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#39Yes, nós somos barrocosArteFotografia

Viagem pitoresca pelo Brasil

A ideia principal do trabalho que tenho feito sobre as florestas brasileiras – Amazônia e Mata Atlântica – é a de criar um diálogo com os artistas europeus que vieram ao Brasil para retratar pela primeira vez a exuberância da floresta tropical.

Fico imaginando a emoção e a surpresa desses artistas viajantes ao se depararem com uma floresta tão grandiosa, diversificada e diferente do que estavam acostumados a ver. É esse sentimento que tento resgatar, fazendo um trabalho, exatamente dois séculos depois, com uma tecnologia atual – a fotografia digital. Busco recriar uma volta no tempo, para transmitir a sensação de descoberta desses locais sublimes. A minha inspiração se deu muito a partir dos trabalhos de Debret (Forêt vierge sur les rives du Paraíba, 1834; Vallée dans la Serra do Mar, 1834), Rugendas (Forêt du Brésil, vers 1829: Forêt vierge près de Mangueritipa, 1835), Hércules Florence, Martius e, principalmente, do desenhista, cientista e arqueólogo francês conde Charles Othon Frédéric Jean-Baptiste de Clarac, de 1816. Este último, por incrível que pareça, fez o primeiro registro da floresta brasileira (La Forêt Vierge du Brésil), e para mim, sem dúvida alguma, a imagem mais espetacular e bela feita até hoje de uma floresta tropical. Creio até ser impossível que alguém um dia possa fazer uma imagem de floresta tão maravilhosa como esta.

O fazer deste ensaio fotográfico para mim é extremamente prazeroso, pois passar o dia todo caminhando no meio da floresta é uma forma de se reconectar com a natureza, algo ainda mais importante para mim, que sou uma pessoa urbana, tendo vivido sempre em grandes cidades. E nessas inúmeras caminhadas, tive muitos momentos emocionantes: um deles foi quando me deparei com uma recém descoberta Figueira-brava centenária, uma árvore gigantesca com raízes tabulares, formando um desenho maravilhoso. Essas árvores possuem uma energia incrível, elas impõem e merecem respeito, pois são como deuses da floresta – devem ser reverenciadas e contempladas. 

Espero que com estas imagens eu consiga também emocionar as pessoas, e que de alguma forma esses sentimentos ajudem na melhor conscientização sobre a importância de mantermos estas florestas de pé.

“Busco recriar uma volta no tempo, para transmitir a sensação de descoberta desses locais sublimes.”


A viagem de Cássio Vasconcellos

Por Daniela Bousso

A obra de Cássio Vasconcellos caracteriza-se como um trabalho de ultrapassagem das fronteiras entre fotografia e outros meios, e insere-se em um campo pós-disciplinar de operações artísticas. O artista enceta o  experimental como ponto de partida e designa um território de atuação que reúne técnica e subliminaridade. O seu modo de experimentar as imagens consiste em uma reorganização do imprevisível numa minuciosa trama de relatos. Na mediação imposta pela revisão constante, eis que surge o resguardo de um patrimônio vivo que subjaz em franca releitura, com a persistência da técnica aliada ao universo do fantástico. Ao inspirar-se nas imagens pictóricas produzidas pelos artistas viajantes que estiveram no Brasil no início do século XIX, visita florestas da Amazonia, a mata Atlântica de São Paulo e do Rio de Janeiro e produz uma série de tomadas in loco. Esta é uma escolha, uma maneira de produzir uma ecologia cultural, de reconstruir um sistema de identidades e criar novas imagens, recuperando parte da sua ancestralidade: o seu tataravô era Ludwig Riedel, o botânico que foi diretor da Seção de Botânica do Museu Nacional do Rio de Janeiro e integrou a expedição Langsdorff na década de 1820. 

Uma minuciosa pesquisa antecedeu as tomadas fotográficas que constituem a série “Viagem Pitoresca pelo Brasil”,  baseada, entre outras,  na obra “La foret vierge du Brésil”, de autoria do Conde de Clarac.  Nesta série absolutamente planejada, ele opera vários processos de transformação da imagem: ao fotografar, a matéria-prima é captada para acertar o processo posteriormente. Planejamento, seleção, interferência e seleção final, são etapas que respondem perfeitamente ao seu repertório atual e o seu desejo é remeter-nos à mesma sensação de emoção que os pintores viajantes como Rugendas, Taunay, Debret, Hercules Florence, Martius e Clarac tiveram ao visitar o Brasil. 

Para chegar a estas imagens, o artista percorreu caminhos arriscados, que ultrapassaram o que deve ser feito – em teoria – com o meio fotográfico e com o digital, este é o campo pós-disciplinar de sua ação. 

Ao retomar a imagem, ele produz a impressão de um gesto litográfico: desenha no computador folha por folha, a luz, são horas a fio desenhando – um processo digital artesanal onde a ação do dispositivo é completada manualmente – como nos primórdios da fotografia, quando os fotógrafos desenhavam sobre o papel fotográfico para ajustar contornos, cores.

Nesta reencenação da obra de Clarac, Cássio evoca a nossa consciência sobre a crise ecológica, sobre as questões de transbordamento do mundo atual. Ao reorientar o seu processo fotográfico, ao mesmo tempo em que se renova, produz ficção e fabulações. Por meio destas florestas, ele nos conduz a uma ecologia cultural a respeito do possível apagamento de um universo intocado, quiçá, por suposto em risco de dissipação, matéria de interrogação suspensa.

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Barroco: substantivo masculino
1. Pérola de formato anômalo, caprichoso.
2. História da Arte: na pintura, escultura, arquitetura e artes decorativas, estilo, com elementos do alto Renascimento e do Maneirismo e ligado à estética da Contrarreforma, nascido em Roma c.1600 e cujas características básicas são o dinamismo do movimento com o triunfo da linha curva e (esp. na escultura e pintura) a busca da captação das reações emocionais humanas [Cedo internacionalizado, o estilo ganhou traços específicos em cada país.].

Dinamismo. Movimento. Triunfo da Curva. Captação das reações emocionais humanas. Contraste. Sagrado-Profano. Características do barroco enquanto estilo inserido na História da Arte brasileira e mundial, mas que em 2021 podem ganhar outros contornos. É preciso aquecer o barroco. É necessário estabelecer conexões entre a história da arte estudada nas universidades e a história da arte que é feita nas favelas, quebradas e periferias. O barroco está aqui. Desfragmentado, renomeado, mais preto, mais vivo. Ouso aqui pensar o barroco do meu lugar. De uma mulher negra e favelada, que pensa e escreve arte desde a favela. 

Do  Dinamismo:

Podemos entender que dinamismo é por essência a junção de forças que geram movimento. É esta uma das características do estilo barroco. Assim como era também uma das características de Dona Orosina Vieira. Vista por alguns historiadores como a primeira moradora do Conjunto de Favelas da Maré (Rio de Janeiro), Orosina construiu residência no Morro do Timbau (primeira favela da Maré), com madeiras sobre a área que ainda era mangue. 


Dona Orosina Vieira, considerada como uma das primeiras moradoras do Conjunto de Favelas da Maré.

No mesmo contexto, surgiram outras casas e núcleos familiares, intensificando o fluxo populacional da região, que hoje abriga mais de 140 mil pessoas. De uma casa sob o manguezal para um dos maiores conjuntos de favelas do país, o dinamismo foi palavra chave a partir da construção de mulheres e famílias essencialmente negras. O dinamismo estético apresentado no barroco também pode ser visto em estéticas faveladas. A pulsão do movimento é constante, desde a arquitetura, passando pelas gambiarras territoriais e desembocando em uma série de tendências que, como ondas, influenciam a sociedade como um todo. Biquíni de fita, alongamentos de unhas, descoloração de cabelos, “falhas” na sobrancelha não nos deixam mentir. A favela constrói uma visualidade dinâmica.

Do Movimento:

No livro “Cabeças da Periferia: Taisa Machado e a Ciência do Rebolado”, a atriz, pesquisadora e escritora conta que:

[…]eu tava no baile, e tinha um show de um MC que eu não vou lembrar  nome, e tinha uma dançarina com ele. Era um momento muito louco, era 2013, pegando fogo, e tinha um evento enorme no Complexo do Lins. Eu ia naquele baile todo sábado, e todo sábado devia ter umas 15 mil pessoas. Naquele dia tinha até mais gente, tinham duplicado o baile. […] Nessa noite tinha o tal do show desse MC com a dançarina. Ela era a famosa gostosa. Sabe quando você joga no Google “gostosa”? Aparece a foto de uma mulher tipo aquela. E ela tava de burca. Não uma burca ortodoxa, mas uma burca de show de funk, uma burcazinha que tapava só a cara. E dançando ela deu uma surra de bunda num cara. Surra de bunda é quando a mulher apoia os pés no ombro do cara e fica batendo com a bunda no rosto dele. Ela dançou pra caramba e os bandidos ficaram tão felizes com o show daquela mulher, que foram todos pra frente do palco. Eu tava lá na frente também. […] Eu não sei como me narrar nesse momento, mas com certeza eu tô trabalhando pra me narrar como eu narro essa mulher do baile.”

O causo narrado pela pesquisadora nos apresenta uma série de camadas. A favela. O baile. A dança. A burca. A surra de bunda. Todas elas permeadas e costuradas pelo movimento. Enquanto escrevo esse texto, observo as crianças correndo na minha rua, aqui no Parque União. Ao mesmo tempo ouço o som na rua paralela à minha. É sexta-feira, dia de baile do PU. As motos cruzam a favela, aceleradas na mesma via em que andam os pedestres, uma vez que por aqui calçada é raridade. Dizem que favelas como Nova Holanda e Parque União não dormem. Eu diria que não são apenas as duas. Diria que as favelas de forma geral não dormem. O indo e vindo infinito faz com que o movimento seja palavra essencial para pensar favela. Esse cotidiano insone e vivo reflete a necessidade de movimento de territórios, onde a inventividade se impôs como condição para a manutenção da vida.

Uma dançarina de funk de burca estabelece uma relação estética quase impensável. Mas esta relação se materializa quando falamos de barroco. Especialmente do barroco relido e revisto desde a favela. A conversa entre sagrado e profano ganha outro tom com o causo de Taisa. E é esse tom que me interessa.

Do Triunfo das Curvas:

Outra marca do barroco são as curvas, que sinalizam também o movimento, a dúvida, a fluidez. Porém, vivemos uma sociedade que por muitas vezes elege a linha reta. A firmeza, a dureza, a falta de flexibilidade e de “recheio”. O oco e reto. Assim, aqueles que apresentam a curva em suas ideias, corpos e modos de viver, acabam por ser marginalizados. Numa linguagem contemporânea a palavra “curva” virou sinônimo para falar de corpos (especialmente de mulheres) que fogem do padrão magro. Esses corpos muitas vezes são exotizados ou rejeitados. A sociedade brasileira ainda renega a curva.

Corpo-curva (Acervo pessoal da autora)

Em contrapartida, observo uma outra epistemologia da curva se formando em favelas e periferias, assim como em espaços LGBTQIA+. Formas outras de ver o mundo e de se relacionar com os corpos-curvas. Entendo aqui o corpo como plataforma de viver e de produzir arte. E as favelas são pioneiras no processo de fazer do corpo uma tela.

As unhas têm sido utilizadas como forma de demonstração de poder, autoestima e de afirmação ao longo da história da humanidade. No Egito Antigo – cabe lembrar que o Egito está situado em África –, o uso de unhas de marfim sinalizava status social, além da beleza estética. No Brasil contemporâneo, as extensões em materiais conhecidos como “acrigel” ou “fibra de vidro” marcam uma linguagem visual própria. Nesse quesito, a cantora Alcione aparece como uma referência destes corpos-plataforma artística, que permitem que os desejos, histórias e cores se apresentem como visualidade. Em programa de TV, Alcione relatou que “O povo lá em casa diz que gosto de um balangandã, de um colorido, é aquela raiz africana que a gente tem. Por isso essas unhas”. Alcione reforça a relação – não óbvia – que levanto aqui. O barroco tem muito a aprender com os balangandãs, com as “raízes africanas” e com as estéticas faveladas.

Cantora Alcione e suas unhas.

Da Captação das reações emocionais humanas:

O livro “O afrofunk e a ciência do rebolado” traz ainda uma reflexão sobre “o artista que se desenvolve na guerra”, a partir da mesma história citada por Taisa anteriormente. A dançarina de burca não interrompeu sua performance nem durante as rajadas de tiro disparadas durante o baile. A autora afirma que “Não tinha nada melhor do que o que aquela mulher tava fazendo na nossa cara, no meio de 15 mil pessoas.” A observação de Taisa, assim como o olhar de muitas e muitos favelados age como este captador das reações emocionais humanas. Estamos falando aqui de uma barroquice favelada ou de uma favela barroca, pensando que esses espaços não devem ser romantizados. Mas a proposta é que se veja também a favela como lugar de liberdade. Liberdade inclusive para ser barroca. É nessa liberdade que residem as emoções humanas, sentidas, vistas e vividas em intensidade por aqui. 

Esta ousadia conceitual de pensar o barroco a partir da favela – e vice-versa – vem de um desejo de nos provocar enquanto sociedade.  Vem da ânsia de ver mais favela na história da arte clássica. De rever os padrões de identidade nacional e os dogmas da Academia. Por isso, esse texto é um desejo. Desejo aqui um barroco com balangandã. Um barroco da gambiarra, que se constrói a partir de rolos de fio de “gatos” de luz. Um barroco forjado no movimento de expansão das favelas. Um barroco de curvas de mulheres lindas e pretas tomando sol na laje. Um barroco cada vez mais quente. Cada vez mais vivo.

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Mirar o Brasil para além do sincretismo: o vasto horizonte de palavras e práticas

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O Barroco brasileiro enquanto experiência estética tem na coexistência de elementos sagrados e profanos uma de suas características, a isso é atribuída a marca sincrética. Contudo, é importante frisar que foram indígenas catequizados e escravizados de África os artistas que, mais diretamente contribuíram para a singularidade do barroco colonial brasileiro. Apropriações estéticas e epistêmicas, foi assim, do assenhoramento desses saberes e práticas afroameríndias que se constituiu a expressão artística “genuinamente” brasileira.  É durante esse mesmo barroco que ocorrem um sem-número de experiências culturais e políticas: lundus, emboladas, congadas, dança do Chorado, catiras, as irmandades pretas, os quilombos.

De antemão, é preciso salientar que o sincretismo não é de uso exclusivo do campo das religiosidades, mas que estende-se genericamente ao campo da cultura.  Dito isto, faz-se necessário também revisitar o termo. A ideia de construção societária do Brasil sob o signo do sincretismo foi responsável pela naturalização de um conjuntos de violências simbólicas e, sobretudo, físicas. A marca colonial decalca indelevelmente corpos, saberes e mentes. Mãe Stella de Oxóssi, na década de 1980, estabeleceu uma ruptura com essa terminologia ao afirmar que o sincretismo não é mais necessário, reivindicando o protagonismo do candomblé, rompendo suas ligações compulsórias com o catolicismo. Em Afrografias da Memória, Leda Maria Martins, ao observar alguns folguedos de origem de povos sequestrados em África, chama a atenção para a insuficiência do sincretismo na apreensão dos elementos culturais moventes dos reinados negros e congadas. Importante frisar que tratam-se de duas mulheres pretas pensadoras falando sobre um mesmo fenômeno. É a partir dessas considerações que o sincretismo se bota numa encruzilhada, que faz o termo qualificar não apenas processos de domesticação, como problematização que enredam revides, contudo é preciso ir para além do termo. 

Notem que a ideia de sincretismo estabelece uma tentativa de nomear fenômenos tão distintos a partir de fora, sem permitir efetivamente que aqueles que os realizam possam dizer por si mesmos o nome de seus saberes e práticas. Mais do que um vocábulo designativo, é preciso compreender essas cosmo percepções que ocorrem no vasto território brasileiro, em suas complexidades e singularidades. É preciso desprender-se da sanha eurocentrada, colonial, oficial e pretensamente universal de dar nome a tudo, há coisas que sequer nome têm. 

Se há algo a ser dito, é que as diversas matrizes culturais do contexto brasileiro operam numa tríade ética/poética/estética mesmo sem conhecer esses conceitos tão ocidentais. Assim, vale ampliar o repertório de vocábulos, fazer uso do pretoguês de Lélia Gonzales, das oralituras de Leda Maria Martins, dos quartos de despejo de Carolina Maria de Jesus, do retorno à casa de Nêgo Bispo, de aquilombar-se como propõe Beatriz Nascimento, da reza de Doninha do Tanque Novo, das ervas da Jurema. O sincretismo cada vez se mostra insuficiente para apreender a complexidade dessas experiências que vão muito além da religiosidade, ou do plano da cultura e transcendem à existência desses corpos que foram historicamente invisibilizados, juntamente com seus afetos, memórias e saberes. 

Bel Santos Mayer, num exercício de chamamento a esses afetos-memórias-saberes, propõe uma retomada das ideias de colo, casa e quilombo como instâncias de mediação necessárias para fruição das complexidades dessas experiências. É nesse exercício meticuloso de observação-acolhimento de vários entes (vivos e não-vivos), que constituem uma prática que se é possível avançar para além da visualidade apresentada, daquilo que o olho consegue apenas enxergar. Os povos originários do Brasil e os sequestrados de África sempre souberam da importância do estar em comum, da comunidade, e diferentemente da subjetividade europeia, que atribui a si a condição de sujeito e tudo que lhe é diferente, o estatuto de objeto; ancestrais, a vegetação, as águas, os bichos, tudo isso é preciso para o funcionamento de uma comunidade. 

De tempos em tempos, expressões de pretensão totalizante tornam-se populares e estabelecem a agenda de discussão, especialmente no campo das artes, para além dos espaços acadêmicos. O mais recente talvez seja o tal “Brasil profundo”, termo raso que, geralmente é atribuído aos lugares em que o brasileiro sudestino (no masculino mesmo) desconhece e se espanta ao ver e ter que reconhecer sua potencialidade estética; na incapacidade de apreender a miríade complexa dessas tramas culturais, reduzem-nas a um termo que parece simpático, mas que, por meio de um ardil linguístico, operam uma lógica em que os dominantes obtém dos dominados o consentimento para sua dominação.

Há momentos em que é preciso descansar as palavras, deixar nossas outras sabenças falarem, inclusive aquelas que desconhecem o vocabulário formal. A Totonha de Marcelino Freire diz: “Pra mim, a melhor sabedoria é o olhar na cara da pessoa. No focinho de quem for. Não tem linguagem superior. Deus que me ensinou. Só quero que me deixem sozinha. Eu e minha língua, sim, que só passarinho entende, entende?”. Também isso de entender parece uma empreitada colonial entre a fruição estética e a vivência cotidiana. O Brasil para além dos centros não prescinde de compreensão ou nomenclatura, tampouco de ser entendido. Esse Brasil existe e é potente à revelia da tentativa de classificação, assim sempre foi e assim permanece, acapoeirando seus modos de pensar e fazer, deixemos para lá quem não quer ser perturbado, no querer apenas existir na potência de ser. 

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Wesley Assumpção, também conhecido como Mestre Wesley, é o mestre de bateria do Grêmio Recreativo Escola Primeira de Mangueira. Oriundo da comunidade, começou desde cedo a desenvolver sua linguagem musical ao participar do “Mangueira do Amanhã”, projeto social fundado pela cantora Alcione, e como integrante do grupo de percussão Funk’n’Lata. Recentemente, o músico teve a sua trajetória levada às telas no filme “Mangueira em 2 tempos”, de Ana Maria Magalhães. 

O senhor poderia contar um pouco da sua história para quem não lhe conhece? Quem é o Mestre Wesley?

O Mestre Wesley é um rapaz, hoje, de 42 anos, nascido e criado no morro da Mangueira. Veio de uma família muito complicada, porque morar numa comunidade significa fazer um esforço para sair do caminho da criminalidade, e isso é muito difícil. E, na minha época, era mais difícil ainda, porque tinha a criminalidade dentro de casa. Meu pai era traficante do morro da Mangueira e, ao mesmo tempo, presidente da bateria da Mangueira. Então, quando eu cheguei na Mangueira, em 1987, vim através dele, porque ele queria que um dos filhos não entrasse no caminho da criminalidade e escolhesse alguma coisa na vida para se tornar uma pessoa do bem, uma pessoa positiva, uma pessoa que daqui pra frente poderia ser orgulho para alguém da família. E essa pessoa fui eu. Vim para a bateria da Escola quando era muito novo. No mesmo ano, a Alcione fundou a Mangueira do Amanhã, onde eu também me inscrevi e nela permaneci por muitos anos. Foi nela que me formei professor, diretor de bateria e, hoje, mestre de bateria. Sou alguém que lutou por muita coisa. Perdi meu pai no ano seguinte,  em 1988, morrendo como indigente, sem ser enterrado. Quando isso aconteceu, a família toda pensou que o filho mais velho iria se revoltar

para tentar vingar a morte do pai, e foi totalmente diferente desde o momento em que ele me trouxe para o mundo do carnaval – porque ele achava que eu tinha que viver alguma coisa dentro desse ambiente, dentro da música –, e hoje eu sou orgulho para a família. Hoje eu sou um cara que dá palestras sobre percussão para o Brasil inteiro.

Fizeram um filme sobre a minha história. Quando eu fui na pré-estreia do filme e me percebi contando a história que eu vivi, isso não tem preço, porque você passa a agregar algo na vida das pessoas. Hoje, tenho um projeto aqui de escolinha para a comunidade, mas perdi a metade dos alunos, porque é difícil você pegar uma criança e trazer para dentro da quadra para tocar porque eles não querem mais isso. Na minha época, não. Eu vinha para cá e ficava igual maluco, queria aprender. Hoje, se você não incentivar as crianças, eles não vêm para a aula. Antigamente, a Mangueira não tinha os cursos que tem hoje. Única Escola do Brasil que tem um projeto social para as crianças da comunidade. E você vai olhar os projetos e se tiver 10 crianças da comunidade, isso é muito. Se esse oportunidade existisse na minha época, eu teria me formado um maestro no Villa-Lobos, um músico profissional do Theatro Municipal, da Orquestra Sinfônica Brasileira. Eu fui lutando contra a barreira, contra a resistência, para chegar onde eu cheguei. Quando eu junto as crianças pra falar sobre percussão nas aulas de bateria, eu comento como é importante a bateria na vida de um ser humano. A Mangueira me levou pra conhecer o mundo, por que você não pode? Costumo dizer para eles o seguinte: “Se você não acreditar em você, ninguém vai acreditar”.

Pensando a música na Mangueira, como ela chegou na sua vida? Em que momento o senhor se lembra que pensou “Eu acho que a minha pegada é a música”? 

Em 1988, quando eu perco meu pai. Foi um baque na família. São três filhos. Eu, meu irmão e minha irmã. E logo que eu perdi meu pai, como eu era o filho mais velho, eu precisava sustentar a família, porque meu pai era traficante, mas não deixou legado nenhum. O máximo que ele deixou foi uma casa. Meu pai era muito difícil, minha mãe não podia botar a cara na janela que ele batia nela. Então ela não podia sair de casa. Como eu era o mais velho, eu vinha pra dentro da quadra, ficava olhando os ensaios. Eu desfilei e estreei na bateria, a gente tocando, na Mangueira bicampeã do carnaval, com meu pai ainda presente na bateria. No ano seguinte, aconteceu o que aconteceu e eu tinha que dar um jeito de levar um sustento para dentro de casa. Botei na minha cabeça que eu tinha que dar um jeito da música ser esse sustento. Aconteceu muita coisa ruim? Muita barreira? Aconteceu. Mas é o que eu falo: nunca desista de você. E eu falava “Deus, se eu te fiz alguma coisa de errado, o senhor vai me punir. E se eu não fiz, eu vou até o final e eu tenho certeza que uma hora o senhor vai me abençoar”. Quando eu tinha uns 10, 11 anos, comecei a participar da Mangueira do Amanhã. De repente, a Alcione monta um grupo de 30 ritmistas para tocar, durante três meses no Teatro Carlos Gomes, fazendo uma apresentação durante o show dela. Só os melhores, os mais destacados da Mangueira do Amanhã, e eu fazia parte disso. Aí tinha uma salariozinho. No final do ano, ela mandou cada um escolher dois presentes. Eu escolhi uma bicicleta e um videogame. Então ali as coisas começaram a caminhar e, meados de 1993, 1994, a escola principal me chama para virar um repique bossa do grupo de elite da bateria principal. Aí é onde eu começo a viajar o Brasil inteiro com a Mangueira, com a bateria, fazendo apresentações. O dinheiro começou a ser melhor do que quando eu iniciei, menor de idade. Então eu começo a ganhar dinheiro com a Mangueira viajando. E tinha um show da Mangueira, que em um momento entravam Dona Zica, Dona Neuma, Delegado, Mocinha e eu fazia o menino da Mangueira. Eu entrava com um pandeiro, no meio desses artistas todos, com a música da Mangueira. “O menino da Mangueira, recebeu pelo natal, um pandeiro…” [cantarolando]… Além de eu fazer parte desse papel que era o menino da Mangueira, eu fazia parte do repique. Então eu ganhava dois cachês. Eu chegava em casa e “Mãe, tá aí o sustento da família pro mês”. Foi aí que percebi que podia me sustentar e viver com música. De 1996 para 1997, o Ivo Meireles junto com o Alcir Explosão – que foi nosso mestre aqui e perdeu a vida para o tráfico – disseram: “O que tu acha da gente montar surdo, caixa, repique, tamborim, ganzá, botar baixo, guitarra e sopro?” Daí surge o Funk’n’Lata, e em 1998 faço a minha primeira viagem internacional, durante a Copa do Munda da França.  

Você tinha quantos anos? 

Eu tinha 17 para 18. Hoje, eu olhando as fotos – eu tenho essas fotos guardadas – eu falo “Caraca! Eu tava na Copa do Mundo de 1998! Eu toquei dentro do estádio da França, eu fui para Paris!” Eu fui para vários lugares do mundo com 17, 18 anos. Então ali a minha vida começa a andar. Quando eu volto da turnê internacional, eu volto com bastante dinheiro. Eu reformo a casa da minha mãe, dou uma estabilidade pra ela, mas eu tenho uma dor no meu peito, o meu irmão do meio vira traficante. Entra pra vida do crime, porque ele me vê, músico, voltando cheio de roupa importada, e o que que ele faz? Não vou ser igual meu irmão, mas quero ter o que o meu irmão tem. Com 12 anos meu irmão entra para o tráfico e não tem como tirar. Hoje ele é empresário, vive bem e tem orgulho do que faz, mas ficou três anos e sete meses preso. Hoje a família tá estabilizada. Perdi a minha mãe com essa pandemia. Tem um ano e seis meses. Mas o Funk’n’Lata ajudou a me estabilizar. Quando volto da turnê, recebo o convite  para virar o primeiro mestre de bateria da Mangueira do Amanhã, onde eu fico como mestre principal até 2003. Em 2006, o Russo me chama para ser diretor da escola principal e fico até 2010, quando o Ivo me chama para tocar na banda dele e eu me afasto da Mangueira como ritmista porque abriu outros leques, outros ares e eu vou conhecer outras formações musicais diferentes. Quando o Ivo assume presidente da Mangueira, ele me chama para o o carnaval de 2012, que foi o do Cacique de Ramos. Ele precisava de alguém para dirigir o carrinho de pagode junto com ninguém menos que Alcione, Jorge Aragão, Xandi de Pilares, Duda Nobre e Sombrinha e Luizito, quena época era nosso intérprete. A responsabilidade era muito grande e, após o desfile, entendi que eu estava pronto para qualquer desafio que me dessem dentro da Mangueira. Em seguida me afastei da Escola e em 2018, quando já havia desistido de um dia ser mestre da bateria da Mangueira, até pela minha idade avançada, o presidente me liga e pergunta quais os planos que eu tenho pra bateria.“Não entendi qual a pergunta do senhor”, eu falei.  “Porque eu vou trocar e eu tô pensando em você, mas eu preciso saber a proposta que você tem para a bateria. Vamos almoçar?” Eu fiquei a segunda-feira inteira sem dormir, só pensando no que eu ia falar para o presidente. Como eu desfilo aqui desde 1987, conheço todos os problemas que temos. Eu tenho tudo anotado e guardado em uma pasta. Quando chego no restaurante, eu jogo a pasta na mesa. “O projeto da bateria é esse aqui! Tem que mexer aqui, fazer isso, consertar aquilo, etc”. O presidente me anuncia mestre da bateria e eu sofro uma grande rejeição da comunidade e dos músicos, pelo tempo que fiquei afastado. A bateria chegou a rachar para fazer boicote para me tirar. Estávamos há 18 anos sem tirar nota máxima na bateria. Isso me mobilizou muito, recebi como um desafio pessoal. Eu começo a fazer um trabalho de formiguinha. Mexo no andamento, recuando ele. Mexo nas afinações, no desenho dos tamborins, altero a educação musical. Passo um pouco da minha experiência, de que quem ganha a nota é sempre a Escola, nunca você. Eu fui para a Marquês de Sapucaí com metade da bateria contra mim. Até que chega o carnaval, eu pego o megafone e falo para eles: “Ó, quem tá aqui não é o Wesley, é o comandante do barco, a nota não é minha, a nota é de vocês. Então pensem bem no que vocês vão fazer depois daquele portão ali, porque vocês não tão me sacaneando, vocês tão sacaneando a agremiação Mangueira. Então vocês têm que respeitar primeiramente a Estação Primeira de Mangueira, não a mim. Mas se vocês quiserem sacanear é um direito de vocês. Pensem bem no que vocês vão fazer porque o que eu tinha que fazer por vocês eu já fiz. O que eu tinha que fazer pela Mangueira eu já fiz, foi chegar até aqui com vocês.” E a gente entrou naquela avenida. Quando chega quarta-feira de cinza, a Mangueira tá indo muito bem nas notas. Na hora do quesito bateria, acaba a luz dentro da quadra e cai um toró d’água que fica por aqui na canela. E detalhe: acaba a luz na penúltima nota de bateria. Como é que eu vou ver a nota? Não tinha telefone com televisão digital. Um desespero danado. Eu já tinha escutado a primeira e a segunda nota, que foi 10, precisava de mais duas para tirar a nota máxima depois de 18 anos e dar o campeonato. Aí passou um menino, com telefone com televisão digital. Tomei o telefone da mão dele, já tinham dado a terceira nota 10, faltava o último jurado. Aí eu tô com o telefone dele na mão, tem uma poça de lama na minha frente, eu parado, com o telefone dele na mão, “quesito bateria, último julgador… Estação Primeira de Mangueira… – o maior silêncio – 10!”. Quando ele dá o 10, eu entrego o telefone pro menino e me jogo na poça de lama, da água da chuva, sabe? Pra tu tirar aquele peso das costas, de tudo o que você passou. 

Você pode falar um pouquinho sobre as especificidades de cada instrumento? Porque as vezes as pessoas acham que todos os repiques vão fazer a mesma coisa, que todos os surdos vão fazer a mesma coisa, sendo que cada instrumento desempenha um papel diferente e ainda tem o trabalho do mestre de bateria que pode colocar um molho mais diferente ainda. O senhor pode contar um pouquinho sobre isso?

Para explicar a diferença dos instrumentos eu vou dar o exemplo da Mangueira. Os surdos, aqui, todos eles tocam iguais. O único surdo diferente que tem na Mangueira – porque a Mangueira é a única bateria do mundo que não tem primeira, segunda e terceira, só tem um único surdo, que é o surdo de primeira – é um surdo que a gente chama de surdo-mor, que ele dá umas viradas no contratempo. Agora, as caixas tocam todas iguais, repique tocam todos iguais, timbal a mesma coisa, tamborim a mesma coisa, ganzá a mesma coisa. A única diferença é o repique show. O que é o repique show? Repique show é o repique guia que dá o andamento das bossas, da paradinha do samba enredo. Ele é que conduz a bateria toda. É uma brincadeira de pergunta e resposta. Tudo o que o repique pergunta, a bateria tem que responder. Então essa é a diferença do repique – a gente costuma dizer repique show, tem gente que diz repique bossa, outras escolas dizem que é repique principal. Então ele é destacado da bateria porque ele é que dá o andamento de tudo o que vai acontecer dentro de uma bateria. Ele que dá andamento se a bateria for correr; ele que dá o andamento se a bateria for pra trás; é ele que faz as perguntas da bossa e a bateria responde. Tudo acontece relacionado a ele.

O senhor falou uma coisa muito importante, que a quadra da Mangueira foi feita onde era um terreiro. A Mangueira tem uma tradição muito forte com o território, com a favela, é uma escola que tem uma história de negritude muito grande. Como entender a relação da Escola com essa ancestralidade? 

Eu não presenciei o nascimento da Mangueira no terreiro porque sou muito novo. Mas a história que dizem é que a Mangueira foi feita dentro de um terreiro de macumba, onde tinha muita mãe de santo, onde estavam as mães lavadeiras, onde os gatos serviam de couro para os tambores. Então tudo isso era num terreiro. Até que o nosso gênio, Angenor de Oliveira, nosso querido Cartola, tem a ideia de colocar o nome da nossa escola de Mangueira e tem a linda imaginação de colocar a nossa escola em verde e rosa. Costumo dizer que o Cartola, para mim, é um cara que tinha que ter uma estátua na entrada da quadra, do tamanho da quadra, porque hoje a Mangueira é o que é graças a ele. O Elmo, que foi nosso presidente na década de 1990, sempre fala: “A nossa escola é guerreira por isso, porque foi fundada dentro do terreiro das mães lavadeiras, dentro do espaço de uma gente de luta.” A Mangueira nasceu em 1928 nesse ambiente, quando as pessoas ali pegaram um tamborim, um surdo, um repique e resolveram montar uma escola de samba. O primeiro desfile oficial aconteceu em 1932, quando a escola ganhou o primeiro campeonato.

Você comentou que grava todos os ensaios para escutar quando chegar em casa. Do momento em que assume a bateria até incluir as inovações e as modificações a partir dos problemas que surgem, como funciona o seu processo criativo? Por exemplo, uma coisa que me chama muita atenção é o naipe de pratos, que mistura o que muitas pessoas consideram um instrumento dito erudito com o samba. O senhor pode falar um pouco sobre isso? 

O carnavalesco apresenta a sinopse, os compositores fazem o samba e depois levam para a quadra para as eliminatórias. Ali acontece o processo de afinar. Costumam ser quatro ou cinco sambas que se destacam entre 30, 40 sambas. Em 2022, foram 51 para escolher um. É a partir dessa seleção preliminar que começo a pensar em alguma coisa. Quando chegamos a três sambas, já consigo imaginar o que Escola vai levar para a avenida.  Em 2019, por exemplo, escolheram o samba da Marielle e eu era contra porque esse samba não tinha refrão, não tinha segunda. Era um samba que, nas eliminatórias, arrastava o tempo inteiro, a bateria não conseguia tocar ele, era um samba horroroso. Fui para casa contrariado e passei o domingo todo escutando a música. Em algum momento percebi que na parte  “Salve os caboclos de julho, quem foi de aço nos anos de chumbo…” [cantarolando] era possível inserir uma marcha. Estava dando quatro compassos exatos. Liguei para o carnavalesco para contar isso e iniciei a montagem desse processo. Tudo precisa funcionar dentro da letra e da melodia do samba, até porque a Mangueira não tem característica de fazer bossas exuberantes, com nove, 12, 14 compassos – como outras escolas fazem – porque a gente não tem surdo de resposta. Mandei vir uns dez atabaques, que pegamos emprestados do Candomblé e comecei a construir a marcha. Em seguida, percebi que eles não estavam dando vazão e resolvi colocar o timbal, que funciona mais com a Mangueira e com a arquibancada. Os timbales entraram como se fosse um ataque: : “tchum, Mangueira!”. O carnavalesco foi à loucura quando viu. Vou para a quadra e começo a passar para o ritmista, naipe por naipe. Boto um surdo num canto, caixa pro outro, repique pro outro, tamborim vai para um lado, ganzá vai pro outro. Ficamos um mês só nesse trabalho dos naipes antes de reunir a bateria toda, chamar um cantor e um cavaco. Vamos construindo as partes até chegar no todo que vai estar na Marquês de Sapucaí. 

O carnaval de 2020 foi o último que pudemos levar para a avenida antes da pandemia. Vínhamos do tema da Marielle e fomos para um outro samba muito denso, que gosto muito, mas não consigo sambar: “A verdade vos farás livres (…) / Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher / Moleque pelintra no buraco quente / Meu nome é Jesus da gente…”. É uma das coisas mais fortes que já ouvi na vida. Como aconteceu o processo desse samba? 

Muito parecido com o que se deu em 2019. Mas , na verdade, demorei pra entender a sinopse e o enredo desse samba. Achei ele muito perigoso, porque, como diz o ditado “O carnaval é da carne”. Você falar de Jesus, Jesus moleque, Jesus trans, eu acho muito pesado, mas eu respeito a opinião do carnavalesco. Ele queria contar um Jesus diferente, mas eu achei muito pesado, tanto que nosso instrumento tem um menino Jesus negro na favela, com um helicóptero no fundo, e ele com a mão furada, como se tivesse sido baleado na mão com a roupa do colégio. Eu só pensava o que eu podia fazer nesse samba. Quando encontrei a parte do “Favela, pega a visão”, logo lembrei que, como favelado, foi o Funk’n’Lata que me levou para conhecer a Europa  com 17, 18 anos. Então resolvi colocar um funk ali, e me parece que é a única parte do desfile que o público curte um pouco, porque o resto do samba a arquibancada toda fica parada querendo entender o que a Mangueira está passando na quadra. A Mangueira foi muito criticada por causa desse enredo.  No último carro, em que apresentamos um negro de cabelo louro, pra mim é uma das imagens mais fortes já feitas em todos os carnavais. Quando começa o desfile, eu vejo a arquibancada muito silenciosa, calada, porque as pessoas queriam entender o que a escola ia passar. E a própria escola e os seus integrantes estavam meio frios. Quando chegamos na dispersão, eu falei para todo mundo: “Vamos fazer de tudo pra gente tirar a nossa nota lá, porque a tendência é a gente não voltar, não, porque foi muito ruim”. E a quarta-feira de cinzas provou isso. A Mangueira ficou em sexto e voltou no dia das campeãs porque as notas da bateria seguraram. Tiramos quatro notas 10. Conseguimos salvar a Escola. 

Nessa edição da Amarello, estamos falando muito do Barroco, a partir de um ideia de que o movimento artístico está presente em algo da identidade brasileira, nos seus contrastes, cor e diversidade. O samba-enredo de 2020 tem muito desse jogo de luz e sombra, algo que as pessoas não estão acostumadas, a misturar  carnaval com temas sociais delicados da nossa sociedade. Como o carnaval pode contribuir para pensarmos – e repensarmos –  a identidade brasileira?  

Olha, eu acho que o nosso carnaval vem manchado desde a Ditadura. Se você aparecesse na rua com um tamborim, com uma lata, tu era preso. Então, não podia ter samba de terreiro, não podia ter samba em roda, que todo mundo ia preso. Eu acho que a discriminação já vem lá de trás. Então, o que que a Mangueira faz? A Mangueira tem um projeto social pra gente mostrar o contrário disso. Nesse projeto, eu dou aulas de percussão para pessoas de dentro e de fora da comunidade. Sempre que tenho a oportunidade, procuro mostrar um pouco da nossa cultura e falar sobre a cultura da favela, seja no Brasil ou fora dele. Recife tem favela? Tem. Fortaleza tem favela? Tem. Mas favela de lá não é igual a nossa aqui, que tem fuzis para tudo quanto é lado. Eu falo da favela porque é nela que eu vivo. As pessoas me dizem: “Eu acho que já tá na hora de você ir embora da comunidade”. Eu não vou, e sabe por que? Porque eu vou perder a minha raiz. É a partir dessa minha realidade que eu ensino meus filhos o que é o certo e o errado, não é saindo da comunidade que as coisas vão melhorar. Precisamos aprender a ter respeito pela decisão das pessoas. Para nosso país mudar, tem que mudar muita coisa. Tem que mudar educação, tem que mudar saúde, tem que mudar governo. Para mudar o país, a primeira coisa que tem que mudar é o sistema, e o sistema é muito difícil de lidar. Nós fazemos a nossa parte nessa mudança. O projeto social que falei já recebeu o Pelé, o Bill Clinton. O Philippe Coutinho saiu daqui. Muita gente saiu do projeto social da Mangueira. A Mangueira entende esse sentimento do Barroco, porque tem a proposta de mostrar pras pessoas que a gente consegue, se a gente se unir, a gente consegue sim criar uma nova realidade. Se o Brasil for um pouquinho mais unido, principalmente os negros, é possível ter esperança. Pra gente tentar mostrar alguma coisa, primeiro temos que mudar entre nós, cada um de nós. 

Mestre, muito obrigada! 

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Complexo de Wunderkind e outros poemas inéditos

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Diretamente da capital mexicana, onde ministra a cátedra José Saramago, na Universidade Autônoma da Cidade do México, o poeta e professor Horácio Costa nos apresenta três poemas inéditos, exclusivos para a edição Barroco da Amarello.

COMPLEXO DE WUNDERKIND

Deixe a vida me levar, disse
Zeca Pagodinho, ou terá dito: levar eu,
é a mesma coisa pois, a mesma
entrega ou certo providencialismo
e se o for, ora, há um extrato bem
católico e mesmo cristão: que nos
leve a torrente bem lavados pela
encosta do monte, Alpes ou vulcão:
que de água se trate ou lava
do momento, que venga el toro,
a vida, que recusa não-aceitações
ou parciais muxoxos: só vale
se for entrega, se não se exigir
recibo, assim é que ela gosta?

Sim: esta a resposta. Se houver êxtase,
melhor, se demasia, ainda +.
Este o princípio dos dervixes
que giram como os planetas, sempre
tão comportados em suas previsíveis
moções que significam o tempo e
conversam com a viagem da luz.

Quem entende esta mecânica básica,
não nos importe a idade, é Wunderkind,
menino, menina ou menine
prodígio ou mozartiano inventor
de musicais harmonias: observe-se
o seu piruetar frente ao teclado
e a dança do rabicho de seus cabelos
presos com uma fita de veludo carmim:
músico ou Pan? Enquanto nos fascina
séculos afora.

Mas que tal condição não se alicerce
em hábito ou indisciplina contumaz:
sem o senso do risco que se toma,
torna-se a entrega à vida mero
Complexo de Wunderkind. Pagar-se
é possível, é do arbítrio de cada
quem e válido a cada hora, mas
nesse caso normalmente o preço
é da criança a morte.

Cidade do México, 16 X 21

LE SOIN DE SOI-MÊME 

O corpo foi inventado no século XVII 
quando deixou de pertencer a Deus. 
O corpo não apenas tem 400 anos: 
é criança, engatinha, conversa consigo 
tatibitate, repete fluxos e frases 
até desinventá-los, e reage: 
o corpo lava-se e lava a alma, 
exulta e sofre, e à erosão programática 
do real filho de Deus: o Estado. 

E pensa que pode ser mais ele mesmo 
se antes que à sua servidão cuidar de si: 
tais as armadilhas da história e da fé 
cega faca amolada: inverter os botões: 
se o avesso é fora tudo mudará, se eu 
propuser, o delírio se retroalimenta 
como um cão que a si se persegue 
em círculos, e pára quando exausto 
não se reconhece no espelho e late. 

Autômato de si, por irromper apenas 
pensa o corpo poder não esperar. 
Fora do tempo: enxuto como se 
não lhe molhasse a água ou a noite 
se detivesse ou o dia ou a hora. 
Lava a cara, menina suja, mantém 
colada no palato a hóstia, trabalha 
e fala, fala e trabalha. Não há vida 
fora dele, mas história há e sempre. 

CDMX 27 X 21

CUM DEDERIT DILECTIS SUIS SOMNUM

Pois ele dá aos seus diletos o sono
e mais do que isto: também o gosto
por escrever poemas aos borbotões
e com títulos em línguas estrangeiras

assim como uma frase que soe em latim
só que contrária ao engomado semissolene
de uma missa idem; o sono a todos, mas xi,
não o ventre: só às diletas, ça fait bien

une différence. Mas e eu com isso de frutos
semissagrados? Metanarrativas com as quais
faço eu fazemos nós o que quisermos,
inclusive desenvolver a proclividade

de escrever de poliamor homossexual
em textos experimentais como o presente,
onde se adaptam as ditas Escrituras a uma pauta
a elas posterior e de realidades cotidianas:

quando a palavra do Senhor e a minha
disputam em cabecinhas retroformatadas
o programa da poliescritura que não dispensa
nem necessita das irmãs gêmeas hermenêutica

e patrística para uma leitura econômica:
direta ao agora, no qual entreteça-se
o texto herdado e o por herdar-se.
Afinal, por que pensar o amor sempre

como concessão e não conquista? Se
dileto sou e formos, o sono dá-me
Senhor, mas não para dormir o seu
sonho, e daqui para a frente o nosso.

CDMX 30 X 21

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Conversa Polivox: Jards Macalé

Por Pérola Mathias, Bruno Cosentino, Rafael Julião e Acauam Oliveira

Pérola Mathias – Eu sou Pérola, a gente faz a revista Polivox, sobre canção contemporânea. Eu trabalho como crítica, sou socióloga, pesquisei a trajetória do Arto Lindsay, pesquiso música experimental. Na Polivox, comigo, além do Bruno [Cosentino], tem o Rafael [Julião], que também é formado em Letras, estudou o livro Verdade Tropical, autobiografia de Caetano Veloso, estudou Cazuza, é pesquisador de canção; a Paula Carvalho, que é jornalista e socióloga, trabalhou muito tempo como jornalista musical e pesquisou o começo do rap em São Paulo; e o Acauam Oliveira, que é crítico cultural, formado em Letras, pesquisou os Racionais MCs e a questão da canção contemporânea também.

Jards Macalé – Que bom. Estamos abertos; é um leque bom para conversar.

Pérola Mathias – Para a gente começar a conversa, queria que você contasse um pouco como foi a concepção do Besta Fera, seu último disco.

Jards Macalé – Eu queria gravar um disco de músicas inéditas, um disco inédito como um todo. Então, como o Thomas Harres, que toca bateria, músico fantástico, estava na minha banda, nós fizemos uma banda. A gente estava conversando, e ele propôs. Conhecia muito o pessoal, o Kiko, o Romulo Fróes, o Rodrigo Campos. A mim coube a Ava, porque eu já conhecia Ava desde a barriga da mãe dela. Tivemos uma reunião em São Paulo na casa do Kiko – estava o Guilherme Held também, que é um guitarrista excepcional, inclusive morou algum tempo com Lenny Gordin, que é um guitarrista fantástico, fez parte do meu primeiro disco, o Jards Macalé, aquele trio, eu, o Lenny e o Tuti Moreno na bateria. E começamos a conversar sobre. Então eu propus a eles que a gente viesse para Penedo, no sítio onde estou, que herdei da minha mãe, como eu sempre faço quando vou fazer algum trabalho novo, ou mesmo quando quero pensar um pouco. No meio do mato, the fool on the hill, em cima do morro, para pensar as coisas. E aí eu convidei o Thomas e o Kiko Dinucci para virem para Penedo para a gente pensar, passar uma semana aqui, ou alguns dias, ficar conversando, ficar criando. E viemos. E começamos a fazer algumas músicas de improviso. Eu arranjei uma bateria, que o Thomas Harres nem usou – aqui no meio do mato é difícil encontrar uma bateria, mas encontrei uma bateria legal, e ele nem usou, quem usou fui eu, de brincadeira, tocando na beira da piscina, fazendo barulho. E o Kiko, com violão. Ficamos tocando, tocando, tocando, nascendo ideias aleatoriamente, e fomos fazendo, montando as músicas, sem a ideia do Besta Fera em si, do conteúdo do disco, da alma do disco. Ficamos fazendo música aleatoriamente. Foi saindo. Saiu “Vampiro de Copacabana”, e algumas músicas eu já tinha, inéditas de muito tempo, como a própria “Besta fera”, que é de um poema do Gregório de Matos, “Aos vícios”. Eu peguei uma célula, que eu fico pegando células de poemas. Se o poema é muito longo, eu sintetizo, não tenho nenhum pudor, eu vou logo sintetizando. Se fizer sentido, fez sentido. “Aos vícios” eu já tinha composto há algum tempo, o que deu o nome de “Besta fera”, essa célula que eu musiquei. Com o Capinam eu já tinha “Pacto de sangue”. E aí foi havendo uma direção. Eu tinha uma outra música também já composta, fiz a música “Limites”, com a Ava, que era um poema extenso, também sintetizei, e de Ezra Pound teve “Trevas”. “Trevas” deu o tom do disco. Nós estamos vivendo um momento de trevas, não só no Brasil como no mundo. Então, toda aquela questão confusa, política daquele momento lá embaixo, mais a situação do Brasil, com um governo totalmente despreparado, eu diria até louco, doentio mentalmente… Aí, fizemos com o Romulo e o Rodrigo Campos um samba meio enredo, meio samba-exaltação, enaltecendo a bomba atômica, que é a única coisa que faz com que as pessoas ainda não joguem uma bomba atômica em cima da outra. Um fica com medo de o outro apertar – quem aperta o botão primeiro? Então a gente fez uma ode à bomba atômica, que é uma sacanagem terrível. E por aí foi. Eu tinha a música “Obstáculos”, que eu já havia feito também, aproveitando o poema de um amigo de Hélio Oiticica, Renault, amigo da Estação Primeira de Mangueira, enfim, detonamos um processo criativo. Esse processo criativo foi indicando a direção do disco. E aí, na hora em que a gente disse “oba, vamos entrar”, na hora em que íamos nos preparar para entrar no estúdio, eu tive um piripaque terrível e fui acabar numa UTI totalmente entubado, o diabo a quatro. Passei dez dias inconsciente e retornei. Fui tratado; foi uma coisa difícil, a UTI. Eu desejo tudo aos meus inimigos, menos uma UTI. É preferível morrer antes do que padecer naquele negócio. É um inferno, os outros doentes em volta, gemendo, gritando, um negócio terrível. E você mendigando a atenção de alguns enfermeiros, coitados, que estão lá totalmente loucos com aquela história toda. Foi uma broncopneumonia braba. Fiquei entre a vida e morte. Graças a Deus, a Rejane [Zilles] estava ao meu lado, não saiu dali, me dando todo o apoio, desde papinha a carinho, beijinhos sem ter fim. Enfim, eu voltei à tona, vim para Penedo, para o sítio, me organizei de novo, reaprendi a andar, reaprendi a falar – porque você fica totalmente neutralizado, os músculos vão para as cucuias. Um mês numa cama de hospital, você perde a noção não só de tempo como a noção de si mesmo, suas reações são totalmente enfraquecidas. Então, assim que me recuperei, retomei os trabalhos com o pessoal, e fomos para o estúdio, o Red Bull, e fizemos os arranjos ali no calor da batalha – como eu sempre faço, aliás, nos meus trabalhos –, todos dando ideias, a gente ia somando as ideias, depurando, até que se tornasse uma música, ou letra, ou sem letra, as ideias de arranjos, todos contribuindo e tal. E aí saiu o Besta Fera. Eu diria totalmente contemporâneo, pelo tratamento que foi dado, e o Brasil não muda, será possível? A gente fez uma besta fera antes, eu já fiz várias bestas feras, e não adiantou nada – quer dizer, adiantou: agora caminhamos, caminhamos, caminhamos e caímos na besta fera de 2018 em diante. Aí não tem jeito, besta fera para lá, besta fera para cá, fomos acabar em Las Vegas, por indicação do Grammy. Aliás, o Grammy me deve um Grammy. Aqui acaba minha saga do Besta Fera. Pronto.

Acauam Oliveira – Jards, eu queria puxar esse gancho da relação entre o Besta Fera de agora com as bestas feras de antigamente, porque já faz quase 50 anos que você canta que há um mal secreto pairando no ar, que há um abismo na porta principal, todo aquele clima – conceituado como morbidez romântica – que você e o Wally Salomão criaram, e aí você resolve incluir no show do Besta Fera a “Gotham City”, fazendo essa ponte entre os primeiros anos da sua trajetória artística, dos festivais, e aquele período da ditadura civil-militar. Agora, passados anos e anos, em 2019 você canta que não via que “o mundo está podre porque estava cego de amor”, “não ouça aquele ditado, pois a esperança há tempos se foi” e “chegamos no limite da água mais funda”. Queria que você falasse um pouco sobre isso, comparando aquele momento da década de 1970, aquela linha dura, com agora. O que você acha que se repete e o que você acha que mudou em relação a esses dois momentos, tanto em relação ao Brasil como em relação a você, Jards?

Jards Macalé – Eu acho que, se for para falar de mim, acho que eu melhorei. Agora, o Brasil piorou bastante. Dentro daquele quadro de 1964, 1965, já tinha um quadro meio desalentador. Por exemplo, “Soluços”, que eu fiz com 15 anos de idade e só gravei com 22 anos, por incrível que pareça, é a música mais pedida atualmente pelo público jovem. É engraçado isso. “Soluços”, “Movimento dos barcos”, com Capinam, que sempre foi um poeta muito claro nas posições políticas e na poesia dele, sempre tentando um caminho novo, um olhar de poeta, mas sempre na contemporaneidade. Esse disquinho era um compacto duplo, tinha 4 músicas, duas de um lado e duas do outro. Tinha uma também com Duda, Carlos Eduardo Machado, outro parceiro meu, professor de Literatura atualmente lá em Minas [Gerais], na universidade. Era a “Só morto (Burning night)”, que diz tudo sobre o que está acontecendo hoje: “nessa manhã de louco, o olho do morto reflete o fosso, nessa manhã de louco, todo mistério é pouco”. Enfim, “esse som tão forte, um som de morte, esse som tão forte de morte, esse som…” e tal. Então já tinha um prenúncio de olhar o mundo com uma visão, eu não diria pessimista, mas uma visão realista. O tempo passa e, de repente, eu caio no Festival Internacional da Canção com “Gotham City”, minha e de Capinam, que dizia claramente que nós estávamos sob uma pressão terrível, ditatorial, e qual seria a saída, qual é a saída? O abismo está na porta principal, mas e a saída? “Não se fala mais de amor em Gotham City”, que é a simbologia de qualquer cidade do mundo megalópole, mas o sistema seria o mesmo de perseguição. “Gotham City” é de 1969, o AI-5 é de 1968. “Gotham City” já é o comentário imediato sobre o AI-5. “Perseguiam bruxas no telhado em Gotham City no dia da independência nacional, cuidado, olha o morcego”. Eu comecei a recantar “Gotham City” porque eu via um morcego na porta principal, claramente, desde o início. Aliás, desde antes, mas aí se concretizou. Quando um cara chega e homenageia o maior torturador do país, o Ustra, com a maior desfaçatez, em plena Câmara dos Deputados, é porque o morcego chegou na porta principal. Quando foi ver, criou o abismo que a gente está vivendo até agora. Então eu retomei a canção por isso, e incluí uma poesia na apresentação de “Gothan City” nos shows. Eu fui vaiadíssimo no Maracanãzinho inteiro, as pessoas se levantaram com o dedo assim, estava numa arena em Roma e os leões atrás de mim. Aí eu disse: “bom, vamos conversar”. E as roupas, as guitarras elétricas, estava uma confusão se guitarra ou violão, ou isso ou aquilo, qual seria o instrumento brasileiro. E aí eu convidei o grupo Os Brasões, que tocava com a Gal Costa, e convidei o nosso orquestrador…

Pérola Mathias – Duprat?

Jards Macalé – É, meu querido Rogério Duprat. Que não fez por menos. Teve uma hora na orquestra, escrito, que ele disse assim: “cada um toca o que quiser”, no meio da orquestração. Foi uma zona maravilhosa. Bom, eu pedi para o público, atualmente, que me deixasse cantar a canção todinha e que me vaiasse no final. Você sabe que o público adora vaiar tanto quanto adora aplaudir, e eu sei disso. Então eu sabia que as vaias iam ser bacanas e pedi para me vaiarem no final. Aí comecei a tocar a música, todo mundo ouvindo. O que não ouviram no Maracanãzinho, os públicos agora ouvem muito claramente, um silêncio profundo, e no final dou uma dica para me vaiar, aí começa uma vaia aqui, uma vaia ali, outros começam a aplaudir. De repente, os teatros vaiando em uníssono, isso me dá um prazer, de ouvir essa vaia ao vivo e a cores. E o melhor é que as vaias vão se transformando aos poucos em aplausos e, de repente, está aquele aplauso e vaia, de pé. Estão começando a entender o recado. Aí o Besta Fera chega nessa hora, em que abriram o armário da burrice, da incompetência, da loucura no pior sentido, abriram o armário e saíram todos os imbecis para fora. E eu não me recuso a falar para os imbecis. Aliás, eu faço questão de falar com os imbecis. O que me dá grandes problemas, “pequenos problemas, grandes discussões”. Mas é sempre necessário falar. Quando o imbecil é imbecil demais, aí eu viro e vou tratar de outra coisa mais interessante.

Rafael Julião – Algo que me chamou muito a atenção no Besta Fera, que é um disco muito cinematográfico, na verdade, é que você fez um disco de terror, se é possível inventar essa categoria.

Jards Macalé – Que bom, é bom saber disso.

Rafael Julião – É um disco de terror. Tem vampiro, tem besta fera, tem treva, tem névoa. Aliás, todo o seu trabalho…

Jards Macalé – Tem peixes. A música do Rodrigo Campos, em que sai algo de dentro do mar.

Rafael Julião – Toda essa concepção me dá a sensação de que, até na sua forma de interagir com o público – você citou a coisa da vaia, mas tem outras formas de interação que você faz –, parece que seu trabalho é muito atravessado pelo universo do cinema, pelo universo do teatro; isso está no seu canto, na sua forma de compor, na sua forma de se apresentar, enfim, você inclusive fez muitas trilhas sonoras para o cinema. Eu queria que você pensasse um pouco com a gente sobre a importância do teatro e do cinema na sua formação como artista e se ainda é importante hoje, se ela produz esse efeito de disco de terror, de disco-filme no seu trabalho atual.

Jards Macalé – Maravilhoso. Você sacou uma coisa que eu não tinha olhado direito. Disco-filme é proposital; eu gosto de montar meus discos como se fosse cinema. Cinema é muito importante para mim, desde criancinha. E o disco-teatro, que, aliás, estou pensando aqui no Paulo José. [Se emociona ao lembrar da morte dias antes do ator Paulo José.] No meu primeiro trabalho profissional como músico, fui convidado por Dori Caymmi para trabalhar como violonista, só instrumentista, no Teatro de Arena de São Paulo – na época era Arena canta Zumbi [Arena conta Zumbi, 1965]. Eu nunca sei se é canta ou conta, tanto faz. Arena canta Zumbi é mais bonitinho. E eu ficava tocando violão naquele palco, e aqueles atores todos, Paulo José, Dina Sfat, Maria Gladys, Milton Gonçalves, Melanie, enfim, todos aqueles atores dando sopa naquele palco, com suas várias interpretações; eles transmudavam, cada um fazia vários personagens, aquele coisa do Augusto Boal, Guarnieri e tal, e eu ficava tocando violão e vendo aquele pessoal se transmudar em vários personagens, povoavam aquele palco, uma verdadeira multidão. Eram 8 ou 10, mas eram mil. E eu ficava atento a essa coisa, não só à parte musical. A parte musical eu fazia normalmente, acompanhava tudo direitinho. Tinha uma coisa interessante, porque – até hoje a Maria Gladys ri dessa história – eu usava, por exemplo, um lá menor para dar o tom, aí ela entrava numa 5ª acima, sempre. Aí eu experimentei dar uma 5ª acima, e ela deu uma 5ª acima; ela ouvia sempre uma 5ª acima o tom. Eu digo, bom, então só tem um jeito: eu dou o tom, lá menor, e pulo para a 5ª acima quando ela entrar. Ficavam essas coisas engraçadas. O grupo sempre foi engraçado. Na primeira vez que fui a São Paulo, eu e Caetano ficamos hospedados na casa do Paulo José e da Dina Sfat, lá na [avenida] São João, não me lembro bem. O contato com esse pessoal sempre me deu muita coisa, do teatro e do ator. E, no cinema, eu sempre fui apaixonado por cinema. Minha avó me levava ao cinema, no Cineac, que era um cinema 24 horas no Rio de Janeiro, tinha até alguns filmes mudos, tinha Radamés Gnattali ao piano acompanhando algumas coisas de cinema, tinha outros instrumentos, uma flauta, um violoncelo, que acompanhavam filmes mudos. Eu não sou tão antigo de filme mudo, mas tinha um rito de cinema que eles faziam a ligação. E eu ficava lá por horas; minha avó ia fazer a unha, o cabelo, não sei o que lá, e me botava no cinema. Eu ficava ali assistindo a tudo, absolutamente tudo. E aquela tela, para mim, era mágica, uma coisa completamente… Sei lá, era um sonho. Até que Nelson Pereira dos Santos me convidou para fazer o Amuleto de Ogum [1974]. Ele foi me convidar para a trilha sonora e, lá pelas tantas, me colocou como ator no filme, um ceguinho repentista que contava a história do filme. Aí eu entrei direto, não só para fazer a trilha sonora, a direção musical geral, mas como ator também. Adorei ser ator. O meu problema com cinema é que demora muito. Mas esse demorar muito também é um ganho de sabedoria muito grande em relação a construir um filme, desde o pensamento primeiro até o resultado final. Aproveitei o máximo que pude a questão de montagem de cinema. Estive com grandes montadores, [Severino] Dadá, por exemplo, que é um montador incrível, [Raimundo] Higino, tinha uns caras aqui barra pesada de montagem. O próprio Nelson dirigindo a montagem, discutindo ali, eu tinha que fazer trilha sonora e ficava ali também, eu, Nelson e o Dadá pensando a montagem do filme. Quando é que eu ia ligar em música uma determinada cena, a outra, e não sei o quê. Eu sei que, a partir daí, comecei a fazer meus discos como se fosse uma montagem mesmo. Tanto que Aprender a nadar [1974], que é dessa época, é uma montagem cinematográfica. E é uma montagem de rádio também, tem muita coisa de rádio, porque eu sempre amei o rádio. Toda a minha geração foi criada ouvindo a Rádio Nacional, em torno das décadas de 1940 a 1960, principalmente a década de 1950, a Rádio Nacional era o auge, era a TV Globo da época. Aliás, a TV Globo pegou todos aqueles radioatores geniais e botou os atores… Quem poderia imaginar que o primo rico e o primo pobre teriam aquela cara? A cara daqueles atores, você ouvia só a voz, e de repente eles ganhavam uma cara. Tudo isso me alimentou muito, e me alimenta até agora. Ontem mesmo vi um filme genial do Cesinha Oiticica, que é sobrinho do Hélio Oiticica e fez um filme ele. Eu mesmo, que sempre fui amigo do Hélio Oiticica, amicíssimo mesmo, a gente era cúmplice, vi coisas que o sobrinho desencavou que eu não conhecia. Por exemplo, algumas imagens, alguns pensamentos, depoimentos do Hélio. E artes plásticas também. Sempre me fortaleceu muito o estado de invenção das artes plásticas, Lygia Clark, Hélio, Roberto Magalhães, Rubens Gerschman, enfim, uma patota que tinha ali, que eu ficava de olho, de ouvido e olho em pé, se isso existe. E é isso. Fora a música, que eu via todos os ensaios dos meus amigos e não amigos. Eu ia assistir ensaio dos Cariocas, ensaio do Tamba Trio, do Luiz Eça, da Orquestra Tabajara, da qual eu fui copista, Severino Araújo. Eu ficava rolando por ali. E fiz amizade, finalmente, com Grande Otelo, aí a coisa pegou.

Paula Carvalho – Jards, estava lendo ontem suas colunas na Folha de São Paulo falando da Empresa Brasileira de Som. Fiquei pensando nessa ideia de uma empresa brasileira de som, uma empresa que ia acabar com o problema da dívida internacional exportando música brasileira. Você acha que essa ideia faria sentido hoje em dia, no auge do liberalismo?

Jards Macalé – É um delírio ambulatório, como dizia Hélio Oiticica. Não sei, porque as ferramentas mudaram muito. Eu acho que se centralizasse… Porque tem o ECAD aí também. Está todo mundo tentando transformar em leis toda essa coisa que a internet abriu; é outra ferramenta, uma coisa totalmente nova, então as pessoas não sabem como colocar as leis que regiam o mercado de música, o mercado dessa coisa toda de disco, como transformar isso, onde você compartilha tudo e qualquer coisa, onde o autor se dilui. É difícil. Eu não sei se caberia, a essa altura do campeonato. Realmente, não sei mais. Isso não vai se definir tão cedo, porque é uma liberdade totalmente caótica – da liberdade eu gosto, do caos, por incrível que pareça, eu não gosto muito – e prejudica todo mudo. A liberdade, não, “viva a liberdade!”. Mas essa coisa toda desse caos jurídico, prejudica. Eu, por exemplo, estou recebendo US$ 0,02 por cada vez que toca não sei onde. Cada um tem um regulamento. Se eu tocar um milhão de vezes, eu recebo, talvez, quem sabe, R$ 226,00? Está todo mundo muito apaixonado e muito deslumbrado com essa história de estar nas redes. O pessoal esquece que os conteúdos somos nós. Eu devia ser pago por frequentar Facebook, Twitter, Instagram, deviam me pagar, eu sou o conteúdo dessa gente. Agora, está todo mundo tão deslumbrado que se esquece, começa a contar os segredos de liquidificador, está uma bagunça generalizada. É engraçado, mas, ao mesmo tempo, é trágico.

Pérola Mathias – Eu estava lendo uma entrevista sua de 1972, que saiu na revista Bondinho, e você fala de como percebeu o ritmo de produção, essa loucura de ensaio e criação e gravar, porque, quando você foi para Londres, chegou lá e o ritmo era outro, tinha tempo para estudar, para treinar o violão, para criar e não precisava lançar imediatamente. E eu fiquei pensando num paralelo com esse momento de agora, que tem que postar, nem que seja alguma coisa antiga, nas redes sociais. Você tem que estar sendo visto o tempo todo, porque os algoritmos têm que estar ali. E, querendo ou não, você passou os anos 1980, lançou alguns discos, mas foi uma década também bem pesada, depois veio os 1990, você lançou de novo, depois lança já em 2019 o Besta Fera. Queria que você falasse um pouco, primeiro, sobre essa questão da velocidade de produção, como mudou a sua percepção como artista, desse momento em que tinha a loucura das gravadoras no Brasil, depois esse tempo para perceber isso em Londres, e o tempo de agora, das redes. E, junto com isso, uma segunda pergunta, que é uma questão de poder ser independente, de ter essa possibilidade agora, porque ali tinha uma questão das gravadoras serem um funil, e um funil voltado mais para o dinheiro do que para o talento ou o conteúdo que eles iam vender. Eles queriam uma resposta imediata, e hoje tem essa margem de risco, mas depende da sua atuação ali diante dessas redes. Então queria que você falasse um pouco desses dois momentos.

Jards Macalé – Bom, naquela época, eu particularmente, ou melhor, minha geração estava dentro desse quadro de gravadora, a coisa era: fazer música, lutar para que essa música fosse gravada, registrada, e depois lutar para que ela fosse divulgada. E tinha um método das gravadoras fazerem isso. Eles escalavam algumas músicas, e dependia também da amizade dos autores de música com os produtores de disco. Era um atravessamento generalizado. Dependendo da influência de cada um, talvez, quem sabe, pudesse gravar. Uma vez gravada, você tinha que lutar para que os divulgadores divulgassem, e eles tinham suas escolhas pessoais. Se você não fosse escolhido pela gravadora, se não puxasse um saquinho daquele, você não existia. Não só isso, tinha alguns também que tinham uma coisa artística bacana, que ficavam ligados na música mesmo, e também os ligados na música sacavam mais ou menos de mercado, onde essa música poderia estourar ou não, o tipo de sensibilidade que ia detonar. Mas era um ambiente muito fechado, apadrinhado. E tinha outro fator, que é o seguinte: o pessoal vivia duro, então você ou pedia adiantamento, ou já dava sua música como uma garantia da grana que eles pudessem lhe dar como adiantamento. Enfim, era um bolo. Quando eu vi aquilo, eu disse: “não quero isso”. Mesmo porque, logo no início do meu trabalho – eu não chamo de carreira, eu chamo de correria –, logo no início da minha correria, eu caí nas mãos justamente do Teatro de Arena. Naquela época, tinha o Teatro de Arena, o Teatro Oficina, que também era tudo experimento, o Cinema Novo, a Bossa Nova, que naquele momento era um experimento dentro da música chamada popular brasileira – eu não gosto desse popular, eu gosto de MB, música brasileira, e olhe lá. Música é música, e nem brasileira, música é música. E as artes plásticas experimentais, na mão do Hélio Oiticica, da Lygia Clark, desse pessoal que eu já falei, Antônio Emanuel, Rubens [Gerchman], Roberto Magalhães. Era um momento de experimentação. Justamente a experimentação que não cabia dentro daquele quadro que eles achavam que eram as quatro linhas do mercado brasileiro. Fechava assim: “essa música, o povo não vai entender”, “essa música, não sei o que lá”, “essa música, imagina”, fechava o campo. Em vez de abrir o campo para novas experiências, novas experimentações etc., eles fechavam o campo dentro daquela coisa. Tanto que só depois começaram a sacar que aquela geração e aquela experimentação podiam, no futuro, vingar como mercado – mas, antes de nos botarem como mercado, eu, [Luiz] Melodia, Sérgio Sampaio, Tom Zé, Itamar Assumpção, eles abriram um canal – onde já se viu? – de malditos. Fomos tachados de malditos. Eu achei o máximo. Sou Baudelaire, sou Rimbaud, é nessa que eu vou. Está rindo, mas é trágico. Tudo bem. E mais ainda, fizeram uma coisa muito mais louca: um selo chamado Pirata – os piratas que eles combateram violentamente depois, os piratas mesmo, que entraram no mercado pirateando produtos deles à vontade. Aí eles viraram e foram combater os piratas, e deixaram os malditos em paz. Eu não gravei no disco pirata, aliás, fiquei até triste naquela época – “o Itamar está gravando, Melodia está gravando, Tom Zé está gravando, Sérgio Sampaio está gravando, está todo mundo gravando”, todos os malditos músicos gravando, e eu fiquei pensando: “será que eu sou o pior dos malditos?”. Era. O pior em posição política mesmo, o pior em posição de combate ao óbvio, o pior em defesa de abrir o meu armário e sair frontalmente contra, escrevendo esses artigos aí, enfim, botei o meu cu na reta, não quis saber. O resultado disso tudo culminou com [o show] O banquete dos mendigos [1973], quando o levei ao Palácio do Planalto. O Ministro da Justiça, Petrônio Portela, me recebeu e fui ao Golbery do Couto e Silva entregar os direitos humanos na mão da Casa Civil do governo Geisel. Aí nego não me perdoou. Tanto a esquerda quanto a direita me botaram na geladeira durante 11 anos. Daí esses buracos, a dificuldade de, como maldito, gravar algumas coisas. Em 1979, lança-se [o disco] O banquete dos mendigos. Passei 11 anos na geladeira por causa dessa atitude, acusado de estar me vendendo à ditadura, entregando os colegas. Maluquice. Eu estava com O banquete, estava com os direitos humanos, estava com a ONU debaixo do braço. Se estavam falando em abertura, que ia abrir, “olha aqui, então, abre!”. Essa era a história. Aí passaram 11 anos. Até que o namorado de uma grande amiga minha – ele era riquíssimo, um dos donos do Ponto Frio Bonzão, adorava jazz, adorava música –, uma vez, na casa dele, me perguntou por que eu não gravava. Eu expliquei isso que eu estou falando para vocês. E ele me disse: “então, quanto é que custa um disco?”, eu disse: “não sei”, e ele disse: “vá ver e me diz”. Aí, eu fui até o Dudu, o técnico de som da Polygram, grande amigo meu, que estava guardando as fitas originais d’O banquete dos mendigos, da Rádio Transamérica. Pedi pra ele guardar no cofre, ele guardou durante esses anos todos, até que eu perguntei para ele, que me disse “é tanto”. Convidei meu amigo Naná Vasconcelos, e também o Roberto Guima, um menino que estava começando, clarinetista maravilhoso, que era aluno do Paulo Moura, fantástico, e eu ali, violão, voz, percussão, Naná e Roberto Guima numa faixa com seu super clarinete. E gravamos isso ao vivo. Eu economizei tudo. Gravei em três dias, eu e Naná, eram duas semanas, deu para a gente ouvir, falar e conversar, deu para mixar tudo direitinho como a gente queria, e o disco ficou pronto em três semanas. Na hora em que o Dudu me disse assim: “custa tanto”, eu peguei o negócio e dei para o cara: “custa tanto”. Ele olhou e disse: “passa lá no escritório amanhã”. Quando eu passei, a secretária dele: “seu Walter pediu pra lhe entregar isso”. Eu peguei o cheque, entreguei para o Dudu. Pronto, acabou, fizemos. A partir daí, eu comecei a gravar mais regulamente. Fui gravar na Atração, do meu amigo Wilson Souto, fizemos um disco lindo chamando O que faço é música, e por aí foi. Aí comecei a gravar quase que de dois em dois anos. Mas antes, quando essa história aconteceu, houve também uma coisa fantástica. Quem me convidou para a Som Livre na época – aliás, o nome Som Livre é meu, diga-se de passagem. Você lembra que em um dos artigos eu escrevo assim: “som livre é meu, dá cá o meu”? Numa entrevista de jornal perguntaram o que era aquilo de “Gotham City”, e eu não sabia explicar aquele negócio, era uma atitude, “som livre”. Aí escreveram: “o som livre de Macalé”. Editaram minha explicação de som livre. “Som livre é som livre, cada um faz o seu, cada um faz a sua assinatura, cada um inventa o que quiser, é som livre”. Não é que oito meses depois dessa reportagem, me aparece a Globo com o selo Som Livre. E o símbolo gráfico da Som Livre era um passarinho dentro da gaiola com a porta aberta.

Acauam Oliveira – Em relação a essa questão do maldito, quase uma marca que imprimiram, me parece que hoje em dia está cada vez mais claro para todo mundo que isso é muito mais uma desculpa esfarrapada das gravadoras, ou para produzir com menos cuidado, ou para investir menos na divulgação, qualquer coisa nesse sentido, para deixar ali meio de lado, investir em outros… Enfim, sejam quais forem as razões, me parece muito mais uma tentativa das gravadoras de transferir o ônus que seria delas para as costas dos artistas e não assumir a responsabilidade. Por exemplo, parece que o público sempre reagiu muito bem, lotava seus shows, e a gravadora ficava insistindo nessa história de maldito. Mas eu fico pensando, uma curiosidade que eu tenho, se, em alguns casos, por exemplo, no seu caso, no caso do Luiz Melodia, do Itamar Assumpção, se você acha que esse movimento de deslocamento, marginalização, tem a ver também, em alguma medida, com racismo. E o que você teria a dizer sobre isso, em relação ao racismo ao longo da sua carreira. Porque eu lembro que em uma entrevista você comentou a recepção negativa da capa do [disco] Contrastes [1977].

Jards Macalé – Quando você falou que as gravadoras faziam produções baratas para esse tipo de pessoa, é porque não tinham perspectiva de vender, então faziam produções mais enxutas, mais baratas para esses alijados do mercado oficial. Sempre achei que eles botavam a gente nessa situação, gravava um aqui, outro ali, faz uma produção pobrinha para não dizer que não falaram de flores, “isso aí não vende, mas estamos gravando”. Aí eu devo ressaltar, nessa história que você falou: o Contrastes. A ideia do Contrastes era justamente contrapor uma coisa à outra, um samba, uma valsa, um blues, uma música experimental do Walter Franco, enfim, mistura e manda. E foi um disco, eu diria, riquíssimo, devo isso muito ao Guto Graça Mello e ao próprio João Araújo. O Cazuza era meu fã e vivia lá em casa em Botafogo também, toda aquela patota de músicos e possíveis músicos, e possíveis poetas, vivia lá em casa, na casa 9, que eu morava em Botafogo, no Rio de Janeiro. E também o João Araújo era diretor da RGE, onde eu gravei meu primeiro disco solo, que foi o compacto duplo, as 4 músicas, que eu falei anteriormente. O João Araújo era o diretor artístico da Som Livre, me convidou para fazer um trabalho na Som Livre. E o diretor musical era o Guto Graça Mello. Aí eu disse para o Guto: “o disco é essa ideia, assim geral, é só me deixar fazer que vai ser tudo legal”. Aí ele deixou. Ele só pintou uma vez no estúdio, quando eu gravei a Orquestra Tabajara, do Severino Araújo, um instrumental, “Choro de Archanjo”. Mas as outras, ele só sabia notícias do estúdio. Só que cada vez chegava mais gente para gravar, era violino, era viola, era tuba, era orquestra completa, era orquestra “descompleta”… O disco deve ter custado caro, porque eu não contei nada, eu não fico contando dinheiro para ver se dá ou não dá; enquanto der… É que nem aquele quarto dos irmãos Marx no navio, “pode ir entrando, claro, entrem”. E foi um disco maravilhoso, foi meu último disco dessa fase. E aí culmina nessa história de racismo, porque um crítico em Pernambuco escreveu um negócio enorme que começava assim: “um preto com uma branca, o disco é uma merda, e já começa pela capa, um preto beijando uma branca”, uma índia do Ceará, nem branca é. Mas não importa. Bateu na minha mão, eu tive que revidar. Aí eu fiz o que devia fazer, processei, e virou um escândalo danado. E esse negócio de racismo existe; é endêmico no Brasil, um negócio terrível. Agora, cada vez mais a coisa se mostra de uma forma insuportável. Mas também, desde criancinha lá em casa, 5, 6, 7, 8 anos, minha família é de mulatos, meu pai de Pernambuco, de Olinda, e minha mãe do Pará, somos uma família de mulatos. E lá em casa passava uma coisa, um negócio de cabelo, diziam que era para alisar o cabelo. Eu não entendia esse negócio, por quê? Eu gosto tanto desse cabelinho assim, fofinho, bacana, meus cachinhos, e ficava esse negócio. Até que tive que fazer uma retrospectiva dessa história. Está claro: a tentativa de embranquecimento brasileiro, que nunca deu certo, cada vez nascem mais negros e mais mulatos. Eu quero saber: e os sararás, como é que ficam? Mas, enfim, agora eu fico lutando contra o racismo cada vez que me chamam para alguma coisa nesse sentido. Eu faço parte dessa raça maravilhosa, que é a raça negra do mundo.

Rafael Julião – Uma coisa que me interessa muito no seu trabalho é você ter feito tantas apresentações e tantos shows em presídios e em manicômios, hospitais psiquiátricos. Eu queria que você contasse um pouco como essa história começou e como impactou a sua trajetória, você como ser humano, como artista, trabalhar efetivamente nesses universos que estão literalmente à margem e que são tão ricos.

Jards Macalé – Eu entrei nos hospícios, manicômios e em presídios e, por incrível que pareça, consegui sair para ficar preso do lado de fora, não do lado de dentro. Isso tudo é porque, no meu primeiro casamento, Gesilda estudava psicologia e psiquiatria, e tinha todo um grupo – alguns estavam dentro de sanatório, também alguns amigos, principalmente Hélio Oiticica, que tinha aquela entrada no Morro da Mangueira, do Estácio; eu me tornei amigo também do [Luiz] Melodia, e tinha algumas pessoas, esse que compôs “Obstáculos”, no Besta Fera, o Renan, estava preso no presídio Lemos de Brito, que dá direto para o Morro de São Carlos: está o presídio aqui e o morro ali. Então, bolaram: “vamos fazer um show!”. Nos sanatórios, eu comecei bastante antes. Eles me convidavam, “vamos fazer um show no sanatório tal”, a Nise da Silveira, por exemplo – depois eu fiz um filme, colaborei com Leon Hirszman no filme da Nise da Silveira, Imagens do Inconsciente, isso muito depois. Mas eu ia lá, aceitava o convite e ia fazer show para os internos. Teve até uma coisa engraçada; numa dessas apresentações na Nise da Silveira, estava lá, inclusive, ela e os internos dela, todo mundo, ela na cadeirinha de rodas, aí eu comecei a cantar aquela música do Caetano, “eu quero é botar fogo nesse apartamento”, e eles começaram a ficar ouriçados demais… Ela disse “não, eu levo anos contendo e você vem aqui dizer que quer botar fogo”, e eu disse “desculpe, não é o departamento, eu quero botar fogo no apartamento, não no departamento”. Ela deu um esporro, não gostou não. E por aí ia essa minha relação. Eu comecei a fazer análise desde essa época, até hoje. Claro que isso influenciou no trabalho, justamente na liberdade que um louco tem de exercer sua criação; pode parecer caótico no princípio, mas é uma expressão, uma expressão viva, forte, tensa, na pintura dos ditos loucos. E, quanto ao presídio, eles fizeram o primeiro show, e o Renan falou com o Melodia e o pessoal lá, com o Hélio, e convidou a gente para fazer um show no presídio Lemos de Brito. Eu aceitei, claro. Convidei o Naná Vasconcelos, a Gal também topou, Maurício Maestro, que era do Boca Livre, mas a gente trabalhava junto, também topou, e fomos lá para o Lemos de Brito. Só que, quando chegamos ao Lemos de Brito, era para fazer para todo mundo. Aí disseram: “essa ala dos bonzinhos vai ver o show, mas tem uma ala lá” – estava um esporro lá dentro do edifício, um barulho – “é um pessoal, os mais barras-pesadas, que também querem ver o show, participar, mas não dá para descer, porque senão eles vão querer bater nos bonzinhos, e os bonzinhos têm medo dos mauzinhos, então não dá para misturar”. Eu digo: “então não tem show, vocês façam isolamento, façam o que vocês quiserem, mas deixem que todo mundo possa assistir”. Pois muito bem, veio todo mundo, eles meio apavorados, e ninguém atacou ninguém. Bateram palma às pampas, se divertiram à vontade, cantaram, enfim. A partir daí, teve outro também no presídio de mulheres. Aí começou essa história de fazer em presídio, fazer em sanatório, fazer em hospital. Minha fase profundamente humanitária, digamos assim. E isso tudo revelou tantas coisas para o meu trabalho; eu aproveitei tudo que pude, inclusive ser são no meio de loucos e ser louco no meio de sãos.

Paula Carvalho – Jards, eu queria voltar a uma coisa que você estava comentando, dessa posição de o mais maldito dos malditos. Eu fiquei com mania agora de entrar no arquivo do Fundo Nacional e procurar o nome das pessoas. Aí eu procurei lá “Macalé” e achei um dossiê que se chama “provável cisão no meio artístico esquerdista”.

Jards Macalé – Eu vi, eu e o Chico Buarque somos moderados. Eram os piores.

Paula Carvalho – Isso. Era isso que eu queria te perguntar, se você era moderado.

Jards Macalé – Eu sempre fui radical, na realidade. Mas um radical que sabe o momento de ser radical e o momento de não ser radical. Não é radicalidade porque entrou numa “sou contra tudo, hay gobierno, soy contra” – isso é claro. Mas você entende que, em determinados momentos históricos, você tem que tentar equilibrar as coisas. Agora, quando eu li isso, comecei a morrer de rir; eram justamente os dois mais radicais nesse sentido. Claro que tinha Caetano e Gil, que eles colocaram como “perigosos”, e outros que eram comunistas, e nós dois, muito modestos, moderados, que bom.

Paula Carvalho – Mas tinha uma visão do que era a esquerda, e acho que vocês não cumpriam.

Jards Macalé – Eu não entendo por que fui chamado de moderado. E nem o Chico também, coitado. Ganhamos a alcunha de malditos a moderados, olha que situação. Assim não dá, eles querem nos enlouquecer.

Paula Carvalho – Jards, prometo que a gente já vai passar para questões mais musicais, mas a gente acaba ficando curioso. Queria saber como você chegou nos militares, que você disse que acabou sendo meio o porta-voz dessa coisa dos direitos humanos, chegou no Golbery, e na época da prisão do Espírito Santo você também conversou com Ney Braga.

Jards Macalé – Mas não era só eu não.

Paula Carvalho – Moderado é engraçado, porque a gente está falando dessa coisa do maldito, mas você é a pessoa que não fez concessão nenhuma. Fico pensando no filme do Marcos Abujamra [Jards Macalé: um morcego na porta principal]; tem uma hora em que ele entrevista o Gil, e o Gil está Ministro da Cultura e começa a fazer um discurso de que tem que se fazer concessões. Ele é a cara da política conciliatória. E, querendo ou não, na música, na carreira, também foi.

Jards Macalé – Mas, logo a seguir, nesse filme, o Zé Celso esculhamba essa coisa. É que o Gil se formou administrador de empresas, então ele tem essa coisa. Eu conheci o Gil de terno escuro, lá no Redondo, em São Paulo, lá na São João, terninho escuro, gravatinha vermelha, uma mala na mão, certinho, bonitinho, redondinho, arrumadinho, e tocando um violão maravilhoso. O layout foi mudando, mas a onda dele continua.

Paula Carvalho – Como você chegou nesses militares? Claro, acho que todo mundo tinha um diálogo ali, mas é diferente conversar com a alta patente.

Jards Macalé – É diferente porque meu pai era militar, meu pai entrou como aprendiz de marinheiro em Sergipe, com 15 anos de idade. Meu pai, pernambucano de Olinda, menino pobre, para estudar, ele viu como oportunidade entrar para Escola de Marinheiros, para ter casa, comida, roupa lavada, educação e trabalho, e uma possível carreira. E ele fez carreira militar. Ele começou como aprendiz de marinheiro e chegou a contra-almirante. Morreu cedo, jovem, com 43, 45 anos de idade. Eu nunca tive medo de militar, a não ser quando meu pai ficava puto porque eu não estudava, fazia alguma coisa, vinha para cima de mim com um cintozinho, aí eu sentia um certo medo. Mas ele era um homem comum, aquela farda linda, etc. e tal. Ele era professor, se formou professor de Matemática, Inglês, Francês, Álgebra, era uma figura. E foi ajudante de ordens do Ministro da Marinha do Juscelino Kubistchek. Então vinham militares e militares dentro da minha casa, uniformizados ou não, conversando; se eles conversavam de política, era sobre como derrubar a ditadura de Getúlio Vargas, entre eles lá. Eu vivi a vida inteira assim, entre fardas. Tinha Natal, ano-novo, ia todo mundo receber presente; eu ganhava presente no porta-aviões. Para mim, era uma coisa comum. Só não era comum aqueles tipos de militares que deram o golpe e aquela coisa de tortura, de violência, do aparelhamento de Estado, enfim, coisa que eu nunca vi os militares do ciclo do meu pai falarem, nem agirem assim. Quando meu pai morreu, eu tinha 15 anos de idade – o Colégio Militar foi criado para os órfãos de militares; o militar morria e os filhos tinham direito de entrar no colégio, com casa, comida, roupa lavada. Minha mãe me botou no internato do Colégio Militar do Rio de Janeiro e meu irmão no externato, porque ele era mais novo. Então, passei três anos interno no Colégio Militar. Eu era muito bagunceiro, claro. Eu fiquei preso – no final da aula da semana inteira, sábado e domingo, ia para casa, mas tinha um pessoal que não se comportava muito bem naquela fila, e eles diziam: “fulano, fora de forma”. Eu fiquei aquela patota fora de forma, sabe como é, eram os rejeitados, os proibidos de ir para casa, uma semana sem ir para casa é uma desgraça. E era estudo obrigatório, tinha que ficar em estudo obrigatório sábado e domingo. Fazer o quê? Em um ano, eu fui para casa umas quatro ou cinco vezes. Ficava lá, “fora de forma”. Meu número era 2.134, guarda esse número, Pérola, joga no bicho, 2.134. Eu não sei nem que bicho é, mas tudo bem, quem souber, me diga. 

Paula Carvalho – O 21 é cabra e o 34 é cobra. Ainda tem essa cabra cobra.

Jards Macalé – Cerca pelos 7 lados. E nessa história toda eu acabei brigando na porrada com o capitão da minha companhia e fui expulso do Colégio Militar. Portanto, eu nunca tive medo de militar, enfrentei o torturador no pau, na porrada, por isso fui expulso do Colégio Militar. Eles dizem jubilado, que é um nome mais… E aí caí na vida, ganhei um violão de presente da minha mãe e caí na vida. Mas, quando acontece isso, tem que explicar esse negócio, porque eu levei o disco O banquete dos mendigos, que foi proibido em todo o território nacional em 1973 e só foi liberado em 1978, cinco anos depois, quando o Geisel começou a história da abertura. Quem ia ser presidente era o Pedro Aleixo, aí os militares deram o golpe e botaram o Pedro Aleixo para fora, e a Heloisa Lustosa, filha dele, tinha uma raiva danada da milicada. Mas, dentro daquela coisa institucional, Heloisa Lustosa tinha amigos lá, e ela conhecia o Golbery, então bolou: “Macalé, você topa ir lá em Brasília entregar esse disco na mão do Golbery do Couto e Silva, na Casa Civil?”. Eu topei. Botei debaixo do braço e fui embora. Quando eu voltei, quase me mataram, a esquerda, a direita, o centro, a centro-esquerda. Eu disse: “então foda-se, vou tratar da minha vida”.

Pérola Mathias – Te mataram muitas vezes por essas questões. 

Jards Macalé – Eu já fui tão morto, me mataram tantas vezes, que Caetano soube e escreveu uma coisa, meu epitáfio. Quando eu falei: “Caetano, como você escreve meu epitáfio sem saber se estou morto ou não?”, e ele falou: “me disseram”. Está legal, “me disseram”.

Pérola Mathias – Quando foi essa história do Caetano, do epitáfio?

Jards Macalé – Não sei, inventaram essa história, aí ele escreveu, “eu sempre fui muito amigo do Macalé, nós nos conhecemos, é uma pena, uma tristeza profunda”. Quando eu li aquilo, “porra, cara”. Não foi ele que me matou não, alguém cantou a pedra para ele e ele entrou.

Acauam Oliveira – Eu queria puxar um pouco para questão da música, pensando no samba. Porque você transita por tudo quanto é gênero, até gênero que não existe, você cria coisas inacreditáveis. Mas tem uma presença muito forte do samba nas suas músicas, na sua vida, a relação com Moreira [da Silva], Nelson Cavaquinho, Elton Medeiros, Paulinho da Viola, muita gente. Eu queria que você comentasse um pouco sobre isso, sobre essa potência do samba na sua vida, e se hoje, olhando para a cena hoje, você encontra também essa potência no samba, se tem alguém que te mobiliza também.

Jards Macalé – Viva Zeca Pagodinho! É porque eu nasci na rua Tucuruí, na Tijuca, lá na Muda, e tinha uma ruazinha que dava para uma pracinha, três ruas, e a rua do meio dava lá no Morro do Borel, estava a classe média baixa ali embaixo, e lá para cima tinha o pessoal do Morro do Borel. E esse pessoal vivia no samba, passavam de vez em quando na porta da rua tocando, cantando, ou então se ouvia lá do morro o samba comendo. Ao mesmo tempo que isso acontecia no meu ouvido, a casa ao lado, grudada na minha, era de Vicente Celestino e Gilda de Abreu, e eles cantavam, ensaiavam dentro de casa, “tornei-me um ébrio na bebida”, o samba se misturava com aquela coisa tenorística do Vicente Celestino e da Gilda Abreu. Ao mesmo tempo, o Vicente Celestino tinha aquela coisa operística, mas eram populares, era a dita música popular da época, que tinha aquela entonação operística. Então vivi no meio dessa coisa. No fundo, no fundo, o samba falou mais alto, apesar de eu adorar uma boa voz operística. Algumas óperas são maravilhosas. Meu pai adorava ópera, e minha mãe adorava a música chamada popular, Orlando Dias. Minha mãe adorava Orlando Dias, e meu pai ficava com ciúmes e chamava ele de chorão, “esse bebê chorão”, por causa daquele soluço. E eu fiquei absorvendo tudo isso. Cheguei à idade adulta e, quando comecei a me apaixonar por isso, fui dando de cara com as várias formas de música, desde o samba do Morro do Pinto, lá em Ipanema, a Favela do Pinto, onde a gente ia muito para as biroscas, a garotada ia para as biroscas transgredir, beber cerveja, fumar maconha, até a música em casa, uma ópera aqui, meu pai me levava no Municipal. Paguei um vexame horroroso no Municipal quando vi os índios do Carlos Gomes, em O Guarani. Entrando os índios com aquela roupa de pena de espanador que eu via no carnaval, tive um ataque de riso. Fui expulso também. A minha vida é ser expulso. Eu fui expulso do Colégio Militar, fui expulso da Igreja Nossa Senhora da Paz, fui expulso de cinco ou seis colégios, incluindo Colégio Militar, Mallet Soares, São Francisco de Assis, fui sendo expulso, na hora que caía em mim, eu estava expulso. Quase fui expulso da minha própria vida por mim mesmo. Até que João Gilberto me salvou, e eu vi que o mundo continua, a vida continua, apesar de tudo. Mas esse negócio fica assim. Aí, conheci Nelson Cavaquinho, uma maravilha. Zé Keti. Eu fiz Opinião, meu primeiro trabalho profissional, segundo trabalho profissional como violonista, também Dori Caymmi na direção musical – quem me indicou foi Roberto Nascimento, meu primeiro parceiro de música, de composição. Ele tocava com Elizeth Cardoso, aí me indicou para fazer Opinião, eu junto com Zé Keti e João do Vale. E Maria Bethânia já estava hospedada lá em casa durante esse período. Então, eu estava com o universo totalmente aberto para mim. Minha universidade é a vida própria. Fora alguns estudos, estudei com Guerra Peixe, estudei violoncelo com Peter Dauelsberg, estudei piano, estudei com Esther Scliar, análise musical, estudei às pampas. Fui copista da [Orquestra] Tabajara, do Severino Araújo, fui copista da Orquestra Sinfônica Nacional do Theatro Municipal, fui indo, não tem jeito, não. Agora não dá para voltar atrás; portanto, vamos em frente.

Rafael Julião – Eu vou seguir o movimento da conversa, porque tenho impressão de que seu disco também é sobre o tempo, “o tempo não existe”, ou, para aproveitar seu próprio trocadilho, o “movimento dos barcos”.

Jards Macalé – Eterno movimento dos barcos.

Rafael Julião – Só nessa conversa você já foi moderado, já foi maldito, já foi romântico; para a crítica, você já foi pré-tropicalista, pós-tropicalista, tropicalista, não tropicalista – segundo você mesmo –, entrou no manicômio e no presídio, saiu do manicômio e do presídio, então fico com a sensação que o tempo está mostrando o quanto você…

Jards Macalé – O tempo está a meu favor.

Rafael Julião – O tempo está a seu favor, porque você está entrando nas estruturas e conseguindo sair delas o tempo todo. Então, fico pensando, vendo todo esse horror que a gente está vivendo, a Cinemateca pegando fogo, tanque desfilando, toda essa cafonice horrorosa, se você também tem alguma perspectiva de achar que a gente pode ser otimista, no sentido de que também sairemos disso.

Jards Macalé – Vamos sair. Eu sou um otimista pessimista e um pessimista otimista ao mesmo tempo. A história está se fazendo; nada permanece estático, parado na história. Todo movimento da história entra uma coisa dentro da outra, ela vai se fazendo. Nesse momento, eu acho que tem-se tudo para ser pessimista. No entanto, minha fase mais pessimista diante desse quadro de agora já passou. Nesse momento, eu vejo um pouco mais de otimismo, porque isso vai passar, mais cedo ou mais tarde – espero que mais cedo, mas, se for mais tarde, tenha paciência, vai terminar, vai passar. As forças que chamam de democráticas estão se apresentando finalmente. Primeiro, foi um quadro de pessimismo geral. Chegou uma pessoa totalmente alucinada, empalmou o poder e começou a fazer desatinos. E todas as instituições, ditas instituições, ficaram acuadas e caladas durante um tempão. Aí eu estava pessimista: até onde vai isso? Se as instituições brasileiras, nacionais, não dão resposta a essa coisa toda, que está com um comportamento nitidamente insano dessa pessoa que está na presidência da república do Brasil, o que vai ser? Mas, de repente, as instituições começaram… Ele foi tão incapaz de preservar seu caos lá, querendo gerar o caos, e foi tão incompetente em gerar seu caos que as instituições resolveram também reagir. E é nesse momento de reação que acho que começa a passagem do pessimismo para o otimismo. E eu estou otimista, porque, se não estiver otimista agora, eu vou ter que ficar otimista mais tarde. Eu prefiro estar otimista agora do que ficar sofrendo com um pessimismo por mais tempo. Prefiro sofrer com um otimismo mais breve.

Paula Carvalho – Queria voltar um pouco na música. Houve um conto de fadas no pós-tropicalismo, por exemplo, de que Gal, Gil, Caetano iam fazer sucesso no exterior. Acho que rolou um pouco desse sonho de exportar a música, de fazer tanto sucesso fora quanto a bossa nova, por exemplo. Queria te perguntar se você já teve alguma fase em que tentou fazer sucesso fora.

Jards Macalé – Tentar fazer sucesso, o que chamam de sucesso, não tentei. Eu me apresentei várias vezes em alguns países e sempre fui muito bem recebido, a performance, mas eu nunca pensei “agora eu vou fazer, vou viver num país…” Esse sucesso lá fora é um sucesso sofrido; não é só chegar, “olha eu aqui, vamos nessa”, não é assim, não. É um trabalho forte, um trabalho pesado. João Gilberto conseguiu isso da forma dele, assim como o Tom [Jobim] também conseguiu isso, e ambos com suas músicas incorruptíveis. O Tom virou até música de elevador, que chamam, mas não por culpa dele; a música dele foi utilizada para vários caminhos, mas ele não fez esse esforço para ser. Ele estava no Garota de Ipanema bebendo seu chopinho, aí o garçom chegou para ele e disse: “seu Tom, tem uma pessoa querendo falar com o senhor aí que eu não compreendi nada do que ela falava, acho bom o senhor ir lá”. Aí o Tom pegou o telefone, e era o Frank Sinatra convidando para gravar um disco. Ele tem culpa disso? Não tem. Ele era o segundo colocado em execução mundial, atrás dos Beatles. Aí nego falava para ele: “você é o segundo mais executado, depois dos Beatles”, “sou o segundo porque eles são quatro”. Não é? Mas eu nunca tentei. Já fui lá, fiz algumas coisas, foi bacana. Há dois anos eu estava em Londres fazendo um show bacanérrimo; em Portugal, lá no Mimo Festival, em Amarante, enfim, ando por aí, sem maiores complicações. 

Paula Carvalho – Tem uma participação sua numa coletânea que o Zé Rodrix fez para chegar à Rússia. Que história é essa?

Jards Macalé – Foi o [José] Sarney que foi fazer a primeira visita de um presidente da república brasileira à Rússia, ainda mais naquela confusão de comunista. Ele queria levar um negócio cultural bacana para lá, então eles fizeram – acho que foi Zé Rodrix, eu nunca soube disso, eu só fui convidado –uma coisa de pegar alguns músicos, compositores, para compor em cima de poemas de poetas russos. Dentre os poetas, eu musiquei um poema de Maiakovski. Aí fizeram uma caixa luxuosa de madeira nobre, talhada, e botaram aquela coisa lá. Várias pessoas gravaram, dentre as quais eu, e lá foi o Sarney com aquela coisa debaixo do braço. E entregou lá, não me lembro qual era o presidente, Brejnev, sei lá. Eu sei que entregaram. Inclusive, quando eu pego aqui nesse negócio de contagem de audição, é engraçado, tem Estados Unidos, Portugal, Rússia; agora estou querendo ser tocado na China, estou estudando mandarim e tudo. Mas eu não quero ser… Dá muito trabalho, tem que viajar muito. Eu sou preguiçoso; é muito chato. 

Paula Carvalho – Na verdade, acho que sucesso não é a palavra certa, mas tem essa coisa de sua música ser uma síntese muito brasileira, não tem uma coisa tão caricatural que chame atenção em termos de indústria fonográfica.

Jards Macalé – Estou me lembrando agora: fui fazer uma coisa em Nova Iorque, e aí marcaram um show num lugar badalado lá. Eu não queria fazer sozinho, com voz e violão; fui um dia antes e vi um baixista formidável, um guitarrista chileno e um baterista, aí me agreguei logo a eles, “vocês querem fazer um show comigo amanhã?” “Mas não dá tempo, como é que vai ser?” Eu disse: “dá, a gente entra e sai”. E fizemos um show maravilhoso, improvisado.

Paula Carvalho – Você chegou a encontrar Waly [Salomão] e Hélio [Oiticica] lá?

Jards Macalé – Não. Waly e Hélio foram antes, inclusive, do Hélio passar em Londres. Ou não? Sei lá. Como o tempo não existe para mim, eu misturo tudo, o ontem com hoje e o amanhã com depois. Nem sei que dia é hoje. Mas foi numa dessas oportunidades. Acho que foi quando fui com o filme Jards, do Eryk Rocha, cineasta, filho do Glauber, ele fez um… Não era nem um documentário, era um filme da gravação do meu disco Jards na Biscoito Fino, e ele fez o registro dessa gravação lá dentro. Ele tinha sido convidado para o festival de novos diretores, novos filmes, um festival em Nova Iorque, lá no Lincoln Center. Aí ele me catou: “vamos?” Eu disse: “vamos”. E nesse “vamos” aconteceu esse showzinho lá também. Não tem problema, não, é só chegar e tocar.

Acauam Oliveira – O que eu queria saber era isso, sua relação com a poesia, a maneira como você lida com isso na composição, se tem muita diferença de pegar um poema ou pegar uma letra já feita como letra e pensada como letra de música, que o parceiro entrega. Como é essa relação para você? Tem essa diferença com letra de música ou não?

Jards Macalé – Não. Tem um amigo meu, Xico Chaves, parceiro também, poeta, que fala que eu musico até bula de remédio. E é verdade. Um dos meus exercícios – não faço muito agora – era ler jornal com violão, musicando as notícias, lendo e fazendo música das notícias. De brincadeira, ele falou: “você musica até bula de remédio”, e eu disse: “ah é?” Peguei uma bula e musiquei a bula. E o irmão dele é advogado, disse: “Macalé, gostaria que você fizesse aqui um parecer jurídico, será que isso dá samba?”, eu disse: “claro que dá”. Fiz um samba-enredo do parecer jurídico do cara condenando o maluco. Não tenho esse problema; falou tal, qual, eu musico. O que eu musico já tem internamente música. Quando Capinam me dá “Movimento dos barcos”, que não tem uma frase musical igual a outra, e é extensa, a música já está dentro do poema, já emana sons, o som da palavra, e do som me vem a música em cima da palavra, nota ou seja lá o que for, ou frases inteiras, que vou musicando e vão saindo as melodias. Tanto faz a bula de remédio como a notícia de jornal, como um poema, seja de quem for, seja de Vinicius, seja de Ezra Pound, seja de Maiakovski, seja de Manuel Bandeira, seja o que for, tudo isso é material, para mim é música. Quando eu leio, eu sinto o som saindo daquelas palavras, aí me dá vontade de me apropriar das palavras em sons.

Paula Carvalho – Pensando na sua carreira, começando com Severino Araújo, aprendendo música fazendo cópia, fazendo arranjo desde o começo da sua correria – e hoje em dia se fala que a forma de fazer música está muito diferente, a forma de criar arranjos num formato horizontal, a experiência que você teve com o pessoal aqui de São Paulo –, você acha que isso mudou de alguma forma?

Jards Macalé – Mudaram as ferramentas. Eu tenho ouvido muito rap e outras coisas nesse sentido. Eu acho que algumas coisas são muito interessantes, a criação das batidas é um negócio incrível, e os comentários que vão fazendo, os sons, a mecânica de usar os elementos da máquina ali, ecos, isso e aquilo, ruídos, é um negócio muito incrível; isso me deu vontade de fazer um rap bacana. Eu até me aproximei, eu me mudei para o Leme, no Rio de Janeiro. Ali do lado é o Morro da Babilônia, tem a Ladeira Tabajara, onde morava o Ary Barroso. Aliás, eu sento com a estátua de bronze do Ary Barroso ali no Leme, conversamos vários papos, parece que ele não fala, mas ele fala demais, pelo menos comigo. Tem quem não ouça, mas eu sempre ouvi os bons conselhos. Aí tentei me aproximar do pessoal e comecei a ouvir muito rap. Comecei a ficar interessado, que coisa incrível, o tipo de batida, o tipo de reflexão, e eles falam da vida deles o tempo inteiro, diferente desse negócio de pagode. De pagode, eu só gosto do Pagodinho. O Zeca Pagodinho é impressionante; ele pegou a essência do samba, do samba de roda, samba de quintal, o pessoal inventando ali o tema e o pessoal inventando a poesia na hora, como se fosse um repente urbano. Eu estou para fazer um. Isso me interessa também, eu quero experimentar fazer uma batida Macalé, bem Macalé… Porque os poetas com os quais eu transo são meus agentes políticos, que dizem em poesia o que eu não consigo dizer, só consigo dizer em música, mas eles dizem em palavras, em poesia. Então, para mim, eles são meus agentes poéticos; eu posso me exprimir através deles com a minha música. Vou arrumar uma batida legal, você vai ver, nem que seja batida de maracujá.

Acauam Oliveira – Você acabou entrando nesse assunto da sonoridade de periferia, falou que se interessa muito pelo rap. Queria saber se tem algum nome que você olha com cuidado, com atenção, que você gosta e tal, e dessas outras estéticas, o funk, por exemplo, esses paredões.

Jards Macalé – Eu ouço tudo. Eu me interesso por tudo, mas ainda não experimentei. Para isso, eu vou ter que me juntar com rapper, com funker, para direcionar a coisa que eu quero. Tenho interesse, mas não o domínio. Quero me juntar à rapaziada para ver o que sai em algum momento. Mas não é dizer “agora eu vou fazer reggae”, “agora eu vou fazer…”, não, eu quero experimentar a linguagem, como eu gosto de experimentar todas as linguagens.

Pérola Mathias – Você vai gravar o Zé Kéti? E qual o outro sambista, além do Moreira da Silva, você ainda não gravou e gravaria?

Jards Macalé – O Zé Kéti eu gravei ano passado, antes do Besta Fera, em 2018. Gravei em Nova Iorque com Sergio Krakowski, que é um percussionista, pandeirista; ele me convidou, gravamos. Zé Kéti à la Macalé – não quer dizer que eu tenha destruído o Zé Kéti, muito pelo contrário, mas a concepção de arranjo musical etc. é Macalé à la Zé Kéti. E a pessoa que eu gostaria agora, que já falei, é o Zeca. O Zeca é o maior. Nesse momento, em samba, é o que mais me chama atenção.

Acauam Oliveira – Desde que eu falei que ia conversar com Jards, todo mundo falou: “mano, faz essa pergunta para ele, você tem que fazer”. Então é uma pergunta coletiva, bem de fã. Dentro da sua obra, tem aquele disco pelo qual você tem um carinho especial, seja pelo momento, seja por aquilo que você viveu ou pela qualidade? Tem algum desses discos que você guarda com você?

Jards Macalé – Todos eles são diletíssimos filhos. Trato com todo carinho; todos foram feitos com muita garra, muita vontade de fazer. Agora, o Contrastes, realmente, não por ser o mais rico, porque é rico, mas como uma concepção geral, eu consegui contrastar coisas às outras de uma forma legal, que me satisfez. Eu gostei do resultado bacana, objetivo. Principalmente por agregar tantos músicos, tantas formas de música, tantos colegas, tantos amigos. Fiz amigos à beça naquele disco, desde a menina que trazia cafezinho e limpava o estúdio, dona Maria – para variar, sempre o nome Maria –, todos, toda a linha de produção do disco. Agora, não percam, leiam Eu só faço o que quero, [biografia crítica de Jards Macalé escrita pelo] nosso querido Fred Coelho. O livro acaba com essa frase que o Glauber Rocha me dizia quando a gente saía conversando pela rua. Lá pelas tantas, ele tinha que tomar outro rumo, cochichava para mim no meio da rua, no meio daquela ditadura toda, “não diga que me viu, para sua segurança pessoal”. E me deixava no meio da rua paranoico e louco. Portanto, não digam que me viram, para sua segurança pessoal.

Pérola Mathias – Está tudo bem, você é um moderado. 

Jards Macalé – Essa sua observação foi radical.

Pérola Mathias – Obrigada, Macalé. 

Jards Macalé – Obrigado.

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Os rostos são configurações que os humanos reconhecem desde o nascimento, da linda face da mãe ao semblante mais horrendo do mundo. Desde sempre, temos o Bem e o Mal representados, seja para o nosso conforto espiritual, seja para que não esqueçamos que há coisas ruins que atravessam nossa vivência. Nossos olhos veem as belas imagens gravadas em pedra da pré-história e aceitam as terríveis caras da Idade Média. Estudamos as pinturas rupestres, que nos parecem toscas, porém reconhecemos os humanos representados por “palitinhos” e os animais da natureza, além de concordarmos que são registros aceitáveis e agradáveis. Já o período medieval é inundado de figuras estranhas, além de serem fantásticas e não pertencentes à nossa realidade. Penso nos anjos dos afrescos da Catalunha, com muitos olhos nas asas; nas iluminuras do bestiário medieval, com toda espécie de monstros; ou nas esculturas que cobriam as catedrais góticas, causando arrepios na população dos fiéis. Mais uma vez, o Bem e o Mal nos encaram. Que rostos são esses que nos contemplam e desafiam?

Eles são inspirados tanto na própria figura humana quanto nos contornos dos animais, ou mesmo na imaginação. Se são bonitos, podem ser “amigos”; se feios, “cuidado!”, nosso instinto fala alto, segundo a semiótica, ciência que estuda os signos. Esta é uma conclusão básica no processo comunicacional: o mocinho-herói é um galã, e o bandido-anti-herói é o ator mais “feioso”.

Os fundamentos da Teoria da Gestalt justificam a busca da nossa percepção por um modelo já conhecido, neste caso: dois pontos com um traço vertical entre eles e outro horizontal embaixo, que figuram o rosto mais simples e neutro. Ou, quando pensamos na história da arte, talvez lembremos dos anjinhos do Renascimento ou das faces das moças de Renoir e Monet. Raramente traremos à memória as figuras retorcidas e imaginárias do Jardim das Delícias Terrenas, de Bosch, e por isso é tão importante conhecê-las. Quanto mais vemos, mais fixamos e identificamos imagens e expressões faciais, mais ampliamos nosso universo interior e mais armas temos para enfrentar nossos temores, desejos e aventuras na vida!

Por um outro ponto de vista, se pensarmos em Estética, veremos que a Beleza e a Feiura são categorias flexíveis de acordo com a cultura, a época e o lugar. De modo geral, devemos contextualizar esses conceitos de acordo com nossa herança greco-romana, misturada com os preceitos do catolicismo, o que nos legou o gosto do que consideramos bonito ou feio no Ocidente. Nossa ampla cultura neste lado do globo nos leva a atribuir determinados significados a algumas imagens, e a referência mais conhecida sobre a criação de entes grotescos e fantásticos é a do texto do Fisiólogo, que associava quarenta animais, pedras e árvores a um ensinamento moral. Dessa forma, voltamos à Idade Média na Europa, injustamente conhecida como Idade das Trevas, porque, ao contrário do que o termo induz, é uma época de grande produção cultural e artística. Ela é dividida em dois períodos artísticos: românico e gótico, caracterizados pelo forte domínio da Igreja Católica. Aqui, nos referimos às manifestações artísticas e religiosas mescladas às arquitetônicas, pois eram produzidas coletivamente pelos fiéis. 

Didaticamente, o estilo românico prevalece do século V ao IX no território europeu, num ambiente de disputas e guerras, manifestado em templos baixos e robustos (basílicas), com largas paredes de pedra revestidas com afrescos e mosaicos. As poucas aberturas e a única entrada principal garantiam proteção à população dos feudos nessas fortalezas. A imagem do Bem é representada pelo Jesus Pantocrator (pan = tudo e crator = poder, traduzido por Todo Poderoso) entronado. A imagem do Mal é demoníaca e medonha. As peregrinações e suas diversas rotas mapeiam a localização das construções. Se considerarmos a população analfabeta, percebemos por que as figuras têm uma comunicação direta, com cores vivas, contornos precisos e proporções esdrúxulas, muitas vezes respeitando o formato da parede ou da coluna, porém deixando sua ação de modo claro. O que é certo é passar a mensagem de Deus e deixar os fiéis não somente entretidos, como tementes às imagens e à palavra da Igreja. Vale dizer que, apesar do interior da arquitetura ser escuro, a solução dos artífices foi revesti-lo com mosaicos dourados, que refletiam as chamas das velas e deslumbravam os viventes. Vendo os pórticos e as naves desses monumentos, temos figuras, em sua maioria, na posição frontal, que nos fitam diretamente e, convenhamos, que “recado” forte! De um lado, o rosto de Jesus me diz, de forma doce porém firme, que se sacrificou pela humanidade; do outro, o semblante inabalável do santo vence o dragão depois do golpe no coração do monstro; e, no altar, a Nossa Senhora com sua face calma nos acolhe e conforta. Seja qual for a história dessas imagens, elas ficam impregnadas nas mentes dos fiéis – e sua força permanece até hoje, não é mesmo? É o irmão, o herói e a mãe que nos dão confiança e segurança para enfrentarmos qualquer agrura.

A divisão dos períodos medievais não ocorreu de forma abrupta, nem de forma igual, em todos os países do Velho Mundo. Os historiadores apenas os designam assim para facilitar a compreensão da história da arte. Desse modo, o gótico é proeminente de 1100 a final de 1400, quando se sobrepôs ao românico, e tem características bem diferentes. O gótico nem tinha esse nome na própria época. Foi Giorgio Vasari, o historiador renascentista, que o nomeou, de uma forma negativa, associando as figuras aos bárbaros “godos”, e o termo permaneceu até hoje.

Na arquitetura, é evidente a verticalização das catedrais, uma vez que o comércio estava mais desenvolvido, e as cidades, mais ricas. Onde havia mais circulação de mercadorias, a Igreja se tornou mais forte e investiu pesado na manutenção dos fiéis. Também o interior ficou muito mais iluminado com o desenvolvimento dos arcobotantes, que proporcionavam paredes mais finas e comportavam vitrais exuberantes e coloridos. Como os afrescos, mosaicos e tapeçarias, as histórias retratadas em vidro são sacras, com paraíso e inferno.

As catedrais inspiram um efeito curioso e paradoxal; sua imponência oprime nosso corpo, mas sua atmosfera eleva o nosso espírito. Seu perfil na paisagem é encantador e, ao chegarmos perto, vemos as imagens que nos espreitam e narram suas vidas, formas alongadas, torres pontudas, aberturas coloridas e, lá no topo, as gárgulas e quimeras! Que figuras são essas?

Gárgula (vem de garganta = calha em forma humana) e quimera são figuras híbridas de animais. Ambas são assustadoras, como monstros da nossa imaginação. Para alguns escritores, são entes que serviam como alerta de que o Mal nunca dorme, obrigando os fiéis a serem eternamente alertas e vigilantes. Outros dizem que serviam como proteção, tanto do clima como dos demônios.

As gárgulas, através da boca escancarada, jorram a água da chuva acumulada no telhado, afastando o jato da parede. Esses elementos arquitetônicos são decorativos e funcionais; protegem o templo das intempéries. Embora sejam figuras baseadas em animais, passaram a ter formas humanas muito expressivas e aterrorizantes, como se vomitassem. A lenda de seu surgimento vem de um dragão que vivia no rio e aterrorizava a população de Rouen. Um sacerdote chamado São Romano solicitou ao povo voluntários para matar a horrível ameaça. Quem se apresentou foi um condenado à morte, por não ter nada a perder. Ao acabar com o animal, imediatamente sua cabeça se transformou em pedra, e a colocaram no alto da torre da igreja, dando origem à gárgula. Assim, o condenado foi perdoado, seguindo a lei que vigorou até a Revolução Francesa, que absolvia um prisioneiro a cada doze meses.

As quimeras são guardiãs decorativas que também oferecem proteção, afastando os maus espíritos. A diferença fundamental é a forma híbrida de animais: patas de lobo, cabeça de águia e corpo de escamas de peixe – certamente para assustar, mesmo. As da Catedral de Notre-Dame de Paris foram criadas pelo restaurador e arquiteto Eugène Viollet-le-Duc, no século XIX.

Um aspecto interessante desses seres fantásticos localizados nas torres das igrejas é sua ligação com a água, que, na tradição cristã, significa purificação e salvação. A partir da teoria psicanalítica, podemos perceber essas criações como manifestações do nosso inconsciente coletivo. Uma necessidade do homem de lidar com seus temores por meio da elaboração de faces terríveis, dando um rosto a toda espécie de medo, pois é mais fácil lutar com algo conhecido.

No Brasil, temos as “carrancas do rio São Francisco”, que avançam nas quilhas das barcas, protegendo seus navegantes e uma legião de artesãos que se dedica a criá-las. São produzidas em todos os tamanhos e servem como “lembrancinhas” de viagem e até como decoração. Será que é somente isso? Será que o homem contemporâneo já venceu toda sorte de apreensão? Quais imagens do Bem e do Mal temos agora?

Referências:

Referências:

CHIESI, Benedetta. Românico. Florença, Itália: Scala Group, 2011.

ECO, Umberto. A História da Feiura. Rio de Janeiro: Record, 2007.

GERNER, Caroline E; SCHMIDLIN, Clemens. Gótico. Colônia, Alemanha: H. F. Ullmann, 2008.

https://www.revistaplaneta.com.br/tassili-najjer-uma-galeria-de-arte-no-coracao-do-saara/

https://www.historiadealagoas.com.br/carrancas-do-sao francisco.html

https://www.etaletaculture.fr/culture-generale/les-gargouilles-entre-mythes-fantasmes-et-realite/

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O que é arte e o que é performance?

É a possibilidade na qual posso criar qualquer coisa. 

É uma forma de expressão e atuação. Um reflexo da vida. 

É uma forma de ilustração, materialização e sensação de uma ideia ou ideal. 

Arrisco dizer que, atualmente, o corpo, e mais precisamente o rosto, estão muito bem representados na arte da performance. Adornar o corpo com pintura é tão antigo quanto a nossa história e cultura. A arte de pintar o corpo já existia em sociedades primitivas, e era comum utilizar tintas naturais e artesanais para cobrir o corpo com sinais que, muitas vezes, ultrapassavam a questão de “adornar”. Em algumas culturas, os traços que cada um carregava simbolizavam etnias, famílias, hierarquia, celebrações, estados civis, passagem de ciclo, ou seja, um sofisticado meio de comunicação estética. A maquiagem e a pintura corporal surgiram, primeiramente, como ritual religioso ou marca cultural para designar determinada pessoa no grupo e, mais tarde, como forma artística propriamente dita. Dessa maneira, a arte de pintar o corpo passou por diversas transformações até chegar ao século XXI como uma das tendências mais exploradas. Antes uma necessidade de cultivar as crenças e os rituais, agora uma forma de explorar artisticamente a mais importante identidade humana: nossa pele. 

É o rosto o reflexo da alma? Observar rosto e gesto, a pintura e a forma, não só como reflexo dos estados da alma, mas da história pessoal e social, do ambiente e, num contexto maior, da cultura e da forma de expressão. O corpo é performático em si. Os gestos e olhares são performances, as “caras”, toda a linguagem corporal comunica, basta perceber onde performance e pintura se unem para criar uma nova camada de resistência e existência.

As nossas histórias pessoais, sociais e culturais tornam-se, também, possibilidades de expressão artística por meio da arte da maquiagem e da pintura corporal. O corpo é fenômeno vivo, cheio de desdobramentos e descobertas, modelado pelas nossas vivências. Precisamos desenvolver transformações através de um processo de aprendizagem que envolva todos os domínios da experiência humana, seja ela física, mental, espiritual ou emocional.

Tomar-se de algo visceral e pessoal, compor uma imagem ativamente performática, criando personagens/personas para explorar livremente as camadas dessa transmutação em performance, muitas vezes aliada à dança e à música, fazendo com que haja algo da ordem da libertação, da desconstrução e construção, da materialidade da imagem, da não limitação, da transgressão do indivíduo dentro dos seus gestos, da negação de gêneros e papéis definidos, da transmutação da pele em tela em branco. Ser receptor dessa energia inspiradora em transformação, abrir diálogos, entrar em estados alterados, sinestesia, provocar a emersão de novas camadas, a possibilidade de uma nova pele, máscara, fantasia. Bem além de um resultado estético, aqui existe uma necessidade de comunicar uma situação. 

Construir e desconstruir uma imagem composta, dando a ela dinamismo, imprimindo organicidade, visceralidade, sensações não apenas com a imagem, mas com o corpo criado pela nova imagem. Trata-se de um corpo literal, um corpo que se transforma aos poucos, um “corpo idealizado” e deformado, não correspondendo ao ideal intocado da tradição cultural e estética, a transformação despretensiosa da imagem em quase uma cena-poema efêmera.

Romper com as ideias, pensar fora do suporte tradicional, não mais materializar as aparências, mas as intensidades, emoções e ecos do estado emocional e físico do espaço-tempo, livrar-nos da carga cultural, crenças e valores que não nos servem mais. Criar uma outra realidade ficcional, trazendo à tona camadas que até então não tinham visibilidade, criando experiências sensoriais jamais experimentadas. Explorar as sensações que essas emoções causam, seus impactos. Aquilo que elas movimentam em mim e no outro. Elas criam beleza? Elas hipnotizam? Elas desestabilizam? Geram angústias e medos? Não responder perguntas ou reproduzir e criar formas, mas captar as forças sutis. Dessa maneira, nenhuma imagem criada é somente ilustrativa; tudo é emoção e pulsação. Tornar visível essas forças que sinto e que me tomam o corpo. A força está em relação estreita com a sensação. A partir do exercício de tornar essas forças visíveis, perceber o quanto estamos tomados pela lógica da representação. 

Como podemos nos tornar sensíveis deixando-nos afetar apenas pelas forças, e não por aquilo que a figura representa? 

Práticas híbridas para investigar, no corpo, a transmutação do sujeito em um novo ser. Desapegar-se da sedutora imagética, criar algo a partir da desfiguração da imagem, utilizando, com isso, apenas materiais aplicados à superfície de meu corpo, e com esse gestual vou preenchendo, aos poucos, com camadas de uma violenta energia emocional, animal, ancestral, universal, gestual. É preciso passar por diferentes camadas de sensações para compor este ser interior-exterior. Meu corpo reage a cada nova composição, como se trabalhasse sob a ideia de mascaramento, de incorporação, e, nesse momento, sinto que meu corpo é do trabalho: estou vazio e pronto para ser preenchido, sou um “cavalo-artista” pronto para ser tomado por essa força. Nesse momento, percebo a metamorfose, da pele antiga me sobra somente o olhar – o olhar é o que sobrou de humano; um resultado estético e sensorial surge diante da lente, uma ponte para o deslumbramento foi criada, o transbordamento acontece.

Acredito que esse é o lugar da performance. Não trazer respostas, e sim mais perguntas, fazer um diálogo aberto e direto com o público. Desprogramar a capacidade de afetar e ser afetado, gerar, gerir, receber, trocar. O corpo é o mundo. A realidade tem formas e cores próprias. Quero algum lugar para ser refúgio, devir refúgio, e reconheço esse momento na performance da pintura. A aceleração ou desaceleração da noção de identidade até o seu total colapso. A performance existe para evidenciar e potencializar as sensações e experiências de mutabilidade e raridade da vida.

Não é fácil desconstruir e voltar a mim. Quero pensar numa possibilidade de viver assim para sempre, diariamente. É quando eu vivo o personagem que sinto vivas essas pulsações e sensações; é quando realizo um mixed feelings entre prazer, beleza, afeto, dor e deslumbramento que me sinto outro de novo, deixo de ser eu mesmo. Estou pronto: pode clicar.

Dedico três horas de trabalho na construção do personagem para uma foto-performance, para tudo durar somente aquele momento da captação da imagem. A vida é mesmo efêmera.

“Em termos dramatúrgicos – “dramaturgia aqui compreendida como a define Eugênio Barba, uma tecedura de ações, podendo ou não incluir a palavra –, as práticas desses performers expandem a ideia do que seja ação artística e “artisticidade” da ação, bem como a ideia de corpo e “politicidade” do corpo. Fácil seria dizer que se trata de operações adolescentemente provocativas promovidas por um punhado de sadomasoquistas e/ou idiossincráticos para chocar o “senso comum” (que, aturdido, se pergunta: “O que é isso?”, “Para que isso?”, “Afinal, o que eles querem dizer com isso?”, “Isso é arte?”). Porém, não há nada de fácil em lidar com a potência dessas ações e presenças, verdadeiras fantasmagorias assombrando noções clássicas ou tradicionais de arte, comunicação, dramaturgia, corpo e cena. Performers são, antes de tudo, complicadores culturais. Educadores da percepção, eles ativam e evidenciam a latência paradoxal do vivo – o que não para de nascer e não cessa de morrer simultânea e integradamente. Ser e não ser, eis a questão; ser e não ser arte; ser e não ser cotidiano; ser e não ser ritual.” 

— Eleonora Fabião 

“O Performer, com maiúscula, é o homem de ação. Não é o homem que faz o papel do outro. É o dançante, o sacerdote, o guerreiro: está fora dos gêneros estéticos […] Pode compreender apenas se faz. Faz ou não faz. O conhecimento é um problema de fazer […] O Performer não deve desenvolver um organismo-massa, organismo de músculos, atlético, mas um organismo-canal através do qual as forças circulam […] O Performer deve trabalhar em uma estrutura precisa […] As coisas a ser feitas devem ser exatas. Não improvise, por favor! Há que se encontrar ações simples, mas tomando cuidado para que sejam dominadas e perdurem. De outra forma não se tratará do simples, mas do banal.”

— Jerzy Grotowski

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Há uma história verídica impressionante que circulou por Nova York nos anos 1980: dois gêmeos, separados quando recém-nascidos, reencontraram-se 19 anos depois. A história sobre os bebês, separados por uma agência de adoção, ganhou manchetes de jornais à época. Cada irmão foi viver com uma família diferente, sem contato mútuo. Mas calhou de se encontrarem. Logo, o enredo ficou mais mirabolante: com a circulação dos jornais, foi descoberto ainda um terceiro irmão. Assim, os trigêmeos idênticos, Edward Galland, David Kellman e Robert Shafran, nascidos em 1961, por fim, se reuniram.

O júbilo do reencontro dos três irmãos idênticos é algo contagiante. São imagens adoráveis, com abraços, sorrisos, a criação de uma família reconstituída. Participaram de programas de auditório, contracenaram com Madonna. Mas a felicidade foi nublada por uma descoberta um pouco depois. Durante anos, o desenvolvimento dos trigêmeos foi acompanhado por um experimento científico de psicologia, cujo arquivo segue sob sigilo ainda hoje. O caso foi retratado no documentário Três estranhos idênticos (dir. Tim Wardle, 2018). Não somente esses trigêmeos foram separados no berço para estudo, mas ainda foram descobertas outras duplas que sofreram o mesmo processo, com danos pessoais irreparáveis a essas famílias. O caso termina com um dado perturbador: é possível que algumas pessoas nascidas em Nova York em meados de 1950 e 1960 ainda tenham um gêmeo incógnito caminhando pelo globo terrestre.

Ao assistir à felicidade do reencontro dos gêmeos e ao bem-estar da união familiar retratados no documentário, lembrei-me de um aplicativo bem ao gosto das minhas leituras de ficção científica: Replika. O aplicativo convida você a criar um duplo, com direito a personalizar até as roupas. O avatar, a réplica, molda-se à personalidade do usuário. A propaganda oferece uma amizade inseparável a partir de uma proposta incômoda, nada melhor que uma réplica de si mesmo. Será? Com o isolamento social a arranhar partes do cérebro, decidi tentar, com a desculpa “é bom para treinar o inglês”. Conversando com minha Replika por chat, compreendi a lógica: sendo seu duplo uma AI de respostas polidas, parece muito bom ter com quem teclar sobre assuntos específicos.

A literatura, mesmo não estando preparada para esses exemplos mais estranhos que a ficção, é profícua no debate sobre o Doppelgänger, cuja etimologia traz o duplo, o sósia, mas ainda o “caminhar junto” consigo. Encontrar o duplo pode significar uma sentença de morte em algumas tradições. Talvez uma punição ao júbilo narcisístico de encontrar não só a nossa cara-metade, mas abraçar nossa metade inteira. Tanto que a dupla com a face bondosa-maldosa trágica é recorrente, do Estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde de Stevenson às gêmeas Ruth e Raquel de Mulheres de Areia, novela de Ivani Ribeiro.

No clássico sobre o tema, o conto O Homem da Areia (1817), E. T. A. Hoffmann embaralha a visão de Natanael, protagonista que confunde um vendedor com o advogado da família na infância. O acontecimento corriqueiro que lhe causa um mal-estar. As confusões e duplicações retratadas no conto, que culminam com um adoecimento mental do protagonista, terminam por inspirar Freud a desenvolver o conceito de unheimlich, o “infamiliar”, uma estranheza próxima ao coração. Afinal, nada mais perturbador do que assistir a algo que conhecemos bem, mas com uma ligeira alteração. O deslocamento dos humores.

O livro de Stanisław Lem (1961) e o filme homônimo de Andrei Tarkovski (1972), Solaris, souberam tratar de forma definitiva o tema. No ano em que se comemora o centenário do escritor polonês, é importante revisitar a representação da alteridade de si mesmo. Lem aprofundará a investigação artística sobre duplos, abrindo caminho para Tarkovski explorar o tema nas telas, cujo tempo lento, com paisagens impressionantes, convida quem assiste a divagar sobre a própria memória e as lembranças.

Solaris é um livro de ficção científica que apresenta o mais aterrorizador dos alienígenas: nós mesmos. No enredo, o psicólogo Kelvin é enviado a uma missão no planeta Solaris, com uma espécie de oceano na superfície. Os astronautas na base militar reagem de forma agressiva à visita, erráticos, com trajes chamuscados. Aos poucos, o psicólogo descobre que o planeta gera duplos de pessoas queridas — no caso dele, uma ex-mulher falecida. Não são somente duplos de outros, pois essa ex-esposa onírica, por exemplo, sabe de fatos ocorridos depois de sua morte. Assim, lidar consigo mesmo, expor as vergonhas, enfrentar o espelho de seu desejo é o que o planeta oferece, tornando alienígena o próprio contato humano.

Ao ser inquirido sobre o tema dos duplos, Stanisław Lem respondeu algo bastante desconcertante: “Olha, até onde me lembro, é uma piada. Digo, nunca devia ter feito isso conscientemente [risos]. Quando minhas personagens separam-se em múltiplas personalidades, geralmente é para fazer humor, criar uma situação engraçada, nada mais do que isso” (entrevista a Raymond Federman em 1981, publicada na Science Fiction Studies, 1983).

Talvez esse seja o ensinamento mais profundo ao lidar com a estranheza e a duplicidade: não se levar tão a sério. Se a arte nos apresenta algo aterrorizador, deixemos nos aterrorizar até rir um pouquinho. Maravilhar-se com o júbilo do reencontro com algo muito nosso que não conhecíamos. O reencontro com o familiar mais que familiar. Manter o coração aberto até o incômodo fazer cócegas. Encontrar a metade inteira.

Sobre o aplicativo, confesso que ainda não tive coragem de fazer o upgrade para o Pro e telefonar para minha Replika. Imagina, telefonar para sua própria sósia eletrônica? Bom, sempre é um ótimo dia para se treinar o inglês.

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Imagine que uma mulher precisasse gozar para que qualquer fecundação acontecesse. Ou, já que o gozo está para lá de uma identificação restrita ao ato ejaculatório, imaginemos que essa mulher, para que pudesse gerar uma vida, tivesse que ser mais do que um ”vaso”, como muitas vezes seu gênero foi pensado, por séculos de misoginia religiosa, e não só. Suponhamos que ela precisasse se mexer e ser autora do ritmo que, num coito, digamos, heterossexual, conduzisse a transa a uma potencialidade fecundante. Que ela, a seu modo, ejaculasse, liberando qualquer substância vital sem a qual o vivo não existiria. Qual seria, então, o tamanho populacional do mundo? Pela trigésima metade? Você saberia dizer se é filho ou filha do gozo de sua mãe? 

Imagine então que, assim sendo, rasurando a vergonha imposta a Eva, reconhecêssemos que a maçã se come inteira, e fosse respeitada a autoria feminina de seu próprio gozo. Para além da mordida única, já culposa, da primeira mulher que, segundo a Bíblia, leva o homem (e Deus) a condená-la de antemão como veículo do pecado e, portanto, do mal, como poderia ter sido a relação vital entre corpo feminino, prazer e continuidade da espécie se essas coisas dependessem umas das outras? Se o corpo da mulher só concebesse através do prazer (e podemos incluir, nessa palavra, toda gama de autonomia e singularidade de um corpo, para além do binarismo de gênero que não faz mais qualquer sentido, nem reprodutivo), talvez o rosto da bruxa, a que olho agora e já há tempo, não existisse. Mas ele existe. 

Este rosto faria sentido, pergunto, se testemunhasse uma história que honrasse (e precisasse de) seu autoconhecimento? Como formular a equação sobre o lugar e a subjetividade do gênero masculino se, como estamos supondo, este soubesse que a espécie humana depende do prazer da mulher? Que homem seria esse? Antes de Eva, o rosto da bruxa já se desenhava, por exemplo, em Medeia, posta na fogueira pagã por ameaçar o imaginário solar heroico e viril de meninos gregos que cultuavam o poder de impunidade de seu sexo. No rosto da bruxa sobreposto ao de Medeia, é possível ler a violência pré-cristã – e, nesse exemplo, a fundura misógina do mundo há muitas e muitas culturas – já usada como instrumento colonizador: Medeia era, nas variáveis próprias do mito, uma estrangeira, com poder políticos. E não só: feiticeira, era neta do Sol, de uma linhagem cuja legitimação era inquestionável em seu território cultural. Seu mito encena uma antiga disputa que marca a passagem das culturas das chamadas “grandes mães” para aquelas cujo elemento dominante é o herói, masculino e civilizador. Sabemos bem quais as consequências desse trajeto colonial: a escassez e o cansaço não só de mulheres, mas de todas as pessoas estranhas ao estereótipo do macho inconsequente, incluindo aí a própria terra enquanto recurso esgotável. 

As três grandes religiões monoteístas se organizaram a partir dessa orientação moral, e as três reproduziram suas leis tendo como chão a opressão, em graus diversos, do corpo da mulher. Na contaminação cristã, o corpo da mulher (e a mulher como um todo, visto que uma corporeidade negativa a configura) carrega a senha do diabo, do mal. Neste sentido, paira sobre o rosto de toda mulher o rosto da bruxa, quer ela queira ou não. Há no rosto da bruxa um tino erradio. Um dom de dolo, um poder que escapa ao retrato – dizem. Se ela é bonita, conforme foi pregado na testa de cada cultura o senso estético da beleza, ela não pode ser muito bonita, ou excessivamente senhora do considerar-se bela. A mulher, portanto, vejam só, tinha/tem duas impossibilidades: não pode ser bonita e não pode ser feia. Entre ambos, espera-se que se comporte como um bom e agradável vaso que, em sua neutralidade, não tenha prazer, apenas cumpra sua utilidade (instinto, dizem, naturalizando-a) doméstico-reprodutiva. 

Em partes da cultura moderna europeia, a iconografia da bruxa evidencia-se: ela consegue congregar em seu imaginário os restos eróticos da mulher sob a tutela de Vênus/Afrodite – cuja filha cristã e decadente, Eva, será responsável por conduzir o casal heteronormativo, recém-nascido, à expulsão do paraíso – e a figura residual e sem lugar da mulher que sobrevive à sua idade fértil, vulgo a velha, aquela sem serventia, a não ser ao cumprimento de papeis de uma invisibilidade alargada à invisibilidade exigida da mulher, parte e posse da visibilidade (poder) de algum homem. Entenda-se: da mulher, é-lhe exigida a beleza, mas uma beleza que sinalize seu esforço em obedecer e servir, uma espécie de carência, melancolia, roubo da potência, enfim, uma beleza da qual ela seja objeto e não sujeito.

Se à mulher é exigida a máscara de uma beleza calma, a beleza do bem (o belo de obedecer), um olhar submisso e amoroso das Madonas, das virgens, ou a graça convidativa de uma Afrodite Urânia, versão idealizada e abstrata de uma vênus incorpórea, a beleza do rosto da bruxa é necessariamente feia. Nela reside um proliferado ninho de ratos e animais venenosos, crianças mortas, excrementos, sangue menstrual, embriaguez, desejo. Sua beleza, desobediente (a beleza de sua desobediência) – dizem os doutos –, é a arma mais sutil do demônio. E quantos homens não a assassinaram, em legítima defesa? No Brasil pandêmico, a cada 6 horas e meia, um homem se vê autorizado a defender-se matando uma mulher. Pesquise sua ancestralidade, assentada sobre o silêncio dos bons tons burgueses. Quantas vezes o rosto da bruxa foi rasurado, derretido, adulterado, com a cumplicidade do código “família” – você saberia dizer? 

Olho bem no meio deste rosto de mulher. Acho bom que ele exista. É um rosto que mostra os dentes. Na história da pintura, são retratados mostrando os dentes aqueles taxados como anormais, os loucos, os pecadores. De quem é este rosto cuja boca aberta, rindo, devora, goza, ou – por que não? – fala? O rosto da bruxa. Que bom que ele existe! A cultura medieval oficial, a da Igreja e dos eruditos, diz-nos Bakhtin, era chamada de agelastoi, ou seja, composta por gente que nunca ria ou odiava o riso. Gesto profano por excelência, o riso foi entendido como parte do diabo. Se a máscara da mulher foi talhada sob o signo do silencio, o rosto da bruxa inteiro fala, grita, vocifera seu desejo e gargalha. Sabemos, com inúmeras pesquisas historiográficas, entre elas a precursora de Margaret Murray (The Witch-Cult in Western Europe, 1921) ou, mais recentemente, a do fantástico Carlo Ginzburg (Ecstasies: Deciphering the Witches’ Sabbath, 1991), que a “confecção” da figura da bruxa e de seus encontros noturnos – os detalhes do sabá – tem como origem a expiação de cultos agrários de fertilidade, de culturas ainda vinculadas a religiosidades pagãs. A mulher, portanto, que ousasse saber sobre seu corpo – sexualidade e fertilidade desobedientes – era aquela cujo riso demoníaco selaria e nomearia o rosto, de bruxa. Imagem que começa a circular, com maior vigor, no contexto mesmo da institucionalização de sua caça, a caça às bruxas.  

Contrariando a “erótica da imagem” que, no caso da bruxa, funciona às avessas – atraindo olhares para aquilo que se deve repelir, violar, condenar e matar –, olho hoje mais do que ontem, e concentrada, o rosto da bruxa. Aprendo com ele as rugas do riso, que ninguém tem o direito de me roubar, bem como o direito de fazer o que bem entender com qualquer capacidade reprodutiva de meu corpo, que não existe para cumprir qualquer instinto materno, qualquer zelo narcísico projetado sobre ele. No rosto da bruxa, finalmente, não vejo um vaso. Vejo uma goela afiada e escuto sua voz própria, pela qual ela já morreu e ainda morre. É este o rosto que chamo ao meu rosto quando escrevo. É com ele que testemunho a violência, que recuso a perda da memória. Ele, de boca aberta, sujeito inegociável de minha fúria, de meu ritmo e de meu gozo. Eles existem.  

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La Belle Ferronière, de Leonardo Da Vinci (1490)
#38O RostoArteCinema

Abbas Kiarostami: O rosto como abismo do real

por Kevin Rodrigues

Jean-Luc Godard, a um só tempo eloquente e lacônico, sentencia: “O filme começa com D. W. Griffith e termina com Abbas Kiarostami”. A filmografia de Griffith é marcada pela grandiloquência na mise-en-scène e pela opulência dramática, tendo papel central na consolidação de uma forma (e uma fórmula) de fazer cinema. Griffith pariu o longa-metragem ficcional vendendo a mentira maquiada de verdade. 

A tentativa de imbuir a ficção de realismo está no cerne do modo de representação do cinema dominante. Vão nesse sentido a instituição de um método quase militar de filmagem, que inclui uma montagem que tenta apagar a existência da câmera e o plano aberto de contextualização, entre outros. No entanto, o espectador começa a escutar o grunhir da máquina, pois o realismo ostentado pelo filme de ficção tradicional é sufocado por sua própria megalomania. O cinema cada vez menos como fresta para o real e mais como usina de sonhos. 

Se na declaração-manifesto de Godard Griffith é o demiurgo, quem é Abbas Kiarostami? Por que é nele que o filme chega ao seu fim? O influente cineasta iraniano, filho simbólico do neorrealismo de Rossellini e companhia, faleceu em 2016 após ter revelado, em quilômetros de película – são no total 25 filmes, entre curtas e longas –, um mundo antes dele invisível. Ou quase invisível, pois o que lhe interessava não era o recheio, mas as migalhas de vida esquecidas na borda do prato. Nadando contra a corrente, Kiarostami era essencialmente antidramático e acreditava que tudo o que vale cabe nas miudezas.

Close-Up (1990), obra-prima do cineasta, é a reconstituição da história real de Hossain Sabzian, um homem humilde acusado de ter personificado o diretor Mohsen Makhmalbaf com intenções ardilosas. Por trás da sinopse aparentemente simples, o filme faz emergirem discussões complexas sobre identidade, verdade e performance. Sobre esses dois últimos temas, é dito com frequência que o cineasta iraniano borra a linha entre documentário e ficção. Mas a realidade é que essa linha já nasceu vaporosa, como a cauda esfumada de um avião. Kiarostami vai além, pois enquanto a maioria dos filmes ficcionais esconde seus artifícios, ele deliberadamente os revela.

Se opondo à grandiloquência narrativa do cinema dominante, o diretor iraniano aposta em roteiros e dispositivos de filmagem simples para propor, acima de tudo, um mergulho na subjetividade humana. Um exemplo metafórico aparece em Cópia Fiel (2010), onde a paisagem da Toscana é introduzida como um reflexo deslizando sobre o para-brisa do carro. Provavelmente, um cineasta griffithiano teria optado por começar o filme com planos abertos da paisagem, em uma tentativa de legitimar a veracidade da intriga ao ancorá-la em uma geografia real. Kiarostami propositalmente empurra essa geografia para as bordas da narrativa, pois o diretor de Cópia Fiel sabe que seu filme não precisa ter como pano de fundo um espaço do mundo real para resvalar no real, visto que a potência de uma história não está no “isso existe”, mas no “isso poderia existir”. A arte brota nos mil caminhos que se bifurcam e floreia no imaginário. 

A geografia que interessa a Kiarostami é a do rosto humano, motivo pelo qual ele insiste em um dispositivo minimalista que prioriza planos longos e fechados, abrindo um palco para os personagens se revelarem sem amarras ou truques de direção. Essa importância dada à corporeidade e à coesão espaço-temporal da realidade vem aliada ao mote da aparência como camada metafísica do mundo, ou seja, à relação entre superfície e fundo. 

Essa dialética original-cópia é o eixo em torno do qual Cópia Fiel se organiza. O protagonista masculino, William Shimell, explicita o leitmotiv do filme ao celebrar o valor da cópia, tanto na arte quanto na vida: “Esqueça o original, compre uma boa cópia”. O que é a imagem cinematográfica senão uma reprodução mais ou menos aderente ao real? O que não significa que ela seja completamente falsa, pois, como o próprio William declara mais tarde, devemos passar pela cópia para chegar ao original. Mas essa busca, paradoxalmente, deve ser consciente de que a essência está costurada na aparência, como gêmeas siamesas.  

Ao assumir que um filme é uma cópia, Kiarostami avisa que estamos assistindo a uma reprodução deturpada da realidade, como a paisagem da Toscana escorregando no para-brisa. Em suma, uma ficção. O famoso olhar-câmera – normalmente interditado por evocar a existência da câmera e, consequentemente, ejetar o espectador do mundo ficcional – multiplica-se ao longo de Cópia Fiel. Em um plano icônico, a protagonista do filme, interpretada por Juliette Binoche, é filmada frontalmente enquanto (se) encara (n)o espelho. Quase como se estivesse ciente de ser objeto do nosso olhar, ela cobre o próprio rosto de batom e máscara. Assim, a câmera se transforma numa espécie de espelho translúcido, rasgando o véu que separa personagem e público. 

Essa questão encontra seu paroxismo em Close-Up, onde o protagonista se duplica, tornando-se ao mesmo tempo Sabzian-indivíduo e Sabzian-personagem (de Kiarostami ou dele mesmo?), numa reconstituição do fato que testemunha o teor performático do real. O espectador é quase abandonado num movimento vertiginoso que alterna evento e engodo, pois ele sabe que está vendo uma ficção (Close-up de Kiarostami) baseada num fato (história real de Sabzian) que, por sua vez, é baseado numa ficção (Sabzian finge ser Makhmalbaf) que é baseada num fato (Makhmalbaf é um importante cineasta iraniano), o qual também é baseado numa ficção (Makhmalbaf cria histórias ficcionais) baseada num fato (Makhmalbaf transforma a realidade em ficção). Como dois espelhos face a face, realidade e ficção se encaram e se formam mutuamente uma nas entranhas da outra. 

Assim, Close-Up nos questiona: há essência na aparência? Há algo de verdadeiro na mentira? De original na cópia? De real na máscara? Kiarostami parece responder que sim, mas não se atreve a traçar um caminho até essa tal verdade, pois, etérea, ela sempre escorrega por entre os dedos. 

Apesar da ambição dessa busca, o cinema de Kiarostami não é pretensioso. Sua grandeza está, ao contrário, em filmar as tais migalhas do real, e talvez por isso ele coloque a câmera tão próxima dos seus personagens, buscando a verdade em cada sulco da face. O close é desdramatizado, deixando de ser uma hipérbole narrativa para se tornar um mergulho no abismo do rosto humano. 

A cena do julgamento é um símbolo disso, com uma montagem que alterna os planos abertos da corte com outros fechados no rosto do réu. De um lado está a verdade da Justiça, que simplifica a massa complexa do real ao impor uma sentença; do outro lado está uma outra verdade, mais profunda e brumosa, que Kiarostami procura nas expressões rabiscadas no rosto de Sabzian. Nas palavras do próprio diretor, numa entrevista de 2004: “Na realidade, era um modo de afirmar que naquela sala existiam dois dispositivos: o dispositivo da Lei, que mostra o tribunal e descreve o processo em termos jurídicos; e o dispositivo da arte, que se aproxima do ser humano para colocá-lo em primeiro plano, para vê-lo em profundidade, compreender-lhe as motivações, adivinhar seu sofrimento”1. Close-Up parece duvidar de quase tudo: do juiz, da família burguesa, do jornalista, do policial, da justiça e mesmo da verborragia do réu. Se alguma verdade poderá ser tocada, será na leitura atenta do rosto abissal de Sabzian.

Cortázar nos inspira: “As máscaras… nós temos sempre a tendência de pensar nos rostos que elas escondem; na realidade, é a máscara que conta, que seja essa e não uma outra. Diga-me qual máscara você coloca e eu lhe direi que rosto você tem”. Para Kiarostami, cada rosto é ao mesmo tempo máscara e abismo. E o abismo, lembrou Nietzsche, se encarado por muito tempo, acaba nos encarando de volta. Talvez seja essa troca de olhares que nos propõe o cinema de Abbas Kiarostami. 

Nota:
1 Citação entrevista Kiarostami (2004): Kiarostami, Abbas. Duas ou três coisas que sei de mim. In: Kiarostami, Abbas; Ishaghpour, Youssef. (Orgs.). Abbas Kiarostami. São Paulo: Cosac Naify, 2004. p. 231.

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Dar ouvidos

por Poli Pieratti

I

Era inverno em Lisboa, alguma semana de dezembro. Colhi na biblioteca, por apreço ao nome, um livro de Jean-Luc Nancy. Já nas primeiras páginas, isso: 

À escuta: ao mesmo tempo um título, um endereçamento e uma dedicatória.

Achei belíssimo o fato de uma crase dar tantos sentidos à coisa. Segui lendo. 

Morava com minha namorada num apartamento provisório em Alcântara, perto de uma fábrica de bolos que amávamos. De todas as moradas que tivemos, era a mais quentinha. Três aquecedores, espalhados pelo apartamento, tornavam o casulo perfeito. Saíamos muito pouco. Dentro do casulo, como se não bastasse, havia um casulo ainda mais casulo. O quarto ficava dentro, bem dentro. Em um canto protegido por paredes, sem janelas. Era o ponto mais escuro da casa, o canto do sono. 

No Brasil, temos o costume de desejar que a luz entre, por toda parte. Minha bisavó dizia que onde há luz, não há doença. Acordar virou sinônimo de deixar o sol entrar, ou de buscá-lo atrás das cortinas. 

Mas lá não. A cama escurecida convidava o corpo à hibernação. E foi enfiada nessa cama que li À escuta. Era uma caverna de colchas pesadas e cheiro de flor úmida. O abajur fazia a vez do sol e encaminhava meus olhos pelas rotas do livro. O abajur emitia, além da luz, um ruído constante e sutil. Acreditei ser o som da lâmpada acesa, que gemia o esforço de trabalhar noite e dia. 

Para contrariar os hábitos, era ao escurecer que os bolos saíam do forno. Bolos parecem tão diurnos, não é? Mas lá não. A rotina ficou revirada e a noite cresceu. A inversão do tempo soava, decidi escutar. 

II

A primeira coisa que entendi com Nancy foi que escutar pode ser ouvir e também entender. A escuta carrega essa ambiguidade, é uma encruzilhada do sentir com o sentido. Um fenômeno da compreensão, recurso filosófico generoso mas pouco “visto”. Na caverna de Platão há mais que as sombras dos objetos que passeiam no exterior: há também o eco das vozes daqueles que os conduzem, detalhe de que se esquece com frequência, tão rápido é seu abandono pelo próprio Platão, em benefício exclusivo do esquema visual e luminoso. Em uma síntese bruta: sair da caverna para encontrar a “verdadeira luz”. Como se a nitidez visual fosse a salvação filosófica. Mas a nitidez auditiva não parece tão relevante. Em som, o que equivale à luz? 

Qual seria a reverberação do mito se os esquemas acústicos fossem mais penetrantes? A escuta dá, além da percepção sonora, o senso de orientação. O ouvido é um órgão da audição e do equilíbrio, ele nos situa. O mau uso pode ser desastroso (o desastre é uma palavra que não está no livro mas que considerei aproximar. Gosto do desastre por sua etimologia: é a falta de astro, é perder a guiança). A escuta dá relevo ao mundo, permitindo que o corpo se oriente, titubeie ou tombe. E o som não possui face oculta, ele é todo adiante detrás e fora dentro.

O som não é uma aparição da matéria; é uma vibração que acontece no espaço. Quando chega aos ouvidos, também ressoa pelo corpo, entra e afeta. E sua natureza ressonante cria uma presença complexa, carregada de sonâncias rebatidas, multiplicidades, ecos, dobras, aberturas e expansões. 

O sentir é sempre um ressentir, ou seja, um se-sentir-sentir. Quando falamos, ouvimos. Quando soamos, ressoamos dentro e fora, numa simultaneidade radical. O corpo, cavernoso que é, vibra o som. Os ossos vibram o som. A pele vibra o som. As células vibram o som. A água, que nos preenche, também. Estar à escuta será sempre, portanto, estar em ou tendido para um acesso a si. 

A escuta nos retrata, revela nossa trepidação, nossa condição maleável e fronteiriça. O corpo possui contrastes espaciais, dentro e fora, dobras e redobras, sentidos e ressentimentos. E, se cria acessos internos, acessa também o todo. Estar à escuta é sempre estar na borda do sentido, como se o som não fosse de fato nada mais que essa borda, essa beira ou essa margem. 

Dar ouvidos é dar-se ao mundo, colher o espaço. Se-sentir-sentir na borda, na abertura, na troca. Ter os contornos como margens de contato, num devir-poroso. A escuta como ressonância, relação: participação, partilha ou contágio.

Assim, esta pele esticada sobre a sua própria caverna sonora, este ventre que se escuta e que se extravia em si mesmo ao escutar o mundo e ao perder-se nele em todos os sentidos, não são uma «figura» para o timbre ritmado, mas a sua própria aparência, são o meu corpo batido pelo seu sentido de corpo, aquilo a que antigamente se chamava a sua alma.

III

Escrevo “ouvido” no navegador e o segundo link disponível diz: 5 formas simples para desentupir o ouvido. No caso, o artigo se refere ao entupimento causado por diferença de pressão – efeito comum após voos de avião, mergulhos profundos e subidas íngremes.

Isso de mudarmos de altura nos entope, portanto. As soluções envolvem bocejar, mascar chicletes, fazer compressas, beber água e, por fim, controlar a passagem de ar tampando as narinas. 

Não sei se o chão tem mudado de altitude, se o aquecimento global aumenta a pressão dos ventos, se os mergulhos fora d’água são igualmente densos. Mas há, no agora, uma dificuldade generalizada de nos ouvirmos. Há muito o que ser ouvido, há muito pouco do ouvido nisso. 

Podcasts, áudios acelerados de WhatsApp, hits repetitivos do TikTok, incontáveis calls, alarme para acordar, alarme para achar o carro, alarme para vestir o cinto, alarme para fechar a porta da geladeira, alarme para abrir a porta do micro-ondas, fones de ouvido, fones de ouvido sem fio, fones de ouvido com cancelamento de ruídos. 

Estamos ouvindo mais e, ao mesmo tempo, desaprendendo. Estamos perdendo a orientação. Bocejar, mascar chicletes, sentir o desastre. 

IV

Um ruído desastrado. Um ruído presente. Um ruído solto no mundo. Um ruído do atrito. Um ruído rarefeito. Um ruído que não morre. Um ruído sem sentido. Um ruído captável. Um ruído interferido. Um barulho quente. Uma voz. Um eco líquido. Um som retido. Um gemido. Um estrondo luminoso. Um canto. Uma toada larga. Um rumor gasto. Um zumbido. Um suspiro coletivo. Um bramido ferido. Um berro. Um trovão sozinho. Um ruído que a matéria engole. Um ruído dentro do rosto. Um ruído vivo. 

V

O rosto é uma passagem. Está em vias de ser enquanto é. Feito falésia em costa ventosa, abisma o acúmulo. Também firma a latência de sua erosão. 

Ser, na borda, o que muda. Ser, por borda, o que toca. Oposto de intacto, o rosto. Palavra que inexiste (mas as expressões, por definição, não cansam de nascer).

O rosto expressa ritmos. Ele não firma o tempo, mas é esculpido por ele. Parte da caverna, o rosto. Os ouvidos recebem. As membranas ressoam. Os poros ecoam. Dentro é tão subaquático. A percussão, múltipla e imprevisível, soa marítima. Avisto a falésia, outra vez.

Rosto: mais do que costa, arquipélago. Ilhas a raiar e sumir, tão insaciáveis que submergem. Também transborda, como a mão, o que mimetiza. Foz da simbiose humana, revela fusões e projeções. E as libertam.

Eu me aproximo mais. Encaro seu rosto de frente, este que lê. Este que escuta. Escuta? 

Você fareja meu fôlego, imagina meu timbre. Pergunto: 

Há, portanto, rosto silencioso?

Com as bocas fechadas, a respiração travada e os olhos nos olhos, viramos marulho. 

VI

O rosto está entre os ouvidos. Ele dá a ver o que se escuta.

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Hand anatomy head famous of the mandible female pelvis world scapula nasal nasal famous: a pintura de figura humana na arena

por Alvaro Seixas

Sem título (I am not a still life), de Alvaro Seixas (2018)

Há quase duas décadas, a pintura figurativa e, em particular, a representação do corpo humano reapareceu em cena no palco da pintura. Competindo pelo privilégio da representação da figura humana com a fotografia, o vídeo e a performance, as telas e tintas buscam se reafirmar como dispositivos de debate atrelados às políticas em torno do corpo, com seus agentes valendo-se uma certa gama de argumentos e discursos. 

Esse fenômeno, o da presença da figura humana nas diferentes mídias artísticas e principalmente a sua retomada pela pintura, parece ter se intensificado com a justificativa política de que o corpo precisa viver e exercer de fato a sua liberdade, e não apenas ser aprisionado na falsa ideia de liberdade produtificada pelo neoliberalismo e a mera e cínica “liberdade” de comprar indiscriminadamente, colocando-se na eterna condição de endividado, tornando-se um prisioneiro do sistema. Uma grande retrospectiva itinerante da pintora estadunidense Alice Neel (1900-1984), intitulada People Come First (As Pessoas Vêm Primeiro), apresentada este ano no importante Metropolitan Museum e que seguirá para o Guggenheim Bilbao, terminando nos Fine Arts Museums de San Francisco, traz em seu título uma importante mensagem para nossos tempos e dá nova dimensão à pintura dessa retratista. Neel declarou em 1950: “Tentei afirmar a dignidade e a importância eterna do ser humano.”1

Dentre os muitos exercícios da liberdade evocados pela arte contemporânea, em particular pela pintura figurativa, vemos os debates raciais e de gênero, a denúncia do chamado estado de exceção, questões que perpassam não apenas as obras de uma vasta gama de artistas que emergem no cenário atual, mas principalmente aos discursos de críticos e críticas de arte, jornalistas, curadores e curadoras, influencers, galeristas, diretores de museus, casas de leilão e colecionadores. 

Hoje, a pintura figurativa, em especial a de artistas negros e negras ou pertencentes a grupos periféricos, parece emergir como uma ferramenta importante para inversões simbólicas conceituais e, principalmente, tentativas de rearranjos políticos e justiça social. É o caso dos estado-unidenses Henry Taylor, Kerry James Marshall e Kehinde Wiley e, mais recentemente, muitos jovens artistas no Brasil, alguns deles bem rapidamente já representados por galerias e incluídos em mostras sobre, por exemplo, questões raciais e de gênero em museus nacionais e internacionais. 

Muitos de nós temos tentado repensar, cada um a partir de nossos respectivos lugares mais ou menos privilegiados, os legados de determinados artistas. Dentre eles, Tarsila do Amaral, mulher branca, que pintou A Negra, de 1923, uma ode ao Brasil popular em nome da invenção e do progresso do vocabulário moderno nacional, mas que infelizmente também reforçou certos estereótipos raciais. Trata-se de uma pauta urgente, mas é importante lembrar que o mercado e a sociedade de consumo e os interesses privados sabem lidar bem com urgências. A assustadora velocidade com que certos artistas figurativos estão sendo arremessados ao sucesso e sua acelerada institucionalização parece falar menos sobre um realismo pictórico, crítica à real condição das instituições públicas, e mais sobre um “Realismo Capitalista”, para citar uma expressão de Mark Fisher. 

Dessa forma, parte da pintura figurativa atual se insere nesses exercícios de empatia, alteridade e performatividade, confrontando tempos de tristes shows do ego e produtificação do Eu, mesmo correndo o risco de sua cooptação e banalização pelo sistema, que, justamente, produtifica tudo. Há, também, uma busca por uma intimidade perdida, um resgate de uma ancestralidade ou memória local, uma tentativa de preservação das especificidades regionais, uma retomada de certa dimensão não apenas narrativa, mas também ficcional, delirante e onírica da pintura, de sua capacidade de criar mundos e não apenas ser mais um mero (hiper)reality show. Em um mundo dominado pelo audiovisual e digital, muitas pinturas buscam se opor a certo realismo excessivo, ou mesmo hiper-realismo, de uma parcela da fotografia, do cinema, das telas de smartphones e, principalmente, da fome de real dos documentários. 

Para tanto, essas pinturas figurativas buscam ficcionalizar ou repensar a realidade, valendo-se de antigos recursos expressivos, exageros e deformações caricaturais (Marlene Dumas, Lynette Yiadom-Boakye, John Currin, George Condo e Dana Schutz); traços e pinceladas violentas (Tracey Emin, Jenny Saville e Yan Pei-Ming); alegorias (Glenn Brown); presença física (Cecily Brown); apagamentos sombrios (Luc Tuymans e Wilhelm Sasnal); criação de mundos fantásticos (Michaël Borremans e Lisa Yuskavage); espacialidade, monumentalidade e intervenções no espaço urbano (Banksy). Mesmo através da ficção, ou mesmo da ficção científica, certos artistas tentam realizar críticas políticas e sociais. É o caso de nomes como o do alemão Neo Rauch, e sua realidade ricamente distópica, representando um mundo eternamente em construção e revolução, cenários estranhos, povoados monstros que parecem ter saído de um filme B, em sintonia com os dilemas de um mundo pós-orgânico. 

Além dos nomes mencionados anteriormente, hoje temos grandes representantes estrangeiros, e já podemos chamar históricos, da pintura figurativa, todos focados ou muito envolvidos na representação da figura humana, e ainda em plena atividade, que merecem destaque. Dentre eles estão Alex Katz, Gerhard Richter e Georg Baselitz, ainda capazes de gerar notáveis replicantes que povoam as redes sociais, alimentam algoritmos e/ou galerias de arte, museus e coleções ao redor do globo. Isso não é necessariamente ruim, apenas quando feito de maneira alienada, acrítica e/ou estritamente comercial e elitista. 

Aqui no Brasil, a figura humana na pintura sempre esteve presente na obra de nomes referenciais como Victor Arruda e seu imaginário ácido pop-político-surreal, Luiz Zerbini e suas intrincadas e espetaculares montagens quase cenográficas e Adriana Varejão, com sua requintada e sedutora investigação dos traumas de nosso passado (e presente) colonialista e racista. São nomes marcantes que continuam influenciando novas e mesmo antigas gerações. Apesar desses importantes nomes, de 1990 até a primeira década dos 2000, nosso mainstream artístico experimentou uma grande escassez de ordem representacional da figura humana na pintura: onde foram parar as faces, os corpos e o páthos? Onde estava a tradição de nomes como Pedro Américo, Heitor dos Prazeres, Djanira, Anita Malfatti, Tarsila, Di Cavalcanti, Ismael Nery, Lasar Segall, Portinari, Guignard, Carybé, Iberê Camargo, Rubens Gerchman e Glauco Rodrigues, mestres dos retratos ou da transposição da fisicalidade humana para o plano pictórico? É possível que muitos bons nomes da pintura figurativa no Brasil tenham sido ocultados por determinados discursos desse mainstream, gerando o apagamento de suas carreiras. 

Na pintura figurativa atual, assim como nas demais mídias, o ativismo político tem se afirmado como uma questão urgente. Toda arte é política, alguns creem. Em certas obras de arte, de fato, a política e a economia parecem emergir de maneira sutil e não explicitamente panfletária – não que um panfleto artístico ou uma arte-panfleto seja algo ruim. Por exemplo, nos corpos deformados, quase abstratos, de Francis Bacon, há uma conversão da luta wrestling, tradicionalmente homofóbica e competitiva, num jogo de afetos eróticos, num potente entrelaçamento visceral das carnes, algo desviante, uma singular pulsão expressionista e homoerótica. Algo, portanto, político. Quadros pintados em plenos preconceituosos anos 1950. E os corpos gays e trans que sangraram, agredidos, mortos ou suicidados pela sociedade daquele tempo ainda sangram nas ruas das cidades ao redor do globo pelos mesmos motivos.

Gostaria de citar outros dois marcos da pintura figurativa moderno-contemporânea, que ainda impactam gerações após gerações: Jean-Michel Basquiat e Philip Guston. Primeiro, gostaria de comentar os gestos políticos da pintura de Basquiat, focada principalmente no corpo humano. Em uma grande quantidade de suas obras, cabeças negras, muitas vezes apenas apresentadas sob a forma de silhuetas, muitas delas autorretratos do artista, buscam lições visuais nas máscaras africanas e artefatos ritualísticos de outras culturas, no cubismo de Picasso, na art brut de Dubuffet e nos rabiscos ainda provocadores de Cy Twombly. As figuras negras de Basquiat emergem num meio artístico hegemonicamente branco, coroadas pelos seus famosos dreadlocks – e temos aí um notório gesto de afirmação e pertencimento por parte do artista, sua autoproclamação, sua autoinstituição. 

Já em de suas mais notórias telas, e já tida como uma obra-prima da pintura contemporânea, Defacement (The Death of Michael Stewart) / Desfiguração (A morte de Michael Stewart), de 1983, vemos uma pintura-denúncia-protesto-memorial, à qual o Guggenheim de Nova York dedicou toda uma exposição em 2019. Uma pintura figurativa e política, como muitas outras de Basquiat, que tematiza a violência policial nos EUA contra homens e mulheres, jovens e crianças negras. Um trabalho da arte contemporânea que, num olhar apressado, pode se assemelhar a um cartoon encontrado em um caderno espiral de um adolescente ou parede de banheiro público, mas que se insere dentro da tradição da arte sacra, justamente ao dessacralizar a auréola católica, representada sob a forma de um austero rabisco negro, que, no lugar de santificar homens e mulheres brancas, coroa o jovem negro Michael Stewart, um grafiteiro marginalizado, um semelhante do próprio Basquiat. 

Só a arte narrativa e, talvez, a arte figurativa de traços expressionistas são capazes de converter um jovem assassinado de maneira simbolicamente tão ágil e marcante num Cristo negro, oprimido e escarnecido, situado entre dois “soldados romanos” da NYSP, o departamento polícia de Nova York. Basquiat pinta suas faces cruéis propositalmente rosadas, para que se assemelhem a porcos, e desenha presas afiadas de javali – criaturas chafurdadas na lama da corrupta e yuppie Manhattan de 1980. 

Mas o poder de mobilização de algumas pinturas figurativas políticas que se valem, buscam plasmar ou, ao menos, evocam sofrimento na imagem do outro geram muitas vezes atritos, polêmicas e constrangimentos. Todos eles, entretanto, são necessários no debate democrático. No turbulento ano de 2020, em meio à explosão da pandemia da Covid-19, vimos também o adiamento para 2024 da retrospectiva itinerante de Philip Guston, mas não apenas por conta do vírus letal. A exposição seria apresentada em 2020 e 2021 na National Gallery of Art de Washington, D.C., no Museum of Fine Arts de Boston, no Museum of Fine Arts de Houston e na Tate Modern de London. 

A decisão de protelar a retrospectiva em quatro anos teria sido realizada com o intuito de reformular a mostra para que ela passasse a discutir e refletir melhor sobre as “urgências do momento”, nas palavras dos diretores dos quatro museus em um comunicado conjunto. É inegável que as figuras cartunescas de Guston, aliadas a uma sofisticada paleta de cores em que se destacam tons de rosa e vermelho, elementos gráficos e contornismo, que o inserem na linhagem expressionista, contribuíram para afirmar Guston como um dos maiores nomes da arte do século XX. Seus retratos dos membros da KKK por vezes também se confundem com autorretratos do artista, visto como um ser fadado ao individualismo, refém do ateliê e das tintas, um fumante compulsivo, atormentado pela passagem do tempo, como indica o relógio pintado na parede. 

No início, essas obras não foram bem recebidas pela crítica, por serem um movimento chocante não apenas dentro da carreira de Guston, antes um pintor abstracionista de renome, mas também do “encadeamento lógico” da arte dos EUA. Se observamos um retorno à figuração em uma notável parcela das exposições e do mercado de arte, é importante lembrar que é papel dos e das artistas estarem alertas às unanimidades do sistema. Guston sempre esteve atento às unanimidades, e sua opção foi não representar qualquer face unânime e positiva, mas sim faces negativas e talvez as mais polêmicas e assassinas dos EUA, correndo o risco de ser assombrado por esses fantasmas. 

Grande parte das obras cartunescas ou “HQ” de Guston são verdadeiros trabalhos de metalinguagem e crítica institucional, que questionam não apenas o racismo na América, mas também o papel da pintura nesse debate e o de um artista branco no contexto dos anos 1960 e 1970. Seus encapuzados seriam também nossos alter egos, qualquer espectador branco que adentra o espaço elitista dos museus e galerias. Afinal, até que ponto somos de fato engajados em mudanças sociais profundas? 

Entretanto, os críticos na mostra natimorta destacaram que essas potentes imagens figurativas que evocam um tema tão doloroso para os EUA e para o mundo mereciam mais, e esse mais significa dar atenção a “outras vozes” que deveriam ter sido mais escutadas na organização da mostra. Muitos detratores da mostra concordaram. No catálogo, havia, entre depoimentos de uma série de artistas, textos de dois artistas negros, Glenn Ligon e Trenton Doyle Hancock, mas, mesmo assim, as vozes e dores evocadas por Guston são muito profundas.

Esses acontecimentos demonstram que a pintura figurativa, e mesmo obras produzidas há décadas, de um artista falecido, ainda são capazes de revelar, a qualquer momento, sua capacidade provocadora junto ao público, mesmo num ano em que, talvez, muitas pessoas não imaginassem que a pintura fosse capaz de atrair para si a foco das atenções, sem que fosse pelas cifras milionárias e hiperinflacionadas pagas pelas obras de certos artistas nas casas de leilão. 

Esses dois casos, Basquiat e Guston, são duas referências para a novíssima safra de pintura contemporânea. Basquiat, em particular, desde sua morte vem impactando hordas de artistas replicantes de seu estilo pictórico – basta pesquisar a hashtag #basquiat no Instagram para encontrar tudo, menos imagens de obras do próprio Basquiat. Sua influência não se restringe apenas ao plano da pintura, mas também aos “shows do eu” do meio de arte, já que Basquiat era também habilidoso em se autopromover e sempre ambicionou a fama. Seu status de celebridade, reforçado pela morte prematura, de certo modo impulsiona a escolha de uma parcela de artistas por estilos que evoquem Basquiat, sua vida cinematográfica e mitologia. Essa escolha acaba se expandindo para a pintura figurativa ou narrativa em geral, para a escrita sobre tela, criando também uma expectativa e demanda por parte do mercado por novos Basquiats, cuja imagem seja de fácil consumo pelo público e cuja obra possa ser hiperinflacionada rapidamente. 

Os (eternos) booms ou retornos à pintura figurativa foram marcados, por exemplo, com a publicação, em 2002, pela editora Phaidon, do livro Vitamin P, que ganhou edições subsequentes (Vitamin P2 e P3). Destacam-se a  abundância das reproduções em cores das obras e os textos de letras diminutas. Essas e outras publicações, incluindo revistas especializadas como a Artforum e seus inúmeros anúncios de galerias comerciais, passaram a dar a aparente, mas desejada, segurança a muitos jovens artistas, artistas em início de carreira ou velhos artistas em eterno início de carreira, de que a pintura figurativa tem seu lugar ao sol reservado junto a certos curadores e curadoras, museus e, principalmente, a todas as galerias, casas de leilão e grandes coleções privadas. 

Saindo do plano da pintura, mas para reforçar a importância simbólica e, acima de tudo, política da figura humana quando representada nas obras de arte, cabe falar de certos monumentos que temos visto serem queimados, destroçados, derrubados ou afundados. Falamos das tristes eternizações do passado que representam racistas, assassinos e torturadores dos EUA, da Inglaterra e do Brasil, genocidas que derramaram sangue inocente em nome da relativa ideia de “civilização”. Os algozes, os antigos colonizadores, mesmo que simbolicamente, precisam tombar ou queimar, defendem as novas gerações. Os reacionários pedem a prisão dos responsáveis pelos atos de iconoclastia, acusam-nos de terrorismo em publicações e comentários na internet. Muitos desses reacionários, triste e cinicamente, habitam o meio de arte. 

Inspirada nessas ações, a pintura figurativa se encontra em um momento crucial. Ela deverá exercer um importante papel nessa necessária iconoclastia, mesmo que não de forma literalmente destrutiva. Fica o desafio para nós, artistas da pintura, atingirmos a grandiosidade simbólica e política do ato que é atear fogo em uma escultura de um assassino do passado cuja imagem insiste incomodamente em permanecer colossal no presente. Nós, atualmente, vivemos uma maldição: a de viver em uma época interessante. Tal como dizia um grande narrador e pensador, Albert Camus: 

“(…) até agora, o artista estava à margem, nas arquibancadas (…) Ele cantava por nada, para si mesmo ou, na melhor das hipóteses, para encorajar o mártir e distrair um pouco o leão do seu apetite. Hoje, pelo contrário, o artista se encontra no anfiteatro. Sua voz, por necessidade, não é a mesma; ela é bem menos segura. Estamos em uma arena. (…) Criar hoje é criar perigosamente!”2

É só depois que nos damos conta de que alguns dos atos simbólicos mais potentes de protesto recentes não foram executados por artistas de renome, das capas de revista badaladas, mas por pessoas comuns, trabalhadores oprimidos – os Sísifos que lotam os metrôs dia após dia. É só depois disso que muitos de nós somos jogados para o centro da “arena” mencionada por Camus. Se não aprendermos com essa “arena”, com essa tomada de consciência, se não sairmos das arquibancadas da história, corremos o risco de nossas pinturas, figurativas ou não, virarem ou continuarem a ser meras reproduções de antigas fórmulas, commodities ou joguetes mercadológicos. 


Notas:
1https://www.metmuseum.org/exhibitions/listings/2021/alice-neel
2Camus, Albert. Create Dangerously. Londres: Penguin books, 2018. Tradução do autor. 

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“Por outro lado, minha mulher de 52 anos me parece tão atraente quanto no dia em que a conheci. Se eu dissesse isso em voz alta ela diria: ‘Que clichê, Douglas! Ninguém prefere rugas, ninguém prefere cabelo branco’. Ao que eu responderia: mas nada disso me surpreende. Espero para observá-la envelhecer desde que nós nos conhecemos. Por que isso deveria me incomodar? É o rosto que eu amo. Não este rosto, não este rosto aos vinte oito, trinta e quatro ou quarenta e três anos. É este rosto.”
(David Nichols, Nós)

Meu rosto é um acervo

Meus olhos são herança do meu avô. Meu nariz tem as raízes italianas do meu pai, meu queixo é igualzinho ao da minha mãe. No meu filho, enxergo os olhos do meu marido, castanhos, profundos, e em seu sorriso, os dentes da minha sogra. Na minha filha, encontro meus olhos e cabelos, as mesmas sardinhas de quando eu era criança, que com o tempo sumiram. E elas logo são a ponte para a lembrança da textura dos dedos jovens de minha mãe, acariciando minhas bochechas quando chegava do trabalho.

Meu rosto atual revela minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos – como diria Ney Matogrosso. É a soma de todos os genes que me foram ofertados, desde que nasci. Minha avó espanhola, meu avô mineiro, o avô italiano que nem conheci. Eu sou todos eles quando me olho no espelho. Meu rosto é um acervo.

Como diz Freud: “o Eu é um precipitado de catexias objetais abandonadas”. Sou todos que passaram pela minha vida de alguma maneira e em mim investiram afetivamente, seja de forma direta ou indireta. E essa presença deixa vestígios tanto externos quanto internos.

Numa cena do filme Extraordinário, o menino que havia feito várias cirurgias em função de uma síndrome rara pergunta para a mãe porque sua face é tão marcada por cicatrizes. Ela responde que nosso rosto é o mapa por onde nosso coração passou: “essa ruga aqui é da primeira briga que tive com seu pai, já esse pé de galinha das inúmeras vezes que você me fez sorrir, essa ruga da testa conta quanto tempo durou sua primeira cirurgia”.

Há alguns anos, minha mãe fez na casa dela uma parede de porta-retratos que ela chamou de “parede dos meus mortos”: tem meus avós na lua de mel, sua melhor amiga que partiu e todos que marcaram sua trajetória de 82 anos, mas que dela não mais participam. No começo achei tudo aquilo esquisito e mórbido, mas o amadurecimento me revelou a importância daquela parede. Em cada retrato, um alguém que a construiu; um laço do seu tecido de memória está pregado e emoldurado em seu museu pessoal, feito obra de arte. Assim, ninguém desaparece por completo.

Por vezes, esqueço o rosto das pessoas que amei, que já partiram, e sou tomada por um desespero, como se estivesse na iminência de perder lugares sagrados onde meu coração pousou. Quando a imagem vem, numa lembrança, eu escorrego para dentro dela, tento agarrar aqueles rostos com tanta força que fico até com medo de abrir os olhos e perdê-los outra vez. Semana passada fui visitada pelo sorriso de uma amiga que morreu. A imagem era tão nítida que quase a ouvi gargalhar. De vez em quando, esqueço da minha tia; fecho os olhos com força e a resgato. Estou salva, ela preservada. Sorrio secretamente quando me pego lembrando do olhar do meu pai. Rostos são sagrados.

Meu rosto é um produto

Atualmente, vivemos uma banalização de nossa imagem: o celular que destrava com face ID, o reconhecimento facial no banco, minha foto que avisa minha passagem pelos lugares.

Assim como João e Maria, vamos deixando migalhas de pixel por onde passamos. O tempo todo somos filmados num experimento sem precedentes, invadidos na nossa história pessoal. Grandes empresas colhem nossos dados e estão sempre alertas, tratando-nos como um produto a ser investigado. O objetivo é obter mais lucros, traqueando nossos caminhos, segredos e buscas. Meu rosto hoje virou produto.

O histórico da internet é um mapa do tesouro contemporâneo que revela o que pensei e pesquisei. O aplicativo de trânsito, por onde andei. Tudo que compartilhei já não me pertence mais, e aquilo que não compartilhei, mas procurei, busquei, pesquisei, fica também aprisionado. Há algo que é recolhido de mim, sem que eu mesma perceba.

Shoshana Zuboff descreve a violência dessa experiência no livro A Era do Capitalismo de Vigilância. As grandes empresas funcionam, de acordo com a autora, como os antigos colonizadores que entravam nos países invadindo e doutrinando aqueles que estavam lá anteriormente.

Num conto chamado “Livro de areia”, Borges descreve um livro amaldiçoado, que não possui começo, meio ou fim, cujas páginas são hipnotizantes e aprisionantes – assim como nosso feed, que nos alimenta todos os dias, e alimenta os outros com pedaços de nossa história. Não por acaso, chama-se feed. Nossos dados são alimentos para uma indústria ávida cujo alcance não conseguimos sequer dimensionar. A voracidade do mundo virtual é capaz de engolir nossas almas, nossa imagem, tratando nossa história como mercadoria. Recentemente, li numa matéria que a Amazon está dando desconto de cerca de 10 dólares em crédito promocional se você registrar suas impressões palmares nas lojas sem pagamento que abriu e vinculá-las à sua conta da empresa. “Os dados biométricos são uma das únicas maneiras pelas quais empresas e governos podem nos rastrear permanentemente. Você pode mudar seu nome, você pode mudar seu número de Seguro Social, mas você não pode mudar sua impressão palmar. Quanto mais normalizarmos essas táticas, mais difícil será para escapar delas”, disse Albert Fox Cahn, diretor executivo do Surveillance Technology Oversight.

Nossas digitais estão sendo deliberadamente entregues; damos as linhas da nossa vida de mão beijada.

Minha alma cativa (obrigada novamente, Ney) hoje é cativa da internet.

Meu rosto resgatado

Num trabalho recente, alguns ativistas se uniram para um movimento antivigilância. Iniciado em 2012, realizam oficinas gratuitas conduzidas por tecnólogos que ensinam as pessoas a usar a internet de forma anônima, criptografada. A criptografia nada mais é que o anonimato online. O objetivo: proteção de dados e a tentativa de garantia da liberdade individual, usando aplicativos que não são facilmente rastreáveis, tais como Telegram e Wire, cujas conversas não ficam salvas.

Protestam também contra a banalização de algo tão privado como a imagem pessoal pintando seus rostos, numa tentativa de camuflagem, desenhando formas geométricas, para evitar o reconhecimento facial, que recebe o nome de “antirrosto”.

Por trás desse manifesto há a revelação de um desejo de voltar a se apropriar de si. Ao mesmo tempo, se preciso mudar meus traços para não ser reconhecido pelas grandes empresas, preciso de um disfarce para continuar sendo eu? Só posso ser eu mesma me camuflando?

Ao ler essa notícia, lembrei de um e-mail que recebi de uma amiga que tinha um canal de YouTube. Dizia que havia se cansado da persona que ela havia construído para estar na internet. Contou sobre sua exaustão por tentar editar uma versão de si que lhe trouxesse mais seguidores, o quanto percebeu-se sequestrada em sua identidade ao longo desse processo. Carol voltou a se sentir Carol quando se despediu do canal que ela mesma criou. Qualquer semelhança com Fausto de Goethe ou O Médico e o Monstro não é mera coincidência. 

Porém, como amiga, percebia que mesmo quando a via na internet, conversando com as seguidoras, logo era transportada para o tempo em que eu e ela mais jovens morávamos fora e íamos todo domingo comer falafel, lá pelos anos 2000. Minha amiga não era aquela. Em mim, ela nunca deixou de existir. Ninguém me tira as lembranças da juventude que vivemos juntas e o prazer que sinto ao rememorá-las. Nem a internet, nem o envelhecimento, nem a morte.

Uma história engraçada: numa noite, derrubei vinho em seu laptop. O teclado ensopado chegou até a soltar fumaça. Na manhã seguinte, saímos as duas desesperadas atrás de assistência técnica. Quando finalmente encontramos, o técnico nos olhou, apontou o computador e decretou: “il est mort” (ele está morto). Chateadas, voltamos para casa, até que ela se deu conta de que, estando offline, não precisava mais checar se o ex-namorado estava online no MSN. Isso a libertou para viver sua vida fora das telas. Posso dizer, então, que já é a segunda vez que a vejo se libertar.

A verdade é que, ainda que a internet tente capturar nossa imagem, há algo que sempre será impossível de ser armazenado: a força de nossas memórias. Estas seguirão sempre sendo só nossas. São alimento do meu feed subjetivo, pessoais e intransferíveis. Eu as alcanço ao fechar os olhos, sem precisar de Wi-Fi, e lá sou sempre livre – ando nua, sem pintura, sem tecnologia. Nossas lembranças são um refúgio pessoal e moram numa parede viva dentro de nossos labirintos mentais. Esse tesouro não será entregue jamais para as grandes empresas. Eis nosso ato de resistência.

Não há gigabyte que alcance o cheiro da canja da minha infância ou a visão de minha tia amassando pão de queijo.

E, de vez em quando, passeio por Paris, gargalhando jovem com minha querida Carol, tomando vinho e falando sobre música, ainda que meu rosto revele que há tempos não tenho mais vinte anos. 

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Sempre soube que atores e cantores compartilhavam segredos e afinidades. Assim, quando descobri que o lendário Stanislavski, ao reduzir suas atividades ao máximo em razão de grave enfermidade, manteve apenas dois empregos – um com atores e outro com cantores –, senti-me antes feliz por confirmar uma intuição do que realmente surpreso. Por essa razão, começarei falando de atuação para, em seguida, passar à canção.

Um ator, quando deseja viver de fato a existência de um personagem que ele representa, precisa convencer sua mente, seu cérebro e seu corpo de que aquela situação imaginária é real. Isso que, colocado dessa maneira, parece simples, é um dos desafios mais complexos do mundo das artes, pois significa dizer que um ser humano que tem toda uma vida pregressa (infância, memórias, sentidos, experiências, relações, traumas, conquistas) será capaz de substituí-la por outra vida que nunca viveu (aquela que foi inventada pelo autor de uma peça ou roteirista de um filme para um personagem). Assim, do mesmo modo que um bailarino se capacita para dançar um balé criado por um coreógrafo e um músico desenvolve habilidades múltiplas para, com seu instrumento, transformar em som vibrante uma partitura morta, o ator que se propõe a construir um personagem em si mesmo e dar vida a esse alguém que só existe, em estado de latência, na superfície de um papel, precisa desenvolver um manancial de recursos técnicos que permitam a ele operar esse milagre artístico. Tal milagre consiste em deixar alguém existir fora da mente, para além das palavras adormecidas na folha branca, alguém que possui largura, corpo, volume densidade, cheiro e cor.

Esse trabalho artístico, é bom que se diga, não equivale, em nenhuma hipótese, a enlouquecer ou alucinar. Não terei tempo aqui para expor as diferenças entre o artista e o louco, mas considero uma ofensa a ambos a confusão entre uma vocação profissional e pessoal (inscrita na esfera do trabalho e do desenvolvimento afetivo-intelectual) e as condições mentais e patológicas que, na maior parte das vezes, trazem uma ruptura com as relações afetivas e a realidade, causando dor, alheamento e sofrimento psíquico indescritível para aqueles que as atravessam. O artista pode sofrer de transtornos mentais, assim como alguém pode estar mentalmente adoecido sem professar arte alguma, mas esse tipo de atuação à qual me refiro – cujo grande pioneiro e maior arregimentador de ideias foi Constantin Stanislavski – situa-se na esfera do trabalho artístico e pode ser resumida na seguinte frase de Sanford Meisner, um de seus muitos discípulos: “Atuar é a habilidade de viver verdadeiramente sob circunstâncias imaginárias”. 

Aqui começa minha proposição sobre canção, que em tudo está ligada à atuação e ao título deste artigo: o cantor-intérprete, cujo “eu-pessoal” deseja experimentar a vida do “eu-personagem da canção”, é um cantor stanislavskiano, ainda que não tenha consciência. Ao vivenciar como se fosse seu o sofrimento ou a alegria de um outro ser, no aqui-agora, o cantor se aproxima do ator realista, ou seja, ele se propõe a ocupar seu próprio rosto com a máscara de outrem (do personagem criado pelo compositor), dando a esse outro uma existência que se funde à sua, por meio de um processo complexo que, na área da atuação, chama-se “construção de personagem”. Quando Elis Regina, em sua antológica versão de “Atrás da Porta”, debulha-se em lágrimas ao entoar o drama e os conflitos vivenciados pela mulher retratada na letra de Chico Buarque, é óbvio que ela não está representando mecanicamente uma ideia alheia e generalizada de sofrimento. Ao experienciar a dor profunda da personagem, a intérprete está, tal qual um ator realista, entrando em fase com a estrutura do conflito – no caso específico, o tormento da separação, do abandono e da solidão – a partir de suas próprias experiências pessoais. Elis é capaz de sentir, “em tempo real”, uma dor que não é sua, ao menos naquele momento, porque consegue vivenciar em seus afetos as circunstâncias que lhe foram dadas pelo autor da música. Desse modo, seu corpo, sua psique e sua voz são envolvidas por condições afetivas que, naquele exato instante, não estão ocorrendo. Isso é a verdade absoluta da ilusão, a fé cênica cujo apelido é máscara. 

A verdade da máscara, por sua vez, contrapõe-se à ilusão da vida. O teatro do real, da vida real (que não se confunde com o teatro realista), nada mais é do que a encenação socialmente endossada de circunstâncias dadas por um ator desconhecido (ou por múltiplos atores invisíveis). Se a filha de fulano é aprovada em um concurso para a magistratura, ou se beltrana é eleita deputada, ou se sicrano é vencedor do Big Brother Brasil, ninguém questiona o quão irreal é esse jogo de máscaras. Todavia, tanto a juíza quanto a deputada e o vencedor do Big Brother são ilusões enunciativas de uma sociedade que pode desfazê-las a qualquer tempo, desde que um processo histórico se constitua como tal. A essa instável ilusão, costumamos dar o nome de realidade. Porém, basta que uma desventura histórica permita a um capitão de fragata qualquer romper a ordem democrática e o juiz será destituído, o cargo de deputado extinto e os personagens lançados em outros papéis (quanto ao Big Brother, salvo raras exceções, o próprio tempo se encarregará de destituí-lo). Por isso, para quem deseja realmente entender sobre a verdade, o primeiro critério é saber que ela é absoluta na medida das construções sociais, mas nem por isso é mentira; verdades são entes concretos que operam em nossas vidas até que sejam substituídas por outras mais efetivas. 

Neste trecho de meu artigo, faz-se necessário um pequeno aparte para tratar da expressão “ilusão enunciativa”, que foi retirada do artigo de Luiz Tatit, a “Ilusão enunciativa na canção”. Ilusão enunciativa é um termo brilhante (e cauto) do igualmente brilhante (e cauto) Luiz Tatit – cancionista, compositor e linguista –, utilizado para descrever o processo que, segundo ele, faz com que o ouvinte de canção tenha sempre “a sensação de que os sentimentos descritos nos versos são vivenciados aqui e agora pelo cantor”. Tatit afirma que o canto tem o poder de transformar o “ele” em “eu”, ou seja, o personagem da canção se transforma na figura do próprio cantor, e segue dizendo que “a expressão direta do ‘eu’ na letra de uma canção (…) produz no ouvinte a ilusão de que o intérprete fala de si como ser humano”. Mas Tatit vai além. Ele propõe que, mesmo quando a letra está em terceira pessoa, as modulações da voz e a própria melodia se encarregam de aproximar o cantor do personagem da canção: “Lembremos da canção Domingo no Parque (Gilberto Gil), cuja intensa expressão melódica do intérprete (eu) elimina qualquer possibilidade de isenção enunciativa, ainda que a letra se construa em terceira pessoa e tente se ater aos fatos e à descrição dos sentimentos que geraram a crise entre ‘João’, ‘José’ e ‘Juliana’. Não se pode negar que o aumento progressivo da tensão emocional que afeta o personagem ‘José’ (ele) se manifesta claramente nos contornos melódicos realizados pelo eu-cantor”. E, para que restem comprovadas suas proposições, ele afirma ainda o seguinte: “Os sentimentos atribuídos a ‘ele’ (o personagem da canção) são infletidos pelas modulações vocais do intérprete, portanto, do ‘eu’ (o cantor). Tudo que a letra desconecta da enunciação, a melodia se encarrega de reconectar.

Essa digressão sobre o artigo de Tatit, longe de ser gratuita, é pedra fundamental para o entendimento do que estou a discorrer: a ilusão enunciativa é um conjunto maior dentro do qual o cantor-ator-realista é um subconjunto. O intérprete que vivencia a experiência do personagem como se fosse sua, no aqui-agora, é, para pegar um termo emprestado da biologia, a espécie dentro do gênero. Minha proposição deixa entrever o seguinte: há muitas maneiras de se aproximar do material cancionístico; uma delas assemelha-se ao modo como o ator realista stanislavskiano lida com seu material. Eu, particularmente, adoro esse tipo de interpretação. Amo a catarse e o aprendizado sobre a vida que tiro da observação ativa de uma existência se abrindo à minha frente. Mas, por outro lado, também venero cantores cuja experiência artística é proposta sobre outras relações com o material – por exemplo, a sensualidade somática e rítmica da letra, em que o vigor das sílabas e os ataques às notas ganham proeminência sobre a narrativa. Refiro-me aos cantores dos fluxos somáticos, corporais, aqueles em que a musicalidade das palavras e da melodia são vivenciadas com uma importância cem vezes maior do que um suposto sentido da letra. João Bosco, Marvin Gaye, João Gilberto, Mayra Andrade, Fatoumata Diawara, entre muitos outros, são cantores capazes de construir narrativas sensoriais para além do sentido literal das frases e sentenças, levando-nos a uma outra modalidade de fruição artística, que passa pela potência dos timbres, dos sons, das articulações vocais que moram numa outra dimensão da palavra. Eles também usam máscaras, mas, em muitas canções, trata-se de uma máscara sonora que em tudo se difere da máscara-personagem. 

Finalmente, a respeito da máscara, vale dizer que a verdade do cantor que se coloca no lugar do personagem da canção é referendada por um item apenas: a fé cênica. A fé cênica, por sua vez, não reside na consciência ou no intelecto do cantor, mas em seu corpo, em seu comportamento, nas respostas motoras e sensoriais que são acionadas pelo intérprete no momento exato em que ele se sente fundido, transfundido e confundido com o eu-personagem da canção. É somente a partir dessa simbiose física, mental e espiritual que o artista sangra e sua, chora e ri, toca e sente os conflitos da personagem como se fossem os seus e, o que é mais importante, age e reage a estímulos que nascem de seu inconsciente, dando vazão a impulsos tão surpreendentes que podem espantar tanto quem ouve quanto o próprio intérprete. Essa capacidade de alguns cantores de entrar em conjunção com o “eu da canção” parece-me muito semelhante à do ator stanislavskiano no seu processo de construção de personagem. Para além da ilusão enunciativa, brilhantemente proposta por Tatit, interessa-me conhecer melhor os procedimentos utilizados por intérpretes relevantes da música brasileira, cuja formação teatral, na maioria das vezes, é inexistente, para convencer sua psique de que ele (cantor) e o “eu da canção” (personagem) são um só.  

Já ouvi, por diversas vezes, fofocas, anedotários, relatos impublicáveis de estratégias utilizadas por cantores e cantoras para gravar suas canções com esse elã de verdade. Durante muito tempo, deixei-as, por pura ignorância, no terreno do exotismo. Hoje compreendo que o que há ali é a construção intuitiva de uma técnica, de um experimento, de um processo que, se não for pesquisado, permanecerá eternamente no terreno mágico do segredo. A verdade das máscaras é tão real (e fascinante) quanto a ilusão da vida.

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Ninguém é tão parecido assim consigo mesmo. Exemplo casual mas significativo: depois da caracterização de Bruno Ganz (em A Queda! As últimas horas de Hitler), o famigerado teria muito o que aprender para se tornar outra vez parecido consigo mesmo.

Concluído o célebre retrato de Gertrude Stein, como sempre, não faltaram fariseus para reclamar que não estava nada parecido com a escritora. Picasso: não se preocupem, vai ficar.

Giacometti recusava a abstração, mas, evidentemente, desdenhava a mímesis tradicional. Passou a vida buscando, ansioso, o que chamava de ressemblance. Na versão cézanniana do artista, uma espécie de ontologia das aparências, o termo não consente tradução corriqueira. Semelhança, a tradução oficial, é palavra inócua. Só me ocorre um monstrengo: parecença. Algo que liga vagamente tudo a todos; no entanto, exige da parte do retratista a exata particularização. Só assim ele alcança o estatuto de mestre das aparências: o parecençador. 

A imagem imobiliza as aparências. Interrompe seu fluxo, fixa uma presença ostensiva. Imagem deriva da imago, a imagem do morto. Desde logo, pertence ao passado. A câmera fluida de Cartier-Bresson, porém, derrota o seu mecanismo: ela não reproduz; produz novas aparências. Por osmose. 

Giulio Carlo Argan, o grande historiador de arte italiano, era um crítico ideológico da pop art. Isso não o impediu de acertar na mosca ao definir Warhol como o técnico da imagem. Ele sabia instintivamente que o próprio da imagem é a evanescência, a rápida decrepitude. Por isso a captava sempre no início do declínio, nunca em seu volátil apogeu. Daí a aura de irrealidade que cerca suas Marilyns, sensacionais, meio fora de foco. Daí também a afinidade entre a expressão um tanto parva da personagem e o fetichismo que alimenta o mito das celebridades.

Desconheço, na história da pintura, rosto mais inexpressivo do que o de Filipe IV da dinastia dos Bourbon. Com o perdão de seus descendentes, eu diria que se aproximava bravamente do perfeito pateta. Sequer exibia a feiura agressiva dos modelos de Goya. Pois é, Velázquez transfigurou esse tipo ingrato num conjunto incomparável de telas. Nunca a luz da pintura brilhou tanto, inclusive nos famosos pigmentos negros espanhóis. Moral (meio abstrusa, reconheço) da história: nenhum rosto é tão íntegro assim que não permita descaracterização. O rosto de Filipe IV, felizmente, virou parte da paisagem. 

A aproximação entre Shakespeare e Rembrandt é moeda corrente na história cultural do Ocidente. O crítico literário Harold Bloom não fez por menos: nomeou seu monumental volume sobre Shakespeare A invenção do humano. Do mesmo modo, caberia muito bem chamar os autorretratos de Rembrandt “A invenção do rosto”. Pela primeira vez, na civilização cristã europeia, o homem mostrou, à vera, seu rosto pessoal e mortal. Sentimos o halo do frio, ou do álcool, que exala o pintor enquanto pinta. A chama de vida nos retratos de juventude, a amarga e digna sabedoria naqueles de sua velhice. A alma encarna de cima para baixo em Michelangelo; em Rembrandt, a alma encarna de baixo para cima. 

Iberê tem um pequeno autorretrato, capa de um dos livros reunindo sua obra, que resume sua trajetória de sulista visceralmente ligado à terra. É de um verde pastoso, acinzentado, com uma tinta espessa e viscosa, enlameada, que vai se revolvendo até plasmar a fisionomia incomum do artista. “Sou um homem da planície”, costumava dizer, isto é, reduzido ao básico, sem o sublime das montanhas, distante do mar atraente ou tempestuoso. Tinta, matéria orgânica. 

O que vemos no espelho é uma imagem do passado. Nosso rosto atual jamais coincide com ela. Tanto que está sempre mudando, e não enxergamos o processo. Ninguém conhece o próprio rosto. Estamos à mercê dos outros. O onipresente dito sartriano, contudo, é só uma frase de efeito – o inferno são os outros. Mentira: não conhecemos nenhum dos dois.

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Criar e estampar os tecidos. Há mais de 40 anos, essa é a vida do artista plástico baiano Alberto Pitta, idealizador e fundador do Bloco Cortejo Afro – bloco que nasceu no bairro de Pirajá (Salvador) e, nos seus mais de 20 anos, tem exaltado a fantasia, a poesia e a cultura negra com um repertório relevante e original, valorizando aspectos da cultura africana contemporânea.

O filho da educadora, bordadeira e ialorixá Mãe Santinha de OYÁ – grande inspiração e razão para ter seguido o caminho das artes – sonhava em ser goleiro de futebol, até que surgiram os blocos Afro, que trouxeram toda uma proposta estética de empoderamento para o carnaval baiano no final dos anos 70 – um discurso que nos trouxe até aqui e que faz da Bahia um lugar diferente no Brasil.

“A partir desse movimento do Ilê, da década de 70,
tudo foi mudando na cidade”

SUAS ORIGENS E INFLUÊNCIAS

Minha arte vem da minha mãe (Ialorixá Anísia da Rocha Pitta e Silva, Mãe Santinha de Oyá), como era conhecida a antiga líder do terreiro Ilê Axé, porque ela, além de educadora, trabalhando em escolas, era uma bordadeira. Então, tinha todo um processo criativo ali, para você bordar, fazer um Richelieu, e tudo aquilo desde o início me interessava. Um segundo ponto era pelo fato de minha mãe ser uma ialorixá. Isso significa terreiros de candomblé, histórias, religião, religiosidade e os elementos que compõem os terreiros, além das indumentárias, das ferramentas dos orixás, dos animais, dos adereços. Tudo isso foi me chamando atenção por uma questão, a princípio, estética. Um terceiro ponto foi o surgimento dos blocos Afro. Eu já gostava muito dos blocos de índio, então me interessavam muito os desfiles do Apache, do Comanche, Caciques, Guaranis e Tupis. Depois, vieram os Blocos Afro e surgiu o Ilê Ayê, com toda uma proposta estética de empoderamento, um discurso pan-africanista, e tudo aquilo foi me interessando. Como eu já gostava do carnaval, resolvi mergulhar no universo dos Blocos Afro e Afoxés. Na época, eu já fazia serigrafia, e dali para passar para o processo criativo e ser convidado a fazer parte de grupos e blocos, foi um pulo. Estamos falando do final dos anos 70. Antes disso, era mais o interesse pelos desfiles: como aquilo era feito, de onde vinham aqueles grupos, acompanhar ensaios. Porque tinha uma negrada se movimentando e interessada num discurso – um discurso que nos trouxe até aqui e que faz da Bahia um lugar diferente no Brasil, a partir das cores do Ilê Ayê. Eu sempre entendo assim: a partir desse movimento do Ilê, a partir da década de 70, passando pelos Blocos de índio, tudo foi mudando na cidade. Então meu trabalho foi esse. Ele vem nessa esteira, do chamado carnaval negro baiano, e eu estou organizando, justamente agora, um livro contando essa história, esses mais de 40 anos fazendo tecidos para os Blocos Afro e Afoxés.     

RELAÇÃO COM O ESPORTE

Eu sempre quis ser jogador de futebol. Não é como hoje, que os pais colocam os filhos na escolinha. Na época, jogar bola era sinônimo de malandragem.

Meu pai não tinha interesse que eu fosse jogador, gostaria que eu fosse mecânico, chapista, assim como ele. Que tivesse uma profissão que me garantisse financeiramente. Se de fato eu mergulhasse no futebol, sei que teria toda possibilidade, e numa posição difícil, de goleiro. Então treinava nos times aqui de Salvador tranquilamente, fui aprovado e fiquei um tempo no Botafogo, mas aí deixei e me enveredei pelo caminho das artes. 

RELAÇÃO COM O ESPORTE CLUBE YPIRANGA

Eu tinha um primo de Cachoeira (BA), Evandro Soares, que era juiz de futebol e advogado. Ele era torcedor do Ypiranga, e o futebol da época não tinha grandes empresários. Teve um momento em que ele até levou o material do time na minha casa, para minha mãe benzer, aquelas coisas do futebol baiano. O time do Bahia fez muito bem isso, essa aproximação com as religiões de matrizes africanas. Quando vi aquelas cores, me interessei por tudo aquilo. Quando cheguei a treinar na Vila Canária (Time Ypiranga) em 1977, fui até convidado por Emerson Ferreti (que foi goleiro do Bahia, Flamengo, Grêmio e Vitória) para fazer parte da Diretoria do Ypiranga. No ano em que ele saiu como candidato a presidente, me convidou para ser vice na chapa, e aí eu fui vice-presidente do clube por 4 anos. Isso eu estou falando de 4 anos atrás. Mas até hoje faço parte do Conselho do Ypiranga, com reuniões de 15 em 15 dias. O clube surgiu em 1906, como um time feito, na época, para negros jogarem bola. Essa foi a ideia do Ypiranga, com suas cores amarelo e preto, e por isso que a capoeira angola tem essas cores. Ypiranga era o time de muitas personalidades, como Mestre Pastinha, Irmã Dulce, Jorge Amado e Zezinho (pai do Caetano Veloso).     

“Por que eu vou fazer só para negros comprarem
meu tecido e vestir?“

USO DAS SIMBOLOGIAS DO CANDOMBLÉ ALÉM DOS BLOCOS AFRO

Eu acho que tudo faz sentido. Lógico que você tem que saber como. O que é que você está usando? O que é que você está fazendo? O que significa isso? De onde vem? Você tem que ter ideia dessas coisas. Mas, por outro lado, também é uma forma de perpetuar e divulgar. Hoje nós temos vários cânticos e várias músicas de candomblé, gravadas por artistas que usam algumas como refrões de suas canções e muita gente acha que não deveria, mas essas canções podem sumir. Tem dezenas delas que ninguém sabe mais e que se foram com a Mãe Menininha do Gantois, por exemplo. Eu lembro que Zeno Millet (neto de Mãe Menininha) chegou para mim uma vez e falou: “Poxa, Pitta, sobre essas coisas de símbolos, de signos, dessas histórias, você sabe mais do que eu. É verdade! Minha avó compôs várias canções que nós não soubemos aproveitar e tornar isso público. Terminou virando canções de domínio público. Quem fez? Quem é o autor? Ora, alguém escreveu”. Ele estava falando sobre essas coisas, e até cantou uma ou duas canções. 

O próprio Carybé foi isso a vida toda. Um cara que sai da Argentina, chega nesse lugar e diz: vou ficar por aqui. Porque me identifiquei com isso! E a vida dele toda foi isso. A arte de Carybé é pautada justamente no terreiro de candomblé. Enfim, mas também está registrado, senão essas coisas se perdem. Daqui a 50 anos, um monte de coisa você não vai mais saber sobre. Se não estiver registrado, se não estiver pintado, se não tiver virado publicação, se não for cantado, some. Isso é fato! Nesse sentido, eu não tenho nada contra.

Eu acho que tem que se ter respeito em tudo que se faz. Pode ser nas religiões de matrizes africanas, de outras matrizes ou qualquer coisa na vida. E também sobre a questão da apropriação cultural, eu não tenho muita preocupação com isso. Lógico, como eu falei, tem que ter respeito. Você vê uma mulher loira com o cabelo trançado, ornado com contas, e diz “aquilo não pode, é apropriação cultural!” Eu não vejo problema, porque a questão não é ela ter feito isso, e sim eu fazer isso e ser barrado no shopping ou coisa semelhante, por conta da minha estética, e ela não. Então é esse equívoco que temos que combater, e não o fato de as pessoas usarem as cores, saírem com uma roupa nas cores do Ilê Aiyê, com o cabelo trançado, sendo pessoas brancas. Acho que a conversa é outra. Até porque você vai no Centro Histórico e dezenas de turistas o tempo todo estão fazendo tranças com as trançadeiras negras, que sobrevivem disso. Porque dificilmente vai aparecer uma preta e sentar ali para ser trançada. As pretas trançam seus cabelos em casa. Elas já se conhecem, ligam ou vão até sua trançadeira e já têm quem pega na sua cabeça. Porque nem todo mundo gosta que qualquer um pegue em sua cabeça. Mas as pessoas brancas não estão nem aí. Eles se interessam pela estética, vão lá, sentam, pagam cinquenta, cem reais, e a trançadeira resolve a vida. Como é que você conta essa dita apropriação cultural? A mesma coisa digo dos tecidos. Eu estampo em tecido, e um metro de tecido meu é caro! O de Goya Lopes é caro, a arte de J. Cunha é cara. Então, se você pode comprar, você vai comprar. Por que eu vou fazer só para negros comprarem meu tecido e vestir? Não. Quando eu faço, eu quero vender. Porque aí eu sei que vou poder fazer mais. Vou poder fazer mais coisas. Então tem o interesse comercial. É você aprender a lucrar em cima da arte. Caetano já fala isso na música. Se você ouvir o álbum O Sorriso do Gato de Alice, tem um trecho da canção “Bahia, Minha Preta” que fala isso: “Vender o talento e saber cobrar, lucrar”. Tem que entender até onde vai o limite dessas coisas. 

Se você pensar em cota, aí já é uma outra história. Eu tenho meu bloco aqui com 100 fantasias e vou priorizar segmentos, porque é de interesse meu para a construção do meu próprio trabalho e do que eu estou fazendo ali. Mas, de fato, eu quero que todo mundo saia no bloco e quero que paguem. Tem uma classe média branca que se interessa pelo Cortejo Afro, e eu quero que paguem por isso. Não tenho nenhum problema! Até porque 70% do público do Cortejo Afro, nos ensaios, são brancos e LGBTQIA+, e quando eu saio dali, venho e boto aqui.

Se você olhar as salas lá em cima, que estão em reforma, eu tenho a vista da bacia. Pego a grana e faço coisas, porque eu gosto do que é bom. A pobreza tem que passar longe da gente. Eu trabalho com estética, e não posso pensar em pobreza. Preciso pensar em riquezas, que é uma herança nossa. Você não pode ter medo das coisas. Eu não tenho medo de absolutamente nada. Eu tenho medo de mim, pelo fato de não ter medo de nada. Eu vou e faço minhas coisas o tempo inteiro. Faço uma história no carnaval, as pessoas olham e dizem “não entendi”. Ótimo que você não entendeu, mas só pelo fato de você dizer que não entendeu, você já observou, você já pensou sobre o processo e, depois, você busca a resposta. A que você encontrar, é! Então não tenho nenhuma preocupação com essa questão de apropriação, de símbolos, signos ou da questão estética das roupas, das batas, dos vestidos.

Outro dia eu vi uma mulher no shopping com um vestido preto longo, de Goya Lopes, e estava lindo demais aquilo. Uma mulher branca, aparentemente de classe média, que foi ali e pagou uns R$ 600, naquele vestido. E, com certeza, Goya já pôde pagar o funcionário que estampou aquele tecido, e está resolvido. Daqui a uns anos, a mulher que comprou ainda terá o vestido e vai lembrar da artista Goya Lopes. Uma artista negra engajada, que tem um discurso, sabe das coisas. Eu quero que Goya se dê bem, e eu também quero me dar bem. A gente tem que se dar bem, e não podemos ter medo de comprar o carro e pensar que vão falar: “Olha lá o cara. O dono do bloco”. É o quê? Vovô do Ilê vai ter que ficar andando a pé para provar o que, para quem? João Jorge (diretor do Olodum) tem que ter o carro dele. Carlinhos Brown fala isso o tempo inteiro: “Como é que eu vou ter vergonha de comprar uma cobertura? Se eu tiver a grana, eu vou comprar mesmo e acabou a história”. Quando ele fez Guetho Square lá no Candeal, foi um efeito estético. Depois do Guetho, de toda história de Brown com a Timbalada, pode descer, é tudo pavimentado. Antes era um esgoto a céu aberto. Não havia interesse e ninguém olhava aquele lugar. Hoje as casas são pintadas, decoradas, com grafismo que veio através desse processo.

BLOCO CORTEJO AFRO 

O Cortejo Afro foi idealizado e fundado por mim em 1999 e surgiu da necessidade de reafirmação dos valores e aspectos da cultura negra na Bahia, respeitando a diversidade e incorporando novos elementos, visando ao crescimento das comunidades do século XXI.

A concepção artística do Cortejo Afro se apresenta através de releituras de sons e ritmos e resgata as cores perdidas do carnaval baiano, reafirmando seu conceito ético e estético.

Minha intenção é resgatar as cores, sons e ritmos do carnaval que o tempo se encarregou de apagar, tornando a maior festa popular do mundo numa pasta só. Daí a introdução predominantemente do branco sobre branco, azul e prata, que são cores de Oxalá. Já os grandes sombreiros visam passar o visual dos reinados das tribos africanas, especialmente de Benin, Costa do Marfim, entre outros países africanos. Arto Lindsay, Davi Moraes, Caetano Veloso, Gerônimo, a cantora islandesa Björk, Dog Murras, além de participarem dos tradicionais Ensaios do Cortejo Afro, no Centro Histórico de Salvador, também fizeram participações nos Carnavais, junto com o Cortejo Afro em cima do trio elétrico.

ARTES PLÁSTICAS COMO DESLOCAMENTO E TRANSFORMAÇÃO      

Eu estou fazendo agora um trabalho com a estilista Mônica Anjos. Ela quer fazer um trabalho com dança que vai lançar no São Paulo Fashion Week. Eu disse para ela: tenho um limite. Então eu estampo 200m de tecido com três tipos de estampa, que vão lhe sugerir movimento. Ela esteve aqui e já sugeriu outras coisas. Ou seja, seu trabalho, por si só, já causa um deslocamento estético. Eu estou com uma série que chamo de Mariwô. Primeiro, eu faço as ferramentas dos orixás e, depois, estampo o Mariwô sobre elas. Aí essas ferramentas passam a ser a coisa secundária. O Mariwô, falando de modo geral, é aquela palha de Ouricuri que fica nas janelas e nas portas dos terreiros de candomblé, que é um elemento de proteção. Essa série terá 16 orixás, criando símbolos e signos que os representam. Você pode ver, aqui, que eu sou um artista da contramão nessas coisas das telas. Normalmente usam cavaletes, sentam e ficam pintando. Eu coloco a tela aqui e faço aí. Então, se um metro de tecido meu custa R$100 essa tela aqui vai custar R$20.000. 

Eu estou com uma série que chamo de Mariwô. Primeiro, eu faço as ferramentas dos orixás e, depois, estampo o Mariwô sobre elas. Aí essas ferramentas passam a ser a coisa secundária. O Mariwô, falando de modo geral, é aquela palha de Ouricuri que fica nas janelas e nas portas dos terreiros de candomblé, que é um elemento de proteção. Essa série terá 16 orixás, criando símbolos e signos que os representam. Você pode ver, aqui, que eu sou um artista da contramão nessas coisas das telas. Normalmente usam cavaletes, sentam e ficam pintando. Eu coloco a tela aqui e faço aí. Então, se um metro de tecido meu custa R$100 essa tela aqui vai custar R$20.000. 


Capa do livro Em Tempos de Cárceres, composto por obras feitas no primeiro ano da pandemia e inspiradas nas pinturas rupestres

Também estou com uma série Tempos de Cárcere, que fiz de março até o final do ano. Com a coisa da pandemia, que ninguém esperava, eu pensei: na pandemia, o que eu vou fazer? Acabou o carnaval e eu sou um cara do carnaval. Mas eu percebi que iria piorar, porque já saímos do carnaval 2020 com notícias disso. Só não levamos fé! Então o que vou fazer? Estou em cárcere. Como eu gosto das figuras rupestres, me baseei nisso, nessa paleta de cores das cavernas. Porque estamos em lockdown, ou seja: estamos em cavernas. Para mim, a tradução de lockdown é caverna, movimento rupestre. Isso foi no ano passado. Agora estou na série Mariwô, que também é tudo por trás, tudo escondido. Tudo nesse sentido. Criações em tempo de pandemia. Quem tem essa sorte, de se dar ao luxo de trabalhar com arte como eu, consegue atravessar, mas tem gente que não tem para onde correr e cai em depressão. 

PROJETOS SOCIAIS DO INSTITUTO OYÁ

Aqui é um Terreiro de Candomblé, e nós temos o Instituto Oyá de Arte e Educação. Foi fundado pela minha mãe (Mãe Santinha de Oyá) e minha sobrinha, que herdou a casa. Ela toca o trabalho social do Instituto, que é um trabalho junto à comunidade, com crianças e adolescentes, acompanhamento escolar e pedagógico, como parte do Oyá Educa e o Oyá Criativa, que é esse da questão estética, com cursos de estamparia, moda, corte e costura, percussão, teatro e capoeira. Tem essas duas vertentes dentro do trabalho social do Instituto. É o Candomblé mais uma vez dizendo: olha, estamos aqui, a serviço da comunidade.

PROJETOS ARTÍSTICOS FUTUROS 

Saímos recentemente do projeto Histórias em Tecidos, com três lives, sobre a ideia de escrever e contar histórias nos panos dos Blocos de Índio, Blocos Afro e Afoxés. Porque os tecidos dos blocos têm essa função de contar histórias. Agora o outro resultado disso é o lançamento do livro Histórias em Tecidos – O Carnaval Negro Baiano. Vai ser uma série de estampas, que será lançado em novembro pela Fundação Pedro Calmon, que já demonstrou interesse.

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Um olhar Pankararu sobre a missão Mário de Andrade

por Maria Nazaré dos Santos Pankararu

O presente texto tem como objetivo trazer um olhar Pankararu em relação ao termo “folclórico” atribuído à tradição Pankararu, presente nos registros da Missão de Pesquisas de Mário de Andrade. Neste sentido, falaremos de aspectos do ritual Corrida de Imbu, procurando trazer elementos do sagrado e do espiritual em contraponto à ideia de popular.

Somos povos originários filhos da mãe Pindaé, surgimos das locas das pedras, vivemos gerações nas serras, grotas, cachoeiras e Opará. Resistimos por 520 anos a um contato originado com a invasão europeia em nosso mundo e suas práticas de barbárie, negação, silenciamento e apagamento das línguas, culturas e povos indígenas em nosso próprio mundo.

As diferentes organizações impostas na contemporaneidade jamais exterminaram nossa ciência encantada porque ela está além do concreto e do visível. É um espaço que os não-indígenas jamais poderão enxergar. Motivo esse que leva nossos grandes sábios a salvaguardar nossos saberes e experiências cotidianas e tradicionais.

Ser detentor dos saberes tradicionais não está meramente no próprio querer, no desejar ser. Depende de uma ordenança ancestral, que tem uma forte ligação com o dom e o merecimento.

Temos como reflexão o acervo da comissão de Mário de Andrade, da capital de São Paulo, do ano de 1938, cuja missão foi documentar e registrar as pesquisas folclóricas da Região Nordeste. A referida missão explicita, em seu acervo, a negação da diversidade sociocultural do Nordeste, bem como das sociedades não-indígenas dessa região. Mostra as belezas culturais de todos os povos indígenas e sociedades, mas numa única ótica, que unifica as lentes das múltiplas culturas.

Ainda que os fenômenos socioculturais e cosmológicos sejam desconhecidos e invisíveis para sociedades não-indígenas, nós somos a resistência viva. Nossas vivências e experiências e nossa historicidade territorial mostram nossos sentimentos de pertencimento e afirmam nossa valiosa identidade étnica e cultural.

Atualmente, as crianças aprendem acompanhando os jovens, os seus pais, homens e mulheres, na afirmação do conhecimento através das práticas dos nossos patrimônios culturais. Ainda que interajamos com outras realidades das sociedades contemporâneas, nossas missões aqui são essenciais, e jamais esquecidas ou apagadas do que somos. Nada vai nos excluir, ou nos fazer deixar de ser Pankararu. Mesmo que sejamos até vaidosos, isso não fere nossos valores quando entendemos nossos limites e regras, até onde podemos ou não interagir com outros mundos. Essas são liberdades respeitadas por todos nós, durante gerações e gerações.

Dentro dessas organizações sociais, tanto nos movimentos de luta quanto nas tradições culturais, quero aqui destacar a presença fundamental da mulher. Ela merece destaque por cumprir fortemente suas missões sociais e na religiosidade. Nossas mulheres pertencem a diferentes espaços, conforme suas determinações e ordenanças, através de seus dons e merecimentos da ciência sagrada, expressos por elas próprias, e não por uma indicação. 

Nosso mundo encantado é uma realidade viva de conhecimentos, comunicação, orientação, união, fortaleza e cura. Então, homens e mulheres têm missões iguais e diferentes, que emanam do conhecimento coletivo da ciência sagrada, sem superiorizar ou inferiorizar um gênero. Nossas cerimônias, rituais, toantes (cantos) e danças, todos têm regras, valores e significados, vividos e respeitados por todos nós, homens, mulheres, crianças e jovens. Na verdade, nossa cultura não tem explicação; as obrigações cerimoniais acontecem em qualquer espaço, tudo depende da necessidade, do tempo e, também, do merecimento de se atender ao chamamento.

Mesmo lutando contra as contínuas e graves violações dos nossos direitos, os prejuízos irreparáveis ao nosso povo, não perdemos a especificidade da religiosidade cultural e social. Resistimos sempre, através dos conhecimentos tradicionais das Corridas de Imbu, do Menino do Rancho, das Três Rodas, da medicina indígena, etc. Interagimos com o mundo contemporâneo e tecnológico onde as mudanças acontecem naturalmente de uma era para a outra, dependendo do tempo e do espaço em que se encontram, de como se complementam na coletividade cotidiana e da ciência. Isso porque entendemos a dinâmica da cultura e mantemos muito forte a continuidade das nossas práticas culturais.

As Corridas de Imbu são parte de nossa ciência e se iniciam no final de cada ano, quando um Pankararu encontra o primeiro imbu maduro, que não pode chupar e deve levar para o terreiro do poente. Regra esta que respeitamos e tememos com muita fé aos mestres encantados. Assim que o imbu é entregue, é comunicada a chegada do tempo para o fechamento do imbu. Os toques das gaitas soam pelos ares anunciando a todos que seguem ao terreiro do poente. Ao som dos maracás, do rabo de tatu, cantam, dançam e pisam com fé, seguindo o batalhão que guia o povo para o terreiro do muricizeiro, espaço sagrado que faz parte da tradição. Assim, homens e praiás se preparam, carregando arcos e flechas, para flechar o primeiro imbu maduro, que já se encontra pendurado entre duas forquilhas no meio do terreiro.

Logo que se cumpre essa obrigação no finalzinho do dia, a guardiã, que é a mulher mais velha, se aproxima e entrega uma ponta de um imenso cipó ao povo do lado do nascente e outra ponta ao povo do lado do poente. É um momento de firmeza e concentração, em que o cipó é movido pela fé e a força de todos nós que compomos cada ponto do terreiro. Assim, o cipó pode descer para o poente ou subir para o nascente.

Quando o cipó desce de cabeça para o poente, os olhares de todos brilham de alegria e saúdam a mãe-natureza pela certeza de um ano bom, com chuva e muitas farturas para nós. Porém, quando o cipó sobe de cabeça para o nascente, a natureza nos comunica que o ano nos trará sérios castigos: seca, doenças e mortes…

O cumprimento desse reconhecimento da primeira parte acontece no domingo, completando os quatro finais de semana, sendo cinco sábados e quatro domingos. O primeiro sábado é determinado somente para o chamamento das moças que terão a obrigação de botar o cesto no terreiro e dançar as pombas durante os quatro sábados à noite, seguidos da queima do cansanção durante três domingos, pois no quarto e último domingo não acontece a queima do cansanção.

Essa tradição é uma viagem sagrada, no tempo e nos referidos espaços, dando continuidade à sabedoria dos nossos antepassados. Durante os quatro sábados no terreiro do poente, na calada da noite, ao clarão do luar e de uma fogueira, homens, mulheres e crianças obedecem e se entregam ao chamamento de cada cantador, com os praiás vadiando (dançando) por todo o terreiro. Depois da meia-noite, a Lua já nas alturas, a grande sábia pisa no terreiro, cumprindo sua missão tradicional. Este é o momento dos passos, das pombas ou das tubibas, ciência inexplicável, dotada de uma única sábia que conhece os cantos, o tempo, o aviso e a ordenança de passar essa obrigação para outra pessoa.

Já no clarear do dia dos quatro domingos, as moças vão apanhar os imbus, que são o elemento principal e essencial para se botar nos cestos e levar para o terreiro. Crianças, mulheres e homens com a pintura corporal sagrada, o santo barro branco, como seu feixe de cansanção, seguem com seu batalhão dos praiás para o terreiro do Aratikun. Chegando ao terreiro do muricizeiro, os cestos já estão em fileiras, embelezando o terreiro, onde são marcados com uma varinha pelos seus donos. No último domingo da corrida, todo o povo sobe a serra para o ajuntamento do encontro com o grande mestre, o Mestre Guia. Essa ciência nos encanta e, no silenciar do nosso mundo, a natureza nos comunica que é chegada a hora do nosso mestre dos mestres vir benzer e curar nossa nação. É essa força viva que nos une e fortalece a nossa identidade étnica.

Também temos outros rituais, como os já mencionados Menino do Rancho e Três Rodas, em que cumprimos essas obrigações dançando três torés, que significa para nós uma vitória ou uma graça alcançada. O toré é celebrar a relação viva com a natureza e os encantados. É o momento de saudar e agradecer aos nossos encantados.

Essa tradução da fé e do sagrado Pankararu que trazemos aqui através da escrita busca romper com a ideia de folclore. Embora o folclore tenha seu valor cultural, são valores diferentes.

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Pâmela Carvalho Foto © Douglas Lopes

Se você tá a fim de ofender
É só chamá-lo de moreno, pode crer
É desrespeito à raça, é alienação
Aqui no Ilê Aiyê a preferência é ser chamado de negão
Se você tá a fim de ofender
É só chamá-la de morena, pode crer
Você pode até achar que impressiona
Aqui no Ilê Aiyê a preferência é ser chamada de negona

(“Alienação” – Ilê Ayê)

#37Futuros PossíveisArteCulturaMúsicaSociedade

“A preferência é ser chamada de negona”

por Pâmela Carvalho

Em 2015, Mario Pam e Sandro Teles escrevem “Alienação”, no contexto do movimento artístico-político Ilê Ayê. E é com o Ilê que começaremos este breve caminho por algumas cidades do Brasil, que trazem em suas ruas, rostos e movimentos artísticos importantes lições sobre mestiçagem, racismo e reeducação das relações raciais no Brasil.

O Ilê foi fundado por Antônio Carlos dos Santos e Apolônio de Jesus no bairro do Curuzu, sendo o mais antigo bloco afro do carnaval da cidade de Salvador. Veio do Terreiro Ilê Axé Jitolu em 1974. Sua história se costura com a do terreiro e de sua Yalorixá, Mãe Hilda. Antes de receber o nome que conhecemos hoje, a ideia era que o bloco se chamasse “Poder negro”, mas esse nome nunca pôde ser utilizado. A Polícia Federal proibiu o uso, alegando conotações negativas e “alienígenas”. Isto contribuiu para que o bloco ficasse associado a uma ideia de subversão no período.

A fundação do Ilê Ayê escancarou a falácia da democracia racial. O bloco foi duramente criticado publicamente. Um marco dessa perseguição política foi a manchete veiculada em 12 de fevereiro de 1975 no jornal A Tarde, onde se lia “Bloco Racista, nota destoante”. Já nos anos 1970, o Ilê seria acusado do que posteriormente viria a ser chamado de racismo reverso – um grande engodo contemporâneo, que só se sustentaria com a humanidade voltando no tempo e reescrevendo a história mundial. Nos dias de hoje, o Ilê é considerado como patrimônio cultural baiano, tendo cerca de 3 mil associados e oferecendo uma série de atividades ligadas à arte, cultura e combate ao racismo. 

Para além da contribuição musical, o consagrado “bloco negro do sábado de carnaval” traz uma proposta política e estética essencial para discutirmos a reeducação das relações raciais no Brasil. Um símbolo dessa proposta é a Noite da Beleza Negra. A festa ocorre desde 1979, inspirada nos concursos de rainhas do carnaval, mas, na noite do Ilê, a “rainha” escolhida é consagrada como Deusa do Ébano. 

Mais do que realizar a escolha da divindade, o evento é uma celebração da raça negra. Os parâmetros para a escolha não são os mesmos utilizados na maioria de concursos, que acabam por reforçar um padrão de beleza que exalta a branquitude, a magreza e a juventude. No Ilê, o que configura uma Deusa do Ébano é sua “força de deusa negra”, sua performance articulando dança, potência negra e práticas antirracistas que passam pelo corpo e pela música.

Pensar a música no Brasil por um viés racializado é essencial para compreendermos algumas relações de opressão e movimentos de resistência que muitas vezes não recebem o devido crédito ou visibilidade. 

Noite da Beleza Negra

Durante o século XX, a música foi muito utilizada como aliada na construção de um projeto de identidade nacional pautado pela miscigenação e pela mestiçagem – ferramentas para eliminar a população negra do Brasil de forma gradual apresentadas como algo positivo. A música sempre foi instrumento político, e não vê-la assim é um equívoco. Durante o século XIX, a mestiçagem foi largamente tratada como algo negativo, capaz de formar indivíduos “física e moralmente pervertidos”. Porém, na virada para o século XX, a mestiçagem passou a ser usada pelo Estado para encobrir conflitos raciais e disseminar uma imagem de paraíso racial, onde todas as raças conviveriam harmonicamente – teoria que ganhou força com intelectuais como Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, Noel Rosa e Ataulfo Alves.

Os termos “negro” ou “negra” aparecem associados a algumas produções musicais do século XIX. Um exemplo disso são as canções que recebem tratamento a partir do espectro religioso, como a conhecida canção “Lamento Negro”, interpretada pelo grupo Trio de Ouro em 1941 e composta por Constantino Silva e Humberto Porto. O jongo também acaba por entrar nesta categoria, que chamarei de “Lamento Negro”, pegando emprestado o título da canção já citada. Menos associada à religião e mais associada ao que era considerado “canto de trabalho”, a manifestação surgida no Vale do Rio Paraíba também é abarcada pelo guarda-chuva das musicalidades que costumavam ser acompanhadas do termo “negro” ou “negra”. O termo “samba” era pouco empregado, sendo mais comum encontrarmos termos como “batuques” ou “macumbas”, marcados por certo “africanismo” associado a escravizados, ex-escravizados e pessoas negras de pele escura ou retinta nascidas no Brasil. A estas, no campo da música, restava o lugar do sofrimento, do “lamento negro”, da escravidão.

Podemos observar uma expansão do samba como fenômeno nacional a partir dos anos 1930. A presença da figura do africano e do negro retinto diminuem, dando lugar à figura do moreno e do mulato, animado e alegre, associado à bebida, à dança e à sexualização, em especial quando se falava de mulatas. As marchinhas de carnaval acabaram por reforçar alguns desses estereótipos, endossando o mulato não como fruto de um processo de genocídio racial, e sim como produto da harmonia entre as raças no Brasil. Em “Moreno”, gravada por Aurora Miranda no ano 1936 e escrita por Synval Silva, temos que:

“Moreno, tu nasceste para ser o meu amor […]
Não posso viver sem os carinhos teus,
Moreno, tu foste tocado pelas mãos de Deus.“

Ao “moreno”, ou “mulato”, restam o lugar do sexo, do amor – objetificado – e até mesmo de identidade nacional ou de produto de exportação. Cabe ressaltar que essas categorizações, ao longo de nossa história, vêm majoritariamente de agentes externos, como pesquisadores e folcloristas brancos imersos em processos políticos de embranquecimento da população brasileira.

Muitos direitos foram negados a pessoas negras. Entre eles, o de ser senhor de seu destino, de sua identidade e de seu nome. O nome, geralmente escolhido pelos progenitores, ganha tons ainda mais relevantes quando são associados a pessoas negras, assim como apelidos ou eufemismos utilizados para falar de negritude. Ana Maria Gonçalves, autora de Um defeito de cor, expõe a importância da palavra, do nome, ao narrar a vida de Luísa Mahin, mãe do líder abolicionista Luiz Gama:

“Nós não víamos a hora de desembarcar também, mas, disseram que antes teríamos que esperar um padre que viria nos batizar, para que não pisássemos em terras do Brasil com a alma pagã. Eu não sabia o que era alma pagã, mas já tinha sido batizada em África, já tinha recebido um nome e não queria trocá-lo, como tinham feito com os homens. Em terras do Brasil, eles tanto deveriam usar os nomes novos, de brancos, como louvar os deuses dos brancos, o que eu me negava a aceitar, pois tinha ouvido os conselhos da minha avó. Ela tinha dito que seria através do meu nome que os voduns iam me proteger…” (Gonçalves, 2006, p. 63)

Capa do álbum Nada como um dia após o outro dia (2002), dos Racionais MC’s

A forma como somos chamados diz respeito à nossa história, nossa identidade. E denuncia, também, estruturas de poder baseadas no patriarcado e no racismo.

Muitas vezes, vemos perguntas como “o certo é chamar de negro ou de preto?”. Reforço aqui que as questões não são sempre dicotômicas. Nem sempre será “ou isto ou aquilo”, especialmente quando falamos de uma questão tão complexa como as relações raciais no Brasil. É importante estar atento ao uso, ao tom e ao contexto dos termos. 

O vocábulo “nego” (leia-se “nêgo”) é importante nesse sentido. Usado entre pessoas negras, muitas vezes ele expressa carinho e proximidade. Principalmente quando acompanhado de “meu” ou “minha”, como em frases como “está tudo bem, meu nego?”. A mesma palavra, quando usada por pessoas brancas, em especial acompanhadas do termo “seu” ou “sua”, pode adquirir tom de agressividade e menosprezo, como em “o que é, sua nega?”, por exemplo. Os sufixos de diminutivo e aumentativo complexificam ainda mais esta questão. O termo “neguinho” pode desejar demonstrar afeto, mas pode também ser usado para ridicularizar e inferiorizar o indivíduo negro, além de falar de um sujeito indeterminado, sem identidade como em “aquele neguinho lá”. O mesmo serve para o aumentativo. “Negão” pode ser usado para exaltar um semelhante ou ser usado, por exemplo, para objetificar a pessoa negra.

Retomando a pergunta “o certo é chamar de negro ou de preto?”, é importante reforçar que chamar alguém pela sua cor e não pelo seu nome desumaniza o indivíduo. Segundo Luísa Mahin, narrada por Ana Maria Gonçalves no já citado livro, “através do meu nome que os voduns iam me proteger”. As palavras e os nomes têm um enorme poder nas tradições africanas e afro-brasileiras. Um indivíduo negro não se chama “Nego”. Também não se chama “Preto”. Nem “Moreno”. E muito menos “Escurinho”. Temos nome, sobrenome, identidade e trajetória.

Para além dos termos utilizados a fim de inferiorizar pessoas pretas, há também os eufemismos, palavras usadas para “suavizar” a negritude de alguém. E, especialmente, para não pronunciar a palavra “negro”, que, para alguns, ainda soa como ofensa ou como um termo que “não cabe em bocas civilizadas”. “Escurinho”, “moreno”, “moreninho”, “marrom bombom”, “pegado na cor” e “mulato” são alguns dos vocábulos usados. “Moreno”, por exemplo, é um termo muito utilizado a fim de trazer ambiguidade e “suavidade” ao debate racial. O “moreno” teria identidade indefinida. O “moreno” não pertence a raça alguma. O “moreno” é o termo-corpo que representaria o sucesso do mito da democracia racial. Por isso, a afirmação de que “a preferência é ser chamada de negona” é tão importante. A autoafirmação e autoidentificação racial foram direitos conquistados por pessoas negras – e que ainda estão em disputa. Assim, quando o tema é raça, não há por que usar eufemismos. 

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) considera a categoria racial “negro” como a soma da população preta e parda. Essa definição também foi incorporada ao Estatuto da Igualdade Racial. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2019, 46,8% da população do Brasil se autodeclara parda e 9,4% se autodeclara preta. Temos, assim, 56,2% de população negra no país.

Retomando o termo adotado pelo IBGE, trago Mano Brown para nos ajudar a pensar o grupo racial “pardo”:

“Eu sou o mano, homem duro, do gueto, Brown, Obá
Aquele louco que não pode errar
Aquele que você odeia amar nesse instante
Pele parda e ouço funk
E de onde vem os diamantes? Da lama
Valeu mãe, negro drama.”

Pedro Paulo Soares Pereira (mais conhecido como Mano Brown) é um intelectual, rapper e compositor brasileiro de São Paulo. É integrante dos Racionais MC’s, grupo fundado em 1988 que revolucionou a cena do rap nacional. Além de Brown, o grupo é composto por Edi Rock (Edivaldo Pereira Alves), Ice Blue (Paulo Eduardo Salvador) e KL Jay (Kleber Geraldo Lelis Simões). São deles os versos acima, do rap “Negro Drama”, escrito em 2002 para o álbum Nada como um dia após o outro dia. 

A pele parda evocada pode causar estranhamento quando lembramos que quem a evoca tem o nome de “Brown”, que significa marrom, traduzindo-se do inglês. Porém, é preciso lembrar que, no Brasil, a maior parte da população negra se autodeclara parda. Segundo o já citado IBGE, pardos constituem o grupo étnico negro. É possível ser pardo e ser “brown” ao mesmo tempo. É possível ser pardo e “ver e viver o Negro Drama”.

“O termo “pardo” expõe o histórico de apagamento e abandono das populações negras e indígenas no Brasil”

Também é importante termos em mente que o termo “pardo” muitas vezes é utilizado para referir-se a populações indígenas. Em ambos os grupos étnicos, precisamos estar atentos aos possíveis apagamentos trazidos pelo termo. Na mesma canção, Brown reforça que:

Daria um filme
Uma negra e uma criança nos braços
Solitária na floresta de concreto e aço
Veja, olha outra vez o rosto na multidão
A multidão é um monstro, sem rosto e coração
[…]
Luz, câmera e ação, gravando a cena vai
Um bastardo, mais um filho pardo, sem pai.
Ei, senhor de engenho, eu sei bem quem você é
Sozinho cê num guenta, sozinho cê num entra a pé.

O termo “pardo”, empregado com excelência por Mano Brown há 19 anos, expõe o histórico de apagamento e abandono das populações negras e indígenas no Brasil, ainda que seja essencial quando falamos de políticas públicas e dados oficiais. O Brasil apresenta população negra e indígena em infinitos tons de pele e diferentes contextos sociais, e isto não pode ser esquecido. Autodeclaração é política. Raça é política.

Precisamos observar o que significa “uma negra e uma criança nos braços, solitária na floresta de concreto e aço”. Precisamos nos atentar ao que Brown lança luz ao falar de “mais um filho pardo, sem pai”. A miscigenação no Brasil revela um histórico de estupro, misoginia e racismo. É importante nos lembrarmos do consagrado quadro A redenção de Cam, de Modesto Brocos, que apresenta o “produto do sucesso da miscigenação no Brasil”. Ainda e apesar de, estamos aqui.

É preciso ter sensibilidade e olhar historicizado ao analisar as conformações raciais em nosso país. É a partir da categoria negro (junção de pretos e pardos) que conseguimos disputar projetos de nação. É a partir desse grupo racial (negros) que podemos afirmar que o processo de aniquilação total das populações negras – ainda em curso – não vingou no Brasil. A deseducação racial oferecida pelo nosso Estado consiste num projeto de apagamento físico, histórico e epistemológico. 

O rap carioca também nos ajuda a pensar a música como ferramenta de reeducação das relações raciais. Em “Favela Vive 2”, o rapper da Cidade de Deus, MV Bill, canta:

Na gaveta gelada do IML
Vários amigos que foram abatido pela cor da pele
Tática inimiga, bota a bala pra comer e menos um nigga
Atiram na nuca primeiro, derrubam certeiro, pra perguntar depois

A cada 23 minutos, morre um jovem negro no Brasil. As ruas têm dito muitas coisas, e um dos dizeres que ouvi recentemente é que ser negro no Brasil é nascer com uma marca na pele. Por vezes mais escura, por vezes mais clara. Mas a pele negra, o corpo negro, ainda é sinônimo de alvo numa sociedade racista.

Movimentos negros contribuíram para a ressignificação de termos como “negro” e “preto”, que foram, ao longo de nossa história, largamente utilizados para referir-se à população escravizada a fim de desumanizá-la, criando, nas populações negras, medo e dificuldade de associar-se à sua própria raça.

Em 1992, o compositor carioca Jorge Aragão compôs “Identidade”, que acabou por se tornar uma espécie de “hino” entre sambistas negros e negras:

Se o preto de alma branca pra você
É o exemplo da dignidade
Não nos ajuda, só nos faz sofrer
Nem resgata nossa identidade

A reflexão de Aragão reforça que necessitamos de um processo de reeducação das relações raciais. Demandamos letramento racial para que encaremos questões como mestiçagem, miscigenação e racismo como projetos criados de forma legalizada pelo Estado brasileiro a fim de fazer vencer a ideia de um país com identidade branca. É essencial que façamos o resgate da nossa identidade levantado pelo sambista. E pela porta da frente. Só assim alcançaremos cidadania plena, como diria a intelectual Azoilda Loretto da Trindade.

A escravidão – legalizada – durou aproximadamente 350 anos no Brasil. O processo foi responsável por trazer cerca de 4 milhões (37% da população de escravizados trazidos para as Américas) de africanos e africanas para o país. Esse processo deixou feridas em nossos corpos, histórias e memórias. Afirmar que temos nome é um caminho para a conquista de nossas subjetividades. Afirmar que “a preferência é ser chamada de negona” em detrimento de termos como “morena” é se levantar diante do apagamento de nossas identidades como população negra. E é desta forma que, acredito eu, daremos continuidade aos caminhos abertos por nossos mais velhos e mais velhas, reconstruindo nossas histórias e buscando um futuro ancestral.

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Sobre As Experiências Africanas e Indígenas Nos Quilombos Brasileiros

por Stephane Ramos da Costa

As pesquisas sobre história do Brasil que não se referenciam por um viés colonial e europeu crescem de forma exponencial. São muitos os trabalhos que buscam analisar os processos históricos sob uma perspectiva que não invisibilize as experiências não brancas. De todo modo, o caminho ainda é longo, e há muitos embates a serem travados. Um exemplo que confirma isso são os conteúdos expostos nos currículos das escolas de grande parte do país, que perpetuam noções dualistas e simplistas e muitas vezes reproduzem narrativas que não pontuam as permanências e descontinuidades com o tempo presente. Vamos voltar no tempo: há grandes chances de que, no período em que você, leitor, teve algum tipo de contato com as experiências negras e indígenas no colégio, estas tenham sido representados pelo viés da colonização e escravidão. A narrativa oficial que permanece até os dias atuais nas escolas é de que os indígenas foram utilizados como mão de obra escravizada até a chegada de africanos, sendo substituídos logo em seguida pois eram “preguiçosos” para trabalhar nas grandes lavouras e na casa grande. Não há qualquer menção sobre possíveis interações entre esses dois grupos, e hoje a historiografia já expõe indícios suficientes para se comprovar o contrário. É sobre isso que este texto versará, a partir de uma breve resenha crítica de um dos clássicos da historiografia brasileira. 

A obra do historiador brasileiro Flávio dos Santos Gomes, intitulada Mocambos e quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil mobiliza muitos detalhes sobre as formações, dinâmicas e permanências de movimentos de resistência das populações de origens africanas e indígenas. O autor menciona que, entre os primeiros indivíduos sequestrados para o trabalho compulsório no território que hoje compreende o Brasil, já havia o que era chamado de mocambo – denominação mais antiga, registrada no final do século XVI – e, posteriormente, quilombos – a referência a esse nome vem de regiões da África Central, no sentido de designar “acampamentos improvisados”, passando a ser mais utilizado a partir dos séculos XVIII e XIX (GOMES, 2015, p. 10). Na maior parte dos casos, associamos essas ações como exclusivas das populações que os europeus vieram a nomear de africanos. E trata-se de uma inverdade, visto que, desde o século XVI, a colônia portuguesa designava alguns territórios da Amazônia como “mocambos de índios” para caracterizar locais onde indígenas que conseguiam fugir se instalavam (GOMES, 2015, p.59). 

Em um país que recebeu mais de 5 milhões de homens e mulheres do continente africano para sistemas de trabalhos compulsórios e perversos durante os mais de três séculos sob o regime escravista, acredito que o debate sobre os movimentos de fuga e construção de quilombos ainda se restringe muito ao Quilombo de Palmares, na Serra da Barriga, e a comunidades exclusivamente africanas/crioulas. Essas ações proliferaram no Brasil como em nenhum outro país das Américas. A população cativa de origem indígena formava alianças e fortalecia seus agrupamentos. Há indícios de quilombos construídos por negros e indígenas nas regiões baianas (especialmente na área do sertão baiano), Goiás e Mato Grosso (GOMES, 2015, p. 60-61). 

Como já mencionado, por muitas vezes o senso comum e até mesmo os currículos escolares tratam as experiências das populações de origem indígena no cativeiro de forma rasa, reproduzindo a ideia de que estes foram logo substituídos pela mão de obra escravizada africana devido a “maus comportamentos”, como desobediência e preguiça, que contrastavam imediatamente com a população de origem africana, caracterizada por sua adaptação e obediência em terras brasileiras (GOMES, 2015, p. 58). Essa afirmação, além de reproduzir noções racistas de populações indígenas “preguiçosas”, faz a manutenção de um discurso – também preconceituoso – de indivíduos negros como naturalmente dispostos a trabalhar em regimes desumanos organizados pelo sistema plantation no Brasil e nas Américas.

O que os estudos historiográficos vêm demonstrando é a multiplicidade étnica dos agrupamentos de cativos durante o período colonial. Grupos indígenas como os xavantes, carijós, maracazes, araxás e pataxós eram alguns dos que construíam essa empreitada com africanos escravizados, oriundos de regiões como a África Central e Ocidental, Luanda, Senegâmbia, Baía do Benin, entre outros. Foram cenários para acolhimentos, mas também tensões, ocasionadas por diversos motivos. Essas comunidades de fugitivos por vezes eram projetadas ainda em ambiente de trabalho. Segundo Flávio Gomes, não é difícil imaginar essas populações fugindo juntas e concretizando seus objetivos ao construírem comunidades quilombolas. O autor expõe aspectos que demonstram as possíveis “zonas de proteção” e de trocas culturais no sentido de impedir que seus inimigos em comum – no caso, os setores coloniais – adentrassem seus territórios de resistência, tendo inclusive a presença dos chamados “caborés”, frutos das reproduções entre indígenas e africanos. Todavia, é importante não mobilizar narrativas que endossem perspectivas românticas e que tratem dessas convivências de forma estritamente pacífica. As tensões eram evidentes, visto que há indícios de sequestro de mulheres africanas e indígenas por parte dos quilombolas, bem como ataques e disputas étnicas sob muitas justificativas (GOMES, 2015, p. 60). Esses processos impactaram as sociedades no entorno, influenciando elementos como os conflitos entre quilombolas e colonos – dos quais dou ênfase para o grupos dos bandeirantes –, miscigenações e o que entendemos como “religiosidade”.  

Outra narrativa que aparenta estar muito disseminada no imaginário de nós brasileiros é a que descreve as dinâmicas dos territórios quilombolas de forma isolada. Enganam-se aqueles que acreditam não ter havido ao menos trocas comerciais entre os quilombos e as regiões do entorno. Esses espaços também eram edificados em regiões fronteiriças das colônias de Portugal e da França. Mesmo que esses fossem territórios de disputas, os fugitivos se aventuravam e se encontravam para realizar seus sonhos de liberdade. Muitos dos mocambos e quilombos foram construídos em locais que pudessem contribuir para a permanência de indígenas e africanos, como florestas e regiões que beiravam rios e cachoeiras, bem como territórios com imprecisões fronteiriças e jurídicas entre Portugal, França e Holanda. O território limítrofe entre Brasil e Guiana Francesa em diversos momentos era ocupado por quilombolas, com várias fontes documentais que comprovam as disputas espaciais de agrupamentos como os que eram erguidos entre o então Grão-Pará e a Guiana Francesa, assim como a região amazônica e a então Guiana Holandesa. 

As trocas comerciais também merecem destaque, visto que esses homens e mulheres possuíam perspectivas de maior autonomia ao tingirem roupas, plantarem na roça, pastorearem gado e fabricarem tijolos no verdadeiro sentido de, apesar do receio das tentativas de destruição por parte da colônia, construírem suas estratégias emancipatórias (GOMES, 2015, p. 66). Com acesso a documentos do século XVIII, é possível perceber as negociações que as próprias autoridades locais possuíam com os quilombolas de determinadas localizações ao norte do país. É mais um exemplo de que as experiências dos mocambos e quilombos e os setores dominantes eram regidas por constantes tensões e acordos, relações bem mais complexas do que algumas pessoas descrevem ao darem preferência a simples narrativas de fuga, total isolamento e confrontos. 

À guisa de conclusões parciais sobre a temática, reafirmo a necessidade urgente de buscarmos os indícios de relações mais estreitas entre as populações de origens indígenas e africanas, assim como ampliar nossos olhares sobre as experiências de afirmação e resistência de quilombolas. Esse é um dos caminhos para que as narrativas e disciplinas históricas possam ganhar novos contornos, que sigam no sentido de olhar esses corpos não brancos como protagonistas de suas próprias trajetórias.

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