#28O FemininoArteMúsica

Homens Flores

por Bruno Cosentino

A canção “Homens Flores”, de Luís Capucho e Marcos Sacramento, que gravei no disco Babies, é uma pequena obra-prima. Ela canta:

os mundos são mais belos
quando olhados pela janela
e as colinas estão repletas de homens fortes
e eu olho pra elas
porque elas são o mundo inteiro
e eu olho pra eles
porque eles são o mundo inteiro
e eu olho pra elas
porque elas são meu terreno
e eu olho pra eles
porque eles são meu terreno
onde eu vou plantar
onde eu vou plantar
flores homens
homens flores
flores homens
homens flores

A letra e a melodia juntas passam uma sensação de profunda leveza, um feito que (não) se explica no mistério que pode ser alcançado pela intuição do compositor quando cria uma canção — um empenho do corpo inteiro, da memória, dos desejos, no passadopresentefuturo, integração cósmica da pessoa no espaço-tempo. Tento penetrar o mistério e entender de que ele é feito; os picos de alegria, onde estão.

A primeira coisa que me vem são os homens nas colinas, uma imagem que me remete à beleza clássica da Grécia Antiga, de exibição e celebração do corpo (me lembro também de Walt Whitman, que cantou a saúde dos corpos servindo de enfermeiro aos feridos da Guerra de Secessão dos Estados Unidos).

Na sequência, já aparece uma surpresa, porque justo depois de “e as colinas estão repletas de homens fortes”, é dito “e eu olho pra elas”. Sempre fiquei sem entender direito, mas o que me vinha, antes, era que se falava de homens como o gênero humano, que inclui os homens e as mulheres. Mas quando fui ao texto, a correção gramatical (que, para a canção, não vale lá grande coisa, pois está regida mais pelas sugestões sensuais do que pelo entendimento racional) me levou às “colinas”, ao “elas” e “eles”, aos “homens fortes”; assim, os homens são mesmo homens do sexo masculino. Mas, no fundo, é a beleza que se insinua no “mal-entendido” sintático que a deixa mais bonita. Depois de homens fortes, quando seria esperado “eles”, se diz “elas”; esse estranhamento faz unir o masculino ao feminino. Reforçado pela sequência de paralelismos, “e eu olho pra elas”, “e eu olho pra eles”, tanto elas como eles passam a ser a mesma coisa, “o mundo inteiro”, “meu terreno”, tornando indistintos os gêneros.

É nesse terreno que o cantor vai plantar os homens flores. Assim como todos nascemos do ventre da mulher, eles vão nascer do ventre da mãe terra. Uma dinâmica de diferenciação (na oposição repetitiva de “elas” e “eles”) e de conciliação dos contrários, que remete à unidade primordial anterior à criação.

E, ao fim, tudo retorna à primeira imagem: ali, nas colinas, onde estão apinhados sob o sol (quem diz do sol é a melodia) os homens flores — resplandecendo.

A palavra “misoginia” significa ódio ou aversão às mulheres, mas, seguindo a sugestão de Camille Paglia, ela adquire uma conotação mais complexa, que tem origem no medo das mulheres. Sendo assim, o sentido mais comum atribuído à palavra — o ódio às mulheres — seria, antes, uma consequência do medo. O escritor Jean Delumeau, no livro História do medo no Ocidente, dedica um longo capítulo, denominado “Os agentes de satã”, a três figuras párias da civilização ocidental: o muçulmano, o judeu e a mulher. Ele descreve o processo de diabolização da mulher pelo discurso católico oficial e pela literatura. Se o medo está na origem do ódio às mulheres, outro efeito desse medo pode ser também a adoração religiosa à mulher. Vinicius de Moraes é um exemplo desse último caso.

Percebe-se claramente, nos seus dois primeiros livros, em poemas como “A legião dos úrias”, o terror à mulher implantado pela formação católica do escritor:

(…) dizem os camponeses ouvir os uivos tétricos e distantes
dos cavaleiros úrias que pingam sangue das partes amaldiçoadas.


são os escravos da lua. vieram também de ventres brancos e puros
tiveram também olhos azuis e cachos louros sobre a fronte…
mas um dia a grande princesa os fez enlouquecidos, e eles foram escurecendo
em muitos ventres que eram também brancos mas que eram impuros.

e desde então nas noites claras eles aparecem
sobre cavalos lívidos que conhecem todos os caminhos
e vão pelas fazendas arrancando o sexo das meninas e das mães sozinhas
e das éguas e das vacas que dormem afastadas dos machos fortes (…)


De sua “desconversão”, na obra posterior, podemos tirar os versos mais apaixonados de veneração à mulher, que, embora de carne e osso, guarda a aura da mulher total, da santa Virgem Maria.

Se o medo está na origem, todo homem é misógino. A alteridade feminina se mostra ao homem por demais misteriosa (e ameaçadora). Uma coisa fundamental torna muito diferente a experiência de estar no mundo do homem e da mulher: a maternidade. O fato de poder gerar uma vida dentro de si faz com que a mulher esteja conectada com as forças da natureza de um modo que o homem é incapaz de estar. Mesmo para as mulheres que não são mães, o ciclo menstrual as põe em compasso com o movimento da lua. Não consigo imaginar uma experiência mais telúrica do que sentir crescer um ser humano dentro da barriga — a posição de cócoras utilizada por muitas mulheres no momento de parir faz os pés parecerem raízes fincadas no solo. O grito de dor é grito que invoca toda nossa ancestralidade de bicho.

(O grito da maior dor, a do parto, é o mesmo grito do maior prazer, o do orgasmo. O grito que dá a vida é o mesmo que emitimos quando morremos no momento do prazer extremo, que Georges Bataille chamou de “pequena morte”. Essa similaridade perturbadora também só pode (não) ser compreendida na dimensão mítica

obs.

perdi a razão
querer entrar por onde saí
que quer dizer
essa louca intenção
tudo é circular
morrer morrer morrer
morrer onde nasci
morrer entrar nascer sair
querer entrar por onde saí
morrer entrar nascer sair
querer entrar entrar
de novo sair
perdi a razão
)

O mundo é concreto para as mulheres; acho que daí vem o gosto muito natural pelas coisas, pela aparência, que vai dar no clichê do consumismo. Daí também um tipo de intelectualidade muito diferente da do homem, este mais inclinado ao conceito e à abstração — me lembro da Hannah Arendt dizendo, numa entrevista, que não gostava de ser chamada de filósofa, mas de cientista política; de fato, seus textos têm uma inteligência com sabor de terra. Não à toa, a condição humana, para ela, é o estar entre seus pares, ou seja, a política. É claro, as mulheres têm seu jeito de estar com a cabeça nas nuvens, assim como os homens também têm o seu, mas estes parecem ter mais do que a cabeça, o corpo todo nas nuvens, inábeis para lidar com a beleza diária das coisas práticas, enquanto a mulher parece se relacionar com isso de forma mais espontânea e bem resolvida. E a imaginação feminina vai para outros lugares, não sei bem dizer quais; talvez para uma fantasia de totalidade, porém conectada com o chão.

Assim, o estar no mundo feminino, com sua lógica conciliatória — deveríamos sempre pensar na hipótese de que, se não fossem os homens, não haveria a guerra; uma mulher que sabe e sente e possui o poder de dar a vida não é capaz, enquanto coletivo, de criar a instituição que a extingue. A noção de progresso, calcada numa posição declarada de rivalidade contra a natureza, da criação do artifício, é necessária, masculina, antifeminina — ainda como diz a dissidente feminista (inteligente e controversa) Camille Paglia, o homem quer se separar da mãe e, por isso, sai a vagar e buscar proteção na arquitetura, na arte etc.

O homem não deixa a mulher falar porque ela representa o perigo ao modelo masculino de civilização. Ele tem medo dela.

Interessante notar que justamente hoje, quando muitos intelectuais estão refletindo sobre a ruína do norte racionalista — que tem seu maior e mais brutal exemplo no utilitarismo capitalista, justificativa inconteste para as maiores atrocidades humanas —, retornando ao frescor da ciência prenhe de fantasia do medievo, o que se deseja é mais irracionalidade. Em outras palavras, mais corpo, intuição, contribuições dos sentidos para as formas de convivência. O corpo é o contradiscurso — ele é do império feminino.

Uma amiga, outro dia, no café (quando perguntei se concordava com o que Françoise Dolto dizia, que a sexualidade feminina está culturalmente menos localizada no órgão genital e que isso era resultado de uma sublimação na obra, ou seja, filhos, família etc., o que me tinha parecido um discurso anacrônico com o debate feminista atual), me disse que a própria estrutura do canal da vagina faz o prazer sexual irradiar para dentro do corpo e imantá-lo de um jeito difuso, que a maioria dos homens não entende isso e que, por esse motivo, ela (assim como outras) passou também a buscar satisfação sexual com outras mulheres. Uma outra amiga, para quem pus a mesma questão, me disse que concordava com Dolto, ainda que o lugar do prazer estivesse recolocado nos dias de hoje — o direito ao prazer sem o julgamento moral de origem, notadamente, masculina.

Segundo o mito, o andrógino está na origem. Desafiamos os deuses, e Zeus nos separou em homem e mulher. A partir de então, não paramos mais de buscar a metade perdida. Reproduzimos para tentar nos fundir novamente.

Meu filho de três anos me disse que queria ser menina porque queria ser igual à mamãe. Outro dia, vendo minha filha, tive o entendimento claro de que nela eu me tornei menina — de verdade, com fundamento biológico.

#28O FemininoCulturaSociedade

Lixo eletrônico tóxico

por Helena Cunha Di Ciero

Os adolescentes denunciam, atualmente, na clínica psicanalítica, algumas contradições importantes da nossa sociedade atual. Ao trazerem questões a serem valorizadas, algumas merecem que nos debrucemos com mais cuidado.

Explico. Em primeiro lugar, hoje em dia, ser homofóbico é tido como um defeito inadmissível. Existe um respeito por aquilo que é diferente. Ponto para a nova geração. Nos anos 90, ninguém sabia que essa palavra existia, e hoje ela é repetida inúmeras vezes como uma falha que deve ser levada a sério: “Não falo mais com fulano, ele é homofóbico, você acredita? Que absurdo”. Escuto essa frase com frequência no consultório e recebo com animação a geração que está chegando. Talvez o futuro possa ter um horizonte mais tolerante, com mais respeito e mais compreensão.

É também muito rico esse movimento das meninas que lutam pelo feminismo, se questionando sobre ser mulher. Brigam para serem ouvidas na escola, enfrentando, a seu modo, uma sociedade que emoldura e enfraquece as mulheres. Às vezes, elas até exageram, achando que qualquer gentileza é sinal de machismo: “Ele abriu a porta do carro no primeiro encontro, que machismo!”.

Adolescente costuma exagerar no tom, para se fazer ser visto e ouvido, para tentar compreender e ser compreendido. Tudo nessa fase da vida é grande, em CAPS LOCK. Mas, de maneira geral, é bastante esperançoso ver meninas de 13 anos pensando sobre isso durante suas sessões de análise. Parece-me que esse questionamento tem aparecido antes de sentirem-se acuadas no papel de mulher. Percebo que hoje a feminilidade é construída junto dessa reflexão.

Por outro lado, alguns temas merecem mais cautela: a propagação de letras de funk que são absolutamente misóginas é um deles. Essas mesmas meninas que brigam para serem respeitadas pelas suas escolhas sexuais, por outro lado, entoam mantras de funkeiros que são absolutamente desrespeitosos com a figura feminina e até violentos. Às vezes, penso que essas jovens que cantam essas canções não compreendem de fato o que estão propagando. Será que gostariam de ser tratadas pelos parceiros como as personagens que vivem em suas playlists? É só ouvir Mc Jhon Jhon. Mc Princesa ou Baile de Favela para saber do que estou falando. A velha Tati Quebra-Barraco fica no chinelo.

O fato é que o que toca hoje nas ondas do rádio e no YouTube dos funkeiros tem um tom de violência e de desqualificação da mulher. Os tais “proibidões” são a antítese desse discurso feminista; colocam a mulher num contexto que banaliza não apenas a sexualidade, mas também as drogas.

A sexualidade na adolescência é assunto sério. O desabrochar dessa fase marca toda uma relação eu-corpo que dura por toda a vida. A intimidade não pode ser excluída desse período, como se fosse algo sem valor. Não é peça de antiguidade; é um espaço importante da construção do psiquismo, impossível de ser deletado.

Recentemente, assisti ao documentário Hot Girls Wanted, que investiga a entrada de jovens meninas para o mercado pornográfico. Todas por volta de 18 anos, em busca de dias de glória e glamour. “Já que vou transar, por que não filmar? Já que o nude pode vazar, melhor eu mesma me expor, por vontade própria” – afirma uma atriz. São meninas que entram nesse mercado em busca de fama e sucesso às custas de uma exposição violenta, precoce. Uma decisão impulsiva, um acting out em busca de independência.

A maneira como o filme se desenrola é bastante respeitosa. O olhar do diretor não se aproveita do corpo das moças – o que é raro, em geral, pois sempre se tira uma casquinha das atrizes. No caso, embora o documentário fale de sexo, não exibe nudez. O assunto é manuseado com o cuidado necessário – cuidado este que as mesmas atrizes não têm consigo mesmas, muitas vezes descartando o uso de preservativo para ganhar mais. Uma das meninas conta que fez uma cena de sexo e recebeu cem dólares a mais, mas, como teve que comprar a pílula do dia seguinte, lucrou apenas oitenta.

É muito triste para o espectador ver a falta de intimidade dessas meninas consigo mesmas, com seus sentimentos, a falta amor pelo próprio corpo; o olhar por vezes assustado, por vezes opaco, que elas trocam com os parceiros-atores, a violência à qual se submetem.

Fiquei surpresa ao saber que muitas delas se dispõem a um tipo de filmagem de uma categoria chamada Facial, na qual são humilhadas na frente das câmeras, sofrem violência física, fazem sexo forçado até vomitar, dentre outras coisas tão chocantes que considero de mau gosto redigir. Essa categoria do pornô está disponível para quem quiser ver num simples clique. O filme é uma denúncia triste. Vale assistir para refletir sobre o fato de que toda uma geração formará sua sexualidade assistindo vídeos na internet, esbarrando em conteúdos como esses, ouvindo canções repletas de violência e promiscuidade, que podem vir a ser as canções tema de uma noite especial.

O fantasiar, hoje, foi substituído pelo Google; porém, muitas vezes, o conteúdo digital é assustador. A internet oferece possibilidades diversas, sem que o jovem tenha um aparelho digestivo psíquico suficientemente forte.

Devemos pensar cuidadosamente sobre como as mídias podem ser invasivas, sobre o que é informação e o que é lixo eletrônico tóxico, cujos resíduos ficam marcados permanentemente na mente em formação.

#30IlusãoCulturaLiteratura

Colóquio dos cavaleiros

por Bruno Cosentino

Suponhamos que, numa de suas noites insones, em meio ao bosque ventoso e ao murmúrio de um riacho, com o corpo moído das pelejas dos dias, mas altaneiro na ânsia de espalhar seu renome para além das fronteiras do mapa e do tempo, o engenhoso Dom Quixote de la Mancha, vulgo cavaleiro da triste figura, proclamasse à escuridão que se sagrou cavaleiro para lutar pela justiça no mundo e para amar de amor cortês sua dama Dulcineia de Toboso, e que as palavras ecoadas no ar obscuro se condensassem num torvelinho faiscante, de onde partisse um relâmpago a fulminar a entrada de uma gruta ao pé da montanha, em cujo interior se encontrassem os ossos e a armadura de um cavaleiro derrotado numa batalha, mas que ferido cavalgara até a Mancha para lá morrer. O ser espectral saído do relâmpago entra na caverna, chacoalha a couraça, limpa-a dos restos mortais e a veste por completo, recompondo o cavaleiro inexistente que seguia dissolvido no ar, para então sair à procura do autor das comoventes palavras.

A armadura sem corpo caminha até o bosque e, ao encontrar o cavaleiro da triste figura, já meditabundo, com as pernas de gafanhoto de fora, a boca banguela aberta, um penico na cabeça e a lança em riste, como se esperasse um ataque do céu, se anuncia: “Fui Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez e paladino de Carlos Magno, e procuro agora pelo indivíduo cuja evocação dos ideais da cavalaria me fez retomar a vontade de estar na terra, tirando-me do autoexílio nas nuvens. Peço a vós o favor de indicar aonde devo ir para encontrar esse ser de tão distinto pensamento”.

Quixote deixa de contemplar o vazio, vira os olhos na direção de quem o chama e, depois de observar o nada através da fresta na celada do elmo, mas sem demonstrar qualquer surpresa com aquela não presença improvável, responde: “Vós, cavaleiro desencarnado, de linhagem nobre e façanhas gloriosas, buscais quem aqui está, humildemente, à vossa presença”.


“Mas não pode ser!”, replica Agilulfo um tanto exaltado. “Como que um sujeito de aspecto assim maltrapilho e indecoroso poderia ter dito as palavras tão exatas que me acordaram do sono de séculos? Como bem sei, o ser humano é instável, ambíguo, nada confiável, e tem ainda um corpo que dorme, ronca, envelhece, que bebe, tem fome e se lança em jogatinas lúbricas. A essa desordem sempre contrapus minha força de vontade, minha devoção às regras, e com isso sempre venci a modorra, a inquietude, a melancolia, mantendo a mesma lucidez e comedimento usuais. Somente um corpo asseado e vestido conforme as normas, sem defeitos, poderia agasalhar um espírito puro e perfeito que produzisse o canto que me trouxe até aqui, mas nunca vossa figura de degradação e sarro, que tantas vezes vi igual, e repreendi, em acampamentos e campos de batalha.”

“Vós vos enganais, triste cavaleiro de ar, porque partis de premissa equivocada; esqueceis que as regras, patentes no exército, graus de nobreza e códigos de boa aparência são criações perecíveis do homem, e que o espírito e o desejo de ser grande terão sempre a liberdade de ultrapassá-los e recriá-los. É uma ilusão acreditar que a vontade possa dominar a vida e suas paixões irrefreáveis; nada importa se o indivíduo esteja enclausurado num presídio, numa armadura, num posto hierárquico, em vestimentas asseadas; seu espírito desejoso poderá não só livrar-se desses grilhões, como também expor suas limitações, confrontando-as a sentimentos e ideais tanto mais altos quanto valorosos, quais o amor e a justiça, que, aqui no mundo, se acham traduzidos em poemas, novelas, ações heroicas. Eu, por exemplo, me sagrei cavaleiro para salvar donzelas de feros inimigos, para libertar cativos sob o jugo de reis bárbaros e impostores, para distribuir, enfim, justiça pela terra e alcançar a glória eterna. No tocante ao amor, seguirei amante casto e dedicado à mais formosa dama, Dulcineia de Toboso, sofrendo a delícia de sua ausência, gravada em minha medula, e gozando-a enquanto a lembro e a celebro em canções nas noites solitárias; pois, como já disse o poeta, ‘amor é um fogo oculto, uma agradável ferida, um saboroso veneno, uma doce amargura, uma deleitável doença, um jucundo suplício, uma afável morte’.”

Agilulfo jamais havia questionado suas rigorosas orientações, mas isto lhe ocorre agora ao perceber que, para Quixote, pouco importavam as ordens e os juízos de fora, já que seu sonho demasiadamente humano se tornara a única e verdadeira regra de sua existência, transformando a realidade banal em sublime – onde coexistem gigantes, hipogrifos, ninfas douradas brotando de árvores, situações patéticas ao luar –, não se sabendo mais o que é ilusório ou efetivamente real, e que, no interior desse sonho, havia uma ordem caótica, uma chama oculta a arder.

Pela primeira vez, o cavaleiro inexistente se acha totalmente desprovido de verdades e normas, e não resiste mais ao apelo da dissolução. Dentro da ausência definitiva, aquela vaga inveja que sempre sentira dos seres existentes súbito ganha nitidez, e a sua voz, agora diáfana, ecoa do além esta mensagem: “Nada fui querendo ser insígnia de comando e compostura, mas, olhando só agora para a chama fria que arde, talvez venha a compreender algum dia como me expandir nessa luz amorosa, que me confunde e me convida a existir”.

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1

Um diário, um fotolivro, um pedaço de si — Offline, este objeto que costura textos e imagens produzidos pela fotógrafa Ana Rovati durante residência artística em Madri, é parte fundamental de sua vida. Digo isso não como mais um lugar-comum, mas, tendo acompanhado de perto as idas e vindas do processo, sei o quanto ele tem de vísceras. Quando saiu do país, o projeto ainda não era algo totalmente delineado, mas uma intuição, se me lembro bem, de retratar velhinhos e velhinhas, ou melhor, pessoas que estavam fora do mundo conectado pela internet. Desde já, portanto, havia o embrião não de um projeto fotográfico propriamente dito, mas de investigação intelectual e artística, que extrapolava os limites da linguagem fotográfica. Tanto é assim que lembro de conversarmos sobre como essa ideia poderia ser transposta em imagens, e não vislumbrava nada.

2

Já em Madri, em algum dos Skypes trocados por nós, ela me contou que o projeto havia chegado a um ponto de inflexão radical: tinha decidido ficar sem conexão alguma com a internet, pois, assim, através da própria experiência, conseguiria pensar verticalmente o tema em questão. A princípio, pretendia ficar seis meses (se aguentasse até lá) fora da rede, período que acabou se prolongando por um ano. Durante esse tempo, sentiu as dores e delícias do contato imediato com pessoas e coisas. O raciocínio foi a mil. O pendor telúrico da virginiana aflorou. A lucidez crítica explodiu. O resultado final foi menos foto do que o esperado e muito pensamento. Sem nenhuma dúvida, pode-se dizer que, nesse breve intervalo, sua personalidade artística — de uma intuição sempre franca com a vida e consigo — se avolumou sobremaneira, engendrada por um aprendizado ético de matriz spinoziana.

3

Um projeto fotográfico sem fotos poderia ser um belo exemplar da vanguarda conceitual. A esse ponto chegou Offline sem pretender. Mas Ana é uma artista sem filiações. Como então solucionar o impasse à sua maneira? Passou a escrever textos sobre. Com leveza e bom humor, descreveu situações por que passou à margem da rede, levantando questões profundas, que de tão óbvias já não podiam ser vistas por qualquer um. Sem e-mail, não conseguiu emprego; sem WhatsApp, perdeu noitadas; sem dinheiro, voltou para o Rio. Em casa, passou a entender aquilo tudo que já tinha inscrito no corpo. Leu importantes pensadores da contemporaneidade: Christoph Türcke, Hal Foster, Jonathan Crary etc. (com este último, trocou cartas). De intuitiva passou a especialista.

4

O projeto artístico Offline — que aqui está — é um diário crítico ilustrado com fotografias feitas por Ana durante esse momento crucial de sua vida. Imagens e textos vão melhor se acompanhados. É o primeiro objeto (de muitos, espera-se) concebido e produzido minuciosamente pela artista, como parte de sua produção. Na esteira, surgiu convite para uma exposição. E, assim, fotos e sensações vão ganhando corpo em diversos tamanhos, cheiros e texturas antes desconhecidos através da tela do computador. Ao tornar Offline matéria táctil, Ana dá o termo mais justo àquilo que lhe arrancou pedaços. E com coragem, oferece esses pedaços — carregados de inteligência, contemplação, alegria, solidão — a quem quiser mordê-los.

Vou sair da internet. Um ano. Calma. Ainda não sei quando. Calma. Ainda é só uma ideia. Sim, estou falando sério. Isso, eu não entraria mais no Skype. Não, eu não vou desaparecer.

Sou brasileira e moro em Madri há alguns meses. Quando vim para cá, minha mãe não chorou. Não na minha frente, pelo menos. Quando eu contei a ela que ia sair da internet, ela chorou.

Já existem teorias que relacionam a ausência no mundo virtual com a morte e, obviamente, não cabe a mim explicá-las aqui. Por outro lado, é possível encontrarmos um argumento bastante lógico e direto: uma pessoa morta não poderia postar fotos na rede. A minha irmã, numa conversa, me falou: “Se tu for mesmo sair da internet, melhor fechar tua conta do Facebook ou as pessoas vão pensar que tu morreu porque não está mais respondendo”. Sábia observação.

Ao começar a experiência e deixar de estar disponível vinte e quatro horas por dia, causei uma disfunção social, “desapareci”. As pessoas já não têm “fácil” acesso a mim nem à minha imagem, já não sabem se vi ou não as mensagens no celular, por quais lugares tenho andado ou o que tenho feito. A não ser que façam parte da minha vida “real”.

Obviamente, minha mãe sabe que não estou morta e, se ela chorou, foi pela possibilidade de deixar de ter contato com a minha imagem a qualquer momento que desejasse. Eu sigo tendo celular, que, por acaso, deixo ligado vinte e quatro horas por dia. Mas isso já não parece ser suficiente.

Depois de alguns dias sem acessar a internet, me dei conta de que, apesar do meu aparente “desaparecimento” (é verdade, o número de contatos que eu tinha caiu brutalmente), a intensidade e o valor de cada uma das conversas que eu passei a ter se multiplicaram. Ou seja, se, por um lado, talvez eu tenha morrido virtualmente, por outro, confesso, fazia muito que não me sentia tão viva.

De volta ao Brasil, e ainda desconectada, converso com algumas amigas. O mundo, a criatividade, projetos, a vida.

Ana – […] mas foda mesmo é o David Bowie, que não tem medo de se reinventar.
Josi – Era, né.
A – Como assim “era”?

Não pode ser. Pode. Esse foi o diálogo responsável pela minha descoberta sobre a morte de David Bowie. Sete meses depois da morte dele. Sete!

A – É sério?
J – Tu tá falando sério ou tá te fazendo?
A – Meu deus.
J – Então tu também não sabe do Cauby Peixoto.

Ok. Podemos parar por aqui e começar a fazer as relações. Porque está claro que, como eu vivi em Madri no período em que David e Cauby morreram, eu provavelmente só teria fácil acesso à informação da morte do primeiro, venerado internacionalmente. Assim, vamos a ele.

J – Mas, Ana, foi comoção internacional. Será que os espanhóis não gostavam dele? Ninguém comentou nada por lá?

Análise 1 – Era domingo. Eu não costumava comprar jornal no domingo! Além disso, na verdade, as notícias de domingo não saem no jornal de domingo, pois jornal de papel é impresso. Se é impresso e tem que estar na rua cedinho, não dá tempo. Exato. E como o mundo conectado provavelmente se inteirou da notícia instantaneamente após a morte do artista, as capas de segunda-feira já não priorizaram o fato. A notícia ficou “velha” e, se apareceu, foi nas páginas internas. O que me faz concluir que, provavelmente, eu também não comprei o jornal naquela segunda-feira. Lógico. Para ajudar, não tive aula, local onde eu encontraria muitas pessoas e aumentaria as chances de ouvir algum comentário sobre o assunto. Ou seja, passei batido.

Análise 2 – Se você não utilizasse mais a internet para se informar, então quais seriam as suas alternativas?

– jornal diário (quantas opções e variações de opinião? Três? Sem esquecer do detalhe “descartável” do material);
– revista semanal ou mensal com as principais informações;
– amigos e pessoas na rua;
– televisão;
– rádio.

Ao somarmos todas elas, talvez cheguemos mais perto do potencial da web. É inegável que a internet é uma fonte de possibilidades para a diversidade em informação, na qual encontramos opiniões de diferentes posições políticas, especialistas e não especialistas. Uma lindeza só! Sério, por que eu não usava isso assim antes? Porque potencial não quer dizer necessariamente prática.

Análise 3 – Os dois lados da moeda
Quando descobri sobre a morte do David Bowie, eu me senti a pessoa mais alienada do mundo. O que mais eu estou perdendo? E, mesmo com a sensação de que estava lendo mais sobre notícias diárias no modo papel e dialogando sobre política com amigos mais do que quando online, prometi a mim mesma que, ao voltar à internet, dedicaria um tempo diário a notícias importantes e sites com olhares mais amplos (o oposto do monopólio informacional impresso ao qual estou limitada agora, ufa). Opa. Espera. Lembrei por que eu não usava a internet assim antes.

Acontece que, junto com essas notícias, também acabamos nos informando (sendo engolidos?) de outros detalhes do mundo, como: casamentos e términos de celebridades, qual jogador de futebol deu escândalo, tendências de maquiagem, último bafo da semana de moda, a # mais lida no Twitter, quem engordou e quem emagreceu, top 10 de receitas com ovo ou de animais fofinhos, decoração, dieta paleolítica ou do carboidrato ou de qualquer outra modalidade, a última viagem do príncipe inglês com sua linda família, a comida que o seu amigo almoçou ontem, etc.

De fato, estar offline pode ter me deixado alienada para algumas coisas. Mas, quando há o tal potencial de informação, qual é a parte do potencial que você usa? #ficaadica

#30IlusãoArteMúsica

Ópera ou a máscara da ilusão

por Leandro Oliveira

De algum modo, a ópera é o mais inverossímil dos gêneros dramáticos. A ideia mesma de pessoas que cantam em vez de falar, muito antes da revolução brechtiana, já realizaria o “efeito de estranhamento”, tão estimulante quanto mal entendido entre os tantos seguidores do dramaturgo alemão. O fato é que, desde seus primórdios, em finais do século XVI, a ópera existe a partir de um pacto absolutamente fantástico. E o pacto se dá em dois níveis: na criação, entre o compositor e a narrativa, e na performance, entre o palco e a plateia.

E o que reza o pacto? “Deixai fora toda vossa inteligência, vós que entrais”; pois, a partir da premissa de que nada daquilo que será produzido diante de seus olhos é possível – e da ilusão de que não pode sequer pretender sê-lo –, o libretista e o público precisam resignar-se ao papel eventualmente secundário que todas as artimanhas de sua inteligência podem eventualmente fazê-los construir – ou desfrutar. Como na máxima de Jep Gambardella, protagonista do filme A Grande Beleza, é importante, no universo da ópera, reconhecer que “é tudo um truque”.

Mas qual a natureza deste truque? A ilusão a partir da qual funciona a ópera é muito diferente daquela realizada pelo circo, por exemplo. Primeiro pois não há enigma a ser desvendado – o encanto da ópera não se dá a partir daquele maravilhamento da adivinhação e do quebra-cabeça que temos pelos mágicos e suas cartolas, os coelhos desaparecidos ou pessoas cortadas ao meio. A ilusão da ópera tampouco se dá pelo fascínio acerca do sobre-humano, aquele que, em alguma medida, as vozes em toda sua projeção e agilidade podem sugerir, tais como nos sugerem contorcionistas ou corredores de olímpicos. Não: o tipo de encanto que Usain Bolt nos faz ter, embora um elemento inequivocamente presente, é sempre tangencial numa boa performance operística.

A ópera tem suas raízes numa ruptura: a de tentar fazer com que a música deixe de pintar o significado das palavras e passe a ilustrar a emoção do texto no qual as palavras se inserem. Como diz um dos importantes colaboradores na inquieta produção teórica que antecedeu o advento da ópera, o compositor e teórico Vincenzo Galilei (1533-1591), pai do famoso astrofísico Galileu Galilei, a música deve passar a “expressar os conceitos da alma”. Desde lá, até aqui, com todas as suas transformações de estilos e propostas, é nisso que fundamenta-se o gênero. E é nestes termos que deve ser lida uma passagem preferida do livro “Altos voos e quedas livres”, do escritor britânico Julian Barnes:

“Durante a maior parte da minha vida, essa tinha me parecido ser a forma menos compreensível de arte. Eu não compreendia realmente o que estava acontecendo (apesar de ler atentamente os resumos da história) (…) Óperas parecem peças inteiramente implausíveis e mal construídas, com personagens berrando ao mesmo tempo na cara uns dos outros. (…) Mas agora, na escuridão de um auditório e na escuridão do luto, a implausibilidade do gênero, de repente, desapareceu. Agora parecia natural que as pessoas entrassem no palco e cantassem umas para as outras (…) Em ‘Don Carlo’, de Verdi, o herói acabou de conhecer sua princesa francesa na floresta de Fontainebleau e já está de joelhos cantando: ‘Meu nome é Carlo e eu te amo’. Sim, pensei, está certo, é assim que a vida é e deveria ser, vamos nos concentrar no que é essencial. É claro que a ópera tem um enredo (…), mas sua função principal é levar os personagens o mais rápido possível ao ponto em que eles possam cantar a respeito de suas emoções mais profundas. A ópera vai direto ao ponto, assim como a morte (…). Aqui estava meu novo realismo social.”

Não é nossa inteligência que trabalha a todo vapor num espetáculo operístico. Devemos, ao contrário, estar abertos ao arrebatamento de uma espécie de contra inteligência, as emoções que nos levam pelo peito, nos colocam sob vertigem. Um bom espetáculo de ópera é sempre realista, no sentido mais objetivo da palavra.

Mas isso não é uma contradição? Claro que não. Todos que em algum momento da vida estudamos roteiros e narrativas – sejam elas novelescas, cinematográficas ou teatrais – sabemos da importância da eleição dos elementos da trama, das menores às maiores, com fins de construção de um todo coerente e orgânico; numa boa trama, tudo deve concentrar-se ao redor dos “problemas” dos protagonistas e tudo – antagonistas, coadjuvantes, cenários, figurinos, objetos de cena e quetais – deve funcionar para dar sentido à história.

Mas apenas a ficção tem esse compromisso com o sentido. A realidade, não. A realidade é a soma de todas as exigências feitas pelas casualidades, as forças intempestivas, as escolhas estultas e maquiavélicas que as pessoas fazem. Uma trama profundamente realista é, de fato, aquela onde tudo escapa, nada pode ser planejado, cada incidente é decorrência de uma cadeia infindável de incidentes cuja participação não é nem pode ser prevista.

E a ópera segue essa máxima. Ela “vai direto ao ponto, assim como a morte”. Os amores acontecem à primeira vista, pois todos sabemos que, na realidade, os outros amores inexistem; os personagens morrem cantando por horas a fio, pois é assim a vida: morremos não de uma hora para outra, mas a cada segundo, até o suspiro final. A ópera organiza-se a partir da ilusão aparentemente mais ordinária, a de que aquilo que vemos e ouvimos é falso – se os cantores cantam, claro, nada daquilo pode ser de verdade. Mas, em algum lugar, sabemos que não é assim: e ali, todo aquele nonsense, aqueles personagens movidos pela intensidade e verve, a construir e destruir sonhos e relacionamentos, a tramar planos inexequíveis e julgar por valores impensáveis quem deve ou não deve viver, é ali, naquele caldeirão de som e fúria, que podemos de fato ver por que a vida é mesmo uma história contada por um idiota, sempre vazia de significado.

Na ópera, como na vida, sentimos intensamente. Sua ilusão é a de se fazer passar por impossível. Mas, como nos diz Julian Barnes, ela trata “de como a vida é” – e deveria ser.

#30IlusãoCulturaSociedade

Criptonita

por Helena Cunha Di Ciero

Conferi se comeram legumes. Orgânicos. Para evitar agrotóxicos. Que perigo. Passei filtro neles antes da praia. O buraco da camada de ozônio só cresce, li no jornal. Protetor é para evitar câncer; achei uma camiseta que tem FPS 50, comprei logo duas. Coloquei rede na janela, para evitar que caiam lá embaixo. “Tears in heaven” foi a canção que Eric Clapton compôs para o filho que caiu da janela. Embalou minha adolescência. Enquanto eu dançava bailinho e começava a minha juventude, essa era a trilha sonora das festas. Ingenuidade minha, nem percebia do que se tratava. Estava tão distraída com a vida que me convidava para dançar, deslumbrada, que quase esquecia que também existe esse negócio chamado morte.

A empresa que contratei para a rede se chamava alguma coisa Angel. Tem que ter. Eu que não fico sem esse anjo da guarda chamado rede de proteção. Começou a me dar arrepio ouvir essa música no rádio depois que eu pari. De vez em quando, ela aparece. Sempre me emociona. Como esse homem conseguiu, meu Deus, cantar outra vez? É possível voltar a ter voz com um impacto desse na vida? Não sei. Não quero saber. Sempre tento mudar de estação. Mas a música é forte demais e permanece. É que a melodia da morte nunca deixa de estar à espreita, como uma música que fica sempre de fundo.

Sei que os cobri à noite para evitar pneumonia. Fechei a janela por causa da ventania. Saí correndo no meio da madrugada para acolher um filho que teve pesadelo. Levantei com tanta rapidez que travei o pescoço. Está tudo bem. Era só um sonho ruim. Voltemos a nos distrair com o cronograma do dia seguinte. Voltamos à programação normal da vida.

Dei também a vacina de sarampo, a terceira dose, já que há uma epidemia voltando, minha sogra falou. Própolis garante uma melhora da imunidade, assim eu li numa notícia do mercado de comidas naturais da esquina, e minha amiga confirmou. Lá mesmo onde compro macarrão integral para evitar a farinha branca, que, pelo que dizem, é um veneno. Não custa tentar. Eu estava tão atrapalhada essa semana que nem fiz a inalação direito na minha filha mais nova, conforme o pediatra orientou, para que o tempo seco não lhe cause alergias respiratórias.

Quando teve a epidemia de Zika, comprei mais de dez repelentes de uma só vez. Dez Exposis, que era o único eficaz para dengue, tal qual li numa matéria da revista.

Fui também a primeira da fila da vacina de gripe no Cedip para evitar um surto de H1N1 que acabou de ocorrer. Era 7:30 da manhã. Estavam eu, minha mãe de 80 anos, as crianças e meu marido. Por que a pressa em plena segunda? Meu marido me perguntava. Eu não respondi na hora, pois estava preocupada com onde eu tinha guardado o papel do manobrista, como sempre, mas a verdade é que eu tenho pressa em fugir da morte, por isso corro.

Eu tomo banho depois dos velórios, tiro o sapato. Quero tapeá-la. Quero ela longe da minha casa. Quero combatê-la, embora eu saiba que eu estou fadada a perder essa luta no fim do meu jogo. Eu tenho certeza que ela é esperta, entra no buraco da fechadura, pela janela, pela fresta da porta.

Na semana passada, outro susto: chegamos a tempo no pronto-socorro no meio de uma crise de laringite do meu mais velho. Eu achei que ele ia parar de respirar. Ufa. Deram remédio, voltamos para casa. Dormi calma. O fantasma daquele dia tinha dormido. E eu dormi, triunfante: enganei você, velha senhora. Não foi dessa vez que a morte nos encontrou. Consegui me esconder direitinho.

Dessa vez, a ambulância dobrou a esquina. Fiz um sinal da cruz quando ela passou. Que cheguem a tempo na casa do doente, pensei solidária. Ao mesmo tempo que comemorei, egoísta, que dessa vez não foi comigo. Entrei no supermercado, atendi o celular. Não é comigo dessa vez. Posso comprar carne para o almoço com calma. Para ela, não tem vaga na porta de casa. Hoje não.

Eu não vou conseguir proteger vocês para sempre, meus filhos. Mas eu queria. Então, enquanto eu posso, faço esses paranauês, que, no fundo, não adiantam tanto, estão além do meu controle, mas me dão a ilusão de que nada de mal vai chegar perto de vocês. Eu queria ter a certeza que ninguém vai quebrar o coração de vocês. Que vocês nunca vão ver no canto de uma festa o amor de vocês gargalhando e jogando a cabeça para trás com outro alguém. Queria também que vocês nunca fossem traídos, maltratados, excluídos. Que nunca sofressem um assalto. Um assédio.

Que nunca recebessem a notícia de que alguém que vocês amam está morrendo.

Enquanto eu puder, eu vou lutar para enganar essa nossa inimiga. Vou viver para tentar tapear a velha senhora. Tamparei os ouvidos para não ouvir seu canto, tal qual Ulisses fez com suas sereias. E nessa tentativa ilusória de drible, vou me movimentando. Construo muros, mudo de casa, trabalho, produzo, transito, sem me paralisar. Fecho as janelas. Faço inalação. Blindo o carro, se preciso for. E amo vocês com mais força. Tenho pressa, tenho urgência. Ser a mãe de vocês me criou a maior de todas ilusões: a de que eu posso tentar ser super-heroína. Foram vocês que me ofereceram essa coragem. São vocês meu amuleto. E eu sei que, dentro vocês, viverei para sempre. Serei imortal, finalmente, nessas memórias que construí.

Essa luta é o meu único caminho possível. Embora eu saiba que a maratona termina de frente com essa tal bandida. E que ela vai roubar minha tão suada medalha.

Por isso, corro demais. Ainda.

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Meditação, sexo, política, grana

por Thiago Blumenthal

Vocês leram nos jornais ou nas redes sociais. O guru mais famoso das celebridades brasileiras foi acusado de assédio. Houve alguma comoção? Houve. Sempre há. Tudo há. Hoje as pessoas se comovem com fotinho de cachorro com cara triste. Mas não tanta, ainda bem, uma vez que o caso não deveria ser novidade. Gurus e líderes religiosos são pegos em seus instintos mais carnais desde a invenção dos deuses, dos totens, da religião. E não me refiro somente ao hinduísmo, mas a outras religiões, do padre que apalpa o pipi do coroinha ao sensei que leva a ocidental encantada pelo budismo ao Burgão Grill no sábado à noite, na Vila Matilde. No caso de líderes hindus, especificamente, sabemos que o seu supereu está sob constante influência do instinto, em uma inversão fantástica com o id.

Há uma história célebre. Quando os Beatles visitaram a Índia, por insistência de George Harrison, Maharishi teria flertado com uma amiga de John, que não gostou nada da história. Nem os outros Beatles (menos George). Há muitas interpretações para a música “Sexy Sadie”, que consta no Álbum Branco, mas uma delas é de que seria uma resposta ao assédio. Verdade, mentira, confesso que não sei. Os especialistas em Beatles podem responder melhor, mas as respostas variam.

O caso recente de Prem Baba não é para deixar ninguém de queixo caído. A primeira coisa que sempre estranhei é que Prem Baba é brasileiro, católico (batizado), de modo que jamais poderia ser hinduísta – a conversão ao hinduísmo tradicional é proibida. Ou se nasce hindu, ou não é hindu. Até no judaísmo a conversão é autorizada, embora complexa – além de cara. E, em geral, no judaísmo mais ortodoxo, a resposta é um sonoro não. Mas não entrarei em detalhes.

Consulto referências e entrevistas de Janderson – vamos chamá-lo assim? –, e ele diz que não se considera hinduísta, mas, antes, que “o conhecimento que transmite é universal”. Ora, cara pálida, com todo o respeito, suas práticas vêm do hinduísmo, sim. Tive contato direto com sua filosofia e a base toda é hinduísta. Essa conversinha de “universal” serve para tudo. “Deus é universal”. Bullshit. Não, Deus não é universal. Até porque no hinduísmo, como todos sabemos, o número de deuses é maior que o de insetos em todo o planeta. Claro que isso é uma saída sutil para um dos maiores tabus do hinduísmo formal: ninguém se torna hinduísta. Ou nasce assim, ou bau-bau. Você pode conhecer seus preceitos, segui-los inclusive, mas jamais será um de nós, por assim dizer.

Como os ditos “judeus messiânicos” (nome detestável, mas assim eles se autodenominam) se dizem judeus: não, eles são cristãos que se apropriam dos ritos e da tradição judaica e hebraica. Mas judeus não são. Pelo contrário, são cristãos. Como Janderson, o Prem Baba, é cristão. Uma vez batizado, bau-bau. A não ser que a pessoa peça que seja excomungada via Vaticano, em um processo burocrático, mas possível. É possível. Uma ex-namorada, inclusive, abrindo um parêntese, fez isso. Ela, que vinha de família libanesa, de cultura islâmica, e foi batizada no cristianismo, namorando um judeu ateu. Enfim, o mundo é um lugar muito esquisito, e daqui pretendo vazar o quanto antes.

Sinto que a espiritualidade é uma necessidade, mais do que uma questão de fé genuína propriamente dita. Conte a um alienígena que acreditamos num Deus que jamais apareceu uma vez sequer, senão através de fenômenos naturais em toda a Bíblia (seja na hebraica-Tanakh ou no Novo Testamento), mandando recadinhos através de um gago quase epiléptico, ou de um revolucionário cabeludo e revoltado que saía quebrando tudo no Templo, e esse alienígena deve nos eliminar com alguma arma a laser em milésimos de segundos.

Nada contra a religiosidade. Não levanto bandeira alguma – a única bandeira que levanto é a da minha mãe –, mas não precisamos ler Freud para saber que precisamos de uma explicação sobrenatural para nossa existência, para nossos sofrimentos e para nossas maiores questões que a filosofia, ao longo de séculos, não deu conta. Inclusive sinto que a antropologia é mais bem-sucedida nesse sentido, ainda que também não satisfaça todos nossos anseios, martírios e interrogações.

De modo que encontrar um guru espiritual, um bem-estar (modo simplório como as pessoas se referem a sentir-se bem em tal culto, serviço ou cerimonial religioso), não é uma questão de fé, mas de necessidade e de medo. Como disse, não precisamos de Freud, basta olharmos para nós mesmos. O medo nos move, o medo nos dirige, e o medo cria a maior ficção da consciência: a de que existimos.

Não é culpa de ninguém. O sofrimento é inato, inescapável; a dor veio, vem ou virá. E uma hora ela chega na voadora. Procuremos Janderson, o Prem Baba. Ou vamos meditar. Falo de práticas orientais que, para uma parcela das pessoas, substituiu as concepções religiosas mais conhecidas do povo brasileiro. A maioria vai à missa aos domingos. Outros, aos cultos semanais de uma igreja protestante; outros ainda guardam o sábado judaico. Mas há gente que busca respostas na filosofia e na teologia oriental, que, inclusive, eu acho muito interessante, mais até do que a ocidental, para não parecer que este texto é só porrada contra essa onda oriental que chegou à Europa e às Américas no século XX, e de modos indiretos, já no século XIX.

Além do judaísmo, o sistema religioso que mais conheço e com que tenho mais contato é o budismo de linha japonesa (shin budista). Diferente do zen budismo, ou do budismo tibetano, vastamente difundidos pelo Ocidente por diferentes razões, o shin budismo não tem meditação. Não despreza a meditação, nem a condena, nada disso. Apenas, para essa escola budista – a mais popular no Japão, mais que o zen –, a meditação não pode fazer muita coisa para nos ajudar. Contudo, o shin budismo (terra pura), no Ocidente, é algo pouco conhecido e bastante restrito. As pessoas em geral querem saber de meditação. Conheço gente que entrou em contato com senseis shin budistas e, ao saberem que não havia meditação, disfarçaram e nunca mais voltaram. Muitos para terem uma vida melhor, mais saudável, menos ansiosa, mais tranquila, mais “em paz”. Entendo.

Eu também quero tudo isso. E busco de outros modos, sigo aquela música do Queens of the Stone Age: “better living through chemistry” (ou, ainda, aquela mais radical, “nicotine, Valium, Vicodin” etc.). Há quem busque paz no sexo, vazio ou com amor, afeto. Outros no álcool. Alguns na missa dominical. Outros nas palavras sábias de um guru. Há quem acenda sua vela no sábado e recite o kiddush. Outros na meditação. Respeito todos esses escapes. Mas permita-me, caro leitor, chamar tudo isso de “escape”.

O que se passa com a meditação, contudo, é que há poucos estudos sérios que comprovem uma estabilidade ou um apaziguamento mental. Pesquisas neurológicas recentes comparam meia hora de meditação a uma hora de exercício físico na academia. O corpo humano é uma máquina, diria minha priminha de seis anos. E o corpo produz substâncias mil que alteram o estado mental da pessoa. Jogar bola pode te deixar em paz.

Isso invalida a meditação? Sim e não. Opinião pessoal de quem estuda o assunto (tanto o da neurologia como o do budismo) e tem contato direto com o budismo: a meditação é excelente, mas precisa ser muito, muito, muito, bem-feita, com orientação, prática ad infinitum e uma disciplina mental que em geral nós, seres humanos, não temos (somos hiperestimulados por fatores internos e externos por centenas de vezes a cada minuto). Um sensei zen budista tem anos e anos de prática e, ainda assim, se lhe for perguntado, ele dirá que não sabe meditar ainda. “Talvez nunca saberei”. Imagine o Enzo que vai ao show de uma banda Mombojó qualquer de noite, já pensando na cerveja artesanal que irá beber ao som do conjunto, indo meditar num espaço zen na Vila Madalena. Esse sujeito não está meditando é nada. Ele está de olhos fechados, acreditando com todas as forças que está “sentindo algo”.

Evidente que cada um faz o que dá na telha, cada um faz o que quer, a vida é de cada um, e eu não pago essa tarde no espaço zen do Enzo. Ele faz o que quer com seu dinheiro, como eu faço o que quero com o meu. Mas meditando ele não está. De uns tempos para cá, inventaram até um nome bonito, americanizado, para isso: “mindfulness”. Que, se for procurar no dicionário de Oxford, vai constar como sinônimo de “wad”. Que, para quem não conhece um pouco de cockney, é o mesmo que “cash”. Money. Dinero. Bufunfa.

Em tempos turbulentos como os nossos, aqui pelo Brasil, essas questões espirituais parecem atingir sentidos políticos. A tendência de transformarmos nossos candidatos diletos em mitos, tal como um Lula, de um lado, ou um Bolsonaro, do lado oposto. Versões politizadas do Janderson Prem Baba. A religião e a política têm esse lado comum: elas conferem uma identidade a um indivíduo que, muitas vezes, não a possui. É preciso identificar-se com algo, fazer parte de um grupo. Como diz no dito, a gente sai do colegial, mas o colegial não sai da gente. Eu não me identifico com nada; sou um misto de origens, perdi meu grupo da adolescência e, para piorar, ainda estou procurando um sentido à vida.

A resposta está aí, vagando pelo ar. Não é possível capturá-la, mas é bom sentir o gostinho. E mostrar aos outros. Porque identidade só depende de um outro que nos reconheça como tal, principalmente em oposição. Sem isso, não sou ninguém. Tudo isso para enfrentar a dura verdade, que precisamos encobrir, que é a de que é isso mesmo, pessoal, não somos ninguém mesmo.

Sociedades democráticas pressupõem cidadãos educados, isto é, bem-informados e críticos, tanto porque se requer que eles sejam capazes de formar conscientemente suas preferências e escolher entre partidos, programas e candidatos diferentes, quanto porque se supõe que devam fiscalizar minimamente seus representantes e agir na política diretamente, quando necessário.

Nesse contexto, a educação é considerada um direito universal e, consequentemente, um dever do Estado, que deve provê-la gratuitamente e com qualidade a toda a comunidade que governa.

Por essa razão, historicamente, as lutas pela democratização das sociedades ocorreram concomitantemente a campanhas e à promoção de políticas públicas de universalização do ensino. Para se tornar uma democracia, considerava-se absolutamente necessário educar minimamente os cidadãos. Segundo essa mesma lógica, cumpre lembrar que, durante muito tempo, a escolarização foi uma barreira à participação política: não ser escolarizado implicava não estar qualificado para ser cidadão.

O Brasil, marcado por um passado de profundas desigualdades e injustiças, vive ainda, em pleno século XXI, o desafio de garantir esse bem essencial a parte significativa de seu povo. Estima-se, em 2018, que aproximadamente 1,9 milhão de crianças e jovens estejam fora da escola, em geral residentes em locais ermos e em condição de vulnerabilidade social. Ademais, indicadores como a taxa média de anos de estudos, o índice de analfabetismo, o percentual de investimento público por aluno, etc., colocam, ano após ano, o país atrás não apenas das nações desenvolvidas, mas de quase todos os países do mundo subdesenvolvido, inclusive de países efetivamente pobres (não apenas desiguais, como é o nosso caso), e que, portanto, têm menos recursos à disposição para investir nessa área.

Longe de se supor que não houve melhoras, ou de que os vários governos foram igualmente relapsos com a educação brasileira; fato é que nosso país partiu de um patamar absolutamente avesso a esse campo. Muito tardiamente fundamos por aqui instituições de ensino, e elas permaneceram por séculos a fio como um bem reservado aos filhos das elites locais. Afinal, éramos o país dos bacharéis que, irônica e dramaticamente, também se compunha de uma imensidão de escravos, impedidos juridicamente de serem educados. Cabe lembrar que, quando abolimos o Império para substituí-lo por um regime político mais “moderno” e “livre”, 85% da população ainda era de iletrados, sendo considerados, segundo a legislação da época, cidadãos de segunda classe.

Passados mais de cento e vinte anos da fundação da República, muita coisa melhorou, ainda que, por exemplo, o percentual de analfabetos seja assustadoramente alto: 7,2% da população nacional com 15 anos de idade ou mais, o que corresponde a quase 13 milhões de pessoas, colocando, vergonhosamente, o Brasil como o oitavo país com mais iletrados no mundo, num universo de 150 nações analisadas pela Unesco em 2017. E, é bom lembrar, mesmo aqueles que têm acesso ao ensino o fazem, geralmente, em condições precárias (para não falar também dos inúmeros analfabetos funcionais). Via de regra, no Brasil, os professores são muito mal remunerados (lembremos que diversos governos estaduais, de partidos distintos, têm se negado a pagar o piso salarial definido por lei), exercem seu ofício em péssimas condições de trabalho, as escolas têm estrutura física precária e há carência de material didático.

Assim, em relação ao quadro atual, o padrão obscenamente desigual do Brasil (ainda que em proporção diversa da do passado) é reiterado: aos filhos das classes mais abastadas e das classes médias, são garantidas as melhores escolas (por meio do financiamento privado). À ralé brasileira e aos filhos dos trabalhadores regulares, sobra o resto: escolas como essas fotografadas por Guilherme Bergamini, esquecidas do poder público, reféns de violências materiais e simbólicas de toda sorte. Não bastasse tanta imoralidade, os alunos egressos das escolas públicas ainda têm que viver em uma sociedade que, com escárnio, entoa repetidamente o mantra de sua crença na meritocracia: “todos são e serão recompensados proporcionalmente por seu esforço”, reza a lenda.

Por tudo isso, as belas fotos de Bergamini não produzem propriamente espanto, pois não imaginamos cenário radicalmente diverso do retratado. Sabemos, enfim, como o Brasil funciona, e enquanto não estivermos submetidos a essas condições indignas, vamos levando nossas vidas. Ainda que vazias de alunos, podemos muito bem imaginar a que grupos sociais essas ruínas de escolas estão destinadas: aos jovens das periferias, pobres e, em sua maioria, negros.

Mas se essas fotos não nos surpreendem, elas (espera-se) nos indignam. Revolta que aumenta ainda mais quando consideramos as últimas decisões do Estado brasileiro em relação à educação. Basta recordar a PEC do Teto dos Gastos Públicos, proposta de lei enviada pelo presidente Michel Temer e aprovada no Congresso Nacional em 2016, que impede que se aumente o investimento federal pelo prazo de vinte anos, condenando as novas gerações a condições de ensino ainda piores.

Como tal decisão, claramente contrária aos interesses da maioria da população brasileira, pôde ser aprovada? Em primeiro lugar, porque nenhuma sociedade é um bloco homogêneo: se certos interesses são frontalmente contrariados com essa lei, outros são favorecidos, a começar pelos proprietários das instituições privadas de ensino. Mas não apenas eles: certamente as classes mais abastadas do país (inclusive a classe média, que tanto sofre para pagar as escolas particulares de seus filhos) continuarão a ter à sua inteira disposição jovens que, sem qualquer perspectiva de vida, têm que trabalhar em péssimas condições, por baixos salários, com altas jornadas de trabalho, etc. Trabalhar, enfim, como empregadas domésticas, porteiros de suntuosos condomínios, atendentes de telemarketing, etc. E assim os filhos das elites podem se dedicar aos ofícios mais “nobres”, já que o trabalho “sujo” é feito pelos que estão “embaixo”. Além disso, a “PEC da morte”, como ficou conhecida, é também conveniente para os “donos do poder”: governar uma massa precarizada, desinformada e tendencialmente apática e manipulável é sempre mais fácil do que ter que lidar com um grupo de cidadãos mobilizados e interessados no mundo público.

E assim, a roda do Brasil continua a girar: alguns interesses são acomodados, outros negados, e as condições para a perpetuação das injustiças são reproduzidas. E, também assim, a democracia brasileira parece ser um sonho muito distante quando se nota, por um lado, que nossa carência de educação se inicia por sua dimensão mais elementar – a do espaço físico das escolas – e, por outro, que se priva de futuro precisamente aqueles que por ela mais poderiam ser beneficiados: as crianças e os jovens do país.

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A vida em três fotogramas

1. Espelho

Minha avó era semianalfabeta, mas sabia ler a borra do café. Agasalhava os santos de barro no inverno e discutia questões práticas e aflições familiares com o Sagrado Coração de Jesus que tinha na parede da sala. Pé de pano, chegava nas casas de mansinho, sempre na hora crítica, para trazer sua benção e acalmar os ânimos da nossa alcateia. Maria o nome dela, e tinha o dom das certezas. Eu não. Supuseram-me sempre uma boa leitora. Uma vida entre livros, mansa aprendizagem, mas não sei ler os sinais que, todas as manhãs, vejo no fundo da xícara. E todas as manhãs eu penso nisso tomando café para acordar. Suspeito muito e cada vez mais do que tenho alcançado com o letramento. Quanto mais leio, mais respeito o que permanece estranho. E se essa avó que descrevo for tomada como um ser alienado em fantasias e vítima de seu próprio ilusionismo, eu lançaria a dúvida sobre se existe alguém nesse mundo de palavras que também não o seja. Por hábito e por profissão, tenho as paredes abarrotadas de livros, instrumentos que me levariam, se eu realmente o quisesse, à mais absoluta descrença. Mas mesmo o que não é ficção e que faz pensar não ameaça, antes confirma o mistério que procuro preservar, das pessoas, dos bichos e do mundo. Cultivo, por conta disso, um altar dentro de mim onde pus a imagem daquela avó acendendo velas na escuridão. Ergo esse altar ao mistério, às coisas que não têm nome nem narrativa. E o inominável, fora da linguagem, se me responde, eu nunca percebi. É bom assim. Enquanto houver mistério, a avó estará dentro, sempre por perto.

2. Fantasmas

A sensação que dava era que minha avó já nascera velha, que viera ao mundo assim, já avó. Tanto quanto ficava evidente que a criança que um dia tivera sido, estava nela intacta, como um motor de atitudes e gestos, para o bem e para o mal. Tinha uma caixa de papelão onde guardava, misturados, fotos de família, pedaços de bijuterias quebradas, orações de santinhos e receitas manuscritas em folhas que retirava dos meus cadernos velhos. Eu gostava de sentar com ela na cama, futricar naquelas coisinhas e ler a sua ortografia de criança (sua alfabetização fora precária porque, no tempo propício, ela fugia todos os dias para um acampamento cigano onde ia brincar de circo e regressava no fim da tarde, na mesma hora em que todas as crianças da vila retornavam da escola, só ela que não). Um dia encontrei na caixa uma receita de frango de panela: os ingredientes em forma de lista, sem nenhuma medida e, em vez de indicar o modo de preparo, ela simplesmente anotara: “colocar uma peçinha de prata no meio para o frango ficar macio”, assim com o cê-cedilha mesmo. Era também curioso o tratamento que ela dava às fotos de família: quando nas imagens de grupos houvesse um desafeto seu, ela simplesmente recortava a silhueta da pessoa, e a foto ficava amputada, com um fantasma no meio. Aquilo metia um horror que parecia assombrar a figura desaparecida, de modo que os velórios ficavam povoados desses seres sinistros, parentes estranhados que apareciam para dar os pêsames, mas também para provar (eu concluía, com os meus botões) que estavam vivos e presentes. Por outro lado, mesmo os desafetos (sempre perdoáveis) tinham por ela senão ternura, ao menos respeito; todos, no fundo, o que desejavam era a sua benção. E nisso ela era dadivosa: como uma espécie de emissária, ela desenhava cruzes no ar, rebatizando os seres com seu amor. Sempre tão autêntica e sincera a minha avó em seus juízos. Era afinal uma santa, uma criança danada.

3. Nuvens

Hoje, sei e sinto que nossas leituras do mundo não eram assim tão díspares. Não tenho suas competências, mas fui sendo educada pela poesia, e isso quer dizer que tudo que parece ser a pele do real tem sempre outras camadas, tudo o que conhecemos é sempre outra coisa. O investimento no estado de poesia cria em nós uma vidência libertadora. E a sustentação dos véus do real depende dessa atenção às ausências que a palavra cria – da borra do café aos astros, todos os nomes e narrativas são pactos entre cifras e sentidos. Mesmo a linguagem científico-filosófica é, numa perspectiva que nunca deixa de ser antropológica, igualmente frágil e delirante. Levanto-me, vou à estante e trago para aqui um livro: O Novo Espírito Científico, de Gaston Bachelard (esse título é meu salvo-conduto). Abro-o e deparo com um trecho sublinhado: “Assim, o vento arrasta durante muito tempo, sem arrancá-lo, o animal fabuloso desenhado na nuvem por uma intuição primeira, mas basta que a nossa fantasia se interrompa para que a forma imprevista se apresente como irreconhecível.” Atente-se para isto: não é o vento que faz desaparecer o animal que vemos na nuvem, mas a nossa fantasia que se distrai e vai cuidar de novos ilusionismos. Ausente a fantasia, as nuvens são enigmas à espera de nova forma, nova formulação. Pensava em tudo isso – nessa vidência que a arte propicia aos grandes distraídos que sobrevivem num mundo cansado das promessas da ciência e da tecnologia – e, por uma sincronicidade que sempre acontece quando se está a criar um texto, colhi, na visita que fiz à 33º Bienal de São Paulo, este fragmento de texto ou feixe de luz do artista e curador Waltercio Caldas: “(…) acredito que a arte pode melhorar a qualidade do desconhecido. E nos resta a questão: como alterar as regras em benefício do que ainda não sabemos?” Penso que o novo espírito científico deva estar afinado com essa proposta, que não é propriamente a de decifrar enigmas em favor de um mundo dominado, mas de torná-los mais sugestivos na interação com a nossa capacidade de magicar.
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Conversa Polivox: Luís Capucho

por Bruno Cosentino

Quando ouvi Luís Capucho, uma das coisas que logo me chamou a atenção foi que suas canções se pareciam muito umas com as outras. Ele estava dentro de um paradigma que não era o da profusão de cores e ritmos da MPB; parecia fazer em toda sua obra uma única canção contínua, à maneira de um Bob Dylan. As letras eram narrativas como seus livros. Ouvindo “Poema maldito”, por exemplo, aprendi que na canção que conta histórias é melhor que não se varie tanto os acordes para que não se perca o fio da meada — já conduzido com melodias sinuosas e frequentemente próximas da fala. Luís descreve objetos e situações com uma aspereza deslumbrante; quando cantados, porém, se abrem em um mundo de fantasia e delicadezas, com luz e paleta de cor próprias. A criação desse universo mágico passa pelos temas obsessivos, pelo modo (como foi dito) perturbadoramente direto de narrar, por uma visão de mundo rica de subjetividade, mas também pela materialidade de sua voz crua e de seu violão de movimentos limitados — as cordas soltas dos acordes inventados por ele soam erradas aos ouvidos educados —, ambas restrições motoras que lhe foram impingidas pelo coma. Dessa forma, os gatinhos de Pedro, a cadeira que Valfredo lhe deu, sua mãe, os vizinhos de trás, o vale onde mora (bichos, lugares, pessoas, situações ordinárias do cotidiano) se tornam encantados na voz de Luís. Na origem, o afeto agudo do artista com as pessoas e as coisas ao seu redor.

Ao fim da entrevista, em frente ao prédio onde mora em Niterói, Luís apontou, na outra calçada, uma igreja evangélica, ao lado dela, uma batista, e, mais à frente, um centro espírita. Os cultos, disse, aconteciam todos ao mesmo tempo e sempre com música; isso fazia com que ali circulasse uma forte energia espiritual. A amendoeira ao nosso lado, explicou, subia daquele modo, linda, se abrindo em copa larga e com tal inclinação para a rua, por causa disso.

1-

Quando eu saí sequelado do coma, eu estava tão apático, acho que chocado e, também, depois de alguns anos, eu pude ver que aquele um mês de nada, que foi o coma, tinha como que me zerado, entende? Me deixou vazio, sem nada dentro. Então eu reagia a coisas que estivessem acontecendo ali, na hora, em torno da maca, mas eu não tinha mais estofo, nenhum movimento interior, nenhuma vida. Tinha acabado tudo: tédio, melancolia, saudade, angústia, essas coisas que são os sentimentos da gente e que nos tiram do aqui e agora. Isso, radicalmente, durou cerca de um ano, mais ou menos. E muito aos poucos minha vida interior foi se reestabelecendo.

Mas teve duas coisas, naquela época, que me deixaram abalado quando se esclareceram para mim. A primeira foi ainda no hospital, quando me disseram que eu estava com HIV. O meu estômago reagiu na hora, como um molusco que se fecha. Eu senti ele se encolhendo rápido e se petrificando. Foi uma coisa doida. Aí eu chorei muito, e ele se normalizou.

A outra coisa foi quando eu, já em casa, coloquei a fita do Antigo [disco gravado por Luís antes do coma] para ouvir. Eu fiquei chorando um tempão, porque eu sabia que não ia conseguir fazer mais aquilo, daquele jeito. Mas, aí, sem que parecesse para mim mesmo que eu tivesse tomado uma decisão, os anos foram passando, e fui reaprendendo o violão e voltando a musicar letras.

Então, de certa forma, eu não ouvi minha voz nova pela primeira vez, porque ela foi se formando aos poucos. Eu acho também que, com o tempo passando, minha voz continua se tornando nova; é um processo de modificação, talvez, de recuperação, que não acaba nunca. Também estou ficando mais velho, então a voz vai se tornando outra. Mas o que aconteceu naquele dia, no quarto, há pouco saído do hospital, foi que eu ouvi a minha voz antiga pela primeira vez.

Sobre a voz nova, eu saquei mesmo quando comecei a conseguir uns acordes no violão e tentei fazer música. Eu vi que o violão espancado, sem conseguir o dedilhado, e a voz quase monocórdia me abriam a possibilidade de fazer uma música que eu não conseguiria fazer do jeito antigo. Isso me abriu um horizonte, um caminho, que não era o caminho por onde eu vinha me conduzindo, e aí alguns amigos começaram a me dizer que esse jeito novo tinha mais a ver com os meus temas e começaram a gostar mais. Outros não gostaram e pararam de querer me ouvir. Quer dizer, só veio falar comigo quem começou a gostar mais. Quem não curtiu, não me disse nada, mas a gente saca, né?

Demorei um tempo para introjetar minha voz mais lenta e mais grave como sendo minha. Mas logo que as novas músicas começaram a sair e fui entendendo que havia um prazer, um gosto, nelas, uma estética, fui me acomodando à voz sem pensar e fui gostando.

2-

Só a morte vai fazer eu ficar no aqui e agora. O coma foi um pouco isso. Mas, depois que fui restabelecendo meu estofo, não estou mais aqui nem agora. Não consigo parar.

Às vezes, aqui comigo, entro numa de que as coisas estão paradas para mim, que não avanço, que não saio do lugar. Mas não é verdade isso. Até fico buscando uma posição imaginária, um ponto de partida, porque nos é ensinado que é legal você ter um marco, um lugar que você tenha de apoio, um lugar de onde sair, mas não tenho. Não sei quando nem onde estou. Estou perdido. Mesmo que desde 1967 eu tenha preenchido os cabeçalhos dos cadernos escolares com as datas dos dias, isso não foi suficiente para me situar. De onde eu olho, não tenho um panorama. Minha visão é muito dentro de minha bolha. Eu dizia isso na narrativa do Cinema Orly. Não sou um narrador onisciente. Não sei de nada, sou um ignorantão.

O Gilberto Gil tem aquela música que diz que o melhor lugar do mundo é aqui e agora. Eu não fico no melhor lugar. Mas, como já disse, tenho tentado descobrir um lugar de apoio, um momento de apoio. Talvez, sem que eu tivesse me dado conta, minha plataforma, o edifício de onde eu pulo, meu trampolim, sejam as músicas e os livros. Meu patrimônio e meu matrimônio. Meu terreno de ilusão, de mágica. Meu aqui e agora.

3-

Bom, eu acho que a vida tem uma natureza mágica. Que as palavras têm uma natureza mágica. Eu me sinto meio doido com isso, acho que ter um corpo é uma coisa mágica.

Comecei a sentir a magia nas coisas depois que fiquei adolescente e que comecei com o desejo sexual, que é um lance tão forte, sem controle. Antes, quando eu era criança, era como se eu vivesse na lua, com a cabeça sempre nas nuvens, e não via mágica, que é um lance que você começa a ver se você vibra mais tenso e fundo, onde as coisas são mais pesadas e fortes. Aí você pensa, caramba, como é que isso apareceu aqui, forte e grande assim? Da onde isso veio? O que é isso? E tal.

Acho que fazer música e fazer literatura e pintar As Vizinhas de Trás [série de retratos pintados por Luís], que parecem ser coisas de criança, de você poder brincar com as cores, com as palavras e com os acordes do violão, têm a ver com esse mundo da magia, mais forte e denso, pesado, e que, ao ser transposto para a linguagem artística, pode parecer leve, de criança. Brincando assim de fazer arte, as coisas parecem ir perdendo o sentido, se esfumaçando, se espalhando, sumindo como mágica.

4 –

Eu, na verdade, não sei a importância das coisas. Não sei se elas são, extraordinariamente, por acaso. Ou se tem uma finalidade no fato de as coisas existirem. Então, de qualquer modo, acho que seria importante que a gente pudesse ter a vida que a gente quer, ter a possibilidade disso. O Guilherme Arantes colocou numa música que nem tudo é exatamente como a gente quer. Mas é bom, importante, que tenhamos o desejo como possibilidade, que tenhamos como possibilidade as coisas que a gente quer. É importante que a gente possa transformar as coisas do mundo naquilo que a gente quer.

5 –

Acho que a beleza deve ser uma coisa grandiosa, insuportável para o sentimento da gente. Acho que ela faz com que não a suportemos; é algo transbordante e que não cabe na gente. Na verdade, a beleza é um horror, sabe? Algo de que a gente não consegue dar conta.

Sobre minha música ser bonita, acho que é parte da beleza do mundo, sim. E começo a gostar mais delas quando as pessoas gostam também. É parte do mundo mais ordinário, do mundo suportável, e pode num primeiro momento não cair no agrado dos ouvidos mais destreinados na audição delas. Eu mesmo as acharia sem graça, sem beleza, se as ouvisse com a idade de 10 anos. E não sei se gostar quer dizer que são bonitas. Acho que sim. Eu gosto das minhas músicas. E acho que a beleza delas está no caminho melódico, que está a um grau ou uns graus de distância do caminho natural da entoação da fala, se eu falasse suas letras. Acho que o tanto que eu consigo me distanciar da fala, e o tanto que consigo frisar de sentido para as palavras que canto, sem deixar que ele esvoace e se perca na melodia, é o tanto de beleza ou gosto que consigo na minha música.

Eu estou falando da minha música, como e quando ela aparece e se forma para mim. Porque, se eu for imaginá-la executada com outros instrumentos que não apenas minha voz e violão, aí entram outras belezas. Porque se pode inventar outras formas de resolver suas voltas, entende?

6 –

Talvez, principalmente, tenha sido apenas uma mudança de canal, uma mudança na forma como se tornou possível sair o jorro. Depois, eu fui vendo o que era possível ou como eu gostaria de conduzir o lance todo nessa nova forma. Com o passar dos anos, meu corpo vai se readaptando com o uso, a voz vai achando outra vez o jeito antigo de sair. Porque meu corpo não se modificou em nada. Minhas cordas vocais e minha língua e boca não sofreram nenhuma alteração. O lance todo aconteceu nos comandos; é um lance neurológico, então, aos poucos, as sinapses vão se refazendo e permitindo os movimentos que perdi para cantar e tocar.

E continuo cantando minhas músicas do mesmo jeito que antes, sem interpretação. Porque eu acho que a interpretação tem a ver com uma intenção. Então você pode cantar com essa ou aquela intenção. E isso faz uma interpretação ser diferente da outra. Algo como você atuar nas músicas. E eu não canto como um ator. Eu canto de verdade, sou eu mesmo, sem interpretar. E meu modo interior de cantar é igual. No início, parecia sempre uma coisa dramática demais, por conta do esforço, da potência com que eu tinha de mandar a voz. Parecia interpretação, mas não era.

Sobre a composição propriamente, meu violão também vem se modificando. Eu consigo dedilhar outra vez. A mão esquerda é mais sequelada, e não consigo ainda fazer de novo as pestanas com perfeição. Aí eu faço as posições sem as pestanas e aproveito as cordas soltas, vejo como elas funcionam assim. No fim, eu aproveito tanto na voz como no violão o som que vai saindo, para compor. Como eu disse noutra pergunta, o caminho que eu tenho de fazer é diferente, mas a nascente é a mesma.

Eu acho que, se você tem muito recurso técnico, você fica mais crítico, fica indeciso por qual jeito vai fazer, qual caminho vai tomar. E, se você está limitado, sem muita opção, aí a música, quando está para nascer, vem arrebentando tudo, como um vulcão. Um lance sem delicadeza, meio punk. Daí meu primeiro disco, o Lua Singela, ter agradado mais ao pessoal do rock and roll.

Não vou me livrar dessa marca que ganhei com o coma, porque registrei isso no meu primeiro disco e no meu primeiro livro. Talvez, por conta dos meus temas, do conjunto todo da minha expressão artística e, principalmente, do meu clima pouco beligerante e tudo, eu não consiga público que me mantenha produzindo e no mercado. E, aí, serei para sempre um artista da margem. Mas, vocês sabem, no fluxo de um rio, as águas todas são um corpo só e não têm volta. Tudo vai para o mar.

#30IlusãoArtigo

O gozo de perder: ilusão e poesia com Pessoa

por Roberta Ferraz

Editora convidada da edição Ilusão

Preâmbulo

Soa inevitável, ouvindo a palavra ilusão, que esta escorra deliciosamente para uma outra, num contágio que logo se sugere – poesia. Poderia alargar este rio para o encontro fundo entre ilusão e arte, ilusão e vida, ilusão e consciência, ilusão e sagrado, mas, a mim, como me vem, é mais espessa a musculatura da soma quando, sob a ampla palavra, ancora-se o estro que a levita. Chamo poesia a toda arte da palavra, independentemente das toadas que acione em sua elaboração. Gostar de mais ler e escrever, é algo que, em mim, aconteceu à sombra sem repouso dos livros de Fernando Pessoa. A vertigem álacre que se nos é aberta nesta obra veio-me sob o impacto inelutável com que Pessoa entende, escrevendo, o sentido de seu fascinado labor-labirinto: escrever é emaranhar-se na ilusão, e toda ilusão é já possibilidade de outra visibilidade das coisas, outro lado (oculto?) daquilo que, por ter sido demasiado visto, por força do hábito, quase perdeu a qualidade viva de se poder ver. Desabituando os olhos, acionando o real em toda a sua carga ilusória, galeria de imagens reflexas sem “a imagem autêntica” num fundo, Pessoa sabe que “a literatura consiste num grande esforço para tornar a vida real”.

É de Bernardo Soares, em seu conjunto de frascos vazios – ou o Livro do Desassossego, vulgo LD – a sentença acima. Passeio por essa bíblia ajambrada pela ironia, desde que não pude mais largar mão da loucura leitora, outra coisa que Pessoa alimenta em quem convive com ele e com o LD. De volta às páginas cosidas a esmo e erro, lembremos que o LD é um não livro e que seu autor, o semi-heterônimo B. Soares, é uma metade ou uma quase (semi) voz outra (heterônimo), conforme o epíteto legado pela mão que, sobre a sua, assombra e assina um outro. Lembremos que o LD faz-se do conjunto de papéis desordenados, marcados por mesmo ou semelhante sinal, em margens e rodapés, nas páginas chegadas à morte, num baú imodesto – continente de uma obra aguda em sua dispersão, território em que os textos se nutrem, em autofagia e reação, de si mesmos e de sua vizinhança, aquele coral fantasmático, plurivocal, que conhecemos desdobrado do nome Fernando Pessoa: Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, António Mora, Raphael Baldaya, Alexander Search e inúmeros.

Todo este giro abarrocado para quê?

Faço essas graças ao leitor, essas marras de piscadelas, pois é minha maneira de saudar o mestre, antes de trazer trechos seus para já, pondo-me ao pé de conversar com ele, como se nas britadeiras ocupantes da av. Rebouças, em setembro de 2018, há exatos 130 anos do nascimento dele, eu, por força de ser sua leitora, delirasse um rio, o Tejo, sobre as malhas desviadas dos esgotos de São Paulo e assistisse a seres marítimos e barcarolas e cais e pedra e um sotaque cheirando a sardinhas e árvores e grandes tormentas me embalassem, como uma mãe a um filho de areia e distância.

Um cais, aqui, paulista. Ou ainda, saudando-te, Fernando, uma grande estação, a gare da equação tempo-espaço em que somos possíveis um para o outro, onde cada um espera a sua “diligência do abismo”, o seu Uber para lugar nenhum. Contigo, estourou de vez esse manancial de perdição: contigo, afago a descoberta da paixão pelas ambiguidades da ilusão, girando a mola desta maquinaria desejante a que chamamos poesia.


Saudar a ilusão

Sobre a parelha indissolúvel da poesia e ilusão, em Pessoa sobretudo, me veio à memória um trecho em que, já não sabendo bem quem, se Pessoa, ou Bernardo Soares, ou António Mora (a voz que Pessoa emprestou ao filósofo do “neopaganismo” de sua obra), diferenciava, entre as posturas antigas ainda não corrompidas pela malaise do cristianismo (que, para o autor, teria sido a grande cocaína – p.s. leia-se, por favor, com o gozo do espírito esportivo – herdada por todos nós, viciando a maneira como lemos o mundo e fabulamos o real): aquela do epicurista e a do estoico. Se me lembro bem, Pessoa (ou Soares, Mora, outro?), aproximando-se mais da postura dos estoicos, dizia que ao epicurista coube a grandeza efêmera do presente, podendo resultar numa entrega excessiva às sensações, na duração de seu instante; ou também, de forma oposta, na recusa abstinente e descomplicada dos afetos, pois a experiência agora é ainda e já a sombra de uma foice que vem caindo.

Os estoicos, por sua vez, mantinham um jogo mais mental com a própria consciência da finitude e da impossibilidade de conhecimento das coisas. Admitiam que fosse possível haver alguma espécie de conhecimento superior (em grande parte, entendiam-no como destino) em que leis inexoráveis (que para nós só são acessadas via interpretação, ou seja, pluralidade, traduções) regiam o andamento e o curso das vidas. Diante desse pressuposto, os estoicos elaborariam um jogo audaz: sabem que não sabem (que o saber cava-se até uma escala cujo tom não alcançam) e gozam desse saber do que não têm. Há um orgulho interior em ter prazer, entre um bando de gente que acha que sabe ou é possível saber, de saber que não se sabe e que estamos todos sujeitos à ignorância suprema, num impedimento de “conclusão” que a maioria, querendo ou não, desconhece, e assim vive, imersa em promessas “civilizatórias, definidoras e progressistas”: avanço, saúde, conquista, vitória, esclarecimento, verdade e, no topo das vontades à venda, a desilusão como compreensão, enfim, da “natureza das coisas” por meio de qualquer ciência e/ou um qualquer deus.

Não reencontrando o trecho que tentei parafrasear acima para citá-lo aqui, à letra, espero estar corrompendo apenas o que, do que acima disse, diz de mim. Ressalvas feitas, chego ao ponto delongado: abraçar a intimidade entre ilusão e poesia é regozijar-se com as delícias ambíguas de uma figura retórica muito especial: a ironia.

B. Soares deixou-nos uma variada sorte de fragmentos cujo tema pode ser lido como “a grandeza irônica do sujeito”, em que supera a todos os vencedores de todas as vaidades pela delícia de perder. No fragmento 54 (F54), zombando das “seduções de distração” em que nós, bichos mortais, passamos horas “sonhando” com uma espécie de fama ou celebridade, Soares, sem se excluir da fauna sonhadora que somos, diz: “Vejo-me célebre? Mas vejo-me célebre como guarda-livros. Sinto-me alçado aos tronos do desconhecido? Mas o caso passa-se no escritório da Rua dos Douradores (…)” e, depois de apresentar-nos um buquê de metáforas de sua indisposição congênita à ação vencedora, e dizendo-se falho até mesmo nelas (“o meu sonho falhou até nas metáforas”), na vaidade de julgar-se lúcido, ironicamente, Soares inverte os termos do tabuleiro e vence-nos a todos, pelo exímio de sua desistência: “Levo eu ao menos, para o imenso possível do abismo de tudo, a glória de minha desilusão como se fosse a de um grande sonho, o esplendor de não crer como um pendão da derrota – pendão contudo nas mãos débeis, mas pendão arrastado entre a lama e o sangue dos fracos, mas erguido ao alto, ao sumirmo-nos nas areias movediças (…). Levo comigo a consciência da derrota como um pendão de vitória”.

Noutro fragmento (F90), encontramos o postulado que é uma espécie de corolário da escrita pessoana: “Reconhecer a realidade como uma forma de ilusão e a ilusão como uma forma de realidade, é igualmente necessário e igualmente inútil”. É a graça chistosa de um tanto faz para nós todos que tanto fizemos ou julgamos ter feito.

Além de dar corda àquela “estética do artifício” em que Pessoa insistentemente trabalhou, dizendo-se viver “esteticamente em outro”, cultivando sua “artificialidade, flor absurda” (F114), um dos ganhos irônicos com a mobilidade dotada ao par ilusão-real está no aprofundamento do mistério. Sublinhando na linguagem (sem a qual não acessamos nada de nada, mas que, em si, não é mais do que um instrumento reflexivo, uma faca de dois gumes) sua opacidade e seu poder de obscurecimento, ao invés do fácil consenso, da gentil miopia dos espelhos, da forja banalizadora das mesmices, das sínteses, das grandes conclusões, Soares anota: “Assim organizar a nossa vida [para] que ela seja para os outros um mistério, que quem melhor nos conheça, apenas nos desconheça de mais perto que os outros” (F115). Ou, de maneira mais dramática: “Repudiei sempre que me compreendessem. Ser compreendido é prostituir-se. Prefiro ser tomado a sério como o que não sou, ignorado humanamente, com decência e naturalidade. Nada poderia indignar-me tanto como se no escritório me estranhassem. Quero gozar comigo a ironia de me não estranharem. Quero o cilício de me julgarem igual a eles. Quero a crucificação de não me distinguirem” (F128).

Não é sem vaidade e brio que Soares exalta seu fracasso, sua pequenez, embora lúcida; sua desconhecida e vibrante inutilidade, embora sabida. Ronda a obra pessoana o capitão espectral da consciência de sua genialidade, e Pessoa, sendo o poeta que é, vai saudá-lo na sua forma íntima: fazendo-se texto infinito deste vazio ruminante, assolador de nossa consciência – nós, um bicho da terra tão pequeno, tendo em si “todos os sonhos do mundo”. Como conciliar nossa miséria com nossa delirante grandeza? Em que vírgula dos argumentos estaria aquele trono gramatical em que se sentasse “o real”?


A saúde de uma afirmação trágica

Quero pensar que um dos grandes dilemas da chegada ao terminus da “desilusão” seja o fato de conduzir nossa percepção à ideia de que, com algum alívio triste, enfim foi solucionado o erro de uma ilusão. Sorrio a meia-boca enquanto o penso, escrevendo-o. Já ouvi mais de uma vez o elogio de ter perdido uma ilusão, como se acordasse de uma lastimosa bebedeira e retomasse os meus juízos, de volta ao mundo, reaceita “ao trabalho” com um tapinha camarada nas costas. Que bom que não foi bem assim.

O mais esperado é que, diante da ameaça de uma ilusão, aumentemos o receio, como se estivéssemos dando as mãos a um logro, um golpe ou, no mínimo, algo que nos fizesse perder tempo, pois, ilusão que é, faz troça, engana, não leva a nada. A parte fiscalizadora do mundo lidaria conosco como se, durante um período, ou intervalo de tempo, um estado molemente nocivo, uma espécie de preguiça danosa, tivesse assumido em nós a posse da lucidez, deixando-nos disponíveis a todo tipo de malefício e, principalmente, cegos aos deuses da razão. Associarão a ilusão a um torpor – idiotia, “cabeça nas nuvens”, “mundo da lua”, ou seja, situação em que o sujeito é tomado pelo pathos de um sentimento alienante que o desvincula da massa aceite enquanto prova de fé e evidência do “real”. Ainda que passageiro, tal torpor indica algo de um entorpecimento que não caberia na vida (em) comum, nas necessidades organizáveis de um dia a dia, corrupção da saudável e produtiva dinâmica do sujeito, excluindo dele a lógica de visibilidade, a lógica de reconhecimento dos valores – ou melhor, extirpando dele a condição de leitor do mundo “oficial”, como se seu corpo e sua consciência modulassem as coisas às avessas, o que sempre irritou o curso de uma visão de mundo que se esforça para se levar a sério e converter aqueles que, por qualquer razão, caíram nas garras críticas e poéticas, no limbo do limbo sem fundo, da consciência e da sensação como ilusão. Eis, porém, nela o acaso poético de nos aproximarmos de nossa condição cindida, multiplicada, diversa, como escreve Soares: “Conhecer-se é errar. (…) Desconhecer-se conscientemente, eis o caminho. E desconhecer-se conscientemente é o emprego ativo da ironia. Nem conheço coisa maior, nem mais própria do homem que é deveras grande, que a análise paciente e expressiva dos modos de nos desconhecermos, o registo consciente da inconsciência das nossas consciências, a metafísica das sombras autônomas, a poesia do crepúsculo da desilusão” (F149).

Ilusão, como vou lendo na poesia que me atravessa, guiada pela mão traquina do ilusionista Pessoa, não é apenas estado de entorpecimento em que “não se vê”, ao certo, o que é o real. Ilusão é estar dentro desse sistema vivente de linguagens, perdidos, eu e tu, mas querendo, dessa crise, dessa possível tragédia, fazer um ato de alegria, escolher a alegria, recusar o embrutecimento pelo medo de não sabermos mesmo nada.

Em tempos em que nós, partícipes do século XXI não faz pouco, ainda consideramos, para a fatalidade geral, que o que um ou outro pensa pode ter mais ou melhor registro de veracidade, convicção e testemunho “do real”, que uma ou outra versão da máscara do mundo (porque mais próxima do meu sonho do espelho e do meu terror noturno) é mais certa e mais justa para um e para outro – esse que amamos desconhecer, altivamente, enquanto achamos que conhecemos; em tempos em que um gesto de dedos imitando um revólver se acha legítimo em convencer as gentes em prol do medo asfixiante; em tempos em que “a verdade”, cadáver da empatia e do pensamento, parece ser (e)legível, circulando múmia indigesta em encouraçadas fake news, perdida (quase) toda ironia…

Em tempos como o nosso, eu saúdo o grande Pã-Pessoa, brindando na ilusão a matéria mesma do que somos, a linguagem com que falamos, os ditames & recalques & sonhos & covardias que vamos, confinados, amainando e regularizando, pela convivência surda, cega e muda. Que venham os xamãs, Walt Whitman, Álvaro de Campos, Hilda Hilst, Ana Cristina César, Llansol, Hadewijch, Octavio Paz, Baudelaire, Roberto Piva, Artaud, Anaïs Nin, Anne Carson, Mário de Sá-Carneiro, Pascoaes e toda a trupe de endiabrados! Quebrem todas as janelas! Evoé, Bartleby!

Bartleby, uma espécie de primo-irmão de Soares e um dos personagens mais sedutores da literatura, respondendo ao patrão de seu escritório, sobre toda e qualquer demanda de ordem prática (desde, por exemplo – invento –, o pedido de pegar um café no cômodo ao lado) dirá, entre selvagem e apático, “acho melhor não”, levando toda percepção de praticidade ao cúmulo do absurdo.

A grande sacada irônica de uma vida desopilada dos convencimentos de que o mundo é um ou outro, bem ou mal, certo ou errado, feio ou bonito, etc., etc., etc., nos é ofertada pela poesia, pela arte, por meio do irônico e pessoanamente estoico gozo de recusar as tais medidas de um mundo que se comporta como “patrão”. Digo de outro modo: estou aqui, no jogo, convosco, visto o hábito de monja louca, por exemplo, ou de carpinteiro sádico, ou de esposa enfadada, ou de engraxate criança, ou de empresário adulto, ou de manobrista de túmulos, ou de peixe fora d’água, ou de escritor desmemoriado, ou deles todos, que seja: independentemente do lugar com que a veste me indica o baile, do prestígio das aparências com que enceno os movimentos do corpo, ao fim e ao cabo, chegamos e chegaremos nus, absolutamente prontos a perder, sem ter entendido quase nada que não tenha sido inventado. Nulo, cômico – tragicômico? Acalenta-nos Soares: “E sempre, desconhecendo-nos a nós e aos outros, e por isso entendendo-nos alegremente, passamos nas volutas da dança ou nas conversas do descanso, humanos, fúteis, a sério, ao som da grande orquestra dos astros, sob os olhares desdenhosos e alheios dos organizadores do espetáculo. Só eles sabem que nós somos presas da ilusão que nos criaram. Mas qual é a razão dessa ilusão, e por que é que há essa ou qualquer, ilusão, ou por que é que eles, ilusos também, nos deram que tivéssemos a ilusão que nos deram – isso, por certo, eles mesmos não sabem” (F255).

Reembaralho as visões que desenhei e, mui ironicamente, respondo que sim e não, simultaneamente, às coisas todas, dizendo-lhes e a mim, querida, acho melhor não. Em seguida, dionisiacamente, abraço a virulência das ambiguidades alcançadas, querendo-me a graça mais propensa a esta viagem errática, em que todos somos os ilusos de tantos jogos, virtuosos de ilusões. Temer o labirinto que se oferece em febre? Acho melhor não. Rasurar a loucura do que experimento, talhando uma mordaça que me force a responder ao mundo pela via domesticada dos maniqueísmos? Acho melhor não. De maneira cintilante, sigilosa, escusa, a ilusão pode ser a ferida de um riso irônico libertário, um jeito de corpo de não opor-se à desilusão (afinal, mais uma faceta da ilusão?), mas driblando a violenta demanda de uma identidade que quer para si todos os atributos consideráveis e valorativos de uma excludente “via virtuosa e verdadeira do real”.

Chamo Pessoa, Melville, chamo bruxas fazendo da tecelagem do real um emaranhado viscoso, exótico e íntimo de ilusões. Chamo Drummond, que irônico sabe que “ganhei, perdi meu dia”. Na recusa de uma versão acachapante e doutrinadora, chamo, com Nietzsche, uma “gaia ciência”: quero a atitude alegre de um “saber trágico”, em que a intensidade da alegria possa ser medida conforme a qualidade do saber trágico que ela implica. E chamo Herberto Helder, rindo com ele, que a “ironia não salva, mas ressalva”. Na companhia dxs indisciplinadorxs do desejo, dxs que jogam com as cartas dispostas ao encontro, dxs que desconcertam a banalidade, dxs que cultivam o desconhecerem-se mais de perto (e fingir é conhecer-se) levanto um brinde e um quebranto, evoé, à proliferante ilusão que nos dá corpo ao estranhamento e gozo às maneiras de querermos perder ironicamente.

NOTAS
Os fragmentos citados do LD (F + número) foram retirados da edição organizada por Richard Zenith, publicada pela Companhia das Letras;
Bartleby, o escrivão, de Herman Melville (1853-1856)
#30IlusãoCulturaLiteratura

Montanha ao longe

por Léo Coutinho

Montanha ao longe, água corrente, fogo crepitante. Alguém disse que são as três imagens capazes de inebriar o espírito humano.

Na fogueira deste começo de século, a humanidade parece completamente inebriada pela fogueira onde arde a civilização ocidental, onde o quinto museu mais importante do mundo foi reduzido a cinzas e parece servir como exemplo físico do zeitgeist.

Há um sem fim de respostas para como chegamos ao estágio atual, com tantos loucos inebriados, enxergando as realidades mais diversas nas formas do fogo que arde.

Desigualdade social, avanço tecnológico, convivência demais, convivência de menos, individualismo, consumismo, invasão e evasão de privacidade, alimentação e cuidados com a saúde exagerados, em substância ou critério, para mais e para menos, mudanças climáticas, ciclo ou pêndulo histórico, grandes velocidades para tudo. Eu continuo me perguntando: como?

Da nossa necessidade atávica de crer, seja lá como for, surgem, como sempre surgiram, novas ilusões, para as quais sempre há público. Há quem diga que a novidade está na velocidade e na capacidade de aglutinação, além da nossa compreensão orgânica e intelectual. Tendo a concordar.

Desde o Renascimento, quando intelectualidade, pluralidade e humanismo prevaleceram sobre a dureza do período medieval, nos convencemos da infinitude das possibilidades da criação humana, da qual não duvido. Mas, como indica a Idade Média, uma árvore frutífera ou a gestação, talvez o tempo para absorvê-las seja imprescindível.

O Papa Francisco, melhor político em atividade, em viagem à Estônia, publicou a seguinte mensagem no momento em que eu terminava esta crônica:

“Um dos fenômenos que podemos observar nas nossas sociedades tecnocráticas é a perda do sentido da vida, a perda da alegria de viver e, consequentemente, um lento e silencioso amortecimento da capacidade de maravilhar-se, que muitas vezes mergulha as pessoas num cansaço existencial. A consciência de pertencer e lutar pelos outros, de estar enraizado num povo, numa cultura, numa família pode-se ir perdendo pouco a pouco, privando, sobretudo os mais jovens, de raízes a partir das quais possam construir o seu presente e o seu futuro, porque os priva da capacidade de sonhar, arriscar, criar. Colocar toda a confiança no progresso tecnológico como o único meio possível de desenvolvimento pode causar a perda da capacidade de criar vínculos interpessoais, intergeracionais e interculturais. Em resumo, aquele tecido vital que é tão importante para nos sentirmos parte um do outro e participantes dum projeto comum no sentido mais amplo da palavra. Por conseguinte, uma das responsabilidades mais importantes que temos – nós que assumimos uma função social, política, educacional, religiosa – é precisamente a maneira como nos tornamos artesãos de vínculos.”

Logo, devagar com o andor, que o santo é de barro. E o próprio tempo pode ser ilusão.

Deyson Gilbert + Leopoldo Ponce

Tramas da Cidade

Depois de onze anos vivendo longe de Ribeirão Preto, quando retornei para a cidade, alguns lugares tinham desaparecido. Bairros inteiros foram construídos, e os problemas de uma cidade que acabou de alcançar o status de “cidade grande” surgiram como em um passo de mágica macabra. Como em todas as cidades médias e grandes do Brasil, Ribeirão Preto passa pela seara da degradação ambiental e decadência do seu Centro. Edifícios que são símbolos da verticalização ribeirão-pretana (anos de 1930-1960) encontram-se abandonados, sem uso social, além de palacetes e casarios que são referências da Belle Époque e que também se encontram no mesmo estado de abandono, ou desapareceram no espaço das demolições que, à surdina das altas horas, aconteceram sem que um só ouvido ou olho mais atento tentasse impedir. Assim, os vazios pouco a pouco foram tomando o centro de Ribeirão Preto.

O vazio sempre é preenchido. Sem a mediação e ocupação desse mesmo espaço com políticas públicas, planejamento urbano, a fim de desenvolver novas potencialidades e descobrir a sua vocação, o Centro de Ribeirão Preto vai sendo ocupado pela população em situação de rua. Hoje, segundo dados de 2018, somam três mil indivíduos que estão espalhados pela cidade. Aos poucos, o Centro vai perdendo sua “centralidade” em meio à avalanche da especulação imobiliária e da indústria da construção civil que (re)cria novas espacialidades, privatizando e selecionando novos usos e quem poderá usufruir dos benefícios dessa “nova cidade” que surge a partir de outros vazios que vão atender às demandas de mercado.

As minhas reflexões são compartilhadas a partir de um olhar estrangeiro para a cidade em franco crescimento (Georg Simmel, 1858-1918). Não deixando de ser realista para os problemas crônicos e estruturais da cidade, sou também um entusiasta quando percebo mudanças interessantes nos termos do uso e ocupação de uma região degradada como o Centro de Ribeirão Preto.

Poderíamos destacar a organização e a ação da sociedade civil organizada para a ocupação de espaços que outrora estiveram abandonados, sem uso social, a começar pela ação da classe teatral e do audiovisual que, depois de tanto tempo, transformou espaços de um antigo galpão num centro de formação e apresentação teatral e uma antiga cervejaria em um estúdio de cinema. Temos que destacar a ação da sociedade civil organizada através do órgão de defesa do patrimônio cultural da cidade de Ribeirão Preto na preservação dos poucos imóveis ainda existentes na região central, que vem retomando, de forma marcante, os vestígios do que foi a paisagem precedente.

O arquiteto e historiador da arte Camilo Sitte (1843-1903) diz que “o planejamento urbano deve levar em consideração o princípio não só do ordenamento, também seu volume, princípios artísticos (forma) que caracterizam diferentes fases da produção humana no campo material, da técnica e da tecnologia e dos diferentes saberes, a presença humana deixa seus rastros” – esse seria o fio condutor da memória e da identidade de um povo. Karl Marx (1818-1883), na sua obra O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, faz uma crítica à grande reforma urbana realizada por Luis Napoleão Bonaparte na cidade de Paris, dizendo que, ao “varrer do mapa” os bairros populares com suas construções medievais e modos de vida tradicionais, conseguiu destruir também parte da herança cultural dessas comunidades que lá viviam, facilitando o controle social, já que as referências de identidade foram perdidas (Quem sou? Para onde vou?). Se não existem rastros da memória social, não há resistência a qualquer tentativa de controle.

A cidade é o lugar da disputa, onde classes sociais, comunidades, ideologias, culturas se misturam, dialogam no tecido urbano. A cidade é construída segundo os princípios das demandas de uma sociedade. Sabemos, é certo, que, na história do urbanismo brasileiro, sempre prevaleceu o interesse privado. Na esfera pública, com seus largos espaços vazios gerados pelos governos autoritários, o público e o privado tornam-se ou confundem-se conforme os projetos são pensados para a cidade, que ora não atendem à cidade com os serviços básicos como saneamento, moradia, segurança e saúde, ora são responsáveis pelo desaparecimento do patrimônio cultural em detrimento de interesses privados. A cidade também é o lugar do encontro, das vivências, contato com as diferenças e da participação ativa do cidadão.


Escola Normal, de Marcelo Amorim.

Rastros da arte: a exposição Habita-me

É nesse contexto que me inseri na exposição de arte contemporânea Habita-me como um estrangeiro. Sem ser um outsider, mesmo sendo carioca, passei boa parte dos meus anos nessa terra, mas o distanciamento, por algum tempo, criou um olhar diferente, não só para a cidade, mas também para o seu povo, seu modo de pensar e agir. Fiquei surpreso quando recebi a notícia, no Museu de Arte de Ribeirão Preto, onde desenvolvo um trabalho junto ao setor educativo, que o Palacete Jorge Lobato tinha sido restaurado e que, no dia 24 de agosto, abriria suas portas para a exposição de artistas de São Paulo e de Ribeirão Preto que teriam como proposição estabelecer o diálogo das suas obras com o espaço arquitetônico e com a memória que reside nesse palacete.

A convite da artista Silvia Jábali, idealizadora e produtora do projeto, com curadoria de Paula Borghi, aceitei o desafio de trabalhar como mediador na exposição Habita-me. Para mim, foi um enorme desafio. Há quatro meses em Ribeirão Preto, tive que sair do conforto de um cidadão comum para entender o contexto paulista e ribeirão-pretano. Lembro-me que, há muitos anos, mudava de calçada antes de me aproximar do Palacete Jorge Lobato. Para quem não o conheceu antes da restauração, era chamado pelos transeuntes da Rua Álvares Cabral, endereço do Palacete, como “o lar dos gatos”, “favela dos gatos”. Por estar desocupado por tanto tempo e sem manutenção, exalava um cheiro que incomodava antes mesmo de passarmos em frente. Curioso, um lugar que outro momento era um dos símbolos da propriedade gerada pelo café, o Palacete Jorge Lobato, tornara-se mais um entre tantos imóveis da região central da cidade que se encontrava vazio, em ruínas, e sem o uso social que dá sentido à existência de uma construção.

Adquirido em 2016 pelos irmãos Hector e Ingrid Sominami Lopes, eles logo empreenderam a restauração, que ainda está em fase de conclusão, depois do Quarteirão Paulista, conjunto histórico arquitetônico composto pelo Teatro Pedro II, o Palacete Meira Júnior (onde está localizada a choperia mais famosa do Brasil, o Pinguim) e o antigo Palace Hotel (hoje Centro Cultural Palace), para estabelecer mais um marco de recuperação do patrimônio histórico edificado no centro de Ribeirão Preto.

Os preparativos para a abertura foram interessantíssimos! Um lá e cá para a montagem das obras no espaço do Palacete. Na verdade, todos nós estávamos descobrindo pouco a pouco os pedacinhos, os lugares escondidos e as linhas arrojadas do madeiramento, os vitrais, a fachada, os pisos de mármore europeu e a madeira de lei.

Para os artistas de Ribeirão Preto, aquele lugar era uma descoberta, uma incursão nas entranhas do tempo de uma cidade que não mais existe e que, talvez, pudesse ser desvendada e recuperada através de suas paredes, seus vitrais e suas jabuticabeiras quase centenárias. Já para os paulistanos, uma doce aventura no tempo e no lugar, desvendando a memória do outro, isto é, aqueles que são da terra, de fato, é algo interessantíssimo, pois o café, fonte dos recursos que deram origem àquele palacete, diz respeito a uma história comum de ribeirão-pretanos e dos paulistanos.

Pois bem, é o café, origem da projeção nacional e internacional de Ribeirão Preto entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX, que deu forma à trama de tijolos, azulejaria, piso, vitrais, materialidade que se misturou às obras dos artistas: instalações, pintura, escultura, performance, fotografia. Numa relação simbiótica, estabeleceram o discurso da incorporação do tempo, da arquitetura, do lugar (leia-se o espaço carregado de vivências e memória), procurando captar os sons do Palacete.

Pouco a pouco, como subindo uma escadinha para ter acesso a cada “piso da história” de Ribeirão Preto e do modo de vida que lá existia há noventa e seis anos, as diferentes linguagens se ramificaram, penetrando o espectro da casa, se apropriando também do que restou da história da cidade – como no trabalho da artista ribeirão-pretana Adriana Amaral. Através da fotografia e da projeção, ela utilizou o recurso analógico para fazer os registros da casa, o olhar da janela do Palacete Jorge Lobato, buscando, através dos pontos de fuga, manipular a imagem e os próprios vestígios do tempo que ainda residem no Palacete, captar e recuperar o tempo e a paisagem que não mais existem, criando um simulacro para o espectador, fazendo-o pensar que os registros fotográficos, bem como a projeção, eram imagens produzidas na época em que a residência era habitada pela família Lobato. Tais conexões formaram uma grande rede mental, tecendo a trama temporal da cidade e o Palacete como uma referência importante para vivenciar o passado.

O trabalho de Marcelo Amorim, assim como o de Adriana Amaral, cria raízes profundas no espaço da sala de recepção – chão, paredes, madeiramento, janela – e parte de uma reflexão crítica do sistema educacional brasileiro – ainda voltado para a doutrinação comportamental, ainda desvinculado das demandas da sociedade brasileira contemporânea – para nos fazer repensar o papel da escola na vida e na cultura brasileira. Amorim utiliza o mobiliário (carteiras de escola enfileiradas) numa sequência binária, onde as carteiras unidas e vigilantes nos passam a ideia de um só corpo. A imagem da Série de leitura Proença, livros didáticos utilizados massivamente entre os anos 1920 e 1950 no Brasil, com fim de difundir os ideais republicanos, doutrinários, em especial na chamada Era Vargas (1930-1945), nos coloca no campo reflexivo sobre o papel da escola como espaço de formação e reprodução ideológica.

O ato de habitar

Depois da Luz, de Nino Cais.

O ato de habitar tem dois sentidos na língua portuguesa. No transitivo direto, significa “ocupar como residência; morar”; no transitivo indireto, “prover de habitantes; povoar, ocupar”. O Palacete foi o lugar de residência e morada da família Lobato, o lugar como espaço de vivência, experiência, espaço simbólico de uma conjuntura política, econômica, social e cultural de Ribeirão Preto.

Depois de duas décadas desocupado, esquecido no seu tempo, a paisagem em seu entorno mudou rapidamente: os palacetes e sobrados da vizinhança desapareceram, dando lugar aos edifícios; o endereço deixou de ser nobre, sendo hoje uma região que reflete a diversidade social, ponto de intersecção das diferentes classes sociais, com comércio popular, bancos, lojas mais “grã-finas” e o já conhecido problema de segurança pública. O tempo da história se fez presente, avançando de forma implacável, seguindo o ritmo da humanidade, as coisas, a natureza, as relações do ser humano.

Segundo Paul Ricœur (1913-2005), “a memória é a celebração, nos traz o significado de algo que aconteceu, existiu e existe, resultado das relações humanas e essas com a natureza, que dá legitimidade às nossas atitudes no tempo presente, que representa a realidade para si e para os outros”. Através da iniciativa dos quatorze habitantes, o Palacete Jorge Lobato passou a ser habitado. Os trabalhos propuseram a simbiose, o enraizamento; penetraram, de forma orgânica, a materialidade do Palacete, (re)estabelecendo-o como alguém que deixa os rastros das experiências e vivências naquele lugar e ocupando não só a matéria, mas também o silêncio, simbolizado pela desocupação de muitos anos.

O trabalho de Carla Chaim, “Campo Neutro”, vincula-se a essa trilha da experiência do tempo vivido quando (re)constrói os caminhos, os vestígios daqueles que lá estiveram e daqueles que agora ocupam o espaço, com a proposição artística e o público que teve a oportunidade de ter um lugar que, num outro momento, esteve desabitado. Chaim materializa tais vestígios em duas salas do piso superior; uma através do pó de grafite aplicado no piso de madeira, em linhas retas, passando-nos a sensação de linearidade, ao mesmo tempo sem ponto de chegada ou partida, caindo no infinito, como o tempo, a história (que é cíclica) e a própria memória, que pode ser imortalizada. O vídeo é apresentado como o “espelho nosso de cada dia”, como num ponto de reflexão ou inflexão, onde podemos olhar para nós mesmos, percebendo nossos trajetos e percursos, onde a ação da nossa existência de forma alguma pode ser linear ou, simplesmente, onde de tempos em tempos podemos revisitar a nossa memória.

No piso térreo, ao fundo, no espaço da antiga cozinha da casa, a dupla Deyson Gilbert e Leopoldo Ponce, assim como Carla Chaim, se apropriaram dos escombros, paredes, piso, teto, que possibilitam dar visibilidade ao processo de restauração do Palacete Jorge Lobato. Gilbert e Ponce conseguem nos fazer entender, através de grandes e pequenas escalas do seu trabalho, a ação transformadora do tempo, os vestígios que deixamos – das nossas preferências pessoais por objetos, utensílios do dia a dia, à religiosidade –, representados pelas peças de madeira suspensas na parede ou pelas ferramentas utilizadas no processo de restauração do Palacete, celebrando seu processo de revitalização, de volta à vida, com uma nova função e, ao mesmo tempo, a tentativa de reconstituir a materialidade da casa.

Rosa da janela, de Estela Sokol.
Obra de Yasmin Guimarães.

Saindo através de uma enorme porta de madeira sustentada por um pé direito duplo, a sensação é de uma “saída abrupta”, mas necessária, para sermos confrontados com uma pequena, porém simbólica, construção de um orquidário, muitas vezes confundido com uma capelinha pelos visitantes da exposição. O orquidário também divide o espaço com jabuticabeiras e outras espécies originárias da época da construção do Palacete, também uma referência ao gosto e ao cotidiano dos seus antigos moradores.

A curiosidade despertada pela formosura do antigo orquidário nos convidou a imergir naquele pequeno espaço. Ao entrar, o espectador tinha uma surpresa, as referências de corpo, sexualidade, gênero, sexo, o universo homoerótico explorados no site-specific “Borboleta Radio Passiva”, de Marcelo Brasiliense. A obra era ora confrontada por olhares curiosos, ora trazia incômodo devido às discussões apresentadas (tradição, conservadorismo religioso, homofobia), o que muitas vezes se manifestava na fala do público, em reações mais inflamadas no espaço da exposição ou na rua, com declarações de ataque à comunidade LGBTT. A obra de Marcelo Brasiliense traz à discussão um tema político, social, cultural, artístico e convenientemente contemporâneo.

Os quatorze habitantes disseram à casa que o tempo da história mudou. A própria estrutura onde a obra fez residência deu o suporte necessário para que ela se enraizasse como as espécies vegetais que estão no seu jardim.

Dando continuidade ao percurso pelo jardim, encontramos os trabalhos de Simone Moraes, Estela Sokol e Pedro Gallego. O trabalho de Simone Moraes estabelece uma singela comunicação com a casa e seu ambiente externo, restabelecendo laços afetivos e temporais, trazendo referências ao modo de vida da casa, o jardim, o universo feminino, as rosas e as árvores, que encontravam-se numa situação de reclusão e cumplicidade com seus primeiros habitantes. As noventa e seis rosas plantadas na performance da artista – anos contados da casa – na terra “vermelha” do jardim também nos remetem à memória feminina, na figura de dona Ana Junqueira Lobato, e o lugar das mulheres de sua época: a reclusão e a vida ditada por rígidos padrões de comportamento, onde o espaço da casa, no caso da elite cafeeira, imitava os padrões da boa arquitetura europeia: o jardim era o lugar da beleza, saúde e o passatempo de algumas senhoras no cuidado com as plantas. Ao identificar cada espécie de planta e árvore no jardim, Simone Moraes também fez uma terna homenagem à casa e seus primeiros habitantes. Às 15h, sob o reflexo da luz do sol, a frase “Rosa é uma rosa”, referência ao poema de Gertrude Stein, é projetada na parede da fachada do Palacete, fechando o diálogo sutil e singelo com a casa.

A instalação de Pedro Gallego, “Objetos autoportantes”, no térreo do sobrado do antigo dormitório dos funcionários do Palacete Jorge Lobato, traz referências do universo midiático, como programas e séries de televisão da década de 80 e 90, distribuindo suas peças sobre o corpo do espaço expositivo, tentando se conectar com o público através da memória afetiva trazida por esses ícones da cultura popular. A obra exibida na abertura da exposição, “Screensaver”, que consiste em várias colagens de imagens representativas da cultura pop, não só nos fala da velocidade de produção e disseminação de imagens no mundo digital, mas também da produção em série e a manipulação dessas imagens, criando ícones para a indústria cultural e o mercado midiático.

A obra de Estela Sokol, assim como o trabalho de Simone Moraes, trilha o caminho de um diálogo silencioso. Partindo do espaço interno para o externo e vice-versa, “Rosa da janela” se movimenta no sentido da projeção de uma memória que tem a pretensão de se mostrar para o público. Cada peça que se espalha no jardim é como fragmentos de um quebra-cabeça, memórias que existem e podem ser tocadas e (re)organizadas, reatando o cordão que une presente e passado.

Subindo alguns degraus da escada, encontramos o hall do Palacete, piso de mármore italiano, e, à esquerda, a antiga sala de música e piano de Silvia Lobato, filha mais velha de Jorge Lobato. Nesse cômodo está a instalação de Nino Cais, “Depois da Luz”. Ele coloca a escultura no universo expandido; peças, partes de um momento de celebração, corpos e objetos se confundem, se espalham sobre o chão da sala. Cada fragmento dos objetos que compõem a sala são representativos, testemunhas daquilo que não mais existe. O vinho, com seu odor e sua decomposição frente ao tempo, dá um caráter orgânico e sinestésico – o vinho, como os sólidos espalhados pela sala, se expandiu a ponto de tocar o público. Poderíamos considerá-la como a “instalação dos sentidos”.

Olhando para cima, vemos as escadas de pinho de riga que dão acesso ao segundo piso, assim com uma bela visão para o vitral representando São Jorge – até então, não conhecia a imagem do santo sem o cavalo e liquidando o dragão, mas, segundo um visitante, é assim que São Jorge é representado na Irlanda.

Chegando ao segundo piso, nos deparamos com a instalação de Claudio Cretti, que utiliza diferentes materiais para compor sua escultura – mármores, madeira, chumbo, borracha, pedra. Como uma grande vara de pescar, a tridimensionalidade da obra nos convida a compartilhar seu espaço, o espaço da casa, como se tivesse a intenção de pescar o público, chamando sua atenção.

A artista Silvia Jábali traz um dos suportes mais antigos da história da arte, a pintura, como meio de referenciar o lugar da obra, buscando suscitar a discussão do espaço da arte, a quebra da tradição, ao suspendê-la a partir do chão com bases de pedra, deixando-a escorada na parede em vez de pendurada nela. Sua pintura orgânica distribui cores e formas, remetendo-nos à onipresença do passado e das personagens que habitaram o Palacete Jorge Lobato através de figuras soturnas e disformes.

A jovem artista Yasmin Guimarães, assim como Silvia Jábali, utiliza a pintura como suporte para sua obra. Recorrente na história da arte, o tema da paisagem nos remete ao imaginário e ao sonho, como se a artista quisesse nos convidar a recuperar, a partir da janela do Palacete Jorge Lobato, o “olhar da janela”, buscando estabelecer, a partir de dois tempos, passado e presente, vínculos afetivos com a história e a memória da casa.

Já Keyt Mendonça tem a linha, o ponto e a tinta negra sobre o papel branco como os principais elementos para a construção de sua obra. É bonito observarmos como ela consegue, com tão poucos recursos, construir imagens tão complexas.

Sem título, de Silvia Jábali.
Obra de Claudio Cretti.

Outros habitantes

Há algum tempo trabalhando na área de preservação do patrimônio histórico, confesso, mesmo com o olhar estrangeiro, me causou grande surpresa não só a visita de centenas de ribeirão-pretanos à exposição, mas como estes guardavam em relação ao Palacete Jorge Lobato um carinho, memórias de infância, demonstrando curiosidade e surpresa quando o imóvel foi restaurado e aberto ao público.

Interessante pensar que a arquitetura, a história, a memória e o imaginário dos visitantes foi um convite à exposição. O mesmo poderíamos dizer em relação à exposição, que foi um convite para aqueles que não conheciam a história do Palacete Jorge Lobato.

Mesmo sendo um espaço privado, o público se apropriou, se relacionou, digamos, com a materialidade e a memória do lugar. Diferentes faixas etárias, classes sociais, gente de várias partes da cidade, inclusive da região metropolitana, turistas, passaram pela exposição.

Num momento em que a sociedade civil vem se organizando para a defesa do patrimônio cultural de Ribeirão Preto, foi curioso perceber a alegria, satisfação e celebração da população ao ver o Palacete Jorge Lobato protegido e restaurado. Tanto descaso com a preservação dos bens históricos da cidade não corresponde à opinião da população sobre o tema.

Ao fazer a mediação entre as obras, o palacete e o público tiveram acesso à memória do lugar sobre diferentes perspectivas: descendentes dos empregados da casa, membros da antiga aristocracia cafeeira, ambos compartilharam histórias sobre os modos de vida da primeira metade do século passado, suas vivências no Palacete, assim como o contato com a família Lobato. Foi interessante perceber o nível de vinculação da história de muitas dessas pessoas que por lá passaram com o Palacete: “quando eu era criança, sonhava entrar no jardim e conhecer a casa por dentro”, “casa tão bonita, uma judiação ter ficado abandonada por tanto tempo”, “bom saber que os proprietários estão nos dando a oportunidade de ter acesso a esse lugar tão bonito”, “precisamos ter ações positivas como essa em Ribeirão Preto, precisamos preservar o pouco que restou do patrimônio histórico em nossa cidade”, “perfeita essa mistura de um lugar tão bonito, que faz parte da história da nossa cidade, com a arte; isso deve permanecer, a região central de Ribeirão Preto precisa de ações como essa”.

Borboleta Radiopassiva, de Marcelo Brasiliense

Percebe-se a valorização da comunidade em relação à importância do tombamento e preservação dos bens históricos. A cultura material e imaterial é representativa de uma comunidade específica ou do conjunto de uma sociedade que compartilha uma história em comum. A crítica de arte, arquiteta e historiadora da arte Françoise Choay, na obra Alegoria do Patrimônio (2006), diz que todo objeto do passado pode ser convertido em testemunho histórico sem que tenha sido destinado para esse fim, ou seja, todo artefato humano, técnica, modo de vida, costumes, arte, pode ser investido de uma função memorial.

Os novos habitantes circularam, estabeleceram a conexão com o passado e o presente através de todos os sentidos. Nessa relação sinestésica com o Palacete Jorge Lobato, homens, mulheres, crianças, idosos, pobres e ricos tomaram para si esse bem representativo da história econômica, política e social da cidade de Ribeirão Preto.

Quanto à função social da arte, esta aconteceu onde foram estabelecidas conexões históricas e artísticas, utilizadas como um meio para conectar o público no aspecto espaço-temporal, exercitar diferentes leituras do presente e do passado, a importância da preservação da memória, de quando a utopia de uma jovem cidade que nascia dos ramos de café se concretizou no que hoje é Ribeirão Preto.

A memória social foi despertada através dos gatilhos disparados pelas obras, como a instalação de Marcelo Amorim, “Escola Normal”, fazendo os mais velhos compartilharem com os mais novos, filhos e netos e até bisnetos, “como as coisas funcionavam naquele tempo” – o que também ocorreu na obra de Nino Cais, “Depois da Luz”, fazendo suscitar no imaginário do público as festas da elite cafeeira no suntuoso Palacete. O espaço privado tornou-se um espaço público (acesso livre), lugar da esfera pública, onde os assuntos da cidade, seus problemas e soluções, a preservação de sua memória cultural, foram discutidos pelo público à luz das experiências proporcionadas pela exposição Habita-me e da arquitetura, que se tornou elemento simbiótico, parte do discurso de cada uma das obras expostas.

A exposição, fruto do intercâmbio de artistas de Ribeirão Preto e São Paulo – que aconteceu paralelamente ao 43º Salão Nacional Contemporâneo de Ribeirão Preto no Museu de Arte de Ribeirão Preto, também um edifício histórico e contemporâneo do Palacete Jorge Lobato –, foi um dos marcos da ação artística na cidade, inaugurando um novo tempo para a reflexão sobre o papel da arte no espaço urbano, seu papel político e sua função social em tempos tão sombrios.

Em relação à importância do passado como pré-condição para assegurarmos nossa identidade cultural, existirmos e definirmos os próximos passos, o filósofo Walter Benjamin (1892-1940) diz que “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido”.

Projeto Carla Chaim.
#30IlusãoCulturaLiteratura

A ilusão nossa de cada dia

por Juliana de Albuquerque

Muito se fala da necessidade de superarmos ilusões e de criarmos coragem para confrontar a verdade sobre nossas vidas. No entanto, pouco se reflete sobre o determinante papel das ilusões na construção de tudo aquilo que acreditamos ser enquanto indivíduos e sociedades. Afinal, como poderíamos suportar a dureza da vida e criar nosso próprio mundo em um universo desprovido de fantasia?

Em O Nascimento da Tragédia, Friedrich Nietzsche argui como a antiga tragédia grega é capaz de transcender o vazio de um mundo carente de significado, erguendo a hipótese de que “toda vida repousa sobre a aparência, a arte, a ilusão, a óptica, a necessidade do perspectivístico e do erro”.

De maneira semelhante, em Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte, Sigmund Freud refere-se às ilusões como um componente essencial da experiência humana: “as ilusões são-nos gratas porque nos poupam de sentimentos displicentes e, em seu lugar, nos deixam gozar de satisfações”.

Nesse mesmo texto – publicado em 1915 por ocasião da Primeira Guerra Mundial –, Freud expressa descontentamento com a natureza humana, que, em tempos conflituosos, insinua despir-se de todas as suas fantasias e hábitos civilizados para regredir à vida meramente instintiva. Destarte, na conclusão do seu texto, Freud sugere que nossa atitude cultural deve incorporar certa dose de primitivismo. O que implica regredirmos sempre ao perdermos de vista a complexa dinâmica entre realidade e fantasia que impulsiona o projeto de nossa civilização.

Uma vez perfeitamente iludidos sobre nossa natureza – tal a crença de Ruskin de que sua mulher não deveria ter pelos no corpo – ou imersos na mera satisfação de nossos mais básicos instintos, corremos o risco de perder nossa humanidade de vista. Ora, adverte-nos Freud: “suportar a vida é e sempre será o primeiro dever de todos os viventes. [Mas] A ilusão torna-se sem valor quando de tal nos impede”.

Iludimo-nos todas as vezes em que retemos uma percepção distorcida da realidade e damos às pessoas, aos objetos e aos fatos uma dimensão que eles não possuem. Desta maneira, sem que percebamos, algumas memórias de infância ou da primeira juventude ganham proporções agigantadas em nossas vidas adultas; ora competindo para o nosso sucesso e a expansão dos nossos horizontes, ora para o nosso fracasso e a atrofia da nossa visão de mundo.

Em recente viagem ao Brasil, estive no Mosteiro de São Bento, em Olinda. O prédio pareceu-me bem menor do que guardara na lembrança das tardes em que lá estive com a minha avó. Comparando-o a outros prédios históricos que visitei em diversos países, pareceu-me diminuto em relação à perspectiva que desenvolvi: o tamanho da igreja e a opulência dourada do seu altar barroco desvaneceu.

Também nos iludimos ao buscarmos uma sequência cronológica para eventos determinantes em nossas vidas, como a morte de uma pessoa querida ou nosso primeiro contato com os livros. Afinal, só reconhecemos a importância desses momentos em retrospectiva, ao tentarmos dar um significado às sensações e emprestar uma ordem às memórias que interferem neste processo.

Assim, em coletânea de ensaios sobre a década de sessenta, a escritora Joan Didion descreve essa experiência como a tentativa de retermos a incessante confusão de impressões que compõem nossa experiência do mundo: “Nós interpretamos o que vemos, selecionamos [a explicação] mais viável entre múltiplas escolhas. Vivemos inteiramente, especialmente se formos escritores, pela imposição de uma linha narrativa sobre imagens díspares, pelas ‘ideias’ com as quais aprendemos a congelar a fantasmagoria cambiante que é nossa experiência real”.

Essa é a sensação de quem enfrenta o divã psicanalítico pela primeira vez e percebe que alguns dos seus valores e interpretações de mundo não passam de artifícios para suportar a realidade. Afinal, a ilusão é um dos mecanismos de defesa que criamos para lidar com o fardo existencial de eventos ou de relacionamentos traumáticos.

É nesse sentido que hoje nos iludimos ao cobrarmos em público que todos tenham direito ao amor e que toda experiência amorosa seja essencialmente segura, desinteressada e construtiva.

Outro dia, ouvi dizer que, independentemente de sua aparência ou seu comportamento, nenhum ser humano deve sentir-se em posição de mendigar afeto e aceitação. Não creio que isso seja admissível. Ora, nossas primeiras experiências afetivas em família não escapam da dinâmica da rejeição e dos conflitos de interesse. Nem podemos negar que a vivência de harmonia ou divergências familiares em nossos anos de formação acarreta, muitas vezes, uma futura apreensão distorcida dos afetos e a ambivalente experiência de seus estímulos.

Em suas memórias, Jean-Jacques Rousseau descreve o fenômeno da ambivalência afetiva ao relembrar-se de como, aos oito anos de idade, a punição física pelas mãos de Mle. Lambercier – uma mulher vinte e dois anos mais velha – despertaria sua sexualidade e reforçaria o prazer que sentia ao relacionar-se com ela: “(…) eu tinha encontrado na dor, e até na vergonha, um misto de sensualidade que, mais do que o receio, me deixara o prazer de o receber novamente da mesma mão. (…) Ao passo que os meus sentidos despertaram, os meus desejos enganaram-se a tal ponto que, confinados no que houvera experimentado, não trataram de procurar outra coisa”.

Quase todo tempo, ignorantes das nossas próprias motivações, buscamos experiências que nos sejam comuns, sem compreender os caminhos tortuosos que nos levam a aceitar a violência e a rejeição como fontes de prazer e formas de afeto. No amor e na vida, iludimo-nos a tal ponto de não nos reconhecermos necessários para preenchermos nosso próprio vazio existencial, e nisto nossas ilusões passam a ser alienantes. Por fim, o que há de extraordinário nesse texto de Rousseau é a advertência ao leitor de que precisamos estar sempre abertos a questionar nossas experiências.

#29ArquivoCulturaSociedade

Um garoto nova-iorquino

por Léo Coutinho

Um garoto nova-iorquino de dezessete anos desenvolveu um programa de computador capaz de reconhecer padrões e sintetizar a obra de compositores clássicos. Sofisticado, o sistema pode criar suas próprias peças musicais.

A novidade causou frenesi nos Estados Unidos. Na TV aberta, o programa de auditório I’ve Got a Secret recebeu o prodígio com sua invenção, que apresentou uma peça de piano composta pelo computador. Ato contínuo, o presidente americano convidou o rapaz à Casa Branca para dar-lhe os parabéns pessoalmente.

Ainda estudante do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o mesmo jovem criou uma empresa para administrar outra invenção: um novo programa de computador, agora capaz de identificar matches da turma do ensino médio com universidades, cruzando as características das instituições com as respostas de um questionário preenchido pelos candidatos interessados. Qualquer semelhança com os atuais algoritmos não é mera coincidência.

Nota necessária antes de prosseguirmos: o presidente no segundo parágrafo é Lyndon Johnson. As datas de apresentação das invenções são respectivamente 1963 e 1968. O jovem é o hoje setentão Raymond Kurzweill, filho de judeus austríacos que escaparam do nazismo pouco antes da Segunda Guerra Mundial e um dos pais do conceito de Singularidade tecnológica.

O termo original vem do campo da astrofísica e é utilizado para denominar o lado de lá do horizonte de eventos dos buracos negros, onde o tempo e o espaço como os conhecemos desaparecem. Mas, nos anos 1990, a Singularidade foi reapropriada por Vernor Vinge e Ray Kurzweill para definir o lado de lá do entendimento vigente sobre a relação entre biologia e tecnologia, homem e máquina, consciência e matéria. A quem se interessar por uma introdução ampliada ao tema, recomendo a leitura do artigo “Singularidade e Convergência”, da doutoranda em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, Renata Lemos.

O que importa aqui é que ninguém discorda de Kurzweill sobre se a Singularidade tecnológica vai acontecer. Tudo o que se discute é quando, como e em qual intensidade ela virá. Isto é, sabemos que a inteligência artificial, somada à internet das coisas e incluindo nanorobôs capazes de coexistir com o organismo humano, é só uma questão de tempo. As perguntas que restam são filosóficas: quais limites éticos e morais devem ser observados?

Líderes religiosos se destacam entre os mais aflitos. Perguntam-se até que ponto convém à Humanidade “brincar” de Deus. É um debate que deve ser respeitado e realizado. E com alguma urgência. Imagino que o primeiro ser humano que foi capaz de controlar o fogo sofreu questionamentos semelhantes. Onde chegaríamos produzindo algo que acontecia como um fenômeno, quiçá divino, depois de um raio, de chuva ou de sol? A diferença principal é o tempo para o amadurecimento do debate. Parece que, naquela época, havia tempo de sobra e deu no que deu. Cá estamos. Agora, o tempo urge, a tecnologia avança num ritmo difícil de ser acompanhado. A Lei de Moore vigora, sem falhar, desde de 1965: a cada dois anos, a capacidade de processamento dos computadores dobra. Se vier a falhar, deve ser para mais, ou seja, triplicando ou quadruplicando a cada dois anos, posto que as máquinas evoluem muito mais depressa do que os seres vivos. Misturados organicamente, qual será a velocidade do passo?

Entre as previsões do futurista Kurzweill estão os nanorobôs que vão morar dentro do nosso cérebro e, de lá, poderão se conectar com a nuvem, arquivo virtual de toda a informação já produzida pela Humanidade. Será o fim dos lapsos de memória, e a criatividade humana não terá limites. Também poderão combater doenças e regenerar órgãos danificados pelo uso, provavelmente acabando com a morte morrida ou permitindo que nosso corpo aguente correr dez maratonas seguidas – confesso que não sei o que é mais assustador.

Mistérios e segredos também estarão com os dias contados. Inclusive os dos nossos ancestrais. Kurzweill é um tipo curioso. Podemos conhecer um pouco dele no filme documentário Homem Transcendente: vive no subúrbio, numa casa clássica americana repleta de memórias, bebe vinho, usa carro, terno e gravata. Pensa muito no futuro, mas não se esquece do passado.

Muito pelo contrário, quer lembrar mais. Guarda tudo o que pode sobre sua família, notadamente seu pai, para um dia poder digitalizar toda a informação e, de alguma maneira, ressuscitá-lo. Mais: já implicou muito com a presença dos extensos cemitérios dentro das cidades nos Estados Unidos, mas hoje olha para cada um deles como preciosos bancos de dados. Ele imagina que poderemos resgatar o DNA presente nos cabelos e outros tecidos dos mortos e, consequentemente, parte da memória neles contida.

Kurzweill diria: cuide bem do seu arquivo e serás imortal. Estamos preparados?

#29ArquivoCulturaLiteratura

Histórico

por Vanessa Agricola

Eu guardei o primeiro correio elegante que recebi de um menino da quarta série. Ele me escreveu: “eu adoro a sua amizade”. Daí para frente, o menino da quinta série só passava lá em casa para trocar fitas de videogame. Eu colocava um trevo de quatro folhas dentro do bolso da minha calça jeans nova e lhe emprestava as melhores fitas. Não tive sorte com trevos de quatro folhas. O menino do Rio Grande do Sul, próximo da lista, namorava a menina mais linda da escola. Pensa numa garota linda. Sabe quanto tempo eles demoraram para terminar? Cinco anos. Quatro anos depois do começo, a namorada dele foi passar o final de semana no Rio, e a gente ficou. Ele me disse que estava solteiro e que sempre gostou muito de mim. Beijei de língua, de orelha, pescoço. Eu e o menino do Rio Grande do Sul quase transamos no sábado. Na segunda-feira, ele passou com a namorada de moto.

Sabe quanto tempo eu demorei para ter o meu primeiro namorado sério?

Ele não está tão a fim de você foi o nosso primeiro filme. Ele me mandou uma mensagem perguntando se três encontros seguidos era muito, eu respondi que a única coisa que era muito era a vontade de ficar com ele. Tomei um banho, coloquei uma calça jeans nova (não tive sorte com calças jeans novas), fui para a casa dele e nunca voltei para casa. A gente assistiu Ele não está tão a fim de você como os namorados novos assistem filmes. Cada vez que a personagem, Gigi, se enganava com um homem, ríamos, como se estivéssemos para sempre livres de não dar certo. Até que, no mês passado, ou retrasado, já nem sei, ele começou a cantar a música da Frozen.

Eu demorei para entender a música da Frozen. Claro que eu já vi o filme umas quinhentas vezes, mas a letra tem todo um significado; de longe, tudo muda, parece ser bem melhor, livre estou, livre estou, etc. Que eu só entendi o dia em que ele começou a cantar “Livre Estou” na cozinha. Enquanto eu estava na sala cantando a música do Maná. A nossa música do Maná. A música do Maná que ele escolheu para ser minha. Foi só aí que eu me dei conta. Ele na cozinha, “livre estou, livre estou”; eu na sala, “con un cachito de corazón, con un cachito de corazón”.

Às vezes, a gente não tem escolha. Tem dias em que eu coloco a música do Maná no carro e pego a Marginal. Preciso instalar um insulfilm; não sei por que só consigo chorar no carro. Coloco Marília Mendonça, Vanessa da Mata. Essa semana peguei a Ayrton Senna escutando Cartola e Caetano. Achei melhor descer a serra, curvas estreitas de Frozen, silêncio, gelo do meu primeiro namorado sério. Desliguei o ar-condicionado, abri todos os vidros. A gente gostava tanto de viajar de carro. Cheguei na Rio-Santos com “Meu Coração Vagabundo”. Quero guardar o meu primeiro namorado sério em mim. Fui, fui, até Paraty. No trevo de Paraty, dei a volta para São Paulo. Fim.

#29ArquivoAmarello Visita

Amarello Visita: Biblioteca Brasiliana e José Mindlin

por Tomás Biagi Carvalho

Cristina, você poderia nos contar um pouco de sua trajetória, como você começou a trabalhar primeiro com a coleção Mindlin, em sua casa no Brooklin, até chegar aqui nesse prédio que estamos dentro do campus da USP São Paulo?

Olha, quando eu ainda era estudante da faculdade, fiz um concurso na USP para trabalhar no IEB (Instituto de Estudos Brasileiros), onde trabalhei por sete anos. Mas, naquelas alturas, eu já tinha casado, minha filha tinha nascido, e eu pedi uma licença no IEB, porque naquela época não existia berçário onde você pudesse deixar um bebê. Eles negaram minha licença, e então eu pedi demissão.

Isso foi quando?

Isso foi em 1975. Eu pedi demissão e trabalhava para uma editora, fazendo tradução e revisão de livros. Quando minha filha cresceu e entrou na escolinha, eu tinha uma amiga que era professora aqui na USP e trabalhava no Mindlin que me perguntou se eu tinha vontade de trabalhar com ela. Eu já tinha ouvindo falar nele, obviamente, mas eu não tinha ideia do que era aquela biblioteca. Então fui à casa dele um dia à tarde para passar por uma entrevista – que eu achei que não ia dar certo, porque ele me perguntou, de imediato, se eu era bibliotecária, e falei que não, que era pedagoga, e ele falou, “você sabe fazer ficha?”, e eu falei, “mais ou menos” [risos]. “Você gosta de fazer ficha?”, e eu falei, “nem um pouco”. Aí eu pensei, “bom, agora ele vai dizer ‘pode levantar e ir embora’”. Então ele disse, “o que agrada você acima de tudo?”, eu falei, “ler”. Ao que ele falou, “pronto, agora podemos começar a conversar”. Esse encontro foi em uma quinta-feira, e na segunda-feira seguinte eu já comecei a trabalhar na biblioteca. A Alice (minha amiga) ficou lá durante mais ou menos dois anos e foi embora, e eu fiquei trabalhando sozinha durante uns vinte anos. Era só eu. Depois, entrou uma moça, que foi me ajudar com as revistas – porque a gente tinha uma coleção enorme de revistas – e, depois de muitos anos, entrou uma outra pessoa, que foi trabalhar com o arquivo pessoal do Mindlin, que ficou lá na biblioteca durante uns cinco anos. Quando a biblioteca foi doada para a USP, eu fiz concurso para poder acompanhá-la, porque eu era a única pessoa que conhecia o acervo; não tinha ninguém aqui, além de mim, que conhecesse a biblioteca. O Mindlin acreditava que era muito simples. A biblioteca vinha, e eu vinha. E eu disse para ele que não era bem assim…

A Biblioteca foi incorporada pela USP antes de o prédio ser construído?

A doação envolvia a construção do prédio. Mas o processo da doação em si foi uma coisa que durou dez anos. Foi muito a longo prazo. E, depois, a construção do prédio também demorou muito. Foi a última coisa e não foi feita com verba da USP, a não ser na fase final. Foi feita com captação de recursos. O processo da doação começou na gestão do Marcovitch, que era o reitor na época, aí passou por mais quatro reitores e terminou na gestão do Rodas. No final, quando a verba acabou, o Rodas bancou a finalização da obra, e nós terminamos o prédio.

E como você acha que o novo prédio influenciou o seu trabalho?

Minha relação com os livros não mudou, mas meu convívio com os livros é completamente diferente aqui do que era na casa do Mindlin. A construção no Brooklin era completamente diferente, era uma coisa muito mais intimista, os livros ficavam muito mais perto… Eu trabalhava no meio deles. Quando o pesquisador ia à biblioteca, ele não mexia nas estantes, mas sentava no meio dos livros. O Mindlin tinha uma relação com livro que, quando alguém ia lá conhecer a biblioteca, ele tirava o livro da estante, colocava na mão da pessoa e dizia, “pegue, leia, olhe, folheie, porque livro existe para ser manuseado”. Ele tinha uma visão um pouco diferente da maioria dos colecionadores. Já aqui na USP existe um distanciamento, quer dizer, os livros estão protegidos dentro de um anel, que tem acesso muito restrito. O anel tem controle biométrico de acesso, então só o meu dedo e os dos três bibliotecários, além do especialista em pesquisa, abrem as portas. Nem os diretores têm acesso ao anel. Os livros ficam ali dentro, protegidos e guardados. Na biblioteca do Brooklin, era uma relação muito mais afetuosa, digamos assim, do que é hoje, embora eu reconheça que é necessário isso, porque agora a gente está num órgão público, não está mais numa casa de um colecionador.

Como foi o processo de digitalização do acervo?

O processo de digitalização começou a ser feito antes da mudança, ainda na casa do Mindlin. Foi comprado um robô da Kirtas, um robô automático, que a gente chamava de Maria Bonita.

Por quê?

Porque todos os servidores da biblioteca tinham nomes de cangaceiros: Corisco, Sabino, Lampião… Quando esse robô da Kirtas chegou, ele era muito fresco, tudo era delicado, sensível, e aí a gente achou que ele era muito feminino e colocamos o nome de Maria Bonita.

Isso aconteceu uns três anos antes da mudança para cá (campus da USP). Ela era uma máquina que digitalizava o livro sozinha, virava a página do livro sozinha, mas a gente usava mais esse recurso quando era um livro moderno ou um livro muito antigo, de papel de trapo, porque o papel de trapo é muito resistente, permite que a máquina o manuseie com muita facilidade. Com os livros do século XIX, a gente não fazia isso, porque papel de celulose é muito frágil, então o trabalho foi feito manualmente. Montamos um esquema de fazer uma seleção do que seria digitalizado, com alguns critérios, uma mescla de livros de História, de Literatura… Começamos basicamente com o século XIX e, depois, digitalizamos obras mais raras dos séculos XVI, XVII. Um pouco antes da mudança para a USP, esse processo de digitalização foi interrompido, porque, na época, quem havia assumido a direção da biblioteca – o Mindlin já tinha morrido – emprestou as máquinas para se fazer uma digitalização para o SIBi, aqui na USP. Então elas ficaram, durante dois ou três anos, na Poli, e foi uma fase que, para nós, foi muito difícil e muito incômoda, porque as coisas não foram feitas de uma maneira muito clara.

O empréstimo?

Pois é, a gente não conseguia reaver as máquinas. Foi um processo. Aí, quando elas voltaram para a biblioteca, vieram para o laboratório de digitalização e, depois de uns dois anos, nós compramos mais três máquinas mais modernas. Atualmente, temos sete máquinas de digitalização.

A digitalização não é uma coisa tão simples, porque o livro tem que sair da estante, passar primeiro pelo laboratório para higienização, onde ele é todo limpo a mão – porque, se o livro for colocado em um equipamento sem limpeza, ele libera muita poeira, e isso compromete a máquina. Depois disso, ele vai para a digitalização, após o que passa por um tratamento de aparar as imagens e, depois, por um tratamento de OCR, que é o programa que permite que você faça busca por palavra no texto digitalizado. Então, se você pegar uma digitalização nossa e quiser, por exemplo, procurar a palavra “casa” no texto, é só você digitar e ele vai procurar no livro inteiro a palavra “casa”.

A última fase é pegar esse arquivo e colocá-lo no site. É um processo relativamente lento. Costumamos fazer quinze livros por semana. Não é muito – aliás, é bem pouco. E tem uma questão, que eu acho que é o maior agravante, que é o fato de você só contar com estagiários para trabalhar nessas máquinas. Porque, aqui na USP, você deve saber bem disso, é difícil conseguir montar uma equipe de estagiários e, principalmente, conseguir manter esses estagiários por um longo período.

Difícil pela burocracia ou pela falta de verba?

Pela falta verba. Às vezes, quando contratávamos, conseguíamos um estagiário só de 10 horas. Isso é muito ruim, porque é muito pouco tempo, e esse estágio dura somente 6 meses, quer dizer, a cada seis meses você tem que treinar toda a mão de obra novamente.

Durante dois anos, tivemos o apoio do BNDES, porque, quando construímos o prédio, o BNDES tinha muito interesse em participar do projeto. O que eles poderiam fazer para a BBM? Doar equipamento, doar mobiliário – todos esses móveis lindos de design brasileiro a gente comprou com verba do BNDES – e, também, financiar estágios e algumas bolsas.

Para nós, foi ótimo. Nessa época, existia uma bolsa que mantinha a uma conservadora no laboratório, mas, mesmo assim, a gente ficava o tempo inteiro empenhado em ter uma vaga aberta para um concurso para ter uma conservadora da biblioteca, porque essa pessoa que estava aqui era temporária. Não conseguimos que nenhum concurso fosse aberto, mas conseguimos uma coisa muito mais interessante, que foi uma permuta entre instituições. Existia uma pessoa que era especialista em restauro de fotos e que trabalhava no SIBi. Ela queria sair do SIBi e queria vir para cá. O SIBi não estava muito interessado em ceder, mas acabamos conseguindo que essa pessoa passasse a ser funcionária da BBM e, atualmente, ela é nossa conservadora.

Qual é o percentual de livros digitalizados, em relação ao acervo da biblioteca?

Existem, mais ou menos, uns 4,5 mil livros digitalizados. A biblioteca tem 60 mil livros. Mas, obviamente, a gente não vai poder digitalizar tudo, porque existe a questão de direitos autorais. Só digitalizamos e disponibilizamos na web o que está em domínio público. A única maneira de você digitalizar uma coisa que não está em domínio público é digitalizá-la apenas para consulta interna, sem disponibilizá-la na web.

Então, apesar da existência da internet e de todo o acesso que ela nos permite, ainda faz muito sentido o leitor vir até a biblioteca, porque ele vai ter um acesso a muito mais coisas.

Pois é. Bem no início da mudança para a USP, o Mindlin tinha, na biblioteca dele, uma coleção praticamente completa das obras do Vinicius de Moraes. Aí a família do Vinicius entrou em contato conosco e perguntou se nós não queríamos digitalizar todos os livros, que eles dariam autorização para isso. Nós digitalizamos todos os livros do Vinicius, e eles ficaram durante seis meses no ar. Aí, uma hora, um membro da família resolveu que não queria mais, “não brinco mais, não quero mais”. Ele criou tamanha confusão que, enquanto a família ficava batendo boca, nós resolvemos tirar todos os livros do ar. Quando fizemos isso, recebemos uma tonelada de reclamações. A partir disso, não colocamos mais nenhum livro que tivesse problemas de direito autoral – mesmo que tivesse autorização de um herdeiro.

Como é a sua relação com os livros digitais?

Leio muito no iPad, mas todo livro que eu leio no digital eu compro a versão física também. Tenho uma biblioteca em casa, então é difícil não ter o livro físico.

Mas, depois de ter lido no iPad, em algum momento você vai até o livro físico?

Ah, vou. Muitas vezes. Se eu quero reler o livro, ou se eu lembro de alguma coisa que eu li naquele livro, eu vou procurar no livro físico. Uma citação que eu queira usar em alguma coisa, eu vou no livro físico, não tem jeito.

Você acha que existe alguma diferença de leitura entre ler no papel e ler no iPad?

Toda. O conforto de deitar na cama com o livro aberto, você vira de lado, vira de outro… A luz do iPad me incomoda. Quer dizer, quando você está lendo um livro físico, você tem que acender a luz, então você usa o abajur, e tudo bem. O cheiro do livro – o iPad não tem cheiro, o Kindle não tem cheiro. O prazer de virar a página, de ir e voltar, o tato mesmo. É tudo muito diferente.

Qual você acha que é a importância dos livros nesse mundo tão raso que estamos vivendo, de informação tão superficial?

Bom, o livro não tem fake news, né? [risos] Começa por aí. Mas eu não consigo imaginar jamais um mundo que não tenha livro. Para mim, é fundamental, em todos os aspectos. Na educação, no prazer, no lazer, em qualquer coisa o livro se encaixa. Uma vez, perguntaram para o doutor José, “se você tivesse que ficar numa ilha, o que você levaria?”, e ele falou, “livros”. Ele só queria os livros. Comida, água – ele nem pensava nisso.

E como que você vê hoje esse mundo da informação que a gente está vivendo, de informação instantânea e fake news?

Acredito que não podemos ficar à mercê desse tipo de informação, porque senão enlouquecemos. A quantidade é tamanha que você não consegue abarcar tudo que está disponível na internet. Mas é muito fácil quando você pode confiar numa fonte que vai te dar uma resposta adequada. Claro que também tem tudo que é bobagem, que é mentira, que é lorota que está por aí.

Não acho que os livros vão deixar de existir, nem que o mundo digital vá deixar de existir. Acho que as duas coisas vão coexistir. Eu vou morrer, outra geração vai vir, e essas duas coisas vão continuar coexistindo. Enquanto existirem bibliotecas por aí, gente que gosta de livro – e vai sempre ter alguém – irá atrás delas.

Você participou de alguma maneira da construção do prédio?

Total. Éramos uma equipe com dois arquitetos, o diretor da biblioteca, eu – que era curadora da biblioteca –, uma moça que fazia captação de recursos… E, desde o começo, eu participei.

Às vezes, fico pensando que, se não houvesse falado algumas coisas durante o processo todo, não sei o que teria acontecido. Por exemplo, quando o Rodrigo (Mindlin Loeb) e o Eduardo (de Almeida), os arquitetos, me deram o projeto, eles falaram, “olha e vê o que você acha que precisa mexer, se você quer alterar alguma coisa”… Fiquei olhando aquele projeto, e uma hora eu chamei o Eduardo e falei, “Eduardo, que parede é essa aqui?”, e ele falou, “essa parede é do fundo da biblioteca”. E eu falei, “e o que tem aqui do lado?”, e ele disse, “banheiros”. Eu falei, “você acha que vai poder colocar uma parede com encanamento fazendo limite com a biblioteca no mesmo lugar?”. Aí foi feita uma alteração. Realmente, foi uma alteração que foi fundamental, porque jamais poderíamos colocar uma parede limitando estantes que tivesse encanamento passando dentro.

E em relação à disposição dos livros, como eles ficam dentro dos anéis, você teve envolvimento nisso também?

Os livros ficaram exatamente como eles ficavam na casa no Mindlin. Eles vieram e foram arrumados aqui tal e qual eles ficavam na biblioteca do Brooklin.

A casa tinha sua estrutura original. Depois, um prédio de dois andares foi construído em 1965, em uma parte do jardim. Depois, em 1985, foi feito mais um prédio de dois andares ao lado desse. Algumas coisas foram anexadas à construção original da casa. Tinha uma casa que tinha sido alugada do outro lado da rua, onde ficavam as revistas. Depois, um apartamento desse lado de cá foi comprado, onde ficavam os livros que estavam chegando, os livros novos. Aí a casa também ganhou algumas salas, o laboratório de restauro da dona Guita, um quarto – que a gente chamava de “quarto do caos”, porque, quando as coisas chegavam, eram enfiadas lá dentro. Tinha livro na casa inteira, menos na cozinha e no banheiro. Na cozinha ainda tinha livro de culinária.

A única coisa que foi remanejada na mudança é que os primeiros livros da biblioteca ficaram na sala da casa. Tinha uma estante que era de livros de Literatura, outra de livros de História, outra de livros de história do livro… Então todos esses livros de brasiliana saíram da sala da casa e foram para esses dois prédios da biblioteca. Literatura entrou junto com Literatura, História entrou junto com História…

Eles foram todos numerados, com um papelzinho que ficava dentro do livro em pé, e com cores diferentes. Literatura era rosa, História era azul, Arte era verde… Então, aqui na USP, temos, no primeiro andar do anel, a biblioteca do Rubens Borba de Moraes, que é um conjunto enorme, que foi uma biblioteca que foi doada em testamento ao Mindlin. Nesse andar, também ficaram os viajantes todos, os jesuítas, manuscritos e originais literários e, depois, toda a parte de História. No segundo andar, tem Literatura, que pega mais da metade do anel, e os livros de Sociologia, de folclore… No terceiro andar, tem os periódicos, os livros de Arte e as obras de referência. E aí tem, no arquivo, que é no subsolo, os fundos de arquivo da biblioteca, onde estão os fundos do Mindlin, do Rubens Borba de Moraes, do Vicente do Rego Monteiro, do Francisco de Assis Barbosa, da Zila Mamede, do Cunha de Leiradella…

Vocês ainda fazem aquisição? Ou só recebem doações?

Aquisição é mais difícil, porque obra rara custa caro, muito caro, não temos verba para isso. Temos verba para comprar livro novo, uma verba pequena que vem do SIBi, então compramos livros para pesquisa, dicionários, essas coisas. Geralmente, as editoras pedem para usar algum livro nosso para fazer uma edição fac-similar, ou para fazer uma 2ª, 3ª, 4ª, 5ª edição… Então elas mandam para nós dois exemplares. Esses livros todos, quando chegam, não ficam no anel. No anel está exclusivamente o que veio da casa do Mindlin. Eles vão para o subsolo. No subsolo, nós temos uma reserva técnica para 90 mil livros, então temos muito espaço para a biblioteca crescer.

Houve uma vez que – foi uma coisa muito rara que aconteceu, mas aconteceu, graças a Deus – um empresário telefonou dizendo que iria acontecer um leilão aqui em São Paulo de livros de brasiliana que era da Fólio, uma livraria que faz leilão, um antiquário muito bom, e que tinha livros bem interessantes. Ele disse que tinha muito interesse em fazer uma doação para a biblioteca, [e perguntou] se eu podia ler o catálogo e selecionar coisas que fossem importantes para nós. O catálogo era realmente fantástico. Ele me mandou o catálogo no fim da tarde e falou, “o leilão é amanhã”. Então eu varei a noite lendo esse catálogo. E aí, logo de cara, eu achei um livro que foi o primeiro da minha lista – porque nós temos uma coleção das obras de um editor do Maranhão chamado Paula Brito, com todas as obras, menos um livro, e este foi o primeiro que eu achei nesse catálogo: Iracema de Itamaracá. Foi o primeiro que eu botei na minha lista. Depois, eu percebi que o catálogo também tinha uma série muito grande de livros sobre a Guerra do Paraguai. Como eu tenho banco de dados no computador da minha casa, eu pude comparar o que a gente tinha e o que não tinha. Aí eu fiz uma lista de livros da Guerra do Paraguai que completava nossa coleção e, depois, incluí obras de alguns viajantes, que eram importantes e que a gente já tinha, mas eram edições diferentes. Então eu falei, “olha, eu fiz uma lista grande, você decide o que você quer doar, e a lista está em ordem de prioridade”. Ele doou a lista inteira.

Isso é assim: acontece uma vez na vida, outra na morte. Houve um outro caso que alguém ofereceu um livro que era importante para nós, e aí eu liguei para alguns dos amigos do Mindlin, que eu conheço todos: “você não quer fazer uma doação para a biblioteca?”, “ah, eu faço”. Mas não é comum.

Quais são os livros mais raros que existem na coleção?

Difícil dizer, mas tem algumas joias. Por exemplo, temos a 1ª edição do Hans Staden, de 1570. Doutor José levou anos e anos procurando essa edição, e conseguiu comprar em Londres, se não me engano. E ainda, por sorte, o exemplar que ele encontrou tem encadernação feita na época, de 1570. Uma encadernação de couro de porco, toda em relevo. E a pessoa que possuía esse livro encadernou três romances de cavalaria alemães – porque o texto do Hans Staden é em alemão –, então tem o livro do Hans Staden, depois tem um romance sobre um viajante persa e um romance de viagem na África – esses títulos eu não me lembro, mas são todos romances de cavalaria superimportantes. Não são de Brasil, mas o Hans Staden é de Brasil, e ele é o primeiro na série.

Esse é um livro muito importante, porque ele foi muito, mas muito publicado assim que o Hans Staden o lançou. Saíram várias edições. Ele foi tão publicado que, quando saiu em Marpurg em 1557, saiu uma edição em Frankfurt no mesmo ano. O Hans Staden havia ilustrado todo o livro a mão – são xilogravuras das aldeias, dos índios comendo braço, comendo gente, as praças de aldeia, as caravelas chegando e saindo do Brasil… Mas o editor de Frankfurt não tinha as matrizes das ilustrações dele, então resolveu ilustrar o livro usando ilustrações de uma viagem ao Oriente, de um autor chamado Varthema. Então, nessa edição alemã, só tem gente de burca. Temos essas duas edições aqui.

Uma outra rara que temos é a edição da Marília de Dirceu publicada no Brasil em 1810, que só existem quatro exemplares no mundo. Ela é muito mais nova do que a 1ª edição portuguesa, que é de 1790. A 1ª brasileira é de 1810, mas é infinitamente mais rara. Tanto é que o doutor José e o doutor Rubens, que era esse que doou a biblioteca para o Mindlin, procuravam esse livro a vida inteira. E aí o Rubens dizia para o doutor José, “se um dia você encontrar, não me conta, porque senão eu vou ter um infarto”. Aí, um dia, um colecionador de Minas estava na biblioteca, foi visitar o Mindlin e perguntou – colecionadores têm uma mania que é engraçada: se eu sei que você não tem determinado livro, então eu vou perguntar exatamente desse –, ele chegou para o doutor José e perguntou assim, “você tem a primeira edição da Marília de Dirceu publicada no Brasil?”, e ele respondeu, “claro que não! Eu não tenho e ninguém tem”. “Pois eu tenho”. Aí o doutor José falou, “não, você está brincando”, e ele falou, “estou falando sério. Quando você for a Minas, vai à minha casa que eu te mostro”. Aí, claro, na mesma semana o doutor José voou para Minas para ver o livro. Esse amigo falou assim, “sua mulher é restauradora, né?”, aí o doutor José falou que sim, “então leva e fala para ela restaurar o livro”. O livro estava perfeito, mas ele tinha, na página de rosto e na primeira e segunda página, alguns furinhos de bicho, mas não comprometia o texto. “Leva para ela, pede para ela limpar, arrumar, costurar de novo” – que estava descosturado – “e, se ela arrumar isso, o livro é seu”. Aí o doutor José nem acreditou. Trouxe, entregou para a dona Guita e falou “olha, Marília!”. E a dona Guita levou seis meses restaurando esse livro. Ela desenhou uma máquina especial para a refibragem do papel e tudo, e fez o livro inteiro. O doutor José, em troca, deu de presente para ele, já que ele era mineiro, documentos dos Autos da Inconfidência. Então ficou uma troca da Marília pelos inconfidentes.

O livro mais antigo aqui da biblioteca é de 1508, chamado Itinerariū Portugallensiū, de Fracanzano Montalboddo, e tem também os livros do viajante do Carl Friedrich Philipp von Martius. Ele veio para o Brasil e publicou os livros da viagem toda dele e, também, livros sobre a flora brasileira. São 41 volumes de flora. Todos ilustrados. E aí tem 18 volumes de viagem, sendo que três descrevem a viagem e os outros sobre animais – pássaros, peixes, lagartos, cobras, tudo colorido a mão. Aí depois tem os álbuns, que pesam uns 10 kg cada um, sobre palmeiras do Brasil – partes das palmeiras, semente, caule, tronco, depois a palmeira dentro do habitat dela na floresta… E tem macacos, também. E o nosso exemplar é o exemplar que pertenceu à imperatriz Maria Luísa, com os brasões dela nas lombadas.

Para digitalizar, vai dar trabalho. A pintura dos livros dele, nos grandes formatos, era feita em série, ficava numa mesa bem grande, com vários pintores, e cada um pintava uma cor – um pintava o marronzinho da palmeira, outro a folhinha verde, outro o verde-escuro… Era uma produção em série.

E quais são os objetos de desejo da Biblioteca Brasiliana?

Cultura e Opulência do Brasil, do Antonil. A 1ª edição, que não temos. Eu acho que esse é o livro que a gente mais queria. Talvez um exemplar de A Divina Pastora, que só existe um também.

E vocês sabem onde está a 1ª edição?

Não existe. Não está nem à venda em algum lugar.

Então é um desejo inalcançável.

Não, pode ser que apareça. O Cultura e Opulência do Brasil deve ter uns quatro exemplares no mundo. Todos eles estão em instituições, então não vai sair de nenhuma instituição para ser vendido.

Na casa do Brooklin funciona o que hoje?

É uma escola de criança pequena. A casa não era gigante. Ela tinha muito espaço para os livros, mas a casa em si era normal, com três quartos. Tinha um terreno muito grande, um jardim super bonito… A escola está instalada nos prédios que foram sendo construídos ao longo dos anos para receber os livros. Hoje, a escola fica no prédio onde eu trabalhava.

#29ArquivoCulturaSociedade

Atlas Mnemosyne: busca infinita por arquivar imagens e pensamentos

por Orhan Pamuk

As imagens construídas pela humanidade, por seus artistas, desaguam com ímpeto na memória. Segurar a lembrança, deter o encantamento, sentir o deslocamento do olhar por imagens, as quais vislumbrem interpretar o mundo, é recurso ontológico do arquivo. O fio que tece e costura os meandros da expressão humana é imaterial, subjetivo, gira em torno da experiência sensível da apreensão sobre o vasto e indomável território dos sentidos. A estética de modo dual permeia as relações não aparentes e as lógicas iconográficas.

O gesto em arquivar, em domar o tempo, o espaço das coisas criadas a partir da arte, deixa-se espelhar pela força heurística, seja do plano da imanência da consciência (desta construção do saber) em conjunção com a fluidez efêmera do encontro com o visível. Seria o arquivo, portanto, a transposição da existência das coisas propriamente representadas, ou mesmo criação do objeto (da cultura, da linguagem, das imagens elaboradas como ideias)? O arquivo discorda de sua própria hegemonia de ser inconteste, de ser o espaço de um tempo remoto. A discórdia é uma particularidade desmistificadora do estado de existência. A primazia da discórdia, nesse caso, faz-se por inconfidência e insurgência ao criar movimentos de articulação em si num tempo novo, num lugar de destreza com fronteiras porosas.

O que poderia e parece ainda hoje fugir do provável, no sentido de pensar um arquivo de possibilidades infinitas pela ideia da constituição de um volumoso atlas, trata-se, no entanto, de algo real. O inexorável e antológico Atlas Mnemosyne (1924-1929), obra capital (e inacabada) do historiador da arte alemão Aby Warburg (1866-1929), reflete essa busca complexa sobre o pensamento visual. Tal como estendesse o braço para Mnemósina, deusa grega que representa a memória e cujo significado é lembrar-se, o historiador criou algo de princípios e proporções legendárias, ligados diretamente a operar a natureza do arquivo através de pesquisa incessante de imagens da arte e da cultura. Suas articulações por colagens e montagens, ao eleger determinadas obras, visavam principalmente discutir as intermitentes perspectivas de significados e símbolos. Vale lembrar o filósofo alemão Goethe, ao refletir que a viagem estética é também a busca de uma herança. No caso de Aby Warburg, ela se dá sem a determinação da palavra, da expressão verbal, mas com uma profunda viagem pelas imagens.

O método do iconologista era claro. Seu interesse era norteado pela arte da Antiguidade Clássica e do Renascimento Italiano. De tal maneira, por meio da execução de vários painéis (até antes de sua morte, deixou um conjunto de cerca de 63 painéis), Aby Warburg agrupou por temáticas um verdadeiro inventário a partir de ícones da história da arte, fotografias, desenhos, signos ancestrais e reprodução de textos. Enfim, elementos visuais para a compreensão estética e criadora da percepção do homem a respeito do mundo, assim como da mente humana ao desencadear-se por associações imagéticas.

Aby Warburg coloca a complexidade do saber por imagens que dialogam diretamente com a memória (seja individual ou coletiva) como o centro, o lugar onde ocorre o processo de criação e, por conseguinte, o pensamento. Para ele, a imagem da memória tem certa fase de guarda consciente nas representações, que se pode definir como “o modo simbólico do pensamento”.

Entre seus tantos desejos intelectuais de investigação, o Atlas Mnemosyne revela, em seu incansável colecionismo hermenêutico de imagens – por associações, aproximações, semelhanças e diferenças –, narrativas simbólicas pela estética. As reproduções fotográficas das obras reunidas por grupos em painéis configuram certo corpus de alinhamento, no qual perfilam realidades temporais e atemporais na discussão da ciência, religião, astrologia, antropologia, filosofia, sobre magia, atitudes psicológicas, desejos, o dionisíaco… A extensão das leituras visuais é incomensurável, de modo que não há como finalizar tais relações em seu Atlas. Não há margens, barreiras de contenção. Era comum Warburg estabelecer novas configurações, ramificações, rizomas; imagens que trasladavam de um painel a outro. Para o historiador, era justo em novas configurações que os sentidos se oxigenavam e se ampliavam. Assim, cada imagem nunca era fixada definitivamente, pois seria impossível mantê-la em um só contexto.

Espontaneamente, o Atlas Mnemosyne constituía, num sopro poético, a dinâmica das constelações, da espacialidade possível de desfiar novos significados, infinitas repercussões para reflexão. Antiguidade oriental, antiguidade ítalo-meridional-árabe, imagens de planetas, ninfas, Ghirlandaio, Botticelli, Ovídio, Laocoonte se misturam e dialogam entre tantas outras referências. Tentar compreender o Atlas precede também interpretar o pensamento de seu criador através das constantes temáticas em oposição, associações e recorrências. Fernando Checa, historiador da arte, ajuda a sintetizar a tão vasta obra de Aby Warburg. “A finalidade do Atlas foi de explicar, através de um repertório muito amplo de imagens, e outro muito menor de palavras, o processo histórico da criação artística no que hoje denominamos Idade Moderna, sobretudo em seus momentos iniciais do Renascimento na Itália, centrando-se em alguns aspectos essenciais de final do século XV em Florença e procurando seus fundamentos na Antiguidade.”

De tal forma, o arquivo, como meio, reunião e preservação, é também protagonista de algo substancial – isto é, de um tempo que se habita não pelo passado, pela cronologia, mas pelas frestas e lacunas da expressividade artística. São germinados, assim, espaços para a imaginação. Nesse limiar do entre-imagens, que encontra na dialética o arcabouço mais condizente, Aby Warburg concentrava seu olhar na dicotomia ente o eu (a subjetividade) e o viés do fora, o mundo (em sua objetividade). O que o historiador define como “o ato fundamental da civilização humana” nos faz refletir sobre como a criação artística coloca em suspensão símbolos passíveis de ressignificação a cada montagem, entre as cerca de 2 mil imagens depuradas por Warburg.

O arquivo passa a ser, para o pesquisador ou qualquer artista, exercício narrativo, num fluxo de desterritorializar zonas de conforto, cujo tempo e espaço se agarram organicamente. O encanto em ampliar os símbolos, que perscrutamos diante do arquivo, é um dos pontos inquietantes para avançar na compreensão de metáforas e antíteses.

Em Mnemosyne, Warburg relata, pelas imagens, os primórdios da história ocidental, que ele nomeia de “diversidade de sistemas de relações nas quais o homem se encontra envolvido”. Ciente do quão inesgotável é aproximar imagens por suas diferenças ou distinções, ele não almejava sintetizar nem descrever, mas provocar, como situa o próprio Warburg, o encontro de certas relações íntimas e secretas, correlações no saber transversal ad infinitum da relação complexa entre história e imaginário. A aposta, como diria o filósofo Georges Didi-Huberman, inerente ao Atlas de Aby Warburg possuía, dentre suas inclinações, um sentido conotativo e imaginativo em busca de montagens. “O atlas é uma forma visual do saber, uma forma sábia do ver.”

Aby Warburg deixa em seu legado não apenas um profuso arquivamento de imagens, mas sobretudo o acontecimento da hibridez, do poder da montagem por descobertas, um ponto de partida e acolhimento das coisas que se espalham pelo mundo e pela filosofia do sensível. Ideias que, representadas, transcendem a realidade através da imaginação, dos signos e dos significados. Esta foi a magia epistêmica de Aby Warburg: um atlas para ser mais horizonte do que superfície.

#29ArquivoArteCinema

Tacita Dean: O esmaecer das coisas

por Tamara Klink

“Todas as coisas pelas quais me sinto atraída estão prestes a desaparecer”, afirmou certa vez Tacita Dean. A artista tem, de fato, um fascínio pelo limiar da ruína, notável tanto no mote de suas obras quanto nos próprios suportes de que ela se utiliza. Estes servem como forma de resistir e, ao mesmo tempo, refletir sobre a essência por trás da construção de toda e qualquer memória: o desejo de combater a própria ameaça do tempo, do esquecimento. Dele surge a criação de arquivos, a consagração de lugares e as efemérides. Não à toa, o uso do filme, por seu caráter documental e ao mesmo tempo ilusionista, tornou-se uma das maiores ferramentas de Dean.

Essa escolha fez com que a britânica nascida em Canterbury (1965) venha sendo enquadrada por críticos como nostálgica diante de uma inevitável supremacia digital. Dean, que é considerada uma das artistas mais importantes de seu país e que só este ano ganhou mostras no Pompidou (Paris, França) e no Shrem Museum of Art (Califórnia, EUA) e atualmente possui duas exposições individuais em importantes instituições (Still Life, que ocupa a National Gallery e a National Portrait Gallery até 28 de maio, e Landscape, na Royal Academy of Arts até 22 de agosto, em Londres), rebate a crítica dizendo que nostalgia é uma saudade de um tempo passado, quando seu trabalho trata do presente.

Ela considera tanto os filmes 16 e 35 mm quanto a pintura e o giz — presentes na grande maioria de suas exposições — meios que, se bem “seguidos” pelo artista, podem trazer algo totalmente inesperado, “um cachorro que cruza um campo seguindo seu próprio nariz”, como ela definiu ao The Guardian em março deste ano. Uma troca que não ocorre com a mídia digital, na qual “nada pode realmente acontecer que não seja planejado”, ela completou na mesma entrevista. Seu trabalho se efetua de maneira intuitiva, exatamente como ela descreve. Observá-la trabalhando concentrada em seu laboratório, em meio às milhares de fitas de negativo as quais ela corta, cola e pinta, um a um, confere uma coerente imagem a essa afirmação.

Sob a premissa de seguir o próprio meio até seu fim, a artista encena verdadeiros “réquiens” em loopings contínuos de quadros longos e lentos realizados com a câmera estática, conferindo uma atmosfera contemplativa aos seus filmes, que hoje já somam mais de quarenta, todos produzidos em 16 mm. Ela assume que a lentidão recorrente é, em parte, determinada pela evolução de sua artrite crônica, mas também deixa claro que, de longe, essa condição agrega qualquer significado a eles.

Em meados dos anos 1990, a britânica lançou uma série de filmes que traziam como pano de fundo a paisagem marítima — influência natural do mestre conterrâneo J. M. W. Turner, cujas pinturas eram dominadas pelo mesmo gênero —, sendo os mais notáveis aqueles que aludem à trágica desventura do velejador amador Donal Crowhurst, como Delft Hydraulics (que registra as últimas ondas produzidas num laboratório marítimo na Holanda) e Disappearance at Sea, ambos de 1996. Este segundo, que registra os últimos faróis da Inglaterra e da Escócia, foi o que fez a artista ser indicada, em 1998, ao Turner Prize, um dos mais importantes da arte contemporânea mundial.

De sua produção nos anos 2000, destaca-se Kodak, filmado em 2006 na fábrica da marca, a última a produzir filme 16 mm na Europa, em Chalon-sur-Saône, na França. Dean precisava de rolos para sua câmera e foi informada por um vendedor em Nova York que aquela era a única que ainda os produzia. Munida de seus cinco últimos rolos, ela decidiu gastá-los para registrar a fábrica, partindo da ideia de um filme que representaria “seu próprio estoque obsoleto em si mesmo (…), um meio que está prestes a ser exaurido”, como definiu para a revista Kultureflash. Em 44 minutos, Dean se vale tanto do preto e branco quanto da cor para apresentar close-ups do maquinário, sequências de seus já conhecidos quadros estáticos de espaços misteriosos, alternados com vistas abertas que capturam a rotina dos operadores, encerrando com uma imagem da área, já desértica, destinada à embalagem do produto.

Mais adiante, ela definiria a produção de Kodak como uma homenagem ao filme analógico e um lamento por seu desaparecimento, além de ser a captura de uma bela jornada que, se não estivesse em incipiente obsolescência, ela jamais teria o interesse em registrar. Sua paixão pelo esmaecer das coisas sempre a leva a criar essas belas despedidas. Esta acabou sendo uma ação premonitória da artista, que não tinha conhecimento de que a a fábrica anunciaria o fim da produção do filme 16 mm poucas semanas depois de sua visita. No ano seguinte, ela seria finalmente demolida. Kodak traz a mesma melancolia do limiar do desaparecimento presente em produções anteriores, mas acaba se sobressaindo por trazer como protagonista algo muito caro à artista.

Essa sensação de luto que envolve o prelúdio da perda pode ter sido também o que a motivou a examinar, nos últimos quinze anos, a terceira idade de artistas como o radical italiano Mario Merz — ao qual a artista atribui certa semelhança com seu próprio pai, falecido em 2010, aos 88 anos —, o coreógrafo norte-americano Merce Cunningham, bem como Julie Mehretu, Claes Oldenburg, Cy Twombly, entre outros. Uma série de nove deles estará na mostra Still Life, na National Gallery. Com eles, a artista parece completar sua mensagem ao mostrar que o filme pode servir como metáfora da vida: mesmo que por um breve momento possa se criar a ilusão de um tempo suspenso, todas as coisas ligadas a ele terão um começo, um meio e um fim. Quando um jornalista a questionou com qual frequência a “narrativa da jornada” levava à morte em seu trabalho, ela respondeu: “Bem, sempre. E esta é a parte mais aterrorizante.”

#29ArquivoCulturaLiteratura

O futuro dos museus está dentro de nossas casas

por Guilherme Abud

Existe uma história a se contar toda vez que acontece um encontro. Há rastros desse encontro. Memória. Arquivo. Fetiche. Notícias humanas.

Em O Museu da Inocência, o escritor turco Orhan Pamuk, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 2006, narra uma história de amor impossível entre dois primos que acaba se transformando em uma adoração fetichista dos objetos relacionados a essa paixão. Na história, o protagonista coleciona obsessivamente coisas que foram tocadas por sua amada. Em paralelo, o escritor colecionou esses objetos, advindos de mercados de pulgas e casas de amigos. Objetos estes que estão abrigados no “Museu da Inocência”, em Istambul, em um espaço dedicado à memória dos personagens do livro.

Escondido perto da Avenida Istiklal, pulmão da moderna Istambul na costa europeia, um prédio vermelho abriga um museu curioso. No museu, não há paredes brancas, obras de arte famosas, tampouco objetos raros. Há uma coleção de objetos ordinários, comuns, rastros físicos de uma cena de amor – como, por exemplo, uma parede dedicada a abrigar mais de três mil cigarros dispostos em ordem com uma etiqueta de identificação. São pistas da angústia de um amor mal resolvido. O valor não está na natureza de cada objeto em si, mas sim em sua capacidade de despertar e trazer à tona todos os sentimentos e sensações ali colocados.

A criação do “Museu da Inocência” nos propõe uma reflexão profunda sobre o potencial dos museus em contar histórias nessa escala, de seres humanos individuais. Construções monumentais, que acabam distanciando o público, dariam lugar a cenários da vida real com objetos ordinários que lhe dão cor de vida – assim como nossas casas, a exteriorização do nosso universo particular, o lugar onde colecionamos aquilo que escolhemos, que colocamos a nossa energia e usamos de abrigo e proteção. Seriam nossos próprios lares os futuros museus?

Em seus estudos de Análise da Imagem, Walter Benjamin estabeleceu uma relação em que a imagem, como obra de arte, depende de sua aura, do seu valor de culto, da sua autenticidade e unicidade para existir. Relacionando esse conceito com o valor afetivo que colocamos em objetos tão próximos e presentes no nosso dia a dia, podemos considerar que tais objetos são dotados de aura e valor de culto. Uma releitura contemporânea do “ready-made” de Marcel Duchamp.

Se os museus são territórios de experiência e reflexão onde podemos repensar histórias e memórias, espaços que nos conectam com mundo, é urgente usar esses espaços para se aprofundar em universos particulares.

Os grandes museus sempre trataram de observar as civilizações, os Estados, a sociedade e os conglomerados, mas nunca o indivíduo em particular. Observamos as passagens históricas sem nos ater aos seus personagens, estudamos as guerras sem nos aprofundarmos a respeito da vida dos soldados que ali estiveram. O que sabemos sobre suas famílias, seus amores, seus desejos e medos?

Entrar no profundo do ser humano é compartilhar sentimentos e emoções em comum. É nos aproximarmos. Dar lugar ao íntimo em vez de abrigar a impessoalidade do coletivo é extremamente necessário para compreender o mundo de maneira mais humana. Assim, podemos mergulhar naquilo que há de mais singelo: nossas histórias pessoais, nossas memórias, coleções de uma vida dotadas de significado. Se há vida, há arte.