir o prazer de caminhar descalça na areia. Hoje, troco feliz uma festa barulhenta por um café da manhã sem dor de cabeça e ressaca moral. Vejo meus filhos com saúde, podendo ir à escola, crescendo, brigando, rindo. Tenho o privilégio de trabalhar com o que amo. Chego em casa cansada, mas com a certeza de que produzi. Um livro em silêncio conversa mais comigo do que jantares lotados em restaurantes. Atualmente, uma mesa de bar é muito menos atraente que um bom filme. Troco, num piscar de olhos, uma festa cheia de desconhecidos por uma conversa de intimidade numa caminhada. Gosto de sair de encontros com a alma cheia e não esvaziada, e por isso escolho quem quero encontrar. Percebi que borboletas no estômago são deliciosas, mas a tranquilidade de amar e ser amada me faz dormir tranquila e sem angústia. E pronto, sou feliz. O que não significa que estou feliz sempre, mas que sou contente, no sentido de conter aquilo que possuo, de sentir que é meu, que me cabe e que me pertence. Por isso, cuido, zelo, protejo. Reconheço que aquilo que tenho me pertence por um tempo limitado, e por isso tenho urgência.

Depois dos quarenta, algumas perdas surgem, o corpo já não reluz colágeno, pessoas partem de nossas vidas, alguma saudade permanente nos acompanha, a fome do id foi saciada em alguns momentos, mas em outros teve de ser calada, sublimada, ressignificada e finalmente elaborada.

Outro dia, ouvindo um podcast sobre o tema, os apresentadores diziam que antes dos quarenta a gente só ganha da vida. E que, depois disso, começa a fase da barganha, da negociação perante as perdas. Achei bonito pensar que, a partir daquilo que perdemos, podemos finalmente ganhar, no sentido de usufruir e aproveitar. Essa negociação com o que sobra nos mostra que certas belezas se revelam a partir das fendas e das partidas. Cresci e apareci com aquilo que perdi. Apareci para mim mesma. E, finalmente, fiquei mais contente. Hey hey hey, that’s what I say.

Compartilhar
  • Twitter
  • Facebook
  • WhatsApp

Conteúdo relacionado


Sonhos não envelhecem

#49 Sonho Cultura

por Luciana Branco Conteúdo exclusivo para assinantes

Na capa: Guilherme Bergamini

#30 Ilusão Arte

Cantando o sexo: o samba e as relações afetivo-sexuais na musicalidade brasileira

#48 Erótica Cultura

por Arifan Júnior Pâmela Carvalho Conteúdo exclusivo para assinantes

NotUrna, dez anos depois

#38 O Rosto Arte

Miragens do Brasil

#43 Miragem Cultura

por Jessé Souza

Corpo em Transe

#5 Transe Crônica

por Nuria Basker Conteúdo exclusivo para assinantes

Amarello Visita: Yentl e Peèle

#24 Pausa Amarello Visita

por mA.tO

Na capa: Manuela Costa Lima

#50 Família Artes Visuais

por Manuela Costalima Conteúdo exclusivo para assinantes

Calder & Miró: quando a leveza e a brutalidade criam laços

Arte

o pacto

#51 O Homem: Amarello 15 anos Literatura

por Roberta Ferraz Conteúdo exclusivo para assinantes

Portfólio: Tuca Vieira

#19 Unidade Arte

por Silas Martí

A casa de avó que habita em mim saúda a casa de avó que habita em você

#46 Tempo Vivido Arte

por Pedro Garcia

Entrevista com The Decaptator

#1 Mudança Arte

por Rose Klabin Conteúdo exclusivo para assinantes

Imagem de Vitaly Sacred | Unsplash
Sociedade

Por que amamos as celebridades?

por Revista Amarello
Parte importante de nossos afetos e histórias, chorar por alguém famoso também pode ser um lembrete.

Há mortes que nos afetam profundamente, mesmo que estejamos falando de pessoas que nunca estiveram conosco à mesa ou que nunca cruzaram nossos caminhos na fila do mercado. Ainda assim, quando elas partem, podem nos deixar um vazio. Mas onde já se viu chorar por quem nunca conhecemos? É como diz um dos muitos jargões da internet: “é raro, mas acontece muito.” Com frequência, choramos pela morte de celebridades, figuras públicas, artistas, atletas, intelectuais. São nomes que aprendemos a pronunciar com reverência, como os deuses da sociedade contemporânea.

O que é esse luto? É real? Pode mesmo ser vivido com legitimidade, ou seria apenas uma ilusão emocional?

A psique humana opera, muitas vezes, com base em vínculos simbólicos e é nesse campo que nasce o luto por celebridades. Não é preciso uma convivência direta para que alguém se torne significativo em nossa vida. Basta que essa pessoa ocupe um lugar — afetivo, estético, ideológico, ou mesmo fantasioso — na construção de quem somos. Cantores que embalaram a adolescência; atores a quem recorremos nos momentos difíceis em que precisamos de um rosto familiar; aquele jogador ou jogadora que encarnava nossas paixões. Do ponto de vista psicológico, esse tipo de luto é possível, embora nem sempre seja reconhecido como tal. 

Em seu célebre texto Luto e Melancolia, de 1917, Freud aponta que o luto não depende apenas da realidade concreta, mas da magnitude da perda. “O luto, de modo geral”, escreveu, “é a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante.” Ou seja, o que importa não é o laço objetivo, mas o que foi investido de afeto naquela relação, ainda que ela tenha sido construída à distância. Esse luto simbólico, porém, carrega algumas complexidades. Como ele não é validado socialmente da mesma forma que a perda de um parente ou amigo, ele pode ser vivido de maneira silenciosa ou até reprimida. A pessoa sente a dor, mas se pergunta se tem “direito” de sofrer. É uma dor que esbarra na vergonha, no constrangimento, na dúvida, criando novas camadas para o sentimento.

Com a ascensão das redes sociais, esse fenômeno ganhou novas dimensões e levanta, inclusive, questões sobre a legitimidade desse luto e a possível espetacularização da morte. O que as mudanças ocorridas com o advento das plataformas digitais têm a revelar sobre nossa identidade coletiva? Muito. Acabamos nos tornando viúvos de pessoas que talvez jamais tenham cruzado nosso olhar, mas que, de algum modo, habitaram nossa rotina. Há quem questione o sentimento, de maneira que o problema ganha ares tautológicos: o que veio antes, a dor ou a espetacularização da dor? 

Na sociedade contemporânea, marcada por narrativas coletivas e identidades atravessadas pela cultura de massa, as celebridades ocupam funções simbólicas importantes — talvez mais do que nunca. Elas condensam valores, estéticas, estilos de vida, formas de resistência e de pertencimento. E tudo isso ganha um peso ainda maior porque, hoje, não são mais apenas os tabloides que nos trazem novidades sobre suas vidas pessoais. Muitas vezes — a depender da disposição da celebridade em questão —, essas informações chegam em primeira mão, por elas mesmas. Stories, posts, vídeos e confissões transformam essas figuras públicas em presenças cotidianas, quase íntimas. Quanto mais próximas parecem, mais apego despertam. Para o bem e para o mal.

É nesse ponto que o luto coletivo se torna um reflexo da identidade de uma geração. O que compartilhamos sobre a morte — as homenagens, os memes, os trechos de entrevistas, os vídeos caseiros — fala mais sobre nós do que sobre quem se foi. São manifestações de uma cultura que se conecta pela perda, que busca sentido em comunidade, que tenta fazer do efêmero algo memorável. Essa conexão emocional pode ser explicada pelo conceito de “relações parassociais”, na qual indivíduos desenvolvem vínculos unilaterais com figuras midiáticas. Nesses casos, a celebridade ocupa um espaço significativo na vida do fã, influenciando emoções e comportamentos, mesmo sem uma interação recíproca.​ A relação é unilateral, mas não menos verdadeira para quem a sente.

O luto, portanto, passa a ser validado não apenas pela perda da pessoa real, mas pela ausência de tudo que ela representava. Perder essas pessoas é perder também os significados que construímos com elas. E isso vale para diferentes épocas. Muito antes das redes sociais, multidões se comoveram com a morte de Marilyn Monroe, de Elvis Presley, de John Lennon, de Ayrton Senna. Quando estamos falando de artistas, não é raro que essas pessoas tenham despertado em nós sensações que ninguém mais despertou. O luto, então, faz sentido, não? As homenagens em praça pública, os tributos espontâneos, os rituais improvisados revelam que o luto por celebridades sempre existiu. O que muda com o tempo são os modos de expressão e compartilhamento dessa dor — hoje acelerados, visibilizados, e muitas vezes performatizados pelas redes.

Esse tipo de luto sempre foi um espelho da cultura. Ele revela quem somos, o que valorizamos, como criamos laços simbólicos e, sobretudo, de que maneira nós nos organizamos emocionalmente em torno da perda. Em sociedades onde os vínculos comunitários estão mais frágeis — ou, se pensarmos em épocas passadas, nas quais muitos sentimentos eram reprimidos —, muitas vezes as celebridades se tornam figuras de referência emocional. De maneira curiosa, acabam sendo presenças estáveis em um mundo instável.

Ao mesmo tempo, como Freud também dizia, de uma perspectiva egóica, esse luto coletivo nos convida a pensar em nossa própria finitude. Há algo na morte de quem parecia eterno, seja pela juventude ou pela fama, que nos confronta com a passagem do tempo. Quando morre alguém que parecia imortal, morre também uma parte da ilusão de permanência que cultivamos sobre nós mesmos.

A espetacularização da morte — amplificada, mas não criada pelas redes — pode transformar o luto em entretenimento, esvaziando seu significado. Há um limite tênue entre a homenagem e a apropriação emocional. Mas o problema não está em sentir, e sim em explorar o sentimento como capital simbólico.

O luto por celebridades merece ser compreendido como parte da forma como organizamos nossos afetos e narramos nossas histórias. No fundo, talvez choremos também por nós. Porque cada luto simbólico é um lembrete: ainda somos humanos tentando encontrar sentido em meio ao ruído que sempre esteve presente, mas que parece cada vez maior.

Compartilhar
  • Twitter
  • Facebook
  • WhatsApp

Conteúdo relacionado


Sonhos não envelhecem

#49 Sonho Cultura

por Luciana Branco Conteúdo exclusivo para assinantes

Pontes sobre abismos

#32 Travessia Arte

por Aline Motta

Editorial: Sempre do outro lado

# Terra: Especial 10 anos Cultura

por Tomás Biagi Carvalho

Café, água e bolacha: Amyr Klink

#21 Solidão Amarello Visita

por Tomás Biagi Carvalho Conteúdo exclusivo para assinantes

Amarello Visita: Sergio Lucena

#43 Miragem Amarello Visita

por Rodrigo Villela Conteúdo exclusivo para assinantes

Arrumando a casa

#17 Fé Arquitetura

por Fernando Viégas Conteúdo exclusivo para assinantes

Enjoy the silence

#24 Pausa Design

por Camila Yahn Conteúdo exclusivo para assinantes

Fabiana Queiroga & Amarello – A beleza natural dos questionamentos

Design

A infância e a arte: território da subversão e da dádiva

#33 Infância Arte

por Bianca Coutinho Dias

Tran.se (s.m.)

#5 Transe Crônica

por Vanessa Agricola Conteúdo exclusivo para assinantes

A ilusão nossa de cada dia

#30 Ilusão Cultura

por Juliana de Albuquerque Conteúdo exclusivo para assinantes

Redonda

#36 O Masculino Cultura

por Bruno Cosentino Conteúdo exclusivo para assinantes

500.000 a.C.

#3 Medo História

por Leticia Lima Conteúdo exclusivo para assinantes

Trilha Sonora para um Golpe de Estado, de Johan Grimonprez.
CinemaSociedade

Jazz, colonialismo e as partituras do poder

por Revista Amarello

A história da luta pela independência africana não se fez apenas com discursos inflamados, marchas revolucionárias ou a brutalidade dos golpes de governo. Ela também vibrou nos contratempos do jazz. É essa pulsação dupla, tão política quanto musical, que estrutura Trilha Sonora para um Golpe de Estado, documentário-ensaio indicado ao Oscar do belga Johan Grimonprez — disponível no Sesc Digital, gratuitamente. 

O filme orquestra um concerto de imagens, sons e arquivos que, ao se entrelaçarem, compõem um ritmo para a compreensão da geopolítica do século XX. No improviso de trompetes e saxofones, desenha-se a cartografia tortuosa de uma guerra em que a música virou arma e os músicos tornaram-se embaixadores involuntários. Se recontar a tragédia da morte do líder anticolonial congolês Patrice Lumumba é o ponto de partida do filme, reorquestrar os arranjos entre arte, poder, colonialismo e propaganda, num crescendo que reverbera até hoje, é o verdadeiro propósito de Grimonprez.

1960, o ano da África. Dezesseis países recém-libertos do jugo imperialista ocupam suas cadeiras nas Nações Unidas. Entre eles, o Congo de Lumumba se ergue como símbolo de um futuro que parecia possível: anticolonial, pan-africano, soberano. Mas, por trás das cortinas diplomáticas, outra coreografia se ensaiava: uma dança de sombras realizada pelos Estados Unidos e a Bélgica, com co-autoria dos muitos outros braços ocultos dos interesses ocidentais, a fim de impedir que esse destino floresça. Por que não? Bem, o de sempre. O futuro que Lumumba ousou imaginar desafiava a sinfonia dos impérios, composta a partir da espoliação de recursos e corpos. E quem rege a orquestra não tolera notas dissonantes.

É este o cenário que Grimonprez nos convoca a ouvir. E o que ouvimos não são apenas as notas, mas os códigos, os disfarces, as contradições que ecoam baixinho no fundo. O timbre grave de Louis Armstrong, a intensidade de Nina Simone e as bochechas infladas de Dizzy Gillespie são símbolos de resistência, estando no front da luta pelos direitos civis nos EUA. Mas a vil instrumentalização disso acontece e os três são enviados como representantes culturais de uma suposta democracia americana para países africanos recém-independentes. 

O músico Louis Armstrong, um dos símbolos da cultura norte-americana.

O jazz, então, nascido da dor e da criatividade negra, acaba sendo vitrine do famigerado, e tão falacioso, american way of life. A ironia é brutal. Enquanto os músicos ganhavam “corações e mentes” na África, eles mesmos eram cidadãos de segunda classe em seu próprio país. 

Armstrong, que inicialmente recusou missões culturais, desembarca no Congo em outubro de 1960, com recepção triunfal, quase messiânica. Três meses depois, porém, Lumumba está morto. Torturado, fuzilado, dissolvido em ácido com a conivência de agentes da CIA, autoridades belgas e o silêncio cúmplice das grandes potências. A presença do músico em solo congolês não era um gesto de boa vontade cultural. Era uma cortina de fumaça para despistar a movimentação real do desmonte de uma revolução nascente.

Grimonprez não narra a história com a frieza de um relatório. Ele prefere colar imagens de arquivo, trechos de entrevistas, registros históricos, capas de discos e discursos políticos como quem improvisa um solo de saxofone, evocando o ziguezague da história e a impossibilidade de narrá-la de forma linear quando há tantos fios soltos e tantas omissões. O que Trilha Sonora para um Golpe de Estado propõe é, além do resgate histórico, uma reflexão sobre como o Ocidente constrói seus mitos de liberdade enquanto mina as liberdades alheias. É uma pergunta extremamente atual sobre o papel da arte em contextos de manipulação. 

E esse jogo duplo com o presente se faz valer ainda mais quando há a inserção de propagandas contemporâneas de iPhones e Teslas, apontando para uma continuidade da velha e conhecida pilhagem. O Congo de ontem, fonte de urânio para as bombas nucleares, é o mesmo Congo de hoje, rico em coltan e cobalto para alimentar a era digital. O colonialismo mudou de roupa, mas não de lógica.

Entende-se como Lumumba morreu, mas nos perguntamos também o que sua morte impediu de nascer. É impossível ver as imagens de um jovem e carismático líder africano, com um projeto continental de união, e não pensar nas ruínas do pan-africanismo, ainda hoje um ideal fragmentado por interesses externos. Ao fazer da música personagem central, Grimonprez propõe uma outra escuta do mundo. Não aquela das versões oficiais, mas a que se dá nas entrelinhas, nas notas jamais tocadas porque foram silenciadas antes do tempo. 

Ecoa daí o ruído incômodo da história sendo remixada diante de nossos olhos. É a consciência de que os golpes de estado não terminam no disparo. Eles reverberam, se atualizam, e seguem se camuflando, em um contexto no qual há, em comparação, mais lugares para se esconder. 

Se não escutarmos com atenção, seguiremos dançando no ritmo imposto por quem sempre escreveu as partituras do poder.

Compartilhar
  • Twitter
  • Facebook
  • WhatsApp

Conteúdo relacionado


Sonhos não envelhecem

#49 Sonho Cultura

por Luciana Branco Conteúdo exclusivo para assinantes

Dois Cunha

#22 Duplo Cultura

por Léo Coutinho Conteúdo exclusivo para assinantes

Colônias espaciais

#25 Espaço Cultura

Se você pode sonhar, pode fazer

#13 Qual é o seu legado? Arte

por Jair Peres Conteúdo exclusivo para assinantes

São Paulo Riviera (Sofia)

#25 Espaço Cidades

por Kathleen Maccaul Conteúdo exclusivo para assinantes

O gozo da santa e dos pecadores

#52 Satisfação Cultura

por Juliana Lang Lima Conteúdo exclusivo para assinantes

Pequeno mapa do tempo

#25 Espaço Design

por Bárbara Mastrobuono Conteúdo exclusivo para assinantes

Morte ou a iminência do que está prestes a parar de existir

Cultura

por Marina Lattuca

Um soluço de vida

#51 O Homem: Amarello 15 anos Cultura

por Eduardo Andrade de Carvalho Conteúdo exclusivo para assinantes

E quando a crise climática alcança nossas vidas?

Sociedade

por Revista Amarello Conteúdo exclusivo para assinantes

Reescrevendo “…E o Vento Levou”: A morte do Grão-Pará e o parto do Império do Brasil

# Terra: Especial 10 anos Cultura

por Márcio Souza

Universo particular

#19 Unidade Arte

por Leka Mendes Conteúdo exclusivo para assinantes

Tran.se (s.m.)

#5 Transe Crônica

por Vanessa Agricola Conteúdo exclusivo para assinantes

Angry Island, de Eleonore Koch (1974)
Cultura

Cem Anos de Solidão, a obra que transcende gerações

por Revista Amarello

Lançado em 1967, Cem Anos de Solidão de Gabriel García Márquez parece ser mais do que uma obra literária de impacto. Depois de quase 60 anos, fica claro que se trata de um livro que adentrou um certo panteão, tornando-se um fenômeno cultural que continua a se expandir para atravessar gerações e se reinventar em novas linguagens. A recente adaptação da Netflix revive a história da família Buendía em um formato inédito, oferecendo uma oportunidade para que novas audiências se envolvam com o universo criado por Márquez. A obra, embora situada na fictícia Macondo, é um reflexo sedutoramente real da complexidade humana e da história da América Latina. E talvez o mesmo possa ser dito sobre outros livros que deixaram sua marca, como Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo (que também ganhou adaptação do mesmo streaming), mas a sensação que fica é a de não chegam no mesmo patamar, ainda que possam ser clássicos com c maiúsculo. 

O que faz Cem Anos de Solidão ressoar mais e ser tão especial, além de surpreendentemente atemporal?

Para Eduardo de Faria Coutinho, Professor Titular Emérito de Literatura Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ele se destaca por construir uma identidade própria da América Latina, rompendo com os paradigmas do chamado cânone ocidental. “Foi preocupação de García Márquez”, afirma, “produzir uma obra que estivesse voltada para a realidade cultural latino-americana, marcando suas diferenças com relação à produção literária europeia e norte-americana. Daí a sua crítica tão veemente à lógica racionalista, cartesiana, que ele considerava própria dos colonizadores europeus, e seu uso do realismo mágico ou maravilhoso, que via como uma reação à tirania daquela lógica.” Para Coutinho, a obra funciona como um microcosmo da América Latina: “relata a saga de uma família, e, por extensão, de toda uma comunidade latino-americana, durante cem anos, traduzindo, metonimicamente, as etapas por que passou o continente e refletindo criticamente sobre a sua história.”

A pesquisadora Márcia Hoppe Navarro também destaca seu poder encantamento, o que, segundo ela, explica seu impacto duradouro: “O livro não teria o êxito que teve se não fosse extraordinário, maravilhoso, exercendo uma espécie de encantamento permanente em seus leitores.” Além da riqueza narrativa, vê que o romance responde a uma busca profunda pela identidade latino-americana, decifrando origens e história. Ela observa ainda que o livro “pode ser lido de várias maneiras, agradando desde os leitores mais simples, bem jovens às vezes, até os mais sofisticados.” Parte desse fascínio também se deve, segundo a pesquisadora, à forma como Márquez reuniu em Cem Anos de Solidão elementos de suas obras anteriores, “como se fosse o tabuleiro completo de um quebra-cabeça cujas peças foram sendo introduzidas nos seus livros precedentes.”

Ou seja, Cem Anos de Solidão tem uma capacidade de se reintegrar e se transformar com cada nova geração. A obra de Márquez se conecta com questões basilares ainda muito presentes na sociedade moderna, como a busca por sentido em tempos de incerteza e a permanência dos erros e ilusões humanas. Mantém um lugar privilegiado na cultura popular, porque toca em aspectos do ser humano que são atemporais. Em seu cerne, trata da experiência humana em sua totalidade. Apesar de sua ambientação e contexto latino-americano, suas reflexões sobre o amor, a morte, o poder e a solidão reverberam em qualquer lugar e em qualquer tempo.

O realismo mágico, o tempo cíclico, a memória coletiva e o peso da história criados por García Márquez continuam ecoando em outros trabalhos que não se propõem a adaptar Cem Anos de Solidão, mas que dialogam com seu espírito. Filmes como O Labirinto do Fauno (2006), de Guillermo del Toro, ou La Ciénaga (2001), de Lucrecia Martel; peças como Villa (2011), de Guillermo Calderón; e até discos como Transa (1972), de Caetano Veloso, revelam como o legado do autor colombiano ultrapassou o texto e se enraizou profundamente no imaginário cultural contemporâneo.

Por décadas, Cem Anos de Solidão permaneceu intocado no audiovisual por uma decisão do próprio García Márquez, que recusava adaptações por considerar que a estrutura e a linguagem do livro eram difíceis de traduzir para a tela. O autor também exigia que qualquer versão fosse feita em espanhol e por uma produção latino-americana, algo mais difícil de acontecer em sua época, se considerarmos um orçamento digno do tamanho do livro. Só após sua morte, em 2014, seus filhos Rodrigo García e Gonzalo García Barcha autorizaram a Netflix a produzir a primeira adaptação oficial, que estreou sua primeira parte em 2024, trazendo pela primeira vez Macondo e a saga dos Buendía para o universo das séries.

Para muitos, será uma nova porta de entrada para uma das maiores obras da literatura do século XX. Mas, no fim, não importa o formato, seja livro, série ou adaptação, a força do trabalho de Márquez reside em sua capacidade de fazer com que o público, muitas vezes sem saber, se veja refletido nas vidas dos Buendía.

Cem Anos de Solidão é uma espécie de espelho da história e da alma humana, com a vantagem de que, a cada nova releitura, sua presença parece mais intensa e relevante. Se ainda há uma lição a ser aprendida de Macondo, é que o tempo, esse protagonista silencioso, continua a se alongar indefinidamente, e as cicatrizes da solidão continuam a marcar o curso das vidas que, como os Buendía, se entrelaçam e se repetem, em um ciclo eterno de amores e despedidas.

É a prova de que algumas narrativas têm uma força tão intensa que atravessam o tempo, reinventam-se em novos formatos e seguem seu ribombar por diferentes gerações. Ao contrário do que o ritmo acelerado e digital do mundo atual sugere, palavras podem continuar pulsando no coração da cultura.

Compartilhar
  • Twitter
  • Facebook
  • WhatsApp

Conteúdo relacionado


Sonhos não envelhecem

#49 Sonho Cultura

por Luciana Branco Conteúdo exclusivo para assinantes

O que vem depois do capitalismo?

Cultura

por Revista Amarello

Até quando, Daniel?

#32 Travessia Crônica

por Vanessa Agricola

Água de barrela: mais cedo ou mais tarde a justiça se fará

#50 Família Literatura

por Pâmela Carvalho Conteúdo exclusivo para assinantes

Inteligência artificial e preconceito real

#48 Erótica Literatura

por Leticia Lima

Notas de um ex-acadêmico

#43 Miragem Cultura

por Rafael Kasper

Extacity

#10 Futuro Cultura

por Marko Brajovic Conteúdo exclusivo para assinantes

O futuro dos museus está dentro de nossas casas

#29 Arquivo Cultura

por Guilherme Abud Conteúdo exclusivo para assinantes

O que é bonito

#14 Beleza Cultura

por Bruno Cosentino Conteúdo exclusivo para assinantes

Notas sobre a (in)satisfação negra

#52 Satisfação Sociedade

por Alexandro Silva de Jesus Conteúdo exclusivo para assinantes

Eu sou a minha própria embarcação

#37 Futuros Possíveis Cultura

por Luedji Luna

Entre o muro e a Jabuticabeira. Eu vejo e me lembro, não vi, nem tava lá

#7 O que é para sempre? Cultura

por Helena Cunha Di Ciero Conteúdo exclusivo para assinantes

Leia o Norte!

#45 Imaginação Radical Cultura

por Izabela Nascimento

Sem título, de Eleonore Koch (1977).
Sociedade

E quando uma amizade chega ao fim?

por Revista Amarello

Nem toda perda precisa de um funeral para doer. O fim de uma amizade pode provocar um tipo de luto silencioso, muitas vezes subestimado. Em um mundo que valida o luto de despedidas definitivas e faz vista grossa para muitos outros, romper laços com alguém que já esteve perto gera uma dor difícil de nomear e ainda mais difícil de explicar. Essa falta de nome ou de explicação é capaz, inclusive, de agravar o sentimento. Muito embora seja um tipo de perda que se esforça para passar despercebida, ela carrega consigo uma dor profunda, profunda o suficiente para rivalizar com a de perder um familiar. Um amigo, afinal, é alguém com quem você escolheu caminhar junto, o que nem sempre é verdade com a família. 

O que acontece, então, quando um laço de amizade se desfaz? Quando de fato nos apercebemos dessa perda e qual é o nosso processo mental para lidar com ela? 

Ainda que seja menos discutido na sociedade, esse luto é um processo de ressignificação e aceitação que exige tempo e reflexão. Ao longo da vida, vemos muitas amizades nascerem e se extinguirem, assim como outras que resistem ao passar dos anos. Existe uma espécie de movimento natural na amizade, como se fosse uma dança de aproximações e distanciamentos, moldada pelas mudanças e escolhas de cada pessoa ao longo de sua jornada. Faz parte do jogo. Mas, ao mesmo tempo, nelas existe também uma certa sensação de perenidade. Diferente da relação com nossos pais — em que a diferença de idade traz a dolorosa consciência de que um dia, se a ordem natural das coisas se fizer valer, teremos que lidar com a perda deles —, a amizade costuma se construir entre pessoas da mesma geração. Talvez por isso ela carregue a ilusão de permanência, a sensação de que aquele laço vai durar para sempre, de que seguiremos lado a lado, sem grandes despedidas.

E, assim, tanto pela falta de atenção dada a ele quanto pela dificuldade em aceitá-lo como parte natural da vida, o luto pelo fim de uma amizade muitas vezes não é devidamente processado.

Pesquisas das universidades de Aalto, na Finlândia, e de Oxford, no Reino Unido, apontam que os círculos de amizade tendem a diminuir depois dos 25 anos. A vida muda, e com ela mudam também as prioridades: novos empregos, novos amores, filhos, rotinas que pouco deixam espaço para vínculos que antes pareciam eternos. Imagine, diante desse cenário, perder uma dessas relações. E nem toda distância é natural. Às vezes, há rompimentos explícitos, desentendimentos que racham a confiança; outras vezes, a amizade se desfaz em silêncio, deixando apenas a sensação de vazio.

Segundo a psicóloga estadunidense Marisa G. Franco, especialista em amizades e autora do best-seller Como fazer e manter amigos para sempre: guia prático para se relacionar com todos ao seu redor, a rejeição e a perda de conexões sociais, como as amizades, ativam regiões cerebrais relacionadas à dor física — conceito levado adiante hoje na neurociência por estudos como os de Naomi Eisenberger e Matthew Lieberman.

O fim de uma amizade, então, acabada por qualquer que seja o motivo e por iniciativa de qualquer uma das partes, tem um quê de rejeição forte. De qualquer jeito, a dor é real, pois não se trata apenas da perda de uma pessoa que estava presente nas celebrações e nas dificuldades da vida, mas de um pedaço de identidade que se desfaz. O amigo muitas vezes é o espelho que reflete partes de nós mesmos e, quando esse reflexo desaparece, somos deixados com a sensação de ter perdido algo fundamental. Mas, se não houve uma morte física, qual é o espaço que a dor tem? A resposta pode estar no fato de que o fim de uma amizade representa a perda de uma ligação emocional profunda, e o sofrimento é real, mesmo sem o reconhecimento dessa dor.

Diferente da interrupção definitiva que é a morte, o fim de uma amizade tem o potencial de deixar uma porta entreaberta, cheia de perguntas sem respostas. Por que nos afastamos? O que mudou? Será que poderia ter sido diferente? Essas perguntas assombram, deixando no ar uma incerteza regada por dúvidas lancinantes.

No entanto, a vida segue, e com ela vem o amadurecimento. Amadurecer, aqui, é reconhecer uma perda e encará-la, tirando disso o que pode haver de positivo. O luto por uma amizade, quando validado, oferece um convite à reflexão sobre o que realmente valorizamos nas pessoas ao nosso redor. Ao enfrentarmos a dor, começamos a entender que, assim como nas relações familiares, as amizades também têm ciclos, e que, embora algumas se percam, outras se renovam. E, de alguma forma, o sofrimento se mistura com as experiências de vida que seguem em frente, criando um espaço para novas conexões e entendimentos.

É essencial permitir que a dor se manifeste, sem pressa para superá-la. Ela é um lembrete de que amamos, de que nos importamos, e que, mesmo com o afastamento, as pessoas que passaram por nossas vidas sempre deixam marcas. 

O importante é ter força para continuar amando. O que resta, pois, é seguir em frente, com a consciência de que a vida e a amizade, assim como o luto, têm sua própria maneira de se reinventar.

Compartilhar
  • Twitter
  • Facebook
  • WhatsApp

Conteúdo relacionado


Sonhos não envelhecem

#49 Sonho Cultura

por Luciana Branco Conteúdo exclusivo para assinantes

Proust, o amor na terra: Os pilriteiros

# Terra: Especial 10 anos Cultura

por Thiago Blumenthal

A todas as mulheres do fim do mundo: Elza Soares, territórios negros e demolições

#40 Demolição Arte

por Pâmela Carvalho Conteúdo exclusivo para assinantes

O Homem

#51 O Homem: Amarello 15 anos Cultura

por Adriano Moraes Migliavacca Conteúdo exclusivo para assinantes

Os pontos luminosos da educação brasileira

#23 Educação Cultura

por Caio Dib Conteúdo exclusivo para assinantes

Conversa Polivox: Maurício Tizumba

#46 Tempo Vivido Música

por Sara Hana

Suave também é a felicidade

Cultura

por Leticia Lima

A Bolsa Maria

#35 Presente Design

por Savio Farias

Na capa: Nino Cais

#44 O que me falta Arte

MPB ou Música Preta Brasileira: muita treta para Vinicius de Moraes

Música

por Revista Amarello

Warhol, Bündchen e Vacas

#9 Obsessão Cultura

por Lígia Teixeira Conteúdo exclusivo para assinantes

Corpo campo

#23 Educação Cultura

por Poli Pieratti Conteúdo exclusivo para assinantes

Quem tem tempo para o tempo?

Cultura

por Revista Amarello

Sunshine on my island, de Eleonore Koch (1984).
Sociedade

Culto à juventude: qual é o lugar dos anos na sociedade?

A sociedade contemporânea vive uma contradição: ao mesmo tempo em que nunca se viveu tanto — a expectativa de vida global saltou de 52,6 anos em 1960 para mais de 73 anos em 2020, segundo dados do Banco Mundial —, o envelhecimento ainda é visto como um problema, um tabu, quase um erro de percurso. Enquanto o culto à juventude segue sendo celebrado em publicidade, cinema e redes sociais, a velhice permanece à margem, marcada pelo estigma da inutilidade e da decadência. Embora as discussões sobre o tema ganhem espaço nas redes sociais e o culto seja cada vez mais problematizado, na prática os mesmos preconceitos e problemas continuam a se repetir.

A obra Vida, velhice e morte de uma mulher do povo, do sociólogo francês Didier Eribon, serve como um ótimo ponto de partida para refletir sobre essa realidade. Eribon retrata a trajetória de sua mãe, uma mulher da classe trabalhadora, expondo como envelhecer, especialmente em contextos de pobreza, pode significar a perda progressiva de direitos e de visibilidade social. 

A velhice, como coloca Eribon, não é um fenômeno isolado, mas sim parte de um ciclo maior de marginalização social. Ele discute a ideia de que, enquanto os corpos envelhecem e as energias diminuem, as pessoas de classes populares são frequentemente desvalorizadas em relação às suas versões mais jovens e produtivas. Nas classes mais abastadas, não é a força física que gera produção e, consequentemente, riqueza. Já entre os mais pobres, essa força se torna um fator crucial de sobrevivência: carregar cargas, limpar, construir, cozinhar para os outros. Nesse panorama, o envelhecimento não é apenas um processo biológico, mas um agravante da invisibilidade social que, ao ser marcado pela fragilidade física, intensifica a marginalização de uma vida inteira dedicada ao trabalho.

Essa invisibilidade é ainda mais exacerbada por uma sociedade que cultua a juventude como o ápice da vida, onde os corpos esguios, vigorosos e belos são exaltados enquanto aqueles que envelhecem se tornam, muitas vezes, esquecidos ou ridicularizados. A relação entre velhice e marginalização social é especialmente complexa para as mulheres, que enfrentam, de maneira mais pronunciada, a pressão de manter uma imagem jovem e desejável. O livro do sociólogo francês ajuda a vermos como a velhice é um estado de opressão, que transcende o desgaste físico e se manifesta na forma de uma constante desvalorização social.

Por essas e outras, o envelhecimento populacional exige uma mudança de paradigma na forma como a sociedade encara a velhice. Caso contrário, estaremos fadados a uma contradição dolorosa e amplamente sentida.​ Esse descompasso fica evidente quando analisamos os números: a OMS estima que, até 2050, o número de pessoas com mais de 60 anos dobrará, ultrapassando 2 bilhões de indivíduos no mundo; no Brasil, o IBGE projeta que, em 2030, haverá mais idosos do que crianças e adolescentes. A priori, tudo isso é ótimo, estamos vivendo mais. Porém, políticas públicas, infraestrutura urbana e até o mercado de trabalho ainda não se adaptaram a essa nova realidade.

Alexandre Kalache, de 79 anos, tem sido uma das principais vozes no estudo da longevidade e do envelhecimento. Com 50 anos de dedicação ao tema, ele é um defensor da importância de se preparar para o envelhecimento de maneira mais eficiente e consciente, especialmente no Brasil. Em entrevista à BBC News Brasil, ecoando a visão de Didier Eribon, alertou sobre um dos maiores desafios do país: o envelhecimento acelerado da população, sem a devida preparação estrutural e social. “Estamos envelhecendo em pobreza, imensa desigualdade, face a catástrofes naturais”, afirmou o gerontólogo, destacando que, enquanto os países desenvolvidos tiveram tempo para se preparar para o envelhecimento, o Brasil está enfrentando este processo sem recursos adequados.

A desigualdade social e a falta de políticas públicas eficazes são questões que preocupam Kalache, que defende a criação de mais instituições públicas de longa permanência para idosos, como “asilos” ou “casas de repouso”, e a melhoria dos serviços voltados à saúde da população idosa. O Estatuto do Idoso, em vigor há mais de 20 anos, precisa ser mais respeitado, segundo ele, com um compromisso real por parte do Estado para que os idosos possam envelhecer com dignidade. Kalache também critica a forma como a responsabilidade pelo cuidado dos mais velhos recai sobre as famílias, muitas vezes as mulheres, que já carregam uma carga enorme de responsabilidades e limitações financeiras.

Ainda assim, surgem iniciativas que buscam reverter essa lógica. A OMS, por exemplo, lançou a Década do Envelhecimento Saudável 2021–2030, com o objetivo de mudar a forma como se vê e se trata as pessoas idosas. Entre as metas estão o combate ao idadismo e a promoção de cidades mais inclusivas para a velhice. Mas é claro que ainda temos muito a evoluir. A sociedade está em transformação para acomodar uma população cada vez mais madura. 

O grande desafio agora não é apenas garantir mais anos de vida, mas garantir que esses anos sejam vividos com qualidade. A velhice, longe de ser uma queda, pode ser vista como um tempo de potência, de experiência acumulada e de novas possibilidades — isso se a sociedade estiver disposta a derrubar seus próprios preconceitos.

É como diz Kalache, “se você quer chegar bem aos 90 ou 100 anos, comece agora.” Se isso vale para o corpo humano, também vale para o corpo do Estado. O futuro já está sendo escrito, e ele depende das decisões de agora.

Compartilhar
  • Twitter
  • Facebook
  • WhatsApp

Conteúdo relacionado


Sonhos não envelhecem

#49 Sonho Cultura

por Luciana Branco Conteúdo exclusivo para assinantes

Antes da ação há a imaginação

#45 Imaginação Radical Cultura

por Pâmela Carvalho

Trégua

#36 O Masculino Cultura

por Gui Mohallem Conteúdo exclusivo para assinantes

Do jeito que é

#19 Unidade Arte

O que é a liberdade na era das redes socias?

Cultura

por Revista Amarello

Saudade favorita — let me just keep this memory

Literatura

por Helena Cunha Di Ciero

Um garoto nova-iorquino

#29 Arquivo Cultura

por Léo Coutinho Conteúdo exclusivo para assinantes

Amizade como forma de Amor

#8 Amor Artigo

por Carmen Maria Gameiro Conteúdo exclusivo para assinantes

As manifestações e o desafio da mudança numa cultura avessa ao conflito

#13 Qual é o seu legado? Cultura

por Mariana Barros Conteúdo exclusivo para assinantes

Yves Saint Laurent: reflexões sobre beleza e gosto

#14 Beleza Design

por Everton Barreiro Conteúdo exclusivo para assinantes

Amarello Visita: Galpão Bela Maré

#38 O Rosto Amarello Visita

por Willian Silveira

A beleza como missão

#14 Beleza Cidades

por Maurício Gomes Candelaro Conteúdo exclusivo para assinantes

Estoicismo demais, empatia de menos: por que homens leem menos ficção?

Cultura

por Revista Amarello Conteúdo exclusivo para assinantes

Obra de Eleonore Koch. Saiba mais aqui.
CinemaMúsica

Se existe uma religião, a minha é a música: Hermeto Pascoal em O Menino d’Olho d’Água

por Revista Amarello

Entre tosses que viram percussão, copos d’água que se tornam instrumento e a sinfonia dos animais do sertão, o documentário O Menino d’Olho d’Água se propõe a muito mais do que contar a história de Hermeto Pascoal. Isso já valeria muito a pena de ser assistido, considerando que a história em si é ótima, mas a obra dirigida por Carolina Sá e Lírio Ferreira entende que isso o limitaria, e faz mais pela figura que retrata ao não tentar decifrar o “bruxo” passo a passo, nem enquadrá-lo em escolas ou movimentos. Prefere o caminho mais sincero, aquele que o próprio Hermeto indicaria: no lugar de explicar, sentir.

Distanciando-se do formato convencional de biografias audiovisuais — em especial as musicais, em que o período pré-fama ganha destaque por revelar o primeiro contato com a música, reverberando a mensagem “dali adiante, tudo mudou”, e com os anos de sucesso sendo reduzidos ao impacto cultural muitas vezes subjetivo —, o filme parte da liberdade criativa que sempre guiou o multi-instrumentista alagoano para construir uma narrativa igualmente livre, fragmentada em três tempos: o presente performático de Hermeto, seu passado em Olho d’Água Grande, no interior de Alagoas, e os bastidores atemporais do processo criativo. É um todo fascinante que cabe na simplicidade e grandiloquência de uma de suas frases: “a música sou eu, eu sou a música.”

O Menino d’Olho d’Água, disponível no Canal Curta!, não deixa de se agachar por sobre as origens de uma musicalidade intuitiva e radical. Mas dá a essa origem um ar quase etéreo. O filme começa com Hermeto tocando flauta dentro de um lago e esse gesto sintetiza o espírito do que veremos dali adiante — com toda a ênfase no “espírito.” A água deixa de ser apenas elemento cênico para tornar-se som, corpo e partitura. E tudo que o cerca, da boiada ao ronco noturno, é matéria-prima musical. O que circunda Hermeto vira sonância e, por isso, ele e sua música se confundem com o mundo. O mundo toca Hermeto, e Hermeto devolve em música. É uma relação íntima que emociona.

Ao costurar imagens de arquivo, apresentações recentes e depoimentos íntimos, o documentário revela mais pelas margens do que pelo centro. Quem se permitir flutuar pelas nascentes de por onde corre a música de Hermeto, encontrará um filme que ecoa sua própria lógica: nada aqui é linear, tudo é pulsação.

Nascido em 1936, Hermeto cresceu afastado das atividades agrícolas da família por conta do albinismo. Em vez da típica vida na roça, então, ele se pôs a descobrir e a fazer amizade com os sons do mato: o coaxar dos sapos, os assobios dos passarinhos, a sinfonia viva das matas de Alagoas. Ali se formou o ouvido que transformaria tudo em música. “Meu professor foi o universo”, diz ele. Assim, o mundo era sua escola, seu cotidiano, seu caderno de música levado a tiracolo.

Mas, em casa, o ambiente também era musical. O pai e o irmão tocavam acordeão; a mãe era cantora de coral. Esse incentivo decerto foi importante. Mas é no modo como ele transgride convenções, e ouve música onde os outros escutam apenas ruído, que sua grandeza se revela. Ao longo de sua trajetória — que inclui parcerias com ninguém mais ninguém menos que Miles Davis e uma carreira solo marcada por inovação —, Hermeto nunca se curvou a padrões. Sua música é selvagem, espontânea, profundamente brasileira e, ao mesmo tempo, universal. Ela parece vir de uma camada pouco explorada por outros artistas, algo vindo de um lugar mais elementar.

Aos 88 anos, Hermeto segue ativo. Em 2024, lançou Pra Você, Ilza, álbum dedicado à sua companheira de quase cinco décadas. Com ele, ganhou o Grammy Latino de Melhor Álbum de Jazz. É um trabalho que reafirma que, mesmo após décadas de invenção, Hermeto continua compondo como quando andava de ônibus nos anos 1970, repetindo as melodias que surgiam em sua cabeça para não perdê-las antes de chegar ao destino.

O Menino d’Olho d’Água não é sobre a história do músico, é sobre sua natureza. É sobre um artista que nunca separou som de vida, música de corpo, técnica de intuição. É um filme que, como ele, prefere o risco à fórmula. E que nos lembra que certos mistérios não foram feitos para serem explicados, mas ouvidos.

Compartilhar
  • Twitter
  • Facebook
  • WhatsApp

Conteúdo relacionado


Sonhos não envelhecem

#49 Sonho Cultura

por Luciana Branco Conteúdo exclusivo para assinantes

Utopia e pão

#9 Obsessão Cultura

por Léo Coutinho Conteúdo exclusivo para assinantes

Cenas de uma história mal contada

#4 Colonialismo Crônica

por Vanessa Agricola Conteúdo exclusivo para assinantes

Projeto Instagram

#13 Qual é o seu legado? Arte

por Isay Weinfeld Conteúdo exclusivo para assinantes

A chama do silêncio: os objetos são o refúgio

Design

por Revista Amarello Conteúdo exclusivo para assinantes

Sui Generis

#28 O Feminino Cultura

por Bianca Soares Conteúdo exclusivo para assinantes

Conversa Polivox: Jorge Mautner

#39 Yes, nós somos barrocos Arte

por Revista Amarello Conteúdo exclusivo para assinantes

Axel Vervoordt e o poder da imperfeição

Design

Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais

#50 Família Sociedade

por Helena Cunha Di Ciero Conteúdo exclusivo para assinantes

Literatura e ética: direitos autorais no mundo da Inteligência Artificial

Literatura

por Revista Amarello Conteúdo exclusivo para assinantes

Tempo e cotidiano: tempos para viver a infância

#33 Infância Cultura

por Maria Carmen Silveira Barbosa

Minha vida é uma novela

#18 Romance Cultura

por Hermés Galvão Conteúdo exclusivo para assinantes

O melhor amigo do homem

#22 Duplo Cultura

por André Tassinari Conteúdo exclusivo para assinantes

CulturaDesign

Têxteis do Brasil: a arte de bordar o tempo com as mãos

por Revista Amarello
Livro da pesquisadora Helena Kussik é um registro sensível dos variados saberes têxteis que marcam a identidade do Brasil.

No Sítio Mimoso, em Jataúba, Agreste Pernambucano, duas meninas se escondem debaixo de um pé de árvore. Com folhas de caruá, papel de açúcar e agulhas “roubadas” da mãe, decidem ali mesmo “aprender o renascenço”. O improviso não é brincadeira, é o prenúncio de uma habilidade que se tornará profissão, memória e identidade. Uma delas, Maria Aparecida de Oliveira, a “Bium”, hoje é referência na Renda Renascença, e essa cena, que poderia muito bem ter sido tirada de um conto, é uma das muitas narrativas que o livro Têxteis do Brasil – Rendas e Bordados, organizado por Helena Kussik, reúne com generosidade e escuta atenta.

E Helena aqui não é apenas uma pesquisadora. Neste projeto, é também uma testemunha sensível do que se aprende com o gesto, com o silêncio entre as palavras, com o tempo do bordado. O livro é fruto de uma jornada de mais de 10 mil quilômetros pelo Nordeste brasileiro, no qual o chão seco e o céu azul das paisagens agrestes guardam memórias tão profundas quanto os pontos de uma renda labiríntica. Realizada com apoio da Artesol, a publicação responde à urgência de reconhecer e preservar técnicas têxteis que, apesar de sua riqueza, permanecem pouco visíveis e muitas vezes subestimadas. 

Em cada capítulo, há o percurso de técnicas como a Renda Renascença, Singeleza, Labirinto, Boa Noite, Redendê, Bilro, entre outras. Técnicas que parecem falar de ornamento e delicadeza, mas que são, na verdade, ferramentas de sobrevivência e resistência. No conjunto desses capítulos, forma-se uma travessia afetiva, estética e política por catorze núcleos produtivos do Nordeste brasileiro, onde se bordam saberes ancestrais em formas que desafiam o tempo cronológico. “O tempo dos pontos, para mim, é o tempo da criação”, escreve Helena em sua introdução. E é nesse tempo espiralar que o livro se constrói: entre as linhas que cruzam o passado, o presente e o que ainda está por vir.

“A maioria inconteste dessas artesanias são criadas por mulheres de classes populares vivendo em áreas rurais”, aponta a pesquisadora Bianca Barbosa Chizzolini no prólogo, ressaltando como os bordados, ainda que originados no espaço doméstico, não se limitam à esfera privada. Muito pelo contrário, são caminhos para a emancipação. Uma artesã entrevistada por ela, por exemplo, conta que, por meio da venda de suas peças, conseguiu retomar os estudos. Outra entrevistada conta que viu o mar pela primeira vez em uma viagem a uma feira de artesanato. Essas histórias mostram que o bordado é também uma geografia de expansão. É nesse contexto que o “saber-fazer” deixa de ser apenas técnica e se afirma como identidade, política e poesia.

O livro respeita a lógica dos afetos tanto quanto a das técnicas. O foco está onde precisa estar, rendando a fazedura com a existência. Embora tenha nascido de uma extensa viagem de pesquisa, a obra não se organiza segundo um roteiro geográfico tradicional. Adota uma metodologia que dialoga com a ressalva feita desde o início aos mapas convencionais. Como lembra o antropólogo britânico Tim Ingold, citado no prefácio, os mapas traçam linhas para delimitar, mas não conseguem registrar “a identidade substantiva das pessoas e dos bens”. Para isso, é necessário outro tipo de cartografia, aquela que se desenha nos gestos cotidianos, nos risos partilhados em varandas, na tensão silenciosa da linha no lacê. É essa geografia sensível que o livro se propõe a registrar, e é aí que ele mais comove.

A técnica, aqui, não está separada da vida. “É você saber mesmo fazer a Renascença, para saber onde dá pra tecer o dois amarrado, o richiliê, a traça, o que é possível. Tem coisa que é impossível, que é só na imaginação”, diz Maria Laudecir, uma das riscadeiras entrevistadas. Os nomes dos pontos, que vão de “mosca” a “sianinha”, carregam histórias e regionalismos que seriam apagados por qualquer tentativa de padronização industrial.

Há também uma dimensão física e sensorial na produção têxtil que o livro faz questão de valorizar. As fotografias de Nathália Abdalla revelam a concentração no rosto das artesãs, o traço da idade nas mãos, a dança silenciosa dos dedos. Já as ilustrações de Camila do Rosário transformam pontos como “pipoca”, “amor seguro” e “dois amarrado” em registros visuais claros e expressivos. Têxteis do Brasil – Rendas e Bordados acaba sendo uma espécie de chamamento, um canto que convoca o reencontro com o fazer, com a escuta, com o reconhecimento. E faz isso sem cair no risco da folclorização, denunciando o apagamento histórico desses saberes e apontando caminhos possíveis para sua continuidade. Destaca, inclusive, o papel de políticas públicas, de projetos como o Crença (Centro de Referência da Renda Renascença) e das redes de comercialização direta.

Como um tecido que vai se estendendo, o livro deixa fios soltos para que sejam retomados. Não é um ponto final, mas uma laçada, um gesto de continuidade. Em tempos de algoritmos e aceleração, ele nos lembra que existe valor no tempo do detalhe, na pausa, no feito à mão. E que bordar, como viver, pode ser um ato de atenção radical. Porque, como dizem muitas das mestras, muitas vezes o aprendizado vem “de olhar”. E, se olharmos com atenção, veremos que cada renda é uma carta aberta do Brasil para si mesmo.

Helena Kussik encerra sua introdução com um desejo: “Que essa potência não fique restrita às lembranças de uma infância na casa da avó, nem seja deixada para um futuro distante, como a aposentadoria.” 

Que o têxtil seja agora. 

Compartilhar
  • Twitter
  • Facebook
  • WhatsApp

Conteúdo relacionado


Sonhos não envelhecem

#49 Sonho Cultura

por Luciana Branco Conteúdo exclusivo para assinantes

A Mão no Brasil: O tear rústico de Malhada Grande

Cultura

por Juliana Ronchesel

O gozo da santa e dos pecadores

#52 Satisfação Cultura

por Juliana Lang Lima Conteúdo exclusivo para assinantes

Todos os lugares estão em chamas

# Terra: Especial 10 anos Arte

por Mateus Acioli

Amyr Klink: “Eu venho da África”

#32 Travessia Cultura

por Amyr Klink

Pão de queijo

#20 Desejo Cultura

por Eduardo Araújo

A construção do vazio

#44 O que me falta Arquitetura

por Felipe Hsu Conteúdo exclusivo para assinantes

No cemitério das estátuas

#40 Demolição Arquitetura

por Rodrigo de Lemos Conteúdo exclusivo para assinantes

Nunca mais

#48 Erótica Literatura

por Amara Moira

Por que família? Um diálogo com Renato Noguera

#50 Família Filosofia

por Pâmela Carvalho Conteúdo exclusivo para assinantes

Temporada

#24 Pausa Arte

por Bem Gil Conteúdo exclusivo para assinantes

Amarello Visita: Ricardo Salem

#7 O que é para sempre? Amarello Visita

Breve história da corrupção dentro do Estado brasileiro

#26 Delírio Tropical Revista

por Mary Del Priore Conteúdo exclusivo para assinantes

Laranja azul (1990), de Eleonore Koch. Saiba mais aqui.
CulturaSociedade

Estoicismo demais, empatia de menos: por que homens leem menos ficção?

por Revista Amarello

Entre tanta correria, redes sociais, planilhas de trabalho e conteúdos de autoajuda, os livros de ficção têm perdido espaço no cotidiano das pessoas, em especial na vida dos homens. O Brasil é um país que lê pouco, e isso se deve a uma combinação de fatores: o acesso desigual à educação, o analfabetismo geral e o funcional, a precariedade das bibliotecas públicas, a falta de políticas consistentes de incentivo à leitura e o alto custo dos livros. Mas o desinteresse não se limita a quem enfrenta essas barreiras estruturais e, no meio disso tudo, os homens são tem mais se distanciado dos romances, motivados pela ideia de que esse tipo de livro é uma espécie de gasto de tempo improdutivo, uma atividade que não cabe na agenda de quem tem metas a cumprir.

Apesar da ausência de dados recentes que mostrem a preferência por romances dividida entre homens e mulheres, os levantamentos disponíveis indicam que o público feminino segue sendo maioria entre os leitores brasileiros. Segundo a pesquisa mais recente da Câmara Brasileira do Livro, feita em parceria com a Nielsen BookData e divulgada no começo de fevereiro, 61% das pessoas que compraram livros nos 12 meses anteriores eram mulheres — um salto em relação aos 57% registrados em 2023.

Já o levantamento Retratos da Leitura no Brasil, publicado em novembro de 2024, aponta que 22% dos leitores costumam escolher livros de contos, enquanto 20% preferem romances. Ou seja, entre cada 100 leitores, apenas 20 escolhem romances. Se cruzarmos essa porcentagem com o perfil de quem mais compra livros, é possível estimar que, a cada 100 pessoas que compraram romances, cerca de 61 seriam mulheres. Isso reforça a hipótese de que elas também são maioria entre as leitoras de ficção. Assim, mesmo sem um recorte específico por tipo de obra e gênero dos leitores, o cruzamento desses dados permite uma inferência: considerando que as mulheres representam a maioria dos leitores e compradoras de livros no Brasil, é bastante provável que também liderem quando estamos falando da leitura de romances. 

Se o Brasil lê pouco e os homens são os que leem menos, um número ainda menor recorre aos romances. Mas por quê?

Historicamente, o culto à produtividade é imposto mais fortemente sobre os homens. Ler, por prazer, seria quase um ato de resistência — e, no caso dos homens, uma pequena revolução contra a lógica do “faça mais em menos tempo”. Mas essa resistência, muitas vezes de pouco fôlego, acaba silenciada pela pressa e pela necessidade de produzir, produzir, produzir.

Durante o século XIX, nas casas mais abastadas, a leitura de romances tornou-se associada à feminilidade justamente porque as mulheres da burguesia, enclausuradas no espaço doméstico, buscavam na literatura uma válvula de escape. Os homens, ao contrário, se mantinham no domínio do “útil” e liam para se informar, para se educar, para construir. Um eco dessa visão antiquada ainda reverbera no mundo moderno. Romances ainda são sinônimo de fantasia “inútil”.

No Brasil, a diferença começa cedo. Segundo educadores, meninos costumam ter menos modelos leitores do mesmo gênero. Enquanto são incentivados a correr, competir e produzir, meninas crescem cercadas por mais referências literárias — nas mães, nas professoras, nas personagens que leem. Como resultado, por volta dos 11 anos, muitos garotos deixam para trás os livros que os encantaram na infância. A adolescência, então, vira praticamente de terra de ninguém para a leitura masculina. O mercado editorial, ao notar esse afastamento, responde reforçando estereótipos femininos, tanto na estética quanto na narrativa. E o ciclo se retroalimenta.

Quando a figura de um homem ideal é vendida, fugir à regra não é convidativo. Parecer sensível demais, por exemplo, é fugir dessa regra, assim como se envolver com emoções que não se encaixam na armadura do homem prático, do líder infalível, do sujeito que resolve, mas não sente. Há o medo de se reconhecer na fragilidade de um personagem, de chorar em público com uma cena banal, de se comover com a dor de alguém que nem existe. De entrar numa floresta literária onde não há trilhas bem demarcadas e a saída não é um falacioso “upgrade”. Visões ultrapassadas como essa ainda estão por toda parte — nas falas, nas piadas, nos silêncios. E continuam afastando muitos homens de algo simples, humano e necessário: a experiência da empatia.

O erro colossal dessa resistência, que chega a beirar o absurdo, está em enxergar a ficção apenas como passatempo, como um dispêndio sem função prática. Para além do problema de avaliar tudo a partir de sua praticidade, os romances, na verdade, têm muito a oferecer nesse quesito: nuances, contradições, zonas cinzentas — tal qual, veja só, a vida. Ler ficção não é se alienar da realidade, mas mergulhar nela com mais profundidade. É exercitar o olhar do outro, expandir o repertório emocional, treinar o olhar para aquilo que não está dito. E isso, convenhamos, é tudo menos fútil.

É claro que não ler romances ou valorizar a produtividade não quer dizer necessariamente que uma pessoa não tenha empatia, da mesma forma que ler ficção não transforma automaticamente uma pessoa em alguém mais sensível ao outro. Mas há, sim, estudos que indicam uma relação entre a leitura de ficção e o desenvolvimento da empatia e, na maioria das vezes, isso falta em muitos dos discursos que exaltam apenas a eficiência.

E é claro também que esse padrão de insegurança e de masculinidade estóica não é exclusivamente brasileiro. Como apontou uma matéria da Dazed que causou bafafá no meio do ano passado, muitos homens do Reino Unido, sobretudo os heterossexuais, tendem a evitar a ficção e, quando recorrem à leitura, preferem livros de não ficção com apelo à produtividade, melhoria pessoal e conhecimento prático. Não estamos sozinhos — e, nesse caso, isso não é um alívio.

A masculinidade, ainda marcada por traços de virilidade engessada, não abre espaço para o tipo de entrega emocional que a leitura de um romance exige. No Brasil, onde as taxas de depressão entre homens crescem e a busca por modelos positivos de masculinidade é urgente, o romance poderia ser uma rota alternativa. Não é exagero dizer que ler romances poderia ajudar a salvar vidas. Ao criar vínculos invisíveis com personagens, ao exercitar o músculo da empatia, o homem leitor deixaria de ser apenas espectador da própria rigidez. Tornaria-se, também, aquele que sente, sem precisar pedir desculpas por isso. 

Talvez esteja aí a verdadeira “ameaça” do romance: ele nos convida a parar. A desacelerar o passo, suspender as metas, silenciar as notificações internas. E parar, para muitos homens, ainda é sinônimo de fracasso. Mas se há algo de urgente no Brasil de hoje — e nos homens brasileiros, sobretudo — é a necessidade de reaprender a parar. De sair do modo “otimizar” e se permitir estar com um livro sem a cobrança de sair dele mais produtivo, mais forte, mais eficiente. Apenas estar. Ler por ler. Sentir por sentir. 

Seria fácil dizer que a perda é deles, e que lidem com isso. Que são os homens que deixam de acessar um repertório emocional mais vasto, que vivem presos em um modelo de masculinidade sufocante. Mas o buraco é mais fundo. Uma sociedade em que metade dos seus integrantes se afasta da ficção, da escuta e da vulnerabilidade não é uma sociedade equilibrada. Quando os homens se blindam contra o sentir, todas as relações empobrecem: afetivas, familiares, profissionais.

Há muito futuro nas páginas de um romance. Um futuro muito mais empático e menos violento. Mas, para alcançá-lo, essas páginas precisam ser folheadas.

Compartilhar
  • Twitter
  • Facebook
  • WhatsApp

Conteúdo relacionado


Sonhos não envelhecem

#49 Sonho Cultura

por Luciana Branco Conteúdo exclusivo para assinantes

Nós e eles: como pensar o direito dos animais?

Cultura

por Leticia Lima

Transformações aceleradas

#32 Travessia Crônica

por Vanessa Agricola

Linguagem e euforia

#1 Mudança Crônica

por Yasmine Sterea Conteúdo exclusivo para assinantes

Existe solução para o preço dos livros?

Cultura

por Revista Amarello Conteúdo exclusivo para assinantes

Na capa: Manuela Costa Lima

#50 Família Artes Visuais

por Manuela Costalima Conteúdo exclusivo para assinantes

Madalena e o ato de sentir o inominável

#43 Miragem Arte

por Noá Bonoba

Cosmologias bucoanais: narrativas nanopolíticas

#48 Erótica Cultura

por Felipe Ribeiro

Síndrome de Stendhal

#14 Beleza Cultura

por Leticia Lima Conteúdo exclusivo para assinantes

Conversa Polivox: Josyara

#32 Travessia Arte

por Pérola Mathias

Nudez de Atitude

#2 Nu Viagem

por Andrea Simioni Conteúdo exclusivo para assinantes

A Descoberta da Infância

#33 Infância Cultura

por Juliana de Albuquerque

Um espacinho para o humor

#25 Espaço Cultura

por Rica Bennozati Conteúdo exclusivo para assinantes

Sem título (1986)
Artes Visuais

Cores suspensas no tempo: a redescoberta de Eleonore Koch

por Revista Amarello

No coração dos Jardins, em São Paulo, uma ampliação da Paulo Kuczynski Galeria de Arte abre suas portas com uma retrospectiva dedicada a Eleonore Koch (1926-2018). A escolha não poderia ser mais acertada: a artista, que passou grande parte da vida nas sombras do reconhecimento, dando continuidade a uma redescoberta que vem acontecendo nos últimos anos, finalmente tem sua obra reavaliada com o devido destaque. A exposição inédita, aberta desde 17 de março, cobre cinco décadas de produção, oferecendo um aprofundamento nas singularidades de seu trabalho, em que cores suaves, composições meticulosas e silêncio visual compõem uma obra de imensa densidade.

Sunshine on my island (1974)

Nascida em Berlim, Koch ainda era criança quando sua família, de ascendência judia, emigrou para o Brasil para escapar da escalada nazista na Alemanha. Instalados em São Paulo, seus pais buscaram um novo começo e foi então que ela deu os primeiros passos na arte. Desde cedo, interessou-se pela pintura e pelo desenho, tendo sua formação influenciada por nomes fundamentais para o modernismo brasileiro, como a pintora Yolanda Mohalyi (1909-1978), a escultora Elisabeth Nobiling (1902-1975) e o pintor Samson Flexor (1907-1971). No entanto, sua maior referência viria anos depois, com ninguém mais ninguém menos que Alfredo Volpi (1896-1988).

Sem título (1977)

Entre 1949 e 1952, Koch viveu em Paris, onde estudou com Árpád Szenes (1897-1985) para se dedicar mais ao desenho e à escultura. A experiência na capital francesa deixou marcas na precisão de sua composição, mas foi ao retornar ao Brasil e estudar com Volpi que encontrou a técnica que definiria sua obra: a têmpera a ovo. Esse método milenar, utilizado desde a Idade Média, consiste na mistura de pigmentos com gema de ovo e água que resulta em uma tinta de secagem rápida e acabamento fosco. A têmpera dá maior densidade às cores, tornando-as vibrantes e luminosas, ao mesmo tempo que permite uma aplicação em camadas finas e realça a solidez das formas. 

Em suas mãos, essa técnica transformava superfícies planas em composições de textura aveludada e contornos delicadamente definidos, criando um efeito de suspensão no tempo. Sua aproximação com Volpi fez com que, por algum tempo, erroneamente fosse vista como um desdobramento do geometrismo colorido do mestre. Porém, ao contrário dele, que dissolvia a figuração em elementos abstratos, Koch jamais abandonou a representação. Suas pinturas são caracterizadas por uma atmosfera silenciosa e contemplativa, com interiores e paisagens despovoados que transmitem uma sensação de pausa, como se cada cena estivesse à espera de um acontecimento. Isso confere ao trabalho da artista uma dimensão quase cinematográfica de dilatação do tempo, remetendo a fotogramas de um filme interrompido, diante dos quais a pessoa espectadora é convidada a imaginar a narrativa que ali se desenrola.

Koch trabalhava com uma economia de elementos, reduzindo suas composições ao essencial. Suas cenas muitas vezes apresentam apenas um ou dois objetos, meticulosamente dispostos dentro do espaço pictórico. Em suas representações de vasos, portas, janelas e mesas, por exemplo, há um equilíbrio entre solidez e leveza, entre presença e ausência. Outro aspecto distintivo de sua pintura é a relação entre forma e fundo, como uma investigação da fusão entre objetos e espaço que cria superfícies planas onde os elementos parecem se dissolver no ambiente. Essa abordagem remete à tradição da pintura modernista, mas sem os excessos do abstracionismo radical. Sua obra mantém um vínculo com a realidade, ainda que filtrada por uma sensibilidade minimalista

Sem título (1986)
Laranja azul (1990)

A sensação de espera tão presente em suas produções, aliás, reflete de forma curiosa o tempo que Koch passou sem o devido reconhecimento. Depois de décadas de trabalho, com suas cores suspensas no tempo e sua solidez irredutível, a expectativa enfim se rompe: sua obra, que enquanto a artista estava viva nunca teve o destaque que merecia, enfim vem recebendo a valorização há tanto aguardada.

É verdade que Eleonore Koch tinha um nome. Chegou, inclusive, a participar de quatro edições da Bienal de São Paulo (1959, 1961, 1963 e 1967) e se consolidou como uma artista respeitada. Mas nunca era colocada na prateleira dos grandes. Em 1968, portanto, mudou-se para Londres, onde permaneceu por vinte anos. No cenário brasileiro da década de 1960, dominado pela abstração geométrica e pela arte concreta, sua pintura figurativa encontrava pouco espaço. Em Londres, porém, encontrou um círculo mais receptivo e passou a expor na Mercury Gallery. Seu trabalho atraiu o interesse do colecionador e mecenas Alistair McAlpine, que adquiriu diversas obras e ajudou a divulgar seu nome no circuito europeu.

Apesar do relativo sucesso, Koch teve que se reinventar profissionalmente para sobreviver. Por mais incrível que pareça, chegou a trabalhar como tradutora para a Scotland Yard, mantendo a pintura como um exercício constante, mas sem a projeção que ela sonhava.

Em 1989, Eleonore Koch retornou ao Brasil e retomou sua produção em São Paulo. Foi apenas então, nas décadas seguintes, que sua obra começou a ser reavaliada de forma mais ampla. A grande virada veio nos últimos anos, com exposições importantes, como a retrospectiva no Museu de Arte Contemporânea da USP no ano passado, que reuniu cerca de 190 pinturas e revelou a extensão e profundidade de seu trabalho. Agora, com a retrospectiva inédita na nova ampliação da galeria de Paulo Kuczynski, a artista volta ao centro do debate, reafirmando sua relevância na história da arte brasileira.

Angry Island (1974)

Seu trabalho vem sendo redescoberto, acima de tudo, por sua capacidade de criar um universo pictórico singular, no qual a quietude e a precisão se transformam em poesia visual. Koch criou uma pintura que é, ao mesmo tempo, rigorosa e poética, construída com uma precisão quase arquitetônica, mas que, de algum jeito, emana uma suavidade que a torna profundamente humana.

E, assim, alguns anos após a sua morte, vem se abrindo essa nova etapa no entendimento do que produziu, não mais como um eco de Volpi e nem como uma artista periférica: como uma voz essencial na arte do século XX. A solidez de sua pintura, por tanto tempo subestimada, agora se impõe com a força que sempre teve — e, mais do que nunca, ninguém há de destruí-la.

Compartilhar
  • Twitter
  • Facebook
  • WhatsApp

Conteúdo relacionado


Sonhos não envelhecem

#49 Sonho Cultura

por Luciana Branco Conteúdo exclusivo para assinantes

Amor imenso

#8 Amor Arquitetura

por Tomás Biagi Carvalho Conteúdo exclusivo para assinantes

Conversa Polivox: Jorge Mautner

#39 Yes, nós somos barrocos Arte

por Revista Amarello Conteúdo exclusivo para assinantes

Escombrosquietos

#40 Demolição Cultura

por Arturo Gamero

De qualquer forma, que horas são agora?

#35 Presente Cultura

Brutalismo: a arquitetura para além do filme

Arquitetura

por Revista Amarello Conteúdo exclusivo para assinantes

Amarello Visita: Maria Luiza Jobim

#33 Infância Amarello Visita

O Polochon de Lina Bo Bardi

Arte

O que vem depois do capitalismo?

Cultura

por Revista Amarello

Água de barrela: mais cedo ou mais tarde a justiça se fará

#50 Família Literatura

por Pâmela Carvalho Conteúdo exclusivo para assinantes

As paisagens de Maria Andrade

#43 Miragem Arte

por Luísa Kiefer

A Estrangeira

#31 O Estrangeiro Cultura

por Juliana de Albuquerque

“Homem-Peixe”: Uma conversa com Allexia Galvão e Gleeson Paulino

Arte
Canteiros da Varanda, de Genaro de Carvalho (1966).
Design

Melodia das Tramas e a riqueza da tapeçaria brasileira

por Revista Amarello
Do abstrato ao figurativo, exposição reúne nomes essenciais da arte têxtil brasileira.

A Galeria Passado Composto Século XX inaugurou, em 29 de março, a exposição Melodias das Tramas – de Genaro de Carvalho a Jorge Cravo, reunindo um seleto conjunto de obras que ilustram a diversidade e a sofisticação da tapeçaria moderna brasileira. Com curadoria de Alejandra Muñoz e Graça Bueno, a mostra permanece em cartaz até 21 de junho de 2025 e ocorre paralelamente à participação da galeria na SP-Arte 2025.

Tapeçaria bordada, de Sylvio Palma (1973)

A exposição reúne obras de nove artistas que, em diferentes momentos e contextos, expressaram a identidade brasileira por meio da tapeçaria. Com estilos que vão do abstrato ao figurativo, a lista de artistas homenageados é de peso, com nomes fundamentais da nossa arte têxtil: Genaro de Carvalho, Jacques Douchez, Norberto Nicola, Jean Gillon, Rubem Dario, Sylvio Palma, Maria Helena Andrés, Gilda Azevedo e Jorge Cravo. O recorte temporal da seleção engloba obras criadas entre 1960 e 1988, e explora técnicas diversas, como tapeçarias planas e escultóricas, bordadas à mão ou tecidas no tear.

Essa pluralidade de técnicas se soma ao conceito central da exposição, que gira em torno da ideia de sinfonia visual, com cada obra refletindo um “compasso” único de formas e cores em harmonia. Melodias das Tramas, assim, canta e dança o legado de artistas que, ao longo das décadas, trabalharam com tapeçarias como forma de expressão artística, conectando elementos da natureza, da cultura e das tradições brasileiras. A exposição inclui não apenas tapeçarias, mas também cartões-modelo, pinturas, serigrafias, gravuras, quadros e desenhos, oferecendo uma visão abrangente das diferentes fases e processos criativos desses artistas. 

Tudo pensado para que a experiência visual da exposição seja sinestésica, convidando o espectador a perceber a interseção entre as cores, os ritmos e as formas como se fosse uma grande obra musical que atinge grande notas de brasilidade.

Além dessa abordagem ampla que se refere aos nove artistas, o título da exposição remete à musicalidade presente, sobretudo, na obra de Jorge Cravo (1927-2015), que iniciou sua trajetória na tapeçaria em 1972. Suas composições vibrantes dialogam com as experimentações dos demais artistas expostos, destacando-se pelo ritmo melódico e pela sofisticada combinação de cores e formas. Com um estilo único, suas tapeçarias parecem seguir partituras visuais, onde texturas e ritmos ganham vida própria, traduzindo influências musicais em tramas entrelaçadas. Sua obra é marcada por um tratamento sensorial, no qual a justaposição de tons e volumes evoca imagens, cadências e harmonias. Inspirado tanto pelo modernismo quanto pela cultura popular brasileira, Cravo conseguia transportar para a tapeçaria a expressividade do gesto pictórico e a fluidez do movimento sonoro, criando composições que parecem vibrar no espaço, como se o olhar pudesse escutar o que as tramas contam.

Para destacar outros nomes, o francês Jacques Douchez (1921-2012), que se estabeleceu no Brasil aos 26 anos, e Norberto Nicola (1931-2007) exploram a tridimensionalidade e a abstração em suas obras. Já o romeno Jean Gillon (1919-2007), que chegou ao país em 1956, e Rubem Dario (1941-1978) transitam entre o geométrico e o orgânico com notável elegância. Sylvio Palma (1946-1978) e Gilda Azevedo (1924-1984), por sua vez, criam composições vibrantes, nas quais cores e formas se misturam em uma coreografia visual.

Estandarte, de Norberto Nicola (1965)

Esta mostra, cujas escolhas denotam muito cuidado e um propósito claro, reflete o trabalho da Galeria Passado Composto Século XX, que, ao longo de 16 anos, tem se dedicado à pesquisa e ao resgate da tapeçaria moderna brasileira, colocando em evidência a importância dessa arte no contexto cultural nacional e internacional. A galeria continua a enaltecer a história e o legado de artistas, preservando a memória e a identidade têxtil do Brasil. Além da exposição principal, a galeria participa da SP-Arte 2025 com uma mostra individual de Jorge Cravo, também chamada Melodias das Tramas. 

Conversamos com Graça Bueno, que, além de curadora da exposição, também é proprietária da galeria. Confira abaixo:

Pensando nesse mosaico da tapeçaria moderna brasileira que vocês criaram, como foi o processo de seleção das obras para a exposição?

Graça Bueno: Esta seleção vem sendo formada ao longo dos últimos 16 anos, a partir da oportunidade de encontro com as obras artísticas que fomos nos apaixonando, e, intuitivamente, nos dedicamos à redescoberta ou ao resgate de artistas fundamentais para a tapeçaria moderna no Brasil. Alguns desses artistas são pioneiros, tendo sido reconhecidos ao longo de suas carreiras tanto nacionalmente quanto internacionalmente e tendo participado, simultaneamente, de exposições marcantes sobre este tema no Brasil.

A tapeçaria tem uma forte tradição artesanal, mas também abre espaço para inovações. Como vocês enxergam esse equilíbrio entre preservar as técnicas tradicionais e experimentar novas abordagens?

GB: Acreditamos na “Inteligência Artesanal” que envolve componentes e técnicas tradicionais ou inovadoras e sustentáveis, individualmente ou juntas em equilíbrio, executadas por artesãos especializados ou pelo próprio artista. O mais importante é que a obra seja executada com uma direção artística criativa e única, que a torne reconhecível como sendo do artista que a concebeu.

Fale um pouco mais sobre a relação da tapeçaria e a musicalidade, tanto especificamente na obra de Jorge Cravo quanto na exposição com um todo.

GB: A curadora Alejandra Muñoz comenta sobre o conjunto das obras: “Às vezes, parece que estamos diante dos compassos e movimentos de uma grande sinfonia.” Ruy Castro descreveu Jorge Cravo como “Cravinho”, para os amigos, um baiano fanático por cantores de jazz e pela música popular brasileira. Acreditamos que foi o amor pela música que sensibilizou o homem de negócios Jorge Cravo, fazendo-o revelar seu talento artístico, que também foi incentivado por amigos como Carybé e Jorge Amado.

Tapeçaria em lã, de Jorge Cravo (1972)

Vocês acreditam que há um crescente interesse pela tapeçaria moderna brasileira no circuito internacional de arte?

GB: Sim, acreditamos muito nisso. Além de colecionadores, temos recebido solicitações de curadores e instituições para o empréstimo de obras para exposições nos Estados Unidos e na Europa. Uma das participações internacionais mais significativas recentemente foi com obras do artista Genaro de Carvalho na exposição itinerante nos Estados Unidos: “Black Orpheus: Jacob Lawrence & the Mbari Club”, realizada entre 2022 e 2023 pelo Chrysler Museum, com curadoria de Kimberli Gant.

Impulsionado por artistas como Jorge Cravo e Genaro de Carvalho, que têm um impacto imenso, qual é o futuro da tapeçaria brasileira?

GB: O futuro e o presente passam por ver mais tapeçarias modernas sendo retiradas das reservas técnicas dos museus e incorporadas em exposições, tanto permanentes quanto temporárias, como atualmente na Pinacoteca do Estado de São Paulo, com a exposição “Tecendo a Manhã”, que inclui uma obra do nosso acervo do artista Genaro de Carvalho, além de obras de diversos artistas tapeceiros de outras coleções. Hoje, muitos artistas contemporâneos têm demonstrado o desejo de criar obras têxteis, seja em colaboração com artesãos ou feitas por eles mesmos, como, por exemplo, as tapeçarias da artista Beatriz Milhazes, que vêm sendo executadas em ateliês na região de Aubusson, na França, e recentemente foram expostas na Bienal Internacional de Veneza de 2024.

Melodias das Tramas – de Genaro de Carvalho a Jorge Cravo
Local: Galeria Passado Composto Século XX
Endereço: Alameda Lorena, 1996, Jardins, São Paulo
Período de visitação: 29 de março a 21 de junho de 2025
Horários: Segunda a sexta, das 10h às 19h; sábados, das 10h às 14h

SP-Arte 2025
Local: Pavilhão da Bienal, Parque IbirapueraDatas: 2 a 6 de abril de 2025

Compartilhar
  • Twitter
  • Facebook
  • WhatsApp

Conteúdo relacionado


Sonhos não envelhecem

#49 Sonho Cultura

por Luciana Branco Conteúdo exclusivo para assinantes

Semente

#46 Tempo Vivido Literatura

por Iliana Vargas

Ressignificar o passado: François Truffaut e a infância

#33 Infância Arte

por Willian Silveira

Itcoisa: Vale do Ribeira

# Terra: Especial 10 anos Cultura

Naturismo e a busca pela vida simples

#2 Nu Cultura

por Flavia Milioni Conteúdo exclusivo para assinantes

Sertão, de Caminha a caminho

#51 O Homem: Amarello 15 anos Cultura

por Jorge Caldeira Conteúdo exclusivo para assinantes

Amarello Visita: Aromaria

#48 Erótica Amarello Visita

por Gustavo Freixeda Conteúdo exclusivo para assinantes

O futuro do trabalho e os impactos na economia

Sociedade

por Revista Amarello Conteúdo exclusivo para assinantes

Para todos os mares

Arte

Carnaval, a epopeia da comunidade serrana – Diálogos com a obra Serra, Serrinha, Serrano: O império do samba

#39 Yes, nós somos barrocos Cultura

por Priscila Carvalho Conteúdo exclusivo para assinantes

Storytelling

#4 Colonialismo Arte

por Theo Firmo Conteúdo exclusivo para assinantes

MPB ou Música Preta Brasileira: muita treta pra Vinícius de Moraes

#47 Futuro Ancestral Arte

por Rafael de Queiroz Conteúdo exclusivo para assinantes

Conversa Polivox: Juliana Perdigão

#33 Infância Arte
Komposition A XXI, de László Moholy-Nagy. Imagem de acervo do Museu Guggenheim.
DesignSociedade

O design pode realmente mudar o mundo?

por Revista Amarello

O design sempre transitou entre o prático e o simbólico, entre a solução de problemas e a expressão de identidades. Mas é possível que ele também se torne uma atitude e, impulsionado por uma missão, seja transformado em uma ferramenta efetiva em prol de um mundo melhor? Se sim, quando e como exatamente isso acontece? 

Alice Rawsthorn, ex-diretora do Museu de Design, em Londres. Foto de Michael Leckie.

Alice Rawsthorn, autora e crítica britânica, propõe e expande essas reflexões em seu livro Design como Atitude. Na obra, defende que o design, longe de se limitar à esfera profissional, está presente em respostas instintivas e criativas a desafios sociais, políticos e ambientais. Essas respostas, aliás, estão tão relacionadas às questões que tocam presentemente o mundo que o trabalho, originalmente lançado em 2018, passou por uma recente revisão da autora, que chegou até a escrever um novo capítulo para dar conta das problemáticas mais recentes que assolam o planeta. “O design é uma força onipresente em nossas vidas”, diz ela, ponderando sobre a motivação para reavaliar os próprios textos, “portanto, seus desafios são os desafios do nosso tempo. Uma das muitas razões pelas quais adoro escrever sobre design é que ele está em constante mudança, pois responde a novos fenômenos, me obrigando a reavaliar constantemente meu pensamento.” A nova edição, que conta com conteúdo revisado e textos adicionais, foi lançada pela editora Ubu neste ano. 

O conceito de design atitudinal começa a ser explicado por Rawsthorn com László Moholy-Nagy (1895-1946), artista húngaro que via o design não apenas como uma prática técnica, mas como um compromisso de intervir no mundo de maneira engenhosa. Pelo prisma de László, que estruturou alguns preceitos seminais em seu Vision in Motion, a coisa toda iria muito além da estetização de objetos ou da otimização de processos industriais — esses seriam somente os primeiros passos em uma direção mais ambiciosa. Sendo um dos pais do conceito, uma de suas frases gerou o título do livro: “Fazer design não é uma profissão, é uma atitude.” 

Tomando os exemplos que a própria autora usa, o design atitudinal se manifestaria, por exemplo, em projetos que enfrentam a poluição plástica nos oceanos, como o The Ocean Cleanup, uma organização holandesa sem fins lucrativos que visa enfrentar a poluição ao remover lixo plástico de rios e oceanos, ou em iniciativas como a Sehat Kahanique (“Relatório de Saúde” em urdu), que usa telemedicina para conectar mulheres médicas paquistanesas a pacientes de regiões carentes.

Para Rawsthorn, a interseção com outras áreas é um sinal de vitalidade. “O design sempre teve uma relação ambígua com a arte e a tecnologia. Agora, ele também se confunde com a ciência social e a política”, observa. Ao longo do livro, os textos exploram como o design atitudinal se manifesta na prática, por meio de projetos que, tal qual o holandês e o paquistanês, utilizam inovação e tecnologia com objetivos altruístas, além de seu papel como ferramenta de resistência e transformação. Sob essa ótica, o design emerge como um poderoso meio de empoderamento, oferecendo soluções inovadoras para as comunidades e indivíduos que buscam superar seus desafios.

Mas, se o design pode ser tudo, ele ainda é design? Não seria ativismo, filantropia, ou o que quer que seja? De acordo com a autora, “vivemos em uma cultura porosa, onde todas as disciplinas se intersectam de alguma forma, incluindo o design. No entanto, o design se beneficia por ter uma missão, função e identidade claramente definidas como um agente de mudança, capaz de garantir que transformações de qualquer tipo—sociais, políticas, culturais, científicas, tecnológicas ou ambientais—sejam interpretadas de maneira a nos impactar positivamente, em vez de negativamente.”

Design como Atitude discute como designers de diferentes áreas estão assumindo posturas atitudinais e redefinindo os limites da profissão. Lançando mão de outro exemplo citado no livro, os designers africanos têm desempenhado um papel importante no desenvolvimento de dispositivos médicos acessíveis, como o Cardiopad, um monitor cardíaco criado por Arthur Zang que permite que pacientes em regiões remotas recebam diagnósticos à distância. Da mesma forma, o coletivo Forensic Architecture usa ferramentas de design para reconstruir eventos e ajudar na investigação de crimes contra os direitos humanos. Ambos os casos demonstram que o design, em sua forma mais ampla, está se tornando cada vez mais um agente político e social. 

Da maneira como o diapasão do capitalismo vibra, porém, há a possibilidade que, com frequência, isso seja usado pelas empresas com os propósitos errados, meramente de forma simbólica e visando uma boa reputação, ou então que partam de pressupostos que nem sempre estejam no caminho mais certeiro. Quando ocorre, os danos são significativos. “Sempre existe o risco de fenômenos relativamente novos, como o design atitudinal, serem usados de forma simbólica”, explica Rawsthorn. “Isso é perigoso, pois esses projetos raramente funcionam, o que pode minar a confiança no design atitudinal. Por isso, é fundamental que os designers atitudinais aceitem que, à medida que seu trabalho se torna mais ambicioso, as consequências do fracasso serão muito maiores. Da mesma forma que cada projeto atitudinal inteligente e bem elaborado representará um avanço, cada falha mal planejada será um retrocesso.”

Em tempos de crises climáticas e sociais, a expectativa de que o design desempenhe um papel transformador é cada vez maior. Mas até onde vai essa responsabilidade? É mesmo positivo que designers sejam chamados a resolver problemas que antes eram vistos como políticos, econômicos ou mesmo filosóficos?

“Um dos principais benefícios do design atitudinal é que ele libera os designers das restrições impostas a eles na era industrial, quando o design era predominantemente um fenômeno comercial, executado sob a orientação de outras pessoas, fossem empregadores, clientes ou qualquer outro. O design atitudinal rompeu com esse modelo. Ele é um produto dos avanços da tecnologia digital, que proporcionaram aos designers ferramentas poderosas — para captação de recursos, comunicação, gestão de dados, alcance global e muito mais — permitindo que escolham atuar de forma independente e sigam seus próprios objetivos humanitários, políticos ou ecológicos. Trata-se de um complemento ao design comercial, e não de um concorrente.”

Um aspecto central do design atitudinal é a sua relação com a inclusão e a diversidade. Rawsthorn aponta como a tradição do design sempre foi dominada por homens brancos ocidentais, e como isso moldou suas direções e prioridades. A maior abertura a outras vozes pode redefinir não apenas o que se projeta, mas quem projeta. É uma ideia bonita, mas, de novo, com a selvageria do capitalismo diante de nós, é difícil não ter certo ceticismo. O mercado e as instituições estão mesmo dispostos a abraçar essas mudanças? 

Sendo realista, a autora responde: “Não vejo isso como uma questão de design comercial versus design atitudinal, mas sim como uma expansão da prática e das possibilidades do design, tornando-o mais eclético e aberto, abrangendo tanto o setor tradicional e comercial do design da era industrial quanto os projetos de design social, político, humanitário e ecológico promovidos pelo design atitudinal. Em teoria, o design comercial deveria se beneficiar dessa expansão, pois mais pessoas com habilidades, redes e agendas diversas passarão a se envolver com o design. Além disso, muitas das questões centrais abordadas pelo design atitudinal, como inclusão e ambientalismo, estão se tornando cada vez mais relevantes para o setor comercial.”

O design como atitude está em plena expansão, e seu sucesso dependerá menos de definições teóricas e mais da capacidade de seguir gerando respostas inovadoras para os desafios do nosso tempo. E esses desafios não param de surgir — o que, para bem ou para mal, apenas reforça o peso da responsabilidade por trás dessa abordagem.

“Revisei o texto de Design como Atitude a cada reimpressão e nova edição, adicionando novos textos sobre desafios globais emergentes, como as crises humanitárias causadas pela Rússia na Ucrânia e por Israel em Gaza, além de novas análises de desafios preexistentes que se agravaram. Pegue a crise global de refugiados, por exemplo. Quando a primeira edição foi publicada em 2018, a ONU estimava que havia 70,8 milhões de pessoas deslocadas à força em todo o mundo. Na época, isso já parecia horrível, mas, de forma ainda mais alarmante, no ano passado esse número chegou a 125 milhões, tornando o desafio do design para cuidar dessas pessoas ainda maior.”

Se por um lado ele amplia o alcance da prática do design, por outro demanda um compromisso maior. E uma coisa é fato: com tantas questões urgentes, sua efetividade será testada, assim como seu verdadeiro potencial de transformação. O design atitudinal não pode se dar ao luxo de adiar a prova de seu valor — e o mundo, sabemos, não tem tempo a perder.

Compartilhar
  • Twitter
  • Facebook
  • WhatsApp

Conteúdo relacionado


Sonhos não envelhecem

#49 Sonho Cultura

por Luciana Branco Conteúdo exclusivo para assinantes

A diversidade e os seus meios

#41 Fagulha Cultura

por Vinícius Portella Conteúdo exclusivo para assinantes

Brasil colônia

#4 Colonialismo Crônica

por Nuria Basker Conteúdo exclusivo para assinantes

Alguns dias depois do Donald Trump ser eleito

#26 Delírio Tropical Cultura

por Vanessa Agricola Conteúdo exclusivo para assinantes

Amor imenso

#8 Amor Arquitetura

por Tomás Biagi Carvalho Conteúdo exclusivo para assinantes

Rhonda completa

Arte

por Alice Granato

A invenção da criatividade

Cultura

por Revista Amarello Conteúdo exclusivo para assinantes

Pinball ou horror vacui

#41 Fagulha Arte

por Rafael Alonso Conteúdo exclusivo para assinantes

Labirinto sem mapa

#26 Delírio Tropical Revista

por Débora Emm Conteúdo exclusivo para assinantes

Domingos

#14 Beleza Arte

por Carlos Andreazza Conteúdo exclusivo para assinantes

Ser o ser

#51 O Homem: Amarello 15 anos Filosofia

por José Ernesto Bologna Conteúdo exclusivo para assinantes

De onde vem e para quem vai o dinheiro da cultura?

Cultura

por Revista Amarello

A beleza que nos faltava

#14 Beleza Cultura

por Eduardo Wolf Conteúdo exclusivo para assinantes

Unité d’Habitation, de Le Corbusier. Foto de Rik Moran.
ArquiteturaDesign

Brutalismo: a arquitetura para além do filme

por Revista Amarello

Um dos principais estilos arquitetônicos do século XX, os projetos em concreto bruto carregam peso histórico, político e ideológico. 

O filme O Brutalista, lançado no ano passado e presente em toda a temporada de premiações — culminando no segundo Oscar de melhor ator para Adrien Brody —, reacendeu o interesse sobre esse que é um dos conceitos mais instigantes da arquitetura contemporânea. Dirigido por Brady Corbet, o longa não apenas usa o brutalismo como pano de fundo, mas o transforma em uma metáfora visual e narrativa para os conflitos dos personagens. A rigidez e a solidez do concreto ecoam as tensões humanas e sociais que atravessam a história. A abordagem, tão clássica na arquitetura, parece ainda carregar consigo um peso histórico, político e ideológico que a torna um dos estilos mais marcantes do século XX. 

O Brutalista, filme de Brady Corbet, rendeu a Adrien Brody o Oscar de melhor ator.

Mas o que, afinal, define esse movimento e por que ele continua a despertar sentimentos tão ambíguos?

O brutalismo é um estilo arquitetônico que se destaca pelo uso expressivo do concreto bruto, exposto e sem acabamentos, permitindo que suas texturas e marcas de fábrica fiquem visíveis. Outra característica basilar é o trabalho em prol da funcionalidade: no brutalismo, a forma segue a função, tornando a estrutura uma expressão direta de seu propósito. A chamada “honestidade” material também é fator essencial, pois é o que dispensa revestimentos e valoriza a estética crua dos materiais, o que resulta na estética tão específica que marca o estilo. E, claro, não tem como falarmos de brutalismo sem falarmos de monumentalidade: esses edifícios são imponentes, com formas geométricas marcantes que transmitem solidez e presença.

O termo em si vem do francês béton brut, que significa “concreto bruto”, e foi popularizado pelo arquiteto suíço-francês Le Corbusier. Seu projeto Unité d’Habitation, construído em Marselha entre 1947 e 1952,  foi um dos primeiros a usar concreto aparente de maneira expressiva. A construção influenciou o movimento e serviu como modelo para projetos habitacionais modernos ao redor do mundo, com sua estrutura funcionalista e sua ideia de “cidade vertical”, onde moradia, comércio e espaços de lazer coexistem em um único bloco. Embora Le Corbusier não tenha criado o nome, foi sua utilização do concreto bruto que inspirou os também urbanistas Alison e Peter Smithson a cunharem o termo nos anos 1950. 

Unité d’Habitation, projetado por Le Corbusier. Foto de Gili Merin para Arch Daily.

O brutalismo, portanto, emergiu no pós-guerra como solução para a reconstrução em larga escala. Em um mundo devastado, a arquitetura precisava ser funcional, durável e acessível. O concreto bruto, resistente e de baixo custo, tornou-se um símbolo dessa nova era. Mais do que uma escolha estética, suas formas maciças e despojadas eram uma declaração de intenções: criar espaços democráticos e eficientes para um novo tempo. Escolas, bibliotecas e edifícios públicos foram erguidos sob esse conceito — eram a materialização, em um material que reverberava perseverança, da esperança de um recomeço.

Ao rejeitar os excessos ornamentais e o formalismo do passado, o brutalismo apostava na funcionalidade e na verdade dos materiais. No Brasil, ele se manifestou nas obras de Oscar Niemeyer, como a Catedral de Brasília, e de Paulo Mendes da Rocha, como o museu MuBE em São Paulo. Coincidência ou não, ambos são vencedores do Prêmio Pritzker, considerada a honra maior da arquitetura. Nessas e em outras construções, o brutalismo se funde com a identidade urbana e cultural das cidades.

Catedral de Brasília, projetada por Oscar Niemeyer.

Porém, como muitas correntes artísticas, o brutalismo foi mal interpretado. O que para alguns era uma expressão de força e honestidade estrutural, para outros se tornou um símbolo de opressão e impessoalidade. Durante as décadas de 1960 a 1980, o estilo foi associado à desumanização e ao fracasso urbano. O concreto desgastado, a escala monumental e os espaços considerados frios e inóspitos afastaram muitas pessoas do conceito.

MuBE, projetado por Paulo Mendes da Rocha.

Nos últimos anos, no entanto, houve uma revalorização significativa. O que em determinado momento parecia decadente agora é visto sob uma nova luz. O interesse contemporâneo pelo brutalismo está, sobretudo, na maneira como ele reflete questões sociais e urbanísticas. Arquitetos e estudiosos passaram a reinterpretá-lo, explorando suas potencialidades para uma nova geração que busca autenticidade e sustentação na arquitetura.

A popularidade do brutalismo ganhou novo fôlego também com o cinema e a cultura digital. O longa O Brutalista é um exemplo dessa tendência, assim como a presença de edifícios brutalistas presentes em posts de redes sociais e exposições ao redor do mundo. Assim como nas suas origens, o brutalismo ressurge num mundo digital já devastado que muitas vezes rejeita o físico, como uma reflexão sobre resiliência, permanência e a força de materiais que desafiam a efemeridade dos tempos modernos.

Embora carregue um peso histórico, o brutalismo não pertence ao passado. Seu uso de materiais duráveis e sua abordagem funcionalista ganham relevância na medida em que, cada vez mais, se exige soluções sustentáveis para a vida urbana. A cultura e a sociedade seguem em transformação, mas sempre haverá espaço para questionamento e para uma arquitetura que dialogue com a condição humana. 

Em meio à incerteza — política, econômica e sociocultural — e a desafios cada vez mais urgentes, é essencial que certos monumentos finquem seus pés. E não no passado, mas na sempre relevante esperança de que os humanos encontrem solidez no presente.

Compartilhar
  • Twitter
  • Facebook
  • WhatsApp

Conteúdo relacionado


Sonhos não envelhecem

#49 Sonho Cultura

por Luciana Branco Conteúdo exclusivo para assinantes

Sobre a capa

#35 Presente Artigo

por Marcelo Amorim

Buscando raízes, derrubando árvores

#50 Família Sociedade

por Leticia Lima Conteúdo exclusivo para assinantes

Vestido para matar: memórias póstumas da fast fashion

Design

por Leticia Lima

Saudade favorita — let me just keep this memory

Literatura

por Helena Cunha Di Ciero

Reflexo

#17 Fé Cultura

por Helena Cunha Di Ciero Conteúdo exclusivo para assinantes

Dar ouvidos

#38 O Rosto Cultura

por Poli Pieratti Conteúdo exclusivo para assinantes

Desejos para um futuro

#35 Presente Artigo

por João Bandeira

Demolição — Amarello 40

#40 Demolição Editorial

O design pode realmente mudar o mundo?

Design

por Revista Amarello Conteúdo exclusivo para assinantes

A família cabe na política?

#50 Família Sociedade

por Nicolau da Rocha Cavalcanti Conteúdo exclusivo para assinantes

O Masculino — Amarello 36

#36 O Masculino Editorial

por Revista Amarello

Quantas histórias cabem em uma semente?

#50 Família Cultura

por Zurī Rosalino Conteúdo exclusivo para assinantes

Foto de Frico Guimarães para o livro SOS Pantanal — 15 anos. Saiba mais emsospantanal.org.br
ArteCultura

Quando a arte pode curar?

por Revista Amarello

Uma música para um coração partido. Um filme para quem está de luto. Um livro para reorganizar os pensamentos após um trauma. Há milênios, a arte, em suas diversas formas, acompanha a humanidade, exercendo um papel fundamental na formação emocional. O Rei Leão, por exemplo, fez muitas crianças chorarem e sentirem emoções inéditas. Ao provocar essas primeiras descobertas, a arte sensibiliza e ajuda a dar forma ao que sentimos. Daí adiante, ela se torna também um possível caminho para a cura. Para muitos, é um meio de autoconhecimento e superação — a ponto de se tornar ferramenta em práticas terapêuticas que fazem dela sua principal aliada.

Dentre as diversas formas de arte utilizadas para acessar e reorganizar emoções, a literatura ocupa um lugar singular. O ato de ler exige um engajamento ativo, que precisa processar a informação verbal e construir mentalmente cenários, interpretar diálogos, projetar emoções nos personagens e, frequentemente, estabelecer conexões entre a narrativa e sua própria vida. Utilizamos nosso repertório imagético e sensorial para fazer pulsar as descrições de um livro. O texto pode ser o mesmo para todos, mas a experiência de leitura é única para cada um. E é nesse aspecto introspectivo e pessoal que a biblioterapia aposta.

O termo “biblioterapia” foi usado pela primeira vez em 1916. O responsável foi o ensaísta estadunidense Samuel McChord Crothers (1857-1927), que escreveu uma matéria satírica para o The Atlantic, na qual descrevia um encontro com um médico que lhe recomendava a leitura como remédio. O conceito é simples: livros e textos literários como instrumentos para aliviar o sofrimento emocional. E, apesar da leveza de sua primeira aparição, a ideia por trás do termo foi levada a sério por estudiosos ao longo do século XX, consolidando-se como um campo de pesquisa que investiga o uso da literatura para aliviar a dor e promover o bem-estar psicológico.

O estudo do vínculo entre literatura e emoções começou sobretudo a partir da aplicação da leitura em contextos hospitalares e psiquiátricos. Durante a Primeira Guerra Mundial, médicos e enfermeiros notaram que soldados traumatizados pelo combate apresentavam melhora emocional ao serem expostos a determinados tipos de literatura — seja pelo teor otimista e instrutivo, seja pela capacidade de gerar empatia e identificação no leitor. Obras de ficção, poesia e filosofia foram, então, introduzidas como complemento ao tratamento clínico, um experimento que, anos mais tarde, daria origem a programas de reabilitação psicológica baseados na leitura.

A partir da década de 1950, estudiosos como a estadunidense Caroline Shrodes, uma das principais referências na área, começaram a mapear os processos psicológicos que tornam a leitura uma ferramenta terapêutica. Shrodes descreve três fases essenciais no processo: a identificação, em que o leitor se reconhece em aspectos da narrativa, criando uma conexão com os personagens e situações descritas; a catarse, momento em que a leitura facilita a expressão emocional, permitindo que sentimentos reprimidos sejam experimentados de forma segura; e o insight, etapa em que o envolvimento com a narrativa leva a reflexões profundas sobre a própria vida, possibilitando mudanças de perspectiva e novos aprendizados.

Mais tarde, o impacto da biblioterapia começou a ser investigado, inclusive, sob a ótica da neurociência. Estudos conduzidos por David Comer Kidd e Emanuele Castano, da New School for Social Research, demonstraram que a leitura de literatura ficcional aprimora a Teoria da Mente (ToM) — a capacidade de compreender e prever emoções e intenções alheias. Em outras palavras, o contato com narrativas literárias torna nossos cérebros mais aptos a compreender e se conectar com o mundo emocional dos outros.

No Brasil, Clarice Fortkamp Caldin é a principal responsável por consolidar a biblioterapia como um campo de pesquisa acadêmica, não sem, de acordo com ela, sofrer muito preconceito da comunidade médica. A despeito das dificuldades, a professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) tem investigado como a leitura pode atuar como um agente de transformação há décadas. Ela tem duas categorizações para a abordagem: “biblioterapia clínica”, utilizada como complemento em tratamentos psicológicos e psiquiátricos, frequentemente conduzida por profissionais da saúde mental; e “biblioterapia desenvolvimental”, aplicada em contextos educacionais e sociais, visando à construção da identidade, ao desenvolvimento da empatia e à promoção do bem-estar emocional. Essa diferenciação é essencial para entender que a biblioterapia não se restringe ao ambiente clínico, podendo ser incorporada a projetos sociais, educativos e culturais.

Atualmente, ao redor do mundo, programas de biblioterapia são amplamente aplicados em hospitais psiquiátricos, centros de reabilitação, escolas e até mesmo no ambiente corporativo. No Reino Unido, o programa Reading Well, desenvolvido pelo The Reading Agency em parceria com o Sistema Nacional de Saúde (NHS), estruturou uma lista de livros recomendados para auxiliar pacientes em tratamento de depressão, ansiedade e transtornos de estresse pós-traumático. Os resultados apontam que mais de 60% dos participantes relataram melhora no bem-estar emocional após a leitura guiada das obras indicadas. Outro exemplo é a Austrália, que, com o projeto Bibliotherapy Australia, promove grupos de leitura terapêutica em bibliotecas e centros comunitários, focando na construção de resiliência emocional por meio da literatura. 

Por aqui, a prática ainda está em expansão, mas existem iniciativas relevantes, como projetos de leitura em hospitais psiquiátricos e presídios. Um exemplo importante é o programa Livros que libertam, que utiliza a leitura como ferramenta de reintegração social em unidades prisionais. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apoia a remição de pena por meio da leitura, permitindo que pessoas privadas de liberdade reduzam seu tempo de detenção ao se envolverem com obras literárias. Livros que libertam, assim, contribui para a reintegração social, ampliando perspectivas e ajudando a reduzir a reincidência criminal.

As pesquisas das últimas décadas e a eficácia de iniciativas como essas demonstram o poder da leitura em abrir portas para novos pontos de vista, ajudar a elaborar sentimentos complexos e fornecer respostas para perguntas que nem sabíamos que precisávamos formular.

No fim, a biblioterapia reafirma o que sempre esteve nas entrelinhas: os livros ensinam, acolhem, transformam e, em muitos casos, curam.

Compartilhar
  • Twitter
  • Facebook
  • WhatsApp

Conteúdo relacionado


Sonhos não envelhecem

#49 Sonho Cultura

por Luciana Branco Conteúdo exclusivo para assinantes

Abjeto

#14 Beleza Arte

por Marina Lima Conteúdo exclusivo para assinantes

Sagitarius

#5 Transe Arte

por Jair Lanes Conteúdo exclusivo para assinantes

O poder da voz

#37 Futuros Possíveis Arte

por Gean Ramos

Dom Pedro, Brasil e suas contradições

Arte

Culto à juventude: qual é o lugar dos anos na sociedade?

Sociedade

Dois e dois são dois: Bruno Herrera e Yuka Okuyama

#24 Pausa Artigo

Biointeração Contra Colonialista: a renascença afro-pindorâmica que pertence às cosmunidades

#47 Futuro Ancestral Cultura

por Mona Lima

Falso brilhante

#17 Fé Cultura

por Hermés Galvão Conteúdo exclusivo para assinantes

A Volta do Cortejo: um conto Amarello e Gucci

Arte

A beleza como missão

#14 Beleza Cidades

por Maurício Gomes Candelaro Conteúdo exclusivo para assinantes

White Cloud

#1 Mudança HQ

por Isabela Lotufo Conteúdo exclusivo para assinantes

Fogo de Isabel: o dia em que São João nasceu

Cultura

por Poli Pieratti

Foto de Marina Klink para o livro comemorativo SOS Pantanal — 15 anos. Saiba mais aqui.
Artes VisuaisSociedade

Reaprender a olhar: os museus na batalha pela atenção

por Revista Amarello
De aulas de yoga a experiências sensoriais, espaços tradicionais se reinventam para além da qualidade dos seus acervos.

Vivemos numa era em que a atenção se tornou um bem raro. Sufocados pela ubiquidade dos smartphones e imersos numa infinidade de conteúdos que dividem a atenção de qualquer um, cada segundo do nosso olhar é disputado. Para os museus, isso representa um desafio duplo: atrair visitantes e, mais difícil ainda, mantê-los conectados à experiência. Ir a um museu, afinal, deveria ser um ato de contemplação — parar, observar, absorver. Mas a dificuldade não vem apenas de fora e das demandas de um mundo digitalizado; muitas vezes, a própria estrutura tradicional dos museus impõe barreiras à verdadeira apreensão da arte.

Em 2001, os pesquisadores Lisa Smith e Jeffrey Smith conduziram um estudo seminal, Spending Time on Art, para entender o comportamento dos visitantes de museus — quem são, como interagem com as exposições e, principalmente, quanto tempo realmente dedicam a cada obra. A pesquisa revelou que, na época, o tempo médio de observação de um quadro em um museu era de 27,2 segundos. Considerando que esse estudo foi realizado quando a internet ainda não estava tão entranhada no dia a dia das pessoas, é provável que esses números sejam ainda menores hoje.

No Louvre, o museu mais visitado do mundo, as multidões em frente à Mona Lisa tornam praticamente impossível a contemplação significativa da pintura — uma experiência que frequentemente resulta em frustração, como ocorreu em janeiro deste ano. Com 35 mil obras expostas e quase nove milhões de visitantes anuais, é razoável questionar se as pessoas realmente absorvem o que veem ou apenas percorrem um circuito de imagens para serem registradas em suas câmeras e posteriormente postadas nas suas redes sociais. Ciente desse desafio, aliás, a diretora do museu, Laurence des Cars, defende a modernização da experiência do visitante e já planeja reformas, incluindo uma nova entrada e uma sala exclusiva para a Mona Lisa. Vale notar que o esforço tem como objetivo fazer com que as obras sejam apreciadas da melhor forma possível e não atrair mais visitantes. Neste caso, ao contrário de tantos outros, a preocupação é museológica, não financeira.

Assim como o Louvre, muitos museus buscam soluções para manter a atenção do público — e, às vezes, isso exige inovação. O Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro aposta em experiências imersivas e interativas, seguindo uma tendência global de engajamento sensorial. Outros, como a Manchester Art Gallery, escolhem o caminho oposto: um acervo reduzido, que incentiva a imersão profunda em cada peça. É o caso do Room to Breathe, um espaço dentro do museu britânico projetado para capturar a atenção pelo mínimo estímulo. A proposta, na verdade, é simples: desacelerar, dedicar tempo ao olhar e, assim, perceber nuances e detalhes que passariam despercebidos. Em outras palavras, trata-se de ressignificar a contemplação — seja na arte ou na vida —, criando uma relação mais íntima com aquilo que nos rodeia.

Mas qual dessas é a melhor estratégia? Tornar os museus mais interativos ou abraçar um modelo mais contemplativo?

A resposta pode estar na diversificação. O Museu Nacional de Arte Moderna de Tóquio (MOMAT), por exemplo, criou um percurso pensado para quem tem pouco tempo, destacando poucas obras, mas com um contexto mais aprofundado. Já o Rijksmuseum, em Amsterdã, propõe visitas “desconectadas”, incentivando os visitantes a guardarem seus celulares e se concentrarem na experiência direta com as obras.

Outras galerias adotaram uma proposta mindfulness, que acaba sendo multimodal. No Museu Van Gogh, em Amsterdã, sessões de apreciação consciente da arte fizeram parte, até 2024, de um programa voltado para a saúde mental. Focadas na obra e na vida do artista, essas experiências eram complementadas por aulas de yoga e meditações guiadas (disponíveis até hoje no canal do YouTube do museu).

Mas nem todas as soluções dão conta do problema. É possível que a velocidade da vida contemporânea simplesmente não seja compatível com a proposta original dos museus. Se a atenção se dispersa cada vez mais rápido, a necessidade de reformulação dos espaços expositivos pode ser apenas uma resposta paliativa para um problema mais profundo. Assim sendo, esses espaços ficam entre se adaptar ao ritmo frenético do mundo contemporâneo ou resistir e defender a experiência contemplativa como um valor fundamental. 

Antes de buscar um caminho, é preciso fazer uma pergunta fundamental — uma que tira a importância da distinção entre soluções definitivas ou paliativas e aponta para uma missão: qual é o papel dos museus hoje? 

Talvez, mais do que nunca, seja nos mostrar de que forma podemos reaprender a olhar.

Compartilhar
  • Twitter
  • Facebook
  • WhatsApp

Conteúdo relacionado


Sonhos não envelhecem

#49 Sonho Cultura

por Luciana Branco Conteúdo exclusivo para assinantes

Narciso ao espelho: a masculinidade em Luís Capucho

#36 O Masculino Arte

por Rafael Julião Conteúdo exclusivo para assinantes

Tarsila romântica em duas mãos

#18 Romance Arte

Sobre a capa: Bruno Moreschi

#23 Educação Arte

Pontes sobre abismos

#32 Travessia Arte

por Aline Motta

Qué ficar bunitu?

#4 Colonialismo Arte

por Paulo Nazareh Conteúdo exclusivo para assinantes

Mariana Tassinari e sua herança visual

# Terra: Especial 10 anos Arte

por Mariana Tassinari

Editora convidada: Ana Cláudia Arantes

#15 Tempo Editorial

por Ana Claudia Quintana Arantes Conteúdo exclusivo para assinantes

Um cafezinho com Jeanete Musatti

#48 Erótica Design

por Revista Amarello Conteúdo exclusivo para assinantes

Sobre demolição e a antifragilidade da vida

#40 Demolição Cultura

As estátuas também vivem

#41 Fagulha Cultura

por Rodrigo de Lemos Conteúdo exclusivo para assinantes

Conversa Polivox: Josyara

#32 Travessia Arte

por Pérola Mathias

Antes da ação há a imaginação

#45 Imaginação Radical Cultura

por Pâmela Carvalho

Family, série de Masahisa Fukase. Cortesia de Image Masahisa Fukase Archives e MACK.
LiteraturaSociedade

Literatura e ética: direitos autorais no mundo da Inteligência Artificial

por Revista Amarello
Acordo entre HarperCollins e empresa de tecnologia levanta questões sobre o futuro da literatura e da expressão artística.

A HarperCollins, uma das maiores casas editoriais do mundo, propôs recentemente que parte de seu catálogo seja utilizado para treinar modelos de inteligência artificial generativa e, assim, virou o epicentro de um debate intenso sobre o futuro dos direitos autorais na era das IAs. Os títulos selecionados para esse propósito serão de não-ficção, mas somente com a autorização dos autores envolvidos. A oferta, que inclui um pagamento de aproximadamente 15 mil reais por título selecionado, dividiu opiniões ao redor do mundo.

Em uma declaração ao jornal britânico The Guardian, a HarperCollins declarou ter firmado um acordo com uma “grande empresa de tecnologia”, cujo nome foi mantido em sigilo (os rumores dizem que é a Microsoft), para o uso limitado desses livros, com a promessa de “melhorar a qualidade e o desempenho dos modelos” das IAs. Apesar de considerar a proposta atrativa, a editora enfatizou o respeito às diferentes opiniões dos autores, que podem optar por aderir ao acordo ou recusá-lo.

Entretanto, a transparência da editora foi questionada quando o autor Daniel Kibblesmith revelou publicamente um e-mail que recebera sobre a inclusão de seu livro infantil, e de ficção, Santa’s Husband nesse programa. A oferta, dividida igualmente entre ele e a ilustradora do livro, Ashley Perryman Quach, foi classificada pelo escritor como “afrontosamente baixa”. Além disso, o contrato estipulava cláusulas rígidas, incluindo confidencialidade sobre a identidade da empresa de tecnologia e a impossibilidade de negociação individual.

A questão ética da questão grita alto para todo mundo ouvir: as obras utilizadas como base para treinar IA geram valor substancial, mas a distribuição desse valor é assimétrica. O ideal, claro, seria um diálogo mais amplo, que incluísse todas as partes. Sem isso, as negociações bilaterais entre editoras e empresas de tecnologia podem levar a uma erosão dos direitos dos criadores. Ainda mais preocupante é o precedente que tais acordos podem estabelecer. Se um autor recusar a oferta de uma editora para usar seu livro no treinamento de IA, o que de fato impediria que a mesma obra fosse usada sem consentimento por modelos que recolhem dados da internet de maneira indiscriminada? Nos escombros não-fiscalizados do mundo digital, ninguém é de ninguém.

Para muitos escritores, a iniciativa da HarperCollins é vista como um tiro que tem tudo para sair pela culatra. Por um lado, há quem defenda que acordos como esse trazem alguma ordem ao caos atual, em que as big techs (não só as “big”) frequentemente utilizam obras protegidas por direitos autorais sem permissão, gerando ações judiciais de grande repercussão, como a movida pelo Authors Guild contra a OpenAI. Licenciar livros poderia permitir que autores mantenham algum controle sobre como suas obras são utilizadas, ao mesmo tempo em que são compensados financeiramente.

Por outro lado, esses contratos acabam sendo muito mais vantajosos para as editoras do que para os criadores. Enquanto a HarperCollins propõe uma divisão de 50% dos lucros, muitos argumentam que o valor gerado pelo uso de textos em IA deveria pertencer majoritariamente aos autores. Mesmo com cláusulas que limitam o uso dos textos, como o impedimento de reproduzir mais de 200 palavras consecutivas ou 5% de um livro, há um temor crescente de que essas iniciativas contribuam para uma desvalorização do trabalho criativo humano. 

A ideia de que modelos de IA possam um dia “fazer todos nós obsoletos”, como descreveu Kibblesmith, reflete um medo existencial compartilhado por muitos na indústria.

Mais do que uma questão técnica ou legal, o uso de obras literárias para treinar IA levanta questões sobre o significado do ato de criar. Com algoritmos ganhando cada vez mais força e poder, qual é o lugar da arte criada por mãos humanas? A voz de um autor, com todas as suas peculiaridades, pode ser replicada por máquinas sem perder a essência do que é verdadeiramente humano? Se treinada para isso, talvez sim.

Ou seja, para além das implicações práticas, a questão também abre espaço para reflexões filosóficas. Se é verdade que a literatura é uma representação do íntimo do humano com todos os medos, esperanças e contradições que caracterizam a nossa espécie, até que ponto é ético conceder às máquinas o direito de absorver e reproduzir esse legado? A escrita, que é ou deveria ser uma expressão-mor da nossa liberdade, transforma-se aqui em uma engrenagem que alimenta sistemas cuja finalidade é frequentemente comercial.

Na mesma medida em que os modelos de IA se tornam mais sofisticados, eles também se tornam mais inquietantes. Não é apenas o conteúdo de livros que está sendo usado, é a própria essência do pensamento humano, destilada em bits e algoritmos. Em que ponto essas tecnologias deixam de ser meras ferramentas e começam a competir com seus criadores? A ideia de que os textos criados por humanos sempre serão mais complexos por ora é verdade, mas o amanhã é um campo incerto.

A tensão entre inovação e ética está no cerne deste debate. A HarperCollins, com sua longa história de experimentação em modelos de negócios, posiciona-se como uma intermediária que apresenta oportunidades aos autores, mas também carrega a responsabilidade de proteger o valor intrínseco das obras que publica. Enquanto isso, escritores e leitores são convocados à reflexão. A batalha não é apenas por contratos mais justos ou por maiores compensações financeiras, mas pela preservação daquilo que torna a arte única: sua capacidade de transcender o tempo e conectar pessoas. Se pensarmos no que esses acordos podem fazer para gerações futuras de criadores, talvez essas novas gerações simplesmente não existam, desmotivadas a exercerem uma atividade subvalorizada.

Talvez o maior desafio para a comunidade literária nos próximos anos seja resistir às pressões do lucro a qualquer custo e encontrar formas de coexistir com a IA sem perder sua própria identidade. A literatura, a exemplo de qualquer arte, não é apenas uma questão de palavras em uma página. É, sobretudo, um reflexo da alma humana.

O debate é só o início de uma transformação mais ampla no modo como criamos e consumimos informação, sendo o caso HarperCollins nada mais do que um reflexo de nosso momento. Ele nos desafia a entender os aspectos técnicos e legais, mas, sobretudo, a nos debruçar sobre aspectos morais e espirituais. Como sociedade, estamos prontos para redefinir os limites entre humano e máquina?

Vivemos em uma era em que a literatura, um dia sagrada e intocável, agora é negociada em bytes. E é assustador constatar que isso vale para tantas outras coisas. 

O que resta agora é saber como escreveremos, se é que serão escritos por nós, os próximos capítulos dessa narrativa compartilhada.

Compartilhar
  • Twitter
  • Facebook
  • WhatsApp

Conteúdo relacionado


Sonhos não envelhecem

#49 Sonho Cultura

por Luciana Branco Conteúdo exclusivo para assinantes

Sobre o consumo

#52 Satisfação Filosofia

por João Quartim Moraes Conteúdo exclusivo para assinantes

Um inventário de saudades

#44 O que me falta Cultura

por Helena Cunha Di Ciero

Falso brilhante

#17 Fé Cultura

por Hermés Galvão Conteúdo exclusivo para assinantes

Narciso ao espelho: a masculinidade em Luís Capucho

#36 O Masculino Arte

por Rafael Julião Conteúdo exclusivo para assinantes

Lictzwang (de verde a vermelho)

#5 Transe Arte

por Daniel Steegmann Mangrané Conteúdo exclusivo para assinantes

Por uma Educação de Alma Brasileira

#26 Delírio Tropical Cultura

Sobre demolição e a antifragilidade da vida

#40 Demolição Cultura

Um cafezinho com Vivi Sampaio

Design

por Tomás Biagi Carvalho

Nós somos o amanhã

#33 Infância Cultura

por Mãeana

Evolução

#1 Mudança Design

por Matheus Benetti Conteúdo exclusivo para assinantes

Silêncio! Silêncio, por favor, silêncio!

#11 Silêncio Cultura

por Caito Ortiz Conteúdo exclusivo para assinantes

A beleza como missão

#14 Beleza Cidades

por Maurício Gomes Candelaro Conteúdo exclusivo para assinantes

Family, de Masahisa Fukase. Cortesia de Image Masahisa Fukase Archives e MACK.
Sociedade

Filhos na crise climática: escolha moral ou salto de fé?

por Revista Amarello
Em tempos de incerteza, ter filhos se torna um dilema. O que antes era uma decisão esperada, hoje se torna uma questão: qual futuro quero ajudar a construir?

A ideia de ter filhos sempre foi envolta em uma aura de continuidade, como se a procriação fosse um elo entre o passado e o futuro. Ainda que a perenidade não seja o fator número um para se tomar a decisão, nela sempre haverá um quê de esperança, uma fé, acima de tudo, na permanência. Mas, ultimamente, essa ideia foi colocada em cheque. A cada ano que passa, a crise climática e as turbulências geopolíticas batem à nossa porta com mais força. Assim, o ter ou não ter filhos, questão que antes era pessoal e subjetiva, agora ganha contornos coletivos e filosóficos: é justificável colocar uma nova vida neste mundo?

Foto de Ramin Talebi | Unsplash.

Ondas de calor recordes, enchentes cada vez mais frequentes, escassez de água, desertificação de terras antes férteis, o aumento do nível do mar e, bem, a lista infelizmente continua. O último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) não deixa dúvidas de que o futuro será marcado por eventos climáticos extremos, perda de biodiversidade e crises econômicas e sociais. Em suma, estamos no limite do irreversível, naquele ponto em que ou fazemos vista grossa ou chegamos à conclusão de que aspectos que consideramos indeléveis talvez não sejam tão indeléveis assim. O conceito de “posteridade”, tal como o conhecemos, já não parece tão concreto — e, por consequência, o que entendemos como continuidade da espécie, e do nosso sangue, também se dissolve.

Para que a população de um país se mantenha estável, é necessário que cada mulher tenha, em média, 2,1 filhos. Em 2021, apenas 46% das nações apresentavam uma taxa de fecundidade acima desse nível, com a maioria concentrada na África Subsaariana. Em escala global, o número médio de filhos por mulher era de 4,84 em 1950, diminuindo para 2,23 em 2021. Estimativas indicam que esse índice continuará caindo, chegando a 1,83 em 2050 e 1,59 em 2100, o que levará à redução das populações.

Muito embora os números de fecundidade estejam em declínio por inúmeras razões, há quem veja na procriação um ato de esperança, um voto de confiança na capacidade humana de resistir e se reinventar. Outras pessoas, porém, a enxergam como um peso adicional em um planeta já exaurido. É como se o desejo de perpetuação se chocasse com a consciência de um futuro incerto.

Foto de Alexander Dummer | Unsplash.

“Foi segurando meu filho nos braços que eu entendi a mistura de esperança e desespero que é ter uma criança. ‘Que mundo vai receber esse ser humaninho hoje?’.

Vitor Lima, professor de filosofia de 35 anos responsável por criar a escola e o canal de Youtube, Isto Não é Filosofia (INÉF), acredita que “há algo paradoxal em ter filhos.” E, sendo o pai de um menino, explica: “De um lado, há o receio — será que o planeta aguenta? Será que não estamos ampliando sofrimento em vez de criar esperança? De outro, basta olhar o sorriso banguela, ou perceber os olhos atentos do moleque que descobre uma formiga no quintal, para entender que existem renovações diárias do futuro. A vida, apesar do peso de todas as coisas, ainda pulsa.”

Continua: “Como eu sou professor de Filosofia, o meu campo me ajudou a enxergar as ambiguidades do mundo. Mas foi segurando meu filho nos braços que eu entendi a mistura de esperança e desespero que é ter uma criança. A cada manhã, ele se torna outra pessoa, e cada centímetro novo vem com a pergunta: ‘Que mundo vai receber esse ser humaninho hoje?’. Se não fosse a possibilidade de mudar algo — nem que seja uma pequena marola num oceano revolto — talvez a gente desistisse. Mas há no gesto de ter um filho uma semente teimosa de futuro, da mesma forma que cada livro, cada invenção ou cada abraço que oferecemos.”

Um ponto importante presente na fala de Vitor é que a crise climática não apenas levanta dúvidas sobre ter ou não filhos, mas também ressignifica a experiência da paternidade e da maternidade para quem opta por ela. Com recursos finitos, a criação consciente se torna essencial. Isto é, ensinar crianças a viver com menos desperdício, a cultivar empatia e a se engajar em causas sociopolíticas é praticamente inerente ao papel de procriador. Muitas pessoas, inclusive, dispostas a criar agentes de mudança para o futuro, optam por formatos alternativos de parentalidade, como a adoção ou o apoio a crianças de comunidades vulneráveis, entendendo que cuidar de uma vida não precisa, necessariamente, significar gerar uma nova.

Há, no entanto, quem opte pelo antinatalismo, fundamentando sua decisão de não ter filhos em princípios éticos. Gilmara Alves de Oliveira, 46 anos, compartilha como sua especialização em Serviço Social e sua atuação com remoção de famílias em áreas de risco, especialmente mulheres em situações de vulnerabilidade extrema, a fizeram refletir sobre o futuro das próximas gerações.

“Já adulta”, conta, “mesmo tendo relacionamentos estáveis, nunca me senti pronta para formar uma família. Adoro crianças, mas nunca me vi gerando uma. Acho que minha formação profissional me levou a ver a realidade nua e crua do mundo. Trabalhei com questões climáticas e vi o quanto o planeta vai colapsar com a falta de recursos naturais, então só penso: ‘não tem condições de deixar uma criança num mundo assim’. Além do fato de eu ter pavor de engravidar e ter uma menina num mundo machista, com toda a violência que cerca o gênero feminino.”

Mas Vitor, que vê beleza na paternidade, também tem a ética em mente: “A discussão sobre ética e natalidade, no fundo, é um lembrete da nossa fragilidade coletiva, e isso não precisa soar como sentença sem apelação. Quando o caso parece perdido, uma maneira de recuperá-lo é fazer mais e não menos perguntas. Por que não transformar nosso medo em cuidado? Por que não usar a angústia como motor de mudança? Se o mundo está incerto, então talvez devêssemos nutrir o que há de certo: a curiosidade infantil, o desejo de crescer junto, o amor que só nasce e se desenvolve com a convivência — não com elucubrações filosóficas.”

São respostas viáveis para o mesmo dilema. Vitor, ciente das dificuldades do mundo, decidiu se tornar pai e busca transformar seus medos em ação, com a responsabilidade paternal servindo como um motor no caminho da mudança; Gilmara, por sua vez, ao não querer alimentar uma chama que já consome o futuro, opta pela decisão de não contribuir para um ciclo que parece insustentável e de não impor a um novo ser humano o sofrimento que dita o mundo. Em ambos os casos, silêncio e indiferença deixaram de ser opções. As respostas fáceis — “tenho porque sim”, “não tenho porque não tenho” — já não se sustentam.

Refletindo sobre o peso de sua decisão, Gilmara lembra que a pressão familiar existia, já que tem “duas irmãs que casaram e tiveram filhos.” Mas, em determinado momento, sentiu que sua vida tomava um rumo que não queria: seu “namorado na época queria ser pai”, o que culminou num momento muito difícil na relação, porque ela “não queria filhos e nem queria casar.” Sempre teve outras prioridades, “queria antes viver outras coisas, morar fora, fazer uma pós-graduação.” A maternidade nunca foi um desejo seu, não à toa ela afirma, categórica, que “era angustiante pensar em filhos.” Hoje, sente-se segura com sua decisão, dando “suporte para as mulheres da minha família e amigas” e sendo feliz cumprindo o papel de tia.

O relato de Gilmara destaca alguns pontos cruciais do debate: além das preocupações com o estado atual do mundo, que não se limitam apenas ao meio ambiente mas também abrangem questões sociais, surge a questão do equilíbrio entre a vida profissional e a maternidade. No passado, quando a prioridade era ter filhos, qualquer carreira ficava em segundo plano. Atualmente, no entanto, uma mudança de mentalidade está em curso, ampliando gradualmente as oportunidades no mercado de trabalho para as mulheres. Essa transformação, que também se insere no âmbito individual, leva muitas a buscar ativamente essas oportunidades, colocando sua vida profissional como uma prioridade. 

Mas, como estamos acostumados, é a população feminina que mais carrega o peso da escolha pela não-maternidade.

“São muitas as questões que envolvem esse julgamento pela não-maternidade”.

Mesmo com o mundo no estado preocupante em que está, a escolha de não ter filhos ainda pode ser mal vista — e isso, claro, vale em dobro para as mulheres. Andreza Nunes, autora do livro Eu escolho não ser mãe, que reúne narrativas de mulheres que decidiram não virar mães, conta que seu livro “surgiu da minha escolha de vida e também da vontade de desmistificar a ideia de que as mulheres são egoístas ao fazerem essa escolha e, claro, quebrar as críticas que sofremos. Busquei mulheres de diferentes faixas etárias e estados civis para que contassem suas histórias também e pudessem mostrar os seus motivos.”

No processo de pesquisa e escrita, percebeu que “o tema da não-maternidade ainda é um tabu. Existem mais pessoas que escolheram esse caminho do que a gente pensa, mas muitas delas, para evitar burburinho, críticas e conselhos não solicitados, se calam.” A própria Andreza, que tem 30 anos e escolheu não ter filhos, sente esse preconceito. “São muitas as questões que envolvem esse julgamento pela não-maternidade”, conta ela. “As religiões que abominam; uma parte da classe médica que não ajuda e não segue leis, como o caso de mulheres que fazem ou querem fazer laqueadura sem filhos ou até com filhos; o preconceito da sociedade que acredita que as mulheres só vieram ao mundo para serem mães e também acredita que uma família só é família se o casal tiver filhos. É uma discussão profunda e que, infelizmente, não é só nós escolhermos, mas há uma luta grande para que sejamos respeitadas.”

A romantização tanto da maternidade quanto da paternidade pode acabar com discussões positivas para as pessoas que estão nesse momento de discussão. O dilema entre ter ou não filhos em tempos de incerteza se desdobra em camadas que vão além, perpassando a idealização de ser pai e de ser mãe. O que antes era uma decisão quase natural, muitas vezes socialmente esperada, hoje se torna um campo de reflexão profunda, em que cada pessoa precisa se perguntar: qual futuro quero ajudar a construir? E qual papel quero — ou não quero — desempenhar nele?

Vitor mesmo admite que as respostas variam conforme a mentalidade de cada um, não há certo ou errado: “Só sei que, quando envolvo o Ulisses [seu filho] nos braços, as minhas dúvidas perdem valor. Ele dorme, mas eu permaneço atento ao nosso presente compartilhado. E nesse presente, posso escolher entre duas vias: cruzar os braços perante o caos ou abrir espaço para a vida, mesmo sabendo que ela também traz caos, mas um caos fértil de possibilidades.

Ser pai me fez ver que a ética de ter filhos não é só teoria — é prática cotidiana. É o cuidado em cada escolha e a consciência de que cada ser humano novo traz também um novo jeito de olhar o mundo. E, quem sabe, de consertá-lo um pouquinho.”

Talvez seja um duelo entre esperança e desesperança, entre o anseio de quebrar com o passado e o impulso de se ligar a um futuro incerto. Difícil dar um nome a isso. Mais difícil ainda é apontar um vencedor, pois, no fim, o mundo permanece o mesmo para todos. E esse mundo, sim, depois de séculos de mau-uso, parece estar perdendo.

Se as escolhas forem de fato genuínas, e não imposições, elas refletirão ponderações profundas, respostas pessoais aos estímulos coletivos. Andreza, Gilmara e Vitor são bons exemplos disso, vivendo em paz com suas decisões. Trazer ou não uma nova vida ao mundo deve ser, mais do que nunca, uma decisão tomada com plena consciência. O futuro cabe a nós escolher.

Compartilhar
  • Twitter
  • Facebook
  • WhatsApp

Conteúdo relacionado


Sonhos não envelhecem

#49 Sonho Cultura

por Luciana Branco Conteúdo exclusivo para assinantes

Itcoisa: sinos Angeli

#46 Tempo Vivido Design

por Raphael Nasralla

Resgate

#37 Futuros Possíveis Cultura

por Nelson D

Portfólio: Luísa Matsushita

Artes Visuais

por Revista Amarello

O Homem

#51 O Homem: Amarello 15 anos Cultura

por Adriano Moraes Migliavacca Conteúdo exclusivo para assinantes

Reflexo

#17 Fé Cultura

por Helena Cunha Di Ciero Conteúdo exclusivo para assinantes

Notícias do fulano

#11 Silêncio Cultura

por Vanessa Agricola Conteúdo exclusivo para assinantes

Dura lex?

#12 Liberdade Cultura

por Léo Coutinho Conteúdo exclusivo para assinantes

Curto-circuito

#31 O Estrangeiro Arte

por Roberto Vietri Conteúdo exclusivo para assinantes

A verdade das máscaras e a ilusão da vida

#38 O Rosto Arte

por Gustavo Mouro Conteúdo exclusivo para assinantes

A Cosmogonia dos Sapos: uma imagem que perpassa culturas

Cultura

Casa de Marimbondo: tradição e design entrelaçados

Design

por Revista Amarello

Os filmes por trás do diretor

#19 Unidade Arte

por Willian Silveira Conteúdo exclusivo para assinantes

Navegação por posts

Publicações mais antigas
Publicações mais novas
  • Loja
  • Assine
  • Encontre

O Amarello é um coletivo que acredita no poder e na capacidade de transformação individual do ser humano. Um coletivo criativo, uma ferramenta que provoca reflexão através das artes, da beleza, do design, da filosofia e da arquitetura.

  • Facebook
  • Vimeo
  • Instagram
  • Cultura
    • Educação
    • Filosofia
    • Literatura
      • Crônicas
    • Sociedade
  • Design
    • Arquitetura
    • Estilo
    • Interiores
    • Mobiliário/objetos
  • Revista
  • Amarello Visita

Usamos cookies para oferecer a você a melhor experiência em nosso site.

Você pode saber mais sobre quais cookies estamos usando ou desativá-los em .

Powered by  GDPR Cookie Compliance
Visão geral da privacidade

Este site utiliza cookies para que possamos lhe proporcionar a melhor experiência de usuário possível. As informações dos cookies são armazenadas em seu navegador e executam funções como reconhecê-lo quando você retorna ao nosso site e ajudar nossa equipe a entender quais seções do site você considera mais interessantes e úteis.

Cookies estritamente necessários

O cookie estritamente necessário deve estar sempre ativado para que possamos salvar suas preferências de configuração de cookies.