Em 2013, após um término de namoro, decidi ler Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes. É um livro interessante, que aborda o tema em ordem alfabética, reunindo escritos em uma colagem textual. Lembro que, a cada página, fui redescobrindo o amor como quem tateia um novo vocabulário.

Essa forma enciclopédica de enunciar, me apaziguou. Pude crer, na época, que era possível traduzir, pesquisar e treinar o sentimento – à moda estruturalista. Mas, durante a leitura, um capítulo me arrebatou. Eu havia chegado na página 94, nomeada como A espera. Li, reli algumas vezes e fechei o livro para reter as páginas.

Nove anos depois, segue sendo o único fragmento que eu não perdi. Não guardo memória alguma das outras partes, já A espera, sei quase de cor. 

Começa assim:

“ESPERA. Tumulto de angústia suscitado pela espera do ser amado, no decorrer de mínimos atrasos (encontros, telefonemas, cartas, voltas).”

E termina assim:

“Um mandarim estava apaixonado por uma cortesã. ‘Serei sua’, disse ela, ‘quando você tiver passado cem noites a me esperar sentado num banquinho, no meu jardim, embaixo da minha janela’. Mas, na nonagésima nona noite, o mandarim se levantou, pôs o banquinho embaixo do braço e se foi.”

Esta imagem do mandarim desistindo na véspera do encontro, me levou para um labirinto profundo. Eu me identifiquei ferozmente com o ato, pois me pus a pensar: imagina amar, sem conhecer, uma imagem. Imagina alimentar tal imagem por noventa e nove dias, religiosamente. Agora, imagina que durante todas as noites sob a janela, o mandarim foi esculpindo sua amada com tanto afinco, que a cortesã não conseguiria corresponder à tamanha lapidação. 

Percebi que eu só havia amado dessa forma: moldando preciosos ideais que nenhum corpo daria conta de assimilar. A tal projeção, já banalizada nos papos sobre afeto, ficou nítida. A outra pessoa, enquanto disparadora dramática, narra histórias inteiras. Cenas perfeitas de prazer, glória e gozo – onde, sem consentimento (pois a imaginação tudo pode) animamos a figura amada em cenários internos e irreais. 

Amar, portanto, parecia ser uma prática individual, de intensa fabulação. A espera se encaixa bem nesta sensação, pois quem espera por alguém, espera só. No capítulo, Barthes cita Winnicott, que diz: 

“O ser que espero não é real. Assim como o seio da mãe para o bebê, ‘eu o crio e o recrio sem parar a partir da minha capacidade de amar, a partir da carência que tenho dele’: o outro chega onde eu o espero, onde já o criei. E se ele não vem, alucino: a espera é um delírio.” 

Prolongando a sentença: se ele não vem, alucino – se vem, alucino também. Vindo ou não, o ser amado nos põe a delirar. Adentramos uma jornada de desproporções, desfigurações e desencaixes. O amor idealizado é um futuro em ruínas. Antes mesmo de subirmos as paredes, já inalamos a poeira do desabamento. 

Seria possível, então, soterrar a idealização ao invés do amor? 

Não consigo responder sozinha, mas elaboro desde então. A escuta e a paciência auxiliam no processo: receber a outra pessoa antes de criá-la. Traçar fronteiras claras, priorizando a própria jornada. Dar sem tomar, dar sem cobrar, receber sem culpa. Procurar trocar o que transborda, e não o que nos compõe. 

Antes de acolher gente, acolher o medo e a falta de controle: as pessoas são imprevisíveis, os encontros geram atritos, o que vemos é distorcido. Vamos aprendendo por tentativa e erro. Amar os erros é um passo fundamental para amarmos as pessoas.

E, principalmente, lembrar que a idealização não é atitude pessoal, é automatismo coletivo. Aprendemos assim, ensinamos assim. Nossas tramas afetivas são, como grande parte de nossas subjetividades, resultados de um sistema de poder que dita como devemos e por onde podemos seguir. No Brasil, o amor ainda segue a cartilha hegemônica, monogâmica e cristã. Mesmo quando tentamos desconstruir padrões, enfrentamos vícios muito enraizados, ecos culturais, culpas ancestrais. 

A imagem da cortesã e do mandarim espelha a estrutura mono, cis, heteronormativa, patriarcal, cristã. Ele espera depois que ela diz: “serei sua”. O pronome possessivo abre a fala da cortesã e ativa a trama. A tomada de posse é gesto da propriedade privada, criou o conceito unidade familiar, permitindo a transmissão de bens para a próxima geração. E, até hoje, o ideal de família segue sendo perseguido como um arquétipo do amor bem sucedido. 

Em pesquisas sobre a idealização do amor, cheguei até Geni Nuñez, ativista indígena do povo Guarani, que há mais de 10 anos pesquisa a não-monogamia. Seus estudos traçam – a partir de uma perspectiva decolonial – paralelos entre a forma como lidamos com as relações afetivas e a forma como lidamos com a natureza.

Segundo ela, a ideia de que o ser humano é dono de rios, dos animais e de outras vidas não tem lógica na cultura indígena. Se o rio não é nossa propriedade, uma pessoa também não é.

Geni defende a ideia de que a monocultura é um sistema que não permite a concomitância – ou seja, para existir é preciso que se derrube a floresta – da mesma forma que as relações monogâmicas exigem exclusividade dos afetos: o valor não está no que acontece na relação em si, mas no que deve deixar de acontecer em outras possíveis relações. 

Assim como o monoteísmo e a monocultura, a monogamia é fálica e privilegia um topo, dá poder exclusivo e singulariza o ato. Seja no amor, na religião ou no cultivo, o estado mono é um estado morno que exclui diversidades e intensidades. 

Neste contexto, podemos aplicar no amor o que aprendemos com a terra. Enquanto plantas diferentes dão saúde ao solo, o plantio de uma coisa só o fragiliza, incitando o uso de pesticidas, agrotóxicos e afins. Isso cria um ciclo de excessos e escudos, onde o próprio sistema depende dos mecanismos de defesa para sobreviver. No amor também: a monogamia ativa mecanismos de defesa e a idealização é um deles.

Geni faz um convite para que a gente possa descolonizar nossos afetos e reflorestá-los: “o reflorestamento do imaginário é um processo de cura das feridas coloniais, esse processo da retomada não só da terra, mas também da nossa alegria.”

Alegria que evoca a autonomia, pois é na busca pela compreensão de si e na percepção apurada dos próprios desejos que aprendemos a cartografar novos caminhos que possibilitam encontros mais férteis. Gerando, assim, estruturas criativas, afetos orgânicos e fluxos naturais. Crescer as raízes, primeiro, e brotar forte depois. Para concluir, mais um pouco de Geni:

“O alimento da monocultura é doce, explosivo, mas empobrecido, raso, vazio.
Há muito mais a se amar e (des)conhecer de si e do outro no mundo.
Que nosso paladar para a vida seja mais exigente que o desejo pelas migalhas do amor romântico.” 

Faz algum tempo que a estrutura da indústria fonográfica foi abalada profundamente pelo surgimento do streaming e pela revolução das mídias propagáveis. Vivemos, nos últimos 10 anos, um processo radicalmente diferente do que foi, por exemplo, o salto do vinil para a fita cassete e CD.

No plano executivo, as gravadoras se contorceram para encontrar um jeito de ressignificar sua importância e de entender novos fluxos de capital, os quais foram realocados pela falsa premissa da monetização independente sobre a qual se construíram as plataformas digitais. 

Em comportamento de consumo, as redes sociais se estabeleceram como uma das principais formas de comercialização de música e são fundamentais para o entendimento do mercado hoje. Isso se dá, principalmente, pelo aperfeiçoamento dos algoritmos usados para criar recomendações de música personalizadas e altamente precisas para os usuários. Essa análise de dados borra a linha entre a música que se descobre naturalmente e a música que foi estrategicamente escolhida para você.

Se esse fenômeno é bom ou ruim para os artistas (ruim), para a indústria e para os consumidores é uma discussão à parte. Nesse momento, o que mais importa para mim é que esses são fatos e que é necessário, enquanto coletivo, estabelecermos filtros para navegarmos por essa nova estrutura comunicacional.

Escrevo isso para tentar entender melhor a sensação de pensamento fragmentado que venho sentindo; de não conseguir acompanhar tudo o que acontece entre os diferentes nichos da música. 

É raro me conectar de verdade com a obra de algum artista, justamente por esse bombardeamento constante de informação. Tem muito mais música no prato do que é possível digerir e, às vezes, caio numa nostalgia profunda, em busca daquele sentimento lindo da adolescência que é se apaixonar pela obra de alguém.

Tudo isso pra dizer que, aqui nesse espaço, mensalmente, trarei alguns dos lançamentos nacionais e internacionais que me cativaram por qualquer que fosse o motivo. O compromisso com a escrita é uma forma de me manter atento e de formar um diálogo interessante com quem lê essa coluna.

A ideia não é trazer uma crítica dos trabalhos apresentados e, sim, sugerir uma razão pela qual você poderia ouvi-los, de acordo com a minha própria percepção musical. 

Dito isso, vamos ao que importa:

Indicações

MARO – “saudade, saudade” (Live in Avinyó)

Existe algo de revolucionário na simplicidade.

A primeira vez que ouvi essa faixa, fiquei em transe. Prestei atenção total ao que MARO cantava – e como ela cantava. Talvez porque o meu padrão de consumo está pautado principalmente na tecnologia; em novas sonoridades, timbres, batidas, sintetizadores e samples.

Em um momento onde a produção musical dispõe de tantas ferramentas para criar, é raro observamos uma decisão artística tão contrastante como a de despir os arranjos, ignorar os recursos por um momento e reafirmar o que, por muitas vezes, pode ser facilmente esquecido: 

A composição é rainha.

“Saudade Saudade” é a submissão oficial da cantora, produtora e multi-instrumentista portuguesa MARO para o Eurovision Song Contest, competição internacional de canções organizada anualmente entre os países europeus. A jovem, de 27 anos, possui um pezinho firme no Brasil e é colaboradora frequente de artistas nacionais como Anavitória, Rubel e Tó Brandileone.

O lançamento do trabalho completo consistiu em três versões da mesma composição: a primeira, indicada aqui, é uma rendição ao vivo composta por quarteto de violão e coro de voz, enquanto a segunda é um registro informal do ensaio em Avinyó. A última é uma versão de estúdio, já mais completa, com outra roupagem de arranjo e mixagem, o que traz uma intenção diferente das outras. 

Todas são acompanhadas de vídeo e podem ser conferidas no youtube: (versão acústica), (ensaio), (estúdio)

“Resta uma só palavra”

Sinto que no exercício da profissão de produtor musical, a tendência é sempre achar que ainda há algo faltando. É comum ouvir por aí que uma faixa só é finalizada quando se desiste, e o excesso de informação, em todas as frentes de consumo, naturalmente se reflete na hora de fazer música. 

Esse vídeo trouxe um respiro necessário para essa sensação, como acordar de um estado de inércia e vício de pensamento que vinha se instalando devagarinho na minha mente nos últimos anos. Foi como um retorno romântico às primeiras experiências musicais que tive na vida, relembrando que talvez o mais importante dentro de um fonograma é, de fato, a composição. A parte lírica comunica e nos atravessa, independentemente dos elementos que a circundam. 

Isso fica muito evidente aqui: o fato de ser uma rendição ao vivo, contemplada por um arranjo orgânico, quase nu, dessa canção, abre espaço para as melodias de voz e realça muito bem a letra. 

O quarteto de violões comunica com destreza a melancolia lírica: (0:02-0:20)

As linhas de cordas mantêm o mesmo ritmo entre si, mas tocando notas diferentes que se desencontram e se entrelaçam em uma dança sutil. Isso cria movimento e dá novas intenções para uma harmonia aparentemente simples.

A voz areada e ridiculamente afinada da cantora portuguesa é um dos traços mais marcantes de toda a sua obra. Ainda que acompanhada por outras oito cantoras, é extremamente fácil distinguir o timbre doce de MARO entre a massa uníssona que se apresenta no refrão. (1:15 – 1:27).

Destaque para a modulação harmônica que acontece na ponte: (1:48 – 2:10)

A passagem acima é delicadíssima, onde a mudança de acordes abre uma perspectiva mais solar para uma canção aparentemente triste. Isso ocorre exatamente quando a letra para de falar sobre a perda e dá espaço à esperança, ao pedido por sinais.

Saudade é a palavra restante e a única que poderia comportar tanto a nostalgia de um amor perdido quanto a perspectiva de seguir em frente. 

Para conhecer um pouco melhor o trabalho de MARO, recomendo, também, aos corações partidos: 

It’s OK” (2018)

Acho muito bonito como MARO consegue ser virtuosa e apresentar arranjos extremamente inteligentes fazendo uso de muito pouco. No álbum, a faixa Happily Never After, por exemplo, usa de um tempo de 7/4 (nada comum na música pop) de uma maneira muito sutil, que apenas quem possui o conhecimento técnico vai identificar. 

Importante também ressaltar que quase todas as músicas possuem alguma passagem modal: existe um campo harmônico por onde a melodia principal navega mas, em dado momento, a paisagem se transforma por entre novos acordes, trazendo mais cor e ressignificando tudo que se apresenta por cima.

Um exemplo disso é a ponte de Still Feel It All (2:19 – 2:38), um dos trechos mais lindos do disco, na minha opinião.

Fazer uso de substituição de acordes desse jeito elegante e musical é de um nível de genialidade ímpar. A sacada não está apenas no uso desses recursos, mas em como a música se mantém pop, acessível, melancólica e, ainda assim, simples. 

Apesar do encanto pelos arranjos despidos, MARO já se consolidou com uma das musicistas mais versáteis dos últimos anos, Seja pelo seu trabalho solo, pelas colaborações com NASAYA ou como cantora de apoio, violonista e tecladista na banda do prodígio inglês Jacob Collier. 

Ouça:

Midnight Purple (2018)

It’s OK (2018)

MARO VOL 1

Estreia

Jovem Dionísio – “Acorda Pedrinho” (Álbum) (2022)

Jovem Dionísio cria com leveza, transitando entre sonho e memória. 

Jovem Dionísio conseguiu se desvencilhar com louvor da armadilha do “one hit wonder”, e são poucos os músicos que conseguiram emplacar um hit de sucesso e ainda manter um nível consistente de trabalho no pós-fama.

O quinteto curitibano estourou em 2020 com o single Pontos de Exclamação, e poderia ter ficado por isso mesmo. Mas a banda aproveitou com inteligência o momento de exposição e se organizou para fidelizar os fãs recém-chegados dentro do universo sonoro do grupo.

Em pequenas doses de singles interessantes – sempre acompanhados de um trabalho visual impecável – a banda foi experimentando, aperfeiçoando e entendendo a própria identidade. 

Foram passos curtos e planejados, que resultaram no excelente Acorda Pedrinho, disco que é muito coerente com os trabalhos anteriores, ao mesmo tempo que aponta para frente. Ainda que muito pop, a banda passeia por várias ideias e explora estruturas musicais nada convencionais.

A mescla de influências gringas e sonoridade brasileiras, letras debochadas e melodias grudentas trabalham em conjunto para criar uma atmosfera característica, que é ao mesmo tempo moderna e nostálgica. Talvez pelas letras leves que remetem às brincadeiras daquele círculo muito próximo de amizade, ou pela forma lúdica com que as músicas narram contos de amor.

Por meio de uma produção singela, arranjos minimalistas e vocais morosos, Jovem Dionísio cria com leveza, transitando entre sonho e memória. 

Destaques: Ai de mim e Cê me viu ontem 

Radar

Karla – Prisma (EP) (2022)

Bem trabalhado nas texturas eletrônicas, guitarras e harmonias de voz, “Prisma” é um projeto delicadíssimo da artista tocantinense Karla. Bebendo influências do gospel e do folk, a cantora divide, compreende e repassa suas dores ao ouvinte, quase como em uma conversa íntima. O disco tem uma produção muito interessante, que usa a seu favor toda potência vocal que Karla tem a oferecer. Para quem gosta de música triste (eu), é um prato cheio.

Destaques: Cada Pedaço, Fuga, Estação.

BIAB – Pedra do Sal  | A COLORS SHOW (2022)

Na minha opinião, uma das melhores performances dentre a última leva de brasileiros apresentados na plataforma Colors. Com muito domínio de palco, o timbre quente da carioca é projetado sem esforço algum e as melodias dançam junto e em volta do beat, brincando com as possibilidades rítmicas de cada palavra. É nítido que o canto pertence naturalmente à identidade da carioca BIAB. Vale demais assistir.

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Fala que eu te escuto: Estou sempre em busca de sonoridades novas, e todo mês reviso e ouço com muito carinho todo o material enviado. Aguardo sua sugestão, e se possível, uma justificativa breve do motivo da escolha.

[email protected]Spotify

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Estão invisíveis. Dentro do ouvido. Ficam escondidos em uma pequena caverna e são protegidos pela cera, essa célebre invenção do corpo humano de quem insistimos em desdenhar. Ali, na parte interna do canal auditivo, encontramos os três menores ossos do corpo trabalhando lado a lado, em conjunto. Mesmo que discretos, a responsabilidade desses ossículos é imensa: amplificar o som que recebemos do mundo. Basicamente, o ofício do trio é nos fazer ouvir.

Francisco Bley e Ana Frango Elétrico | Fotos: Mateus Rubim

Quando pequeno, nasci com orelhas muito maiores do que as das crianças da minha idade. Meus primos, que eram todos mais velhos e que construíram nossa intimidade na base da chacota, costumavam apontar para velhinhos na rua e dizer que a orelha é o único órgão que, ao longo da vida, nunca cessa de crescer. Por isso, quando eu chegasse próximo dos oitenta anos de idade, as minhas seriam maiores e mais pesadas do que o meu pescoço seria capaz de suportar. 

Ainda nessa época, logo que descobri que os ossinhos que cuidam da audição humana têm o formato de três objetos – martelo, bigorna e estribo – não consegui deixar de imaginar, a um só tempo curioso e encabulado, se os ossos miúdos também acompanhariam a promessa de crescimento desenfreado da minha orelha, alcançando o tamanho de ferramentas reais. Dentro de mim, havia o potencial de uma ferraria inteira, e isso me assustava e me fascinava em igual intensidade.

Hoje, com a maldição dos primos tendo dado com os burros n’água e com orelhas adultas que não desafiam a capacidade do meu pescoço, sigo pensando nos pequenos ossos que nos dão a possibilidade de escutar. Ainda me fascina o fato de que a menor parte humana tem o poder de expandir aquilo que há de mais etéreo na vida: o som, a fala, a música.

Esse fascínio me levou a transformar minha própria escuta no Escuta, um programa online que, na verdade, é uma espécie de ponto de encontro virtual para gente que é ligada em arte. Demos início às primeiras gravações no final do ano passado e, agora, o projeto chega ao terceiro ciclo de entrevistas inéditas. Pouco a pouco, nossa missão vai ficando cada vez mais clara: reunir mentes criativas e interessantes de diferentes áreas artísticas – e ouví-las sem pudor.

Nessa nova fase do programa, que é realizado pelo Instituto de Apoio à Orquestra Sinfônica do Paraná, o Escuta migrou de São Paulo para o Rio de Janeiro. A imponência das primeiras edições, que foram abrigadas por duas das mais importantes instituições culturais do Brasil (a Pinacoteca de São Paulo e a Sala São Paulo), deu lugar à vista deslumbrante do bairro carioca de Santa Teresa, no Hotel Chez Georges.

O eixo curatorial das entrevistas seguiu uma transformação semelhante: Ana Frango Elétrico, Alexandre Nero, Carlos do Complexo e Denilson Baniwa, artistas que ocupam o centro da produção musical e artística de hoje em dia no país, compartilharam no programa um pouco de suas trajetórias e de seus pensamentos. 

Com shows lotados por todo o Brasil, Ana acaba de encerrar a última turnê de seu aclamado disco “Little Electric Chicken Heart” e, após concorrer ao Grammy Latino aos 23 anos, prepara o lançamento de seu terceiro trabalho de estúdio. Carlos do Complexo também foi indicado ao Grammy Latino por “Visceral”, trabalho audiovisual feito em parceria com Fran Gil e Bibi Caetano. Além disso, o artista lançou o excelente “Torus”, disco que parte de conceitos da geometria para misturar, com maestria, gêneros musicais como funk carioca, grime, música eletrônica e música experimental. Denilson Baniwa é artista plástico, curador, performer e ativista dos direitos indígenas. Vencedor do prêmio PIPA Online 2020, Denilson participou da Bienal de Sydney, na Austrália, acaba de encerrar uma exposição individual no Rio de Janeiro e estará, ainda em 2022, em uma exposição no Getty Museum, em Los Angeles. Após um hiato de 11 anos, Alexandre Nero estreou seu mais novo álbum, intitulado “Quartos, Suítes, Alguns Cômodos e Outros nem Tanto”, que conta com canções orquestradas e parcerias com entidades da música brasileira como Elza Soares, Aldir Blanc e Milton Nascimento.

Em um show recente que assisti, vi Zé Ibarra, músico que participou da segunda temporada do Escuta, contar que João Gilberto cantava em uma unidade imaginária mínima, chamada “grão da voz”. Pesquisando sobre essa expressão, descobri que ela foi inventada por Roland Barthes, escritor francês que disse que o grão é a dimensão corporal que torna cada voz única. 

Pensando sobre tudo isso, sinto que também me interessa encontrar alguma espécie de grão da escuta: uma unidade mínima que ouça de Ana a Denilson, e que reúna o que há de autêntico nas vozes que comigo compartilham o tempo e a geração. É esse o interesse: pelo martelo, pela bigorna, pelo estribo. 

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Apesar da diversidade de corpos, o Brasil é retrato de uma estrutura que privilegiou – e privilegia – a branquitude. Segundo a última tabela do IBGE, que apresenta a distribuição percentual por cor ou raça (com base em autodeclaração), temos os seguintes números: 46,5% pardas, 43,1% brancas, 9,3% pretas e 1,1% amarela ou indígena. 56,9% da população brasileira é não-branca, ou seja, a maioria. 

É interessante analisar a estrutura da tabela. A começar pelo termo raça, que apesar das complexidades e discussões, ainda é a nomenclatura institucionalizada. A coluna branca vem primeiro, seguida pelas colunas preta e parda, centralizadas. Por último, a coluna atribuída aos povos originários, que precisam dividir espaço com a cor amarela. Há, em muito pouco, a revelação de sintomas bem profundos. 

A tabela é dividida por regiões, a menor amostra branca fica no Norte, 19,3%. No extremo oposto, a região sul é a região mais branca de todas, com 73,9% de pessoas e apenas 0,7% amarelas ou indígenas. Mas isso não representa a história sulista brasileira. De acordo com Aurélio Porto, historiador que foi diretor do Arquivo Público do Rio Grande do Sul, em 1787 havia 52,6% de brancos, 28,5% de negros e 18,9% de indígenas. ​Os livros de registro de batismo de Jesus-Maria-José mostram que, em 1738, houve o batismo de dois negros e dois indígenas para cada quatro brancos. 

Apesar da produção sulista não ser tipicamente colonial, baseada em açúcar e café, havia uma grande presença de pessoas escravizadas nos trigais, na pecuária, e, principalmente, na produção de charque. No fim do século XIX, iniciou-se uma crise de mão-de-obra: a expansão da lavoura cafeeira provocou grande evasão dos escravizados do sul para o “norte”. Entre 1863 e 1887, o Rio Grande do Sul passou  de 77.419 para um total de 8.500 escravizados (sendo que, em Porto Alegre, havia apenas 58). Para além das evasões, era um período de transição, em que as forças abolicionistas finalmente ganhavam tração.

Apesar da Lei Áurea ter sido assinada no dia 13 de maio de 1888, o Rio Grande do Sul aboliu a escravidão no mesmo ano em que o Ceará, estado pioneiro: 1884. A abolição foi resultado da força de muitos grupos, como o Centro Abolicionista e o Partenon Literário. Há, também, a aparição de Clubes Negros, que fortificaram a articulação. O primeiro foi fundado em 31 de dezembro de 1872, e se chama Floresta Aurora. Este ano completará 150 anos de existência, e segue atuante. Foi não apenas o primeiro Clube do Rio Grande do Sul, mas o primeiro Clube Negro do Brasil. 

Os Clubes foram surgindo para que os negros pudessem obter um espaço social, algo que lhes era negado. O começo do clube veio com a necessidade de arrecadar dinheiro para ritualizar as mortes, pois, até então, negras e negros eram enterrados em valas rasas. Mesmo quando as pessoas já estavam com alforria, tinham o fim no mesmo espaço que os indigentes, doentes e criminosos Também se uniram para buscar recursos que auxiliavam na compra das cartas de alforria. 

Segundo o próprio website do Floresta Aurora, hoje entitulado como Sociedade Beneficente e Cultural Floresta Aurora, “a história vem sendo transmitida de forma oral e o principal argumento de que se tem notícia, é o de que a união desses negros era para, além de se fortalecerem enquanto grupo, repudiando o regime escravocrata, mostrar a indignidade quanto às cerimônias de despedidas de seus mortos.”
Os Clubes foram os primeiros espaços que oficializaram o direito dos negros à celebração coletiva, onde podiam viver os benefícios da música e da dança. Os bailes brancos não aceitavam a presença negra, assim como escolas – que negavam o ingresso de negros livres. A discriminação fez com que buscassem criar os próprios espaços sociais. Contudo, os bailes sofriam invasões, rondas e ataques. Civis, soldados e paisanos brancos censuravam e desrespeitavam as vivências do Floresta Aurora. Isso se estendia para qualquer evento privado, caseiro – onde a ronda ia até lá para impedir festejos.

Em 1892, um jornal dos negros começou a circular em Porto Alegre, chamado O Exemplo. Nele, há algumas notas de repúdio, como essa redigida por Esperidião Calisto: “Um consôlo nos resta todavia… Nunca um grupo de homens de côr invadiu um salão, fomentou desordens e insultou famílias que pacificamente entregavam-se a modestos folguedos. (…) Censurando esse proceder indébito, sentimos apenas a desconsideração da parte das autoridades que não vêem nosso direito de equidade, negando-nos aquillo que, como cidadãos temos direito – a igualdade perante a lei e o respeito inquebrantável a nossos direitos civis”.  

As críticas não se detinham às atitudes brancas. O Exemplo manifestava-se contra atitudes problemáticas em geral, compondo, assim, certas orientações morais. O mesmo Calisto recriminou um tumulto a mão armada, incitado por um negro no Club Recreativo Operário: “Lamentamos, repetimos, a pratica de tão feia acção, que só serve para nos deprimir aos olhos daquelles que se julgam superiores a nós e que vão por ahi affirmando ‘não haver baile de negro sem rollo’. E, na verdade, como não hão de dar curso a tal expressão desairosa, quando os nossos são os primeiros a abraçar a ingrata tarefa de nos desmoralizar, de aniquilar-nos?”

A discriminação se operava em diversas camadas, impedindo qualquer mobilidade social. O primeiro concurso público que teve um cidadão de cor parda aprovado, foi anulado por Gaspar da Silveira Martins, então presidente da Província do Rio Grande do Sul. A noção de liberdade, que os corpos alforriados buscavam, eram pautadas pela ideologia do embranquecimento. Entretanto, mesmo perseguindo os padrões da onipresença branca, os negros tinham acessos negados. A cultura africana foi tão sistematicamente reprimida, que a reconstrução da liberdade negra se asfixiava na impossibilidade de aceder à liberdade branca. Suprimiam a escravidão conservando o escravizado.

A artista Grada Kilomba observa que o processo do racismo segue os cinco estágios do trauma, no qual a primeira fase é a negação, seguida da culpa, da vergonha, do reconhecimento e da reparação. Infelizmente, grande parte da população ainda opera dentro do primeiro estágio, negando o racismo para manter o véu democrático erguido.

Os Clubes Negros são muito importantes nesse sentido, pois conseguiram tangibilizar o trauma. Os encontros sociais transportam a violência individual para uma dimensão coletiva, revelando os desafios como questões estruturais. Além do compartilhamento de memórias e saberes orais, a música e a religião auxiliaram na reorganização de uma subjetividade negra, que buscava rastros das raízes além-mar. Além dos Clubes, Casas de Nação foram sendo criadas, para que houvesse um espaço que permitisse o culto aos Orixás. As manifestações culturais foram muito perseguidas e alvejadas, mas com muita resistência – e persistência – o Batuque começou a ser finalmente solidificado no Rio Grande do Sul, no início do século XX.

Tais espaços de convívio e de resgate cultural seguem sendo atormentados até o dia de hoje. É por isso que o aniversário dos 150 anos do primeiro Clube Negro do Brasil merece atenção. Não é um Clube como os outros clubes. É um espaço vivo, responsável por reconstruir e manter o respeito à uma ancestralidade duramente traumatizada, é um ambiente que atua na luta antirracista de forma concreta e gregária. 

O Clube já teve diferentes sedes e foi sendo expelido do centro de Porto Alegre por causa da especulação imobiliária. Atualmente, está situado no bairro Belém Velho, na Estrada Afonso Lourenço Mariante, 437. A gestão do Floresta Aurora, ainda hoje, busca recursos que possam oferecer dignidade a quem precisa. Durante a pandemia, conseguiram auxiliar inúmeras famílias do bairro.

Apesar de terem um século e meio de história, ainda não possuem recursos do Estado para se constituírem como um Patrimônio Cultural. Seguem buscando auxílio do poder público para que possam ter mais atuação e alcance. 

Foto de Jean Peixoto / Agência RBS
Ucrânia, 1928. Nasce Polina Rayko, cujo nome original era Pelaheya Soldatova.

A sua cidade natal, onde passou toda a vida, é Tsyuryupinsk, renomeada para Oleshky em 2015. Faz parte da província de Kherson, primeira área ocupada pela Rússia na invasão. Em 14 de abril de 2022, removeram a bandeira da Ucrânia da prefeitura de Oleshky e a substituíram por uma bandeira russa.

Esta cidade, que perdeu nomes e agora perde sua bandeira, é o território que – ainda – mantém de pé uma das casas mais importantes do solo ucraniano: a casa de Polina Rayko, monumento da cultura nacional. 

A casa é repleta de pinturas: nas paredes, tetos, portas, rodapés. Não há respiro, tudo vibra cor. Polina, autora de todas as pinceladas, começou a preencher os espaços vazios após anos de muita dor.

Ela vivia uma vida tipicamente soviética, trabalhava muito e cuidava de sua família – composta por seu marido Mykola, sua filha Olena e seu filho Sergey. Os dois homens eram alcoólatras. Sergey, de caráter mais destrutivo, violentava a casa, vendia as coisas da família e chegou a esfaquear a própria mãe. Foi preso. 

Enquanto lidava com a punição – e ausência – de seu filho caçula, sua filha sofre um acidente de carro e morre, em 1994. Um ano depois, o marido morre também. Nessa sequência de perdas, Polina se vê só. Ao seu redor, paredes vazias intensificam as perdas.

Segundo Melanie Klein, o processo de luto consiste na reorganização do mundo interno, aquele que vai sendo construído desde o início da vida, e que acaba por desabar em sua fantasia quando ocorre a perda real. A reconstrução desse mundo interior caracteriza o trabalho de luto bem sucedido.

Após quatro anos de dor e quietude, Polina recupera alguma força, e começa a pintar o interior de sua casa, reestruturando, também, seu mundo interior. Está com 69 anos e investe sua pouca pensão em tintas e pincéis. Ela recebia 74 hryvnias, algo próximo a 12 reais mensais. Teve a sabedoria de buscar um material que era barato mas suficientemente forte: uma espécie de esmalte para piso, próprio para ambientes exteriores.

Mas era dentro que as imagens se revelavam. Ela só pintava de noite, com as janelas fechadas e pouca luz elétrica. Tinha medo de ser reprimida e julgada pelos vizinhos. Durante o dia, mantinha a conduta de sempre: dedicava-se à horta, e a pequenos trabalhos para os vizinhos – onde conseguia algum dinheiro e alimentos, complementando sua pequena pensão.

Quando o sol caía, outra Polina renascia, preenchendo a noite com as luzes das cores, espontaneidade e imaginação. Não segurava pincéis desde a época da escola, mas isso não impediu que preenchesse com vigor e constância, cada centímetro de seus afrescos. Sua expressividade, monumental, a ativar processos de cura. 

Em uma jornada autobiográfica, Polina cobriu de forma minuciosa todos os nove cômodos da casa, inclusive os tetos, as portas e o fogão. Misturava realidade com visões fantásticas, aproximando suas memórias de criaturas mágicas, santos e anjos. Canalizava mitos cristãos e pagãos em uma mesma superfície. Conciliando, em seu imaginário, sua sincrética fé. 

As pinturas contêm animais de proteção, guias espirituais, símbolos bélicos, cenas de sua vida, rótulos de vodka, palavras, datas e estampas diversas. Entre as figuras, motivos floridos percorrem o plano, como trepadeiras vivas que adentram as paredes com suas raízes. 

A pintora autodidata tinha uma linguagem muito consistente, e todos os seus afrescos possuem os mesmos códigos, formando um vocabulário contínuo e impressionante. Não há espaço livre entre as faces da casa, todas as partes parecem formar um único mural, tão contínuo como o mar. 

Um ano antes do nascimento de Polina, em uma carta a Sigmund Freud, Romain Rolland cunha a frase “sentimento oceânico” para se referir a “uma sensação de eternidade”, um sentimento de “ser um com o mundo externo”. Tal sentimento nutre a energia religiosa de vários sistemas. Mesmo sem ter ido até a casa (hoje a região é alvo de bombardeios), é possível captar o sentimento oceânico que ela provoca. Para além das figuras protetoras, santificadas, há elementos que parecem correntes marítimas, mergulhando o olhar em redemoinhos. São como espirais que incitam certo transe.

O único autorretrato solitário, mostra seu corpo vestido por um uniforme militar, junto com a afirmação de um período: 1941 – 1945, quando, ainda adolescente, viveu a Grande Guerra Patriótica. Junto dos braços, asas. 

Polina não conseguiu esconder suas pinturas por muito tempo. O magnetismo de suas artes transformou a casa em atração turística. Rayko começou a receber pedidos, pintou áreas nas casas vizinhas, mas nunca cobrou por isso. No cemitério, coloriu as pedras tumulares de seus parentes. 

Por volta do ano 2000, historiadores de arte interferiram para proteger aquele patrimônio. Em 2003, realizaram um curta-metragem sobre Polina, no qual é possível conhecer, além de suas histórias, as fortes canções que acompanhavam suas narrativas pictóricas.

Ainda em 2003, deu-se início ao processo para a criação de um livro com seus trabalhos, em conjunto com o grupo criativo Kherson Centre “Totem”. Entretanto, Polina morre em 15 de Janeiro de 2004, sem conseguir ver o resultado final. Um ano depois, o trabalho é publicado como The Road to Paradise (A estrada para o paraíso), inspirada na frase que estava pintada em sua garagem, e que foi descoberta após sua morte: “como encontrar uma estrada para o paraíso?”

Após sua morte, seu neto, herdeiro direto, vende a casa rapidamente, por um valor próximo a 24 mil reais. Desde então, artistas e agentes culturais buscam proteger este patrimônio. O artista visual Vycheslay Mashnytsky cria o Fundo de Caridade Polina Rayko. Outros protetores, maioritariamente vizinhos, constroem um banheiro e colocam bancos e mesas no jardim, do qual também cuidam das flores e arbustos.

Antes da Covid-19, o dono da casa, Adrius Nemickas, comunicou que estava pronto a pôr em marcha um plano de recuperação, mas a pandemia suspendeu as atividades. E enquanto propriedade privada, não seria elegível para financiamento do estado, fazendo perdurar o penoso processo rumo à manutenção e restauro.

Até que, finalmente, o governador da região de Kherson abriu um processo para passar a casa de domínio privado para público, incentivando à criação de um museu. O dono acabou por aceitar doá-la. Estas informações, de novembro de 2020, são as últimas apuradas sobre o processo. 

Passada a fase crítica de confinamento, a região virou um dos principais alvos da invasão russa. A guerra completou três meses no dia 24 de maio, e segue ativa. Inspirados nas pinturas de Rayko, os ativistas pró-Ucrânia utilizam uma das suas pombas como símbolo de resistência. Até o presente momento, a casa também resiste.

CulturaLiteratura

Morte ou a iminência do que está prestes a parar de existir

por Marina Lattuca

Nasci em um 2 de novembro de muita chuva: dia de Finados. Minha mãe achou que, de alguma forma, aquilo não era bom augúrio e me registrou no dia seguinte. Não posso dizer que necessariamente era um mau sinal. 

Veja, por exemplo, o Dia de Los Muertos, no México. Para eles, nascer nesta data, deve ser motivo de muita alegria e festa. Os mexicanos alimentam-se da morte. Um dos quitutes mais comuns dessa incrível festa são as calaveras dulces, doces tradicionalmente feitos de açúcar simulando o formato de uma caveira.

A morte pode ser doce.

Carrego a questão do fim, na minha história, desde o dia em que vim a vida no dia dos mortos. Mas um dia em específico houve uma morte muito diferente da que conhecia. Era um final de semana de acampamento na serra. Estávamos em um grande grupo, fazendo uma trilha íngreme que levava por caminhos tortuosos a um pico, de onde se debruçava um véu branco d’água. Eu seguia de uma perna a outra em pequenos pulos buscando acelerar o trajeto. Chutando pedras, folhas, tocos. Quando avistei uma pedra escura, do tamanho de uma cabeça, quase no topo do fim do trajeto. Perfeita. Acelerei o passo correndo e ensaiando a perna direita para o chute. Chutei. 

Em uma fração de segundos, consegui entender o que estava por vir, como em uma espécie de efeito borboleta.

Logo abaixo do pico, estava a queda d’água. Logo abaixo da queda d’água, três pessoas com os olhos fechados desfrutando do mergulho. Logo abaixo de mim, uma pedra escura, do tamanho de uma cabeça, caindo em direção aos crânios das pessoas que estavam embaixo. Grunhi alto tentando gritar mais alto que a água. Mas não se ouvia o grito-grunhido. O mergulho acabou antes da pedra cair. 

O grupo lá embaixo, por alguma força cósmica, se retirou antes da pedra atingir o poço calmamente. A pedra não tinha pressa, a água não tinha pressa, eles não tinham pressa. Eu tinha, muita. 

Como eles não sabiam o que estava por vir, e – de fato – o que estava para vir, não veio, nem mesmo perceberam o que tinha acabado de não acontecer. 

Pensei que a vida é bem assim. 

Não percebemos o que não aconteceu nunca. Quantas pedras devem ter despencado e quase atingido nossas cabeças? E quantas vezes nos desviamos delas, em uma inocência débil, sem nem perceber. Essa morte, de certa forma, é uma morte da morte. Explico melhor: é a morte, de uma possível morte. 

A morte pode ser doce. 

Às pedras, eu disse mais tarde a mim mesma, que continuem desviando de nós, antes que precisemos nos desviar delas. 

A arquitetura brasileira é uma arquitetura marcada por contrastes, tensões e imposições. Há marcos rígidos, regras e estilos que construíram cidades (e países inteiros), mas como isso opera quando o território é campo de disputa, quando o espaço é marcado – e mantido – pela colonização? Como reagimos ao fato de que as pedras portuguesas, ainda chamadas assim, constituem os calçadões ‘brasileiros’ mais icônicos? 

Após a invasão portuguesa, iniciou-se a ocupação com arquiteturas de defesa. Imitando outras colônias além-mar, os portugueses povoaram o litoral com fortificações. Ao redor dos fortes, vilas se formavam em padrão ortogonal, como um tabuleiro de damas – conhecida como malha romana. São Vicente, Olinda, Salvador e o Rio de Janeiro seguiam essa lógica de forte e vila, respectivamente fundadas em 1532, 1535, 1549 e 1567.

Fortim de São Tiago da Bertioga, de 1532

Nas outras capitanias, centros mineradores e fazendas, o crescimento das urbes não seguiu nenhuma ordem predeterminada. Ainda no século XVI, a Casa-grande, sistema patriarcal de colonização portuguesa do Brasil, foi a lógica formal que deu origem ao maior número de cidades.

Gilberto Freyre, no prefácio à 1ª edição brasileira de Casa-grande e senzala, observou que a Casa-grande não deve ser entendida sem a relação diacrônica estabelecida com seu oposto basilar, a Senzala. Mesmo após a Abolição da Escravatura, o patriarcalismo escravocrata ainda dita a moral brasileira.

Tal afirmação pode ser respaldada pela jovem capital, elaborada pelo urbanista e arquiteto Lúcio Costa. Apesar de ter sido inaugurada em 1960, o nome Brasília foi sugerido em 1823, por José Bonifácio, o Patriarca da Independência. Lúcio Costa, em seu projeto para o concurso de Brasília, o enaltece. A frase de encerramento de seu memorial diz: “Brasília: Capital aérea e rodoviária, Cidade parque. Sonho arqui-secular do Patriarca”. Ao retomar um desejo do século anterior, Costa se aproxima do modus operandi de Juscelino Kubitschek, presidente responsável pela construção da capital. Ambos conciliam passado, presente e futuro, partindo de um contexto ideológico histórico para justificar as intensidades do projeto moderno. 

Em Retórica e persuasão no concurso para o Plano Piloto de Brasília, Cristiano Arrais diz que Lúcio Costa “conseguiu convencer os jurados e o próprio presidente da república, de que a sua proposta era a única possível de representar o momento histórico pelo qual passava o País. Levando-o, portanto, à vitória.”

No Museu Histórico de Brasília, o primeiro da capital, é possível ver o trecho de Lúcio Costa gravado nas paredes subterrâneas de concreto – revestidas de mármore. Mesmo local que possui uma escultura enorme, em granito, da cabeça do Juscelino Kubitschek.

As questões coloniais possuem forte aderência na construção da nova capital. Em 1957, no Relatório do Plano Piloto de Brasília, Lúcio Costa afirma: “Trata-se de um ato deliberado de posse, de um gesto de sentido ainda desbravador, nos moldes da tradição colonial”. Também diz que seu desenho nasce do “gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz”.

Talvez o primeiro ato arquitetônico colonial tenha sido justamente a cruz fincada na areia, em Santa Cruz de Cabrália, no ano de 1500. 457 anos depois é fincada uma cruz na futura Brasília, a 1.172 metros de altitude, no canteiro central do Eixo Monumental. Nesse ponto mais alto da cidade, foi realizada a Primeira Missa da nova capital, em 3 de maio de 1957. Mais de mil pessoas participaram dessa celebração que marcou o batismo da nova capital.

A Primeira Missa no Brasil, Victor Meirelles, 1860.

Essa questão missionária aparece de forma institucionalizada até hoje. No site do Senado Federal, há uma notícia de que Santo italiano profetizou a construção de Brasília, ainda no século 19: “Entre os graus 15 e 20 havia uma enseada bastante longa e bastante larga, que partia de um ponto onde se formava um lago. Disse então uma voz repetidamente: – Quando vierem a escavar as minas escondidas no meio destes montes, aparecerá aqui a terra prometida, de onde jorrará leite e mel. Será uma riqueza inconcebível”.

A vinculação com o sonho do santo existiu desde o começo da construção da capital, tanto que, após a cruz fincada, a primeira obra de alvenaria a ser erguida foi a Ermida Dom Bosco, uma pequena capela em forma piramidal, projetada por Oscar Niemeyer e localizada às margens do Lago Paranoá.

A característica ‘catequizante’ da nova capital, acaba por contrastar com a ideia de progresso. Tal paradoxo descreve a visão da época, incorporada por muitos, inclusive Lúcio Costa. Apesar do frescor modernista e da originalidade de seus projetos, o mesmo espelha atributos coloniais e tradicionais, de forma concreta e ideológica.

Um dado importante para entender Lúcio Costa: ele foi funcionário do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN, cujas atividades se iniciaram em 1937, ano em que mergulha na fusão entre o moderno e a tradição. Em 1938, publica inúmeros artigos para a Revista SPHAN, na qual diz que “o engenhoso processo de que são feitas a arquitetura colonial – barro armado com madeira – tem qualquer coisa do nosso concreto-armado”. E, “assim como o mobiliário dos mestres da vanguarda moderna europeia, o mobiliário jesuítico colonial também era leve, simples, estável e, assim como suas construções, era concebido segundo as proporções humanas.”

Desenhos sobre o Mobiliário Luso-brasileiro Setecentista e sobre o Mobiliário das Vanguardas Europeias Modernas. Lúcio Costa, 1939.

Entretanto, partindo da ideia de que a colonização sedimentou – inclusive com concreto – moldes para o Brasil, como podemos olhar através das paredes, ou até mesmo derrubá-las? Como compreender os limites e questionar os fundamentos racializados e coloniais da arquitetura moderna brasileira? Como desfazer o sinal da cruz?

Para seguir nas interrogações, aproximo o presente texto ao ensaio recente de Paulo Tavares, intitulado com a pergunta: “Lúcio Costa era racista?”. No posfácio do livro, Roberto Conduru observa: 

“Ao longo do tempo, o elogio ao colonizador foi sendo matizado no pensamento de Costa. O eco das ideias de Gilberto Freyre em sua obra teórica, a partir da década de 1930, particularmente um entendimento menos negativo da miscigenação étnica constitutiva da sociedade brasileira, é outro indício de como suas ideias se transformaram à medida em que o arquiteto se reposicionava no meio cultural brasileiro. (…) Não se pode reduzir Lucio Costa às suas visões racializadas e colonialistas. Elas fazem parte de um agente cultural complexo como a sociedade a partir da qual ele atuou. E, como tal, devem ser analisadas com rigor crítico, longe de mitificações enaltecedoras ou aviltantes. Não se deve, contudo, escondê-las, escamoteá-las ou esquecê-las. Explícitos ou implícitos, ressaltados ou silenciados, racialidade e colonialismo são fatores cruciais na estrutura social brasileira que precisam ser enfrentados em seus variados domínios, entre os quais o campo da arquitetura e de sua crítica, com vistas à construção de outro mundo, igualitário e não racializado. O ensaio de Paulo Tavares é uma interrogação necessária.” 

Enquanto não arquitetamos boas respostas, que ao menos fiquemos com o vão livre de uma boa questão.

Anita Malfatti era canhota, não por ter nascido com tal atributo, mas por uma atrofia da mão e do braço direitos que a levaram a ter que desenvolver o outro lado. Aos 3 anos de idade, passou por uma cirurgia, mas a má-formação não pôde ser reparada. Diante disso, ela domou e dominou a mão esquerda com tanto afinco que extrapolou as funções básicas do membro. Criou, com perseverança, uma mão expressiva, expressionista. Uma mão que pinta. 

A pintura de Anita possui, desde o princípio, essa carga de desejo. O desejo de lapidar o bruto, visto como secundário. Afirmando, em seus músculos e ossos, que o lado ‘menor’ pode ser o principal.

Anita Malfatti, em 1955 – foto: Guilherme Malfatti

Há, também, os efeitos cerebrais disso. A lateralidade do corpo é inversa à lateralidade do cérebro. A mão esquerda, portanto, associa-se ao lado direito: a linguagem é normalmente processada um pouco mais no hemisfério esquerdo, e o reconhecimento facial um pouco mais no hemisfério direito, que também é especializado em processos como o raciocínio espacial e a capacidade de rotacionar representações mentais de objetos.

O reconhecimento facial é processado no hemisfério direito e Anita era uma exímia retratista: os seus quadros mais icônicos – e/ou polêmicos – eram justamente as composições humanas. Nos retratos, conseguiu traduzir o que não estava aparente. Pintava não apenas a forma, mas as forças invisíveis do corpo. Pintava o que era percebido e, também, o que era sentido. Tornava verde o cabelo branco, pois quem dava o tom era sua sensação, e não seus olhos.

A Mulher de Cabelos Verdes, 1915, Anita Malfatti

Tal aspecto de Anita, contrastante ao Brasil da época, ressoava movimentos longínquos. Em 1910, indo contra a corrente que levava os artistas brasileiros a Paris, Anita decide estudar na Alemanha e em 1915 dá seguimento às pesquisas nos Estados Unidos. Além da Itália tão afirmada em seu sobrenome, ela também possuía ascendência de ambos os países que a receberam. Havia, portanto, não apenas a intuição de romper com o magnetismo da Missão Francesa, mas certa ressonância familiar. Em alguma parte, os afetos de Anita incitaram sua ancestralidade. 

“[Berlim] Desenhei seis meses dia e noite. Um belo dia fui com uma colega ver uma grande exposição de pintura moderna. Eram quadros grandes. Havia emprego de quilos de tinta e de todas as cores. Um jogo formidável. Uma confusão, um arrebatamento, cada acidente de forma pintado com todas as cores. O artista não havia tomado tempo para misturar as cores, o que para mim foi uma revelação e minha primeira descoberta. Pensei, o artista está certo. A luz do sol é composta de três cores primárias e quatro derivadas. Os objetos se acusam só quando saem da sombra, isto é, quando envolvidos na luz. Tudo é resultado da luz que os acusa, participando de todas as cores. Comecei a ver tudo acusado por todas as cores. Nada nesse mundo é incolor ou sem luz. Procurei o homem de todas as cores, Lovis Corinth, e dentro de uma semana comecei a trabalhar na aula desse professor. Comprei uma porção de tintas, e a festa começou. Continuava a ter medo da grande pintura como se tem medo de um cálculo integral.” (Depoimento tardio sobre a experiência europeia, divulgado na Revista RASM, SP, 1939.)

Composição com nu sentado e dois esboços de múmia, 1918, Anita Malfatti
(Atenção ao desenho do topo direito, que se assemelha ao Abaporu de Tarsila. Há, inclusive, a presença do sol)

Sua escolha foi fundamental para que tivesse acesso háptico ao expressionismo, semente germinada em Berlim que começa a dar frutos maduros quando em Nova York. 

Em Lógica da Sensação, livro de Deleuze e Guattari sobre as pinturas de Francis Bacon, eles descrevem o ato de pintar como uma tarefa que tenta tornar forças não-visíveis em forças visíveis. “O mesmo vale para a música, de esforçar-se por tornar sonoras as forças que não o são.”

Algumas características de Bacon, percebidas e elaboradas por Deleuze e Guatarri, retomam operações de Cézanne, e, ao meu ver, são também capazes de descrever a fase expressionista de Anita Malfatti: 

“Cézanne é talvez o primeiro a ter feito deformações, a ponto de abater a verdade sobre o corpo. É por este mesmo ponto que Bacon é cézanniano: é sobre a forma em repouso, tanto em Bacon quanto em Cézanne, que obtemos a deformação; e ao mesmo tempo o entorno material, a estrutura, também se mexe (…) Tudo então está em relação de forças, tudo é forças.”

O homem amarelo, 1915, Anita Mafaltti

Na tela acima, podemos acessar aspectos da ‘deformação’: na proporção da figura, na síntese do fundo, no contorno da mão. O compromisso não se dá com a verossimilhança, mas com decisões muito subjetivas a respeito da figura. Havia, sim, traços urgentes – quase violentos – nesta fase de Anita, mas foram anos de engajamento técnico para que ela pudesse constituir o corpo de trabalho apresentado em 1917, em sua segunda e icônica montagem: Exposição de pintura moderna de Anita Malfatti.  

A exposição, com mais de 50 obras, foi um divisor de águas na história da arte brasileira, e culminou na Semana de Arte Moderna de 1922. Anita estremeceu os visitantes, gerou sentimentos controversos, recebeu críticas contra, críticas a favor. Era como se sua exposição estivesse polarizando a elite cultural da época: de um lado os conservadores, que não admitiam encarar o novo, do outro lado os inquietos, que perseguiam qualquer frescor estético. 

O homem de sete cores, 1916, Anita Mafaltti

Como representante da ala conservadora, temos Monteiro Lobato, que chegou a insinuar uma patologização da artista. Sua crítica publicada como A propósito da exposição Malfatti, foi depois renomeada como Paranóia ou Misticismo. A paranoia consiste em uma psicose, onde há desenvolvimento de pensamento delirante crônico, lúcido e sistemático, provido de lógica interna própria.

Lobato associa a montagem à “sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva”. São produtos de cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência: são frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro.”

O texto segue tão inflamado quanto às palavras que usa. E, além de críticas às obras, à própria Anita, e ao movimento que ela propagava, Lobato também dispara críticas às opiniões favoráveis: “esta voz sincera que vem quebrar a harmonia de um coro de lisonjas. Entretanto, se refletir um bocado, verá que a lisonja mata e a sinceridade salva”.

As visitas à exposição caíram vertiginosamente. Até Mário de Andrade, que visitava a exposição compulsivamente, se ausentou por uns dias. Após a publicação do texto, que saiu no Estadinho (versão noturna do Estado de São Paulo), obras compradas foram devolvidas e outras sofreram violência física: há o relato de que um senhor deu bengaladas nos trabalhos de Anita. 

No último dia da Exposição, Oswald de Andrade escreve uma crítica para o Jornal do Comércio defendendo a artista: “Anita Malfatti é um temperamento nervoso e uma intelectualidade apurada, a serviço de seu século. A ilusão que ela constrói é particularmente comovida, é individual e forte e carrega consigo as próprias virtudes e os próprios defeitos da artista. Onde está a realidade, perguntarão, nos trabalhos de extravagante impressão que ela expõe? A realidade existe mesmo nos mais fantásticos arrojos criadores e é isso justamente o que os salva.”

Entretanto, Anita acabou por habitar a sombra da crítica de Lobato. Recuou nos estudos expressionistas e passou a pintar com suavidade naturalista. Com o avanço dos anos, se aproximou do que ela chamava de arte popular, e tentava traduzir a “ternura brasileira”.

As duas Igrejas (Itanhaém), 1940, Anita Malfatti

Alguns lampejos viscerais surgiam cá e lá, mas sem muita pungência. Anita foi estudar em Paris, onde se dedicou ao fluxo majoritário e, voltando ao Brasil, se colocou mais como professora técnica do que como a artista disruptiva que ela era. Tal crítica foi tão penetrante, que Anita passou anos reagindo em silêncio, silenciando também sua poética e linguagem. Apenas em 1946, vinte e nove anos depois, que ela falou publicamente a respeito, sem muita elaboração: “Não sou nem nunca fui uma paranóica ou mistificadora.”

Apesar do apoio de outros modernistas, que deram à Anita o maior espaço na Semana de Arte Moderna de 1922, ela seguiu receosa de sua veemência. Marta Rosetti Batista, admirável historiadora da arte, foi a autora que mais se dedicou a recompor os trajetos de Anita para compreender e compartilhar as nuances quase secretas da artista. Durante quatro décadas, em uma investigação profunda e minuciosa, Rosetti desenvolveu dois volumes que apresentam a pesquisa: Anita Malfatti no tempo e no espaço. O primeiro volume inclui mais de 300 imagens, várias delas inéditas. O segundo volume relaciona mais de 1.300 obras e apresenta uma bibliografia completa de Anita Malfatti, num período que se estende de 1914 a 2004. Leitura indispensável para quem deseja o mergulho.

Há, ainda, muito a ser desvendado a respeito de sua obra. Anita, mesmo acuada, produziu incansavelmente. Foi pioneira, assinou a primeira – e talvez a maior –  ruptura artística do século 20. Tal rasgo permitiu a vida de um movimento, mas fissurou sua trajetória. Rosetti cita, em seu Itinerário da descoberta, uma expressão de Lourival Gomes Machado: de que Anita foi “protomártir da nossa renovação plástica”. Protomártir é um termo utilizado para designar o primeiro mártir de uma religião ou de um ideal político. Termo que sintetiza o papel de Anita enquanto figura sacrificial.

Itanhaém,1948-49, Anita Malfatti

Ainda não conseguimos diluir pontos densos da história modernista, mas acredito que uma justa ênfase à força de Anita é capaz de revelar respostas. Como pintar a solidão daqueles que abrem caminhos? 

Nas palavras de Anita: “Eu tinha 13 anos. E sofria, porque não sabia que rumo tomar na vida… Nossa casa ficava perto da estação Barra Funda. Um dia saí de casa, amarrei fortemente as minhas tranças de menina, deitei-me debaixo dos dormentes e esperei o trem passar por cima de mim. Foi uma coisa horrível, indescritível. O barulho ensurdecedor, a deslocação de ar, a temperatura asfixiante deram-me uma impressão de delírio e de loucura. E eu via cores, cores e cores riscando o espaço, cores que eu desejaria fixar para sempre na retina assombrada. Foi a revelação: voltei decidida a me dedicar à pintura.”

A pintura parece ser uma boa resposta ao assombro. Gosto de pensar que, independentemente do “que” e “como”, Anita pintava. O ato de pintar, sendo inovador, repetitivo ou decorativo, é, ainda, o ato de pintar. Talvez tenha sido essa a melhor resposta à Lobato: seguir pintando. Dedicar os olhos às obras de Anita é uma forma de apreender a polifonia de um século. Uma mesma mão a pintar inúmeras estéticas, num exercício constantemente novo: a mão canhota sempre verde, a descobrir, como pela primeira vez, as cores.

Tropical, 1917, Anita Mafaltti

A Semana de Arte Moderna costuma ser lida como um marco coletivo, majoritariamente masculino e intelectualizado, do século passado. Palavras e mais palavras favorecem o acontecimento, enquanto muitas outras o rebaixam. Há camadas invisíveis, construtivas e destrutivas, dando complexidade à coisa. Anita Malfatti esforçava-se para tornar visíveis as forças que não o são. Ela festejava as cores e 1917 prova isso. Gosto de ver a Semana de 1922 como continuidade dessa festa: efeito que teve Anita como causa. 

A Semana como reação alegre ao corpo social burguês – febril e polarizado – da época. Hoje, um século depois, qual o diagnóstico para esse corpo?

Burrinho correndo (considerado o primeiro quadro da artista), 1909, Anita Malfatti

Para quem tiver interesse em se aprofundar, o site VER – Anita Malfatti, do Instituto de Estudos Brasileiros, contém ampla documentação.

Mineiro de Belo Horizonte, é com a fotografia que Bergamini expressa suas vivências pessoais e visão de mundo.

Fotografia que se tornou a capa desta edição Amarello Ilusão.

Guilherme é um entusiasta e curioso pelas novas possibilidades contemporâneas que a técnica permite.

Persistente, o artista visual tem a fotografia como meio de crítica política e social.

Premiado em concursos nacionais e internacionais, participou de festivais e exposições coletivas em 21 países, além de ter fotografias publicadas em diferentes veículos de comunicação brasileiros e estrangeiros.

No Nordeste brasileiro, sozinha, dirigindo seu carro, Rose Klabin fotografou enormes construções inacabadas e os impactos ambientais e sócio-culturais do crescimento desenfreado, desordenado e irregular que vivemos nos últimos anos. Sua pesquisa sempre envolveu grandes centros, sejam industriais ou urbanos. 

O resultado deste projeto se traduz em imagens e paisagens quase cenográficas, que remetem a um filme de ficção científica que deu errado. Para colocá-las num gênero ainda mais atual, fazem referência direta a algumas obras literárias de cli-fi (climate-fiction).  

Há mais em sua pesquisa em termos de pesquisa arquitetônica – certa fascinação pela questão da grandiosidade acompanhada pelo anonimato típico de construções industriais. Espaços não espaços, espaços construídos para não serem usados.

Todas essas imagens apresentam um tempo indefinido. Algumas dessas imagens levam em si a documentação de obras e construções que pareciam ter sido abandonadas antes de serem postas em uso.

Em outras ocasiões, apresenta imagens de fábricas e processos industriais que carregam em si a mesmíssima solidão, o vazio e o estranhamento provocados nela quando olhava para esses cantos “parados”. Essencialmente, existe uma fascinante – e ao mesmo tempo angustiante – assimetria, uma arritmia, naquela realidade, onde o rico passado cultural nordestino é tomado pela ferocidade de um “novo” descontrolado e sem direção. 

#24PausaCulturaLiteratura

Perdemos a mão

por Fábio Maca

Antonio Sobral cresceu no Rio de Janeiro, onde frequentou a EAV Parque Lage, trabalhou no atelier de Rubens Gerchman e foi assistente da artista Adriana Varejão. Estudou Cinema e Arte na faculdade Paris 1 – Sorbonne, em Paris. Realizou diversas exposições individuais em Berlin, São Paulo, Lausanne, e coletivas em Nova York, Buenos Aires e também em São Paulo. Morou em Berlim onde realizou projetos de curadoria independente no Künstleratelier Pony Royal, e editou diversas publicações de forma autônoma, tendo um livro seu publicado pela editora berlinense Gloria Glitzer, e participado de feiras de publicação como a Printed Matter no MOCA em Los Angeles, a Art book fair em Tóquio e a Libros Monstruo em Madri. Seu trabalho de colagem, desenho e poesia foi publicado entre outros no livro Berlin What?, e integra coleções como a Archiv für Künstlerbücher em Munique, assim como coleções particulares. O artista é coordenador do Programa de residências artísticas São João em São José do Vale do Rio Preto na região serrana do Rio de Janeiro, onde vive atualmente plantando cafés especiais, e de onde dirige a Deep editora.

#23EducaçãoArte

Sobre a capa: Bruno Moreschi

Em algumas exposições que faz, o artista plástico Bruno Moreschi convida operários de obras próximas da região onde vai expor para fazer um trabalho em conjunto.

Esses operários, que geralmente fazem bico como pintores de parede, são convidados a fazer o que bem entenderem em uma das paredes expositivas, desde que se organizem para extrair o melhor do grupo. O valor pelo trabalho também é discutido com eles. O trabalho que está na capa dessa edição foi feito na Galeria Blau, onde Bruno apresentou sua obra Independência ou Morte (2014), uma obra em aberto, no qual problematiza o fechamento do Museu Paulista para reforma e a pintura de Pedro Américo, que ficará sem ver a luz do sol por mais de dez anos, e que faz parte de nosso Portfólio desta edição.

Atualmente, Bruno Moreschi reside em Helsinque, Finlândia, onde realiza, até início de junho, uma viagem de pesquisa artística e se prepara para sua próxima exposição, em agosto, em Brasília, com curadoria de Caroline Carrion. Entre as obras, um novo trabalho em conjunto com os pintores de parede, a maior experiência desse tipo que já fez até hoje.

Hiroyuki Izutsu nasceu em 1955 e cresceu em Tóquio. Começou sua carreira como ilustrador autodidata, e ao longo do tempo, tornou-se profissional.

O tema mais recorrente em seu trabalho são retratos, mas, em 2011, iniciou o projeto Don’t Give up Japan, depois do Tsunami causado pelo Grande Terremoto to Leste do Japão. Sua paisagem cotidiana foi totalmente destruída como as paisagens em Tokyo, Hiroshima e Nagasaki, que foram queimadas pelo ataque aéreo e pela bomba atômica há 70 anos, durante a Segunda Guerra Mundial.

O projeto é uma série de paisagens do nordeste japonês que desapareceram com o desastre. Após desenhar duas imagens de paisagens por mês, Izutsu, redescobriu a beleza das paisagens japonesas. Agora, a pintura de paisagem se tornou um tema recorrente em seu trabalho, e ele acredita que reconstruir a área do desastre, é criar um novo futuro para o Japão.

William Eggleston (norte-americano nascido em 1939), ficou conhecido como o precursor da fotografia colorida americana. Suas imagens mostram em cores vibrantes o cotidiano e a paisagem do sul dos Estados Unidos, nos anos 1960 e 1970.

Ainda estudante universitário, comprou uma câmera fotográfica e, embora no início trabalhasse em preto e branco, em 1965 começou a experimentar a fotografia colorida. Seu olhar sobre a vida comum democratiza o mundo ao seu redor, e cada detalhe tem importância em suas imagens ampliadas em grande escala, monumentalizando os objetos cotidianos. Ao focar suas lentes em estradas, outdoors, lanchonetes, supermercados, motéis, plantações e subúrbios, assim como em amigos, familiares e personagens anônimos, Eggleston também registrava as transformações sociais por que passava sua região natal.

Eggleston descobriu o sucesso em 1976, quando John Szarkowski, diretor do departamento de fotografia do Museu de Arte Moderna de Nova York, organizou uma exposição de suas fotografias coloridas na instituição. A novidade da exposição, que apresentava cenas prosaicas, liberdade de composição formal e apostava na cor, tornou-se assunto de intenso debate entre a comunidade fotográfica, recebendo duras críticas, pois, até então, o preto e branco e temas como a paisagem e o retrato ainda dominavam a arte fotográfica. Hoje, as imagens de Eggleston estão entre as mais célebres da história da fotografia do século XX.

#19UnidadeArteArtes VisuaisDesign

Do jeito que é

February James faz uso de aquarelas e tintas suaves para criar retratos etéreos e expressionistas que refletem a identidade negra. A sua arte representa assuntos oníricos através de um traço figurativo borrado e distorcido.

James trabalhou como maquiadora antes de entrar para a faculdade de artes, na Universidade de Design de Pasadena, nos Estados Unidos. A artista expôs amplamente em Los Angeles, onde vive e trabalha, além de estar presente em mostras em Nova York, Tóquio e Turim. Embora o trabalho de James seja frequentemente inspirado por suas próprias experiências como mulher negra na América, sugere estados emocionais que ecoam amplamente junto aos espectadores.

Quinta é meu dia favorito. Aqui, nos Jardins, o trânsito pára. As ruas do meu bairro ficam entupidas de carros. E, no meio da babilônia, a gente enxerga pequenas tendas listradas, coloridas, responsáveis pela lentidão do tráfego: é ela, a feira.

Eu sempre acordo mais contente nesse dia. Parece que a região onde moro renasce, muda de cor. As lojas “chiques” do baixo Oscar Freire cedem espaço para a forma de mercado mais antiga que existe. Ao lado, há dois supermercados, mas sua valentia dá de ombros e ela se mantém ali, firme e forte. O que me chama atenção é que seu formato permanece intacto, há anos. Apesar de toda a modernidade, os alimentos seguem ali, dispostos em bacias plásticas, caixotes, as frutas todas encaixadas em degraus coloridos – na feira o tempo passa em outra velocidade. Lá a rede social não faz sentido, Whatsapp é desnecessário, e-mail não possui qualquer serventia.

Barulhenta, cheia de vida, com diferentes pessoas convivendo, conversando. A vitalidade da feira me encanta, todo mundo cabe ali. Um ótimo antídoto contra a solidão, ali não passamos pela rua com a sensação de sermos invisíveis, como muitas vezes nos sentimos em São Paulo. Ninguém ali tem muita pressa: é preciso pegar as frutas nas mãos, sentir sua textura, ver a cor dos legumes. Isso exige, acima de tudo, disponibilidade e tempo.

Entre as barracas listradas, te olham nos olhos, disputam sua atenção, te paqueram, te dão pedacinhos de fruta. Somos o tempo todo convocados. Gosto de passear por seus corredores, ver as frutas brilhando, os temperos, os peixes, o frango, água de coco, pastel e finalmente: as flores.

A barraca do seu Jaime e da dona Ilma tem uma história bem antiga na minha vida. Toda semana meu pai comprava flores para a nossa casa. Lírios para minha mãe, cravos para mim. De mocinha adorava chegar da escola em casa e ver aquele vaso enorme na sala, lírios brancos, imponentes. Minha mãe sempre escolhia um vaso que combinasse com a decoração, e sempre acabavam brigando, pois ele também queria escolher o vaso, palpiteiro que era. E no meu quarto havia sempre um vaso pequeno, com uma dúzia de cravos bem delicados. na quinta-feira, eu tinha certeza de que nós duas éramos muito amadas. Prova disso era o perfume que invadia nossa casa nesse dia e durava por uma semana toda.

Logo que me casei, comecei a fazer feira. Me sentia, assim, dona de minha casa, de minha família, adulta, quando descia à rua para fazer as compras semanais. A primeira coisa que fiz, ao mudar, foi comprar flores para minha sala. Cheguei à feira dizendo ao seu Jaime que era filha de um antigo cliente. Para minha surpresa, não se lembrou dele. Fiquei sem graça, saí sem desconto – mas comprei logo uma hortênsia. Linda, redonda, só minha. Quando relatei ao meu pai o que havia ocorrido, ele me disse: da próxima vez, fale que é você a menina dos cravos. E assim foi. nunca mais saí sem desconto. Nem sem uma rosa de brinde.

Depois, comecei a comprar cerejeiras (que, embora lindas, sujam a casa), astromélias (que são mais baratas e rendem lindos arranjos), cravínias (que são flores pequeninas, mas que, juntas, parecem uma revoada de pequenos passarinhos), girassóis (que me lembram minha melhor amiga), violetas (que sempre renascem, uma surpresa!), rosas e tantas outras lindas flores para enfeitar minha casa. Descobri-las era um jeito de descobrir algo muito feminino meu, meu lado dona de casa.

Subo minha rua com meu buquê de flores como uma criança que acaba de conhecer uma melhor amiga e logo sai de mãos dadas. Chego em casa sonhando com o vaso no qual vão morar e escolho um lugar para que recebam sol e possam ser reverenciadas por quem entra. Sempre que alguém chega em casa encontra um vaso florido. E mesmo se eu estiver muito triste, nunca me esqueço de comprá-las.

Uma das últimas refeições que fiz em família foi na feira. Comemos eu, ele e minha mãe o mesmo pastel. Nos encontramos, por coincidência, na frente da barraca do seu Jaime, uma semana antes de ele entrar em coma. Toda vez que passo por lá eu agradeço por ter vivido essa memória nesse cenário. Se tenho vontade de comer um pastel às dez da manhã, eu cedo. Mas lírios e cravos nunca mais comprei.

#40DemoliçãoEditorial

Demolição — Amarello 40

“Pressinto que tudo é o avesso da morte”.

Em sua edição de número 40, a Amarello recebe a artista Sofia Borges como editora convidada do tema Demolição.

Demolir é o ato de destruir uma estrutura de forma deliberada, a fim de dar outro destino ao espaço antes ocupado por ela.

Vivemos um momento único e necessário de revisão histórica. O levante das vozes caladas pelo arranjo colonial durante séculos ganha fôlego por meio da internet, amplifica os movimentos sociais e gera a transformação cultural que resultará na mudança política e social de que precisamos para adentrar o século XXI. É a demolição como ruína das grandes verdades que nos foram impostas: a igreja católica, o patriarcado, a segregação racial… Embebidos no lamaçal escatológico dessa decomposição, presenciamos o fim do mundo hegemônico conhecido até então.

A demolição é a força da natureza que nos habita. É deixar um lugar que não nos serve mais e sair em busca de outro. Reconhecer que estamos em estado de fragilidade nos dá a oportunidade de responder com vida, cuja inteligência é muito superior à da morte.

O Pântano, trabalho de Sofia Borges presente nesta edição, traduz com potência a coragem com que devemos encarar a mudança. Deixar os escombros do passado serem demolidos para abrir espaço ao novo é a chance preciosa que temos para reavaliar quem fomos e construir uma sociedade a nosso favor.

Tomás Biagi Carvalho

#40DemoliçãoCulturaFilosofiaSociedade

Dois e dois são dois: Renato Noguera e Nêgo Bispo

Antônio Bispo dos Santos é Nêgo Bispo, uma das principais vozes a representar o pensamento das comunidades originárias do Brasil. Morador do quilombo Saco do Curtume, no Piauí, Bispo é escritor, ativista político e militante do movimento social quilombola pelos direitos ao uso da terra. É professor da rede de mestres e docentes da Universidade de Brasília (UnB).

Renato Noguera nasceu no Rio de Janeiro. Professor de Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, atua como pesquisador do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas e do Laboratório Práxis Filosófica de Análise e Produção de Recursos Didáticos e Paradidáticos para o Ensino de Filosofia da UFRRJ. Suas investigações se concentram na história e cultura afro-brasileira, africana e indígena, bem como na ética, política e subjetividade, tratando especificamente de racismo, biopoder, devir negro e diferença, nas filosofias de Foucault e Deleuze.

Renato Noguera – Quem é Nego Bispo, para quem não o conhece?

Nêgo Bispo – Nego Bispo é um negro quilombola que nasceu no dia 10 de dezembro de 1959, no vale do rio Berlengas, no estado do Piauí. Quando eu me entendi por gente, no território onde eu nasci — só para ter uma ideia de que ambiente era aquele: existiam aproximadamente 18 engenhos de rapadura; 15 eram do povo negro. Só o meu bisavô tinha três. E os que não eram dos negros eram feitos pelos negros. Mas não na condição de escravos, na condição de mestres e mestras. E eu fui formado por essas mestras e mestres, pela oralidade, e essas mestras e mestres resolveram que eu deveria ir para a escola, a escola escriturada, porque nesse período os contratos orais estavam sendo substituídos pelos contratos escriturados. Como o nosso povo não dominava as escrituras, eles resolveram que alguns jovens deveriam aprender essa linguagem. Então eu fui para a escola, até a oitava série. E fui com uma função determinada: aprender a traduzir os contratos escritos para a oralidade, e traduzir os contratos orais para os contratos escritos, e é isso que eu faço até hoje. Eu me sinto um relator dos saberes da minha geração avó, mas também me sinto um tradutor dos saberes do nosso povo. No princípio eu lia e escrevia cartas, lia bulas de remédio, livreto de cordel, fazia contabilidade de açougue, de bar, nos botequins das festas e etc. e tal. Vivi cinco anos no Rio de Janeiro, para conhecer uma cidade grande. Daí quando eu voltei ao Piauí, ao nosso território, foi logo que começou o debate sobre a Constituinte e o nosso povo exigiu que eu fosse para o sindicato, para traduzir os novos contratos escriturados, as legislações. Eu fiz isso, fui para o partido, participei dos debates, até fui candidato e sempre levando, primeiro a questão negra, até a Constituição de 88, e, depois, a questão quilombola. Porque, antes de 88, ser quilombola era ser criminoso. Eu tentei levar o debate quilombola para dentro da estrutura sindical. Me desfiliei do partido em 1997 para me dedicar exclusivamente à questão quilombola. Mudei do território onde nasci, no vale do Berlengas, e vim para o vale do rio Piauí, próximo do município chamado São João do Piauí, num quilombo chamado Saco Curtume, que é onde eu vivo até hoje. E aqui eu passei a tentar compreender cada vez melhor os modos de vida do nosso povo, o pensamento do nosso povo, até que lancei um livro, em 2007, intitulado Colonização, quilombos: modos e significados. Eu peguei aquilo que o nosso povo me ensinou, nas mais diversas formas de linguagem, através das imagens, palavras, atitudes, e traduzi em palavras que a academia entende. Para quem discute o desenvolvimento sustentável, eu trouxe a biointeração. Para quem discute a coincidência, eu trouxe a confluência. Para quem discute o saber acadêmico e o saber tradicional, o saber empírico, eu trouxe o saber orgânico e o saber sintético. E aí eu trouxe o pensamento linear e o pensamento circular — coisa que outras pessoas também discutem, mas eu aproveitei para discutir isso. E aí, para quem discute o racismo e o capitalismo, eu trouxe o contracolonialismo. O contracolonialismo vem junto com a matriz da cosmologia politeísta.

Noguera – Para a gente entender o que o seu pensamento sistematiza e como ele nos ajuda a entender a sociedade em que a gente vive, como é esse empreendimento da contracolonização e da cosmologia politeísta? Fale da cosmologia politeísta e da confluência, do orgânico versus sintético.

Bispo — Por que essa questão da cosmologia? Primeiro, porque me incomodava quando se falava que a escravidão no Brasil surgiu porque um modo de produção precisava de mão de obra escrava. Eu posso até concordar com isso, mas a pergunta é: quem determinou qual povo seria escravizado? Eu fui procurar essa determinação e eu encontrei a bula papal de 1455, escrita pelo papa Nicolau V no dia 8 de janeiro. Ela dizia que o rei de Portugal poderia invadir, subjugar, humilhar, escravizar, submeter à escravidão perpétua todo principado e condado onde o povo fosse pagão. Pronto! Eu encontrei aqui quem foi que determinou qual povo que seria escravizado. Foi o cristianismo. E o cristianismo é uma religião monoteísta, de um deus só. O povo que o cristianismo, através desse papo, determinou que deveria ser escravizado eram os povos de religiões politeístas, ou de cosmologias politeístas. Os críticos poderiam dizer que foi apenas um papa, que outros papas pensavam diferente. Então me concentrei em quem fundamentou esse papa. Ora, como eu fui formado para traduzir os contratos escriturados para a oralidade, qual é a mais importante escritura dos cristãos? A Bíblia. Então eu fui na Bíblia, e em Gênesis eu vi aquela pérola: “Deus Jeová disse: para Adão e Eva a terra será maldita por tua causa, ou porque tu me desobedeceu, porque tu comeu do fruto proibido, a partir de agora as ervas serão daninhas, tu haverá de comer com a fadiga do suor do teu rosto”. Olha só! Nesse momento, esse deus da cosmologia monoteísta, portanto um deus onipotente, onipresente e onisciente, criou a desterritorialização — ele desterritorializou Adão. Ora, se ele amaldiçoou a terra, quem é que quer viver numa terra maldita? Mas aí ele criou o trabalho: “Haverá de comer com a fadiga do suor do teu rosto.” Logo, o trabalho é o castigo. O próximo passo: ele criou o terror porque disse, também, que todas as gerações descendentes de Adão seriam amaldiçoadas. Mas ele fez mais do que isso: ele criou uma doença chamada cosmofobia, que é o medo do cosmos. Então os cristãos monoteístas não respeitam o seu deus, eles temem. Eles são aterrorizados. Aí eu compreendi que a colonização é um sistema fundado numa cosmologia monoteísta que produz um pensamento vertical, linear, que tem começo, meio e fim. E eu fui ver que, como Deus diz que as ervas são daninhas, aquele povo não podia comer da natureza como a natureza se oferecia. Então, eles não poderiam confluir com os demais seres, compartilhar com os demais seres. Eles tinham que sintetizar. Eles tinham que transformar a natureza em uma outra coisa. Daí cria o desenvolvimento. Então esse povo é o fundador do desenvolvimento. O desenvolvimento é fundamentado no pensamento sintético, e o envolvimento é fundamentado no pensamento orgânico. Então logo começa a se ver aqui que as pessoas vão logo pensando cada vez mais diferente. Os cristãos consideravam pagãos os povos de cosmologia politeísta. O povo de cosmologia politeísta, por ter várias divindades e por conta das suas divindades estarem em todos os lugares, é um povo que vê a sua divindade quando olha para a terra, quando olha para os astros, quando sente o vento, quando olha para a mata… Então é um povo que pensa de forma circular. Pensa de forma circular e age de forma circular. Por isso que os quilombolas e os povos indígenas, tudo que eles fazem é na circularidade. A capoeira é rodando, o samba é rodando, o reggae é rodando, os nossos cabelos quando crescem são redondos. E aí nós temos começo, meio e começo. Nós não temos começo, meio e fim. Porque a roda não tem fim e nem começo. Ela é fim e começo o tempo todo, em qualquer lugar que você entrar na roda. E qualquer lugar que você entrar na roda é meio. Mas não tem fim. A roda só tem começo, meio e começo. E é assim que nós nos comportamos. Quem são os povos colonialistas? São os povos euro-cristãos-monoteístas. E quem são os povos contracolonialistas? São os povos de cosmovisão politeísta. Todo e qualquer povo de cosmovisão politeísta é por natureza contra a colonização. Tanto é que nós nunca quisemos governar o mundo. A gente não forma sociedade, a gente forma comunidade. A sociedade é formada pelos seres do ter. E a comunidade é formada pelos seres do ser. Ou seja, voltando à questão pensamento orgânico e pensamento sintético: o pensamento orgânico é o pensamento do ser e o pensamento sintético é o pensamento do ter.

Noguera – Essa ideia do começo, meio e começo faz uma diferença tremenda, porque não tem um ponto final, não tem uma natureza a ser conquistada. Uma preciosidade pensar que a comunidade é uma alternativa. Isso talvez mude a forma de fazer política. Você tem na sua experiência o sindicato, o partido político, e você sai do sindicato e do partido, talvez por essa percepção de que mesmo partido e sindicato estavam envolvidos em uma cosmofobia, em um pensamento euro-cristão que não solucionava o nosso problema. Como a gente faz política, então?

Bispo – Agora vamos falar da confluência. Como é que os africanos trazidos na marra, por navios, nos oceanos, passaram pela árvore do esquecimento, e como é que esse povo não esqueceu? Como é que esse povo trouxe esse seu saber para cá? Eu fui tentar entender, pelas conversas com a nossa geração avó, e aí um dia, conversando com a mãe Joana, que foi uma das minhas grandes mestras, eu perguntei: “Mãe Joana, que barulho é aquele?” “Meu filho, esse é o rio Jordão.” “Mas que rio é esse?” “Esse é o rio do céu.” Aí eu fiquei com aquilo incutido na minha cabeça. Outro dia, conversando com uma indígena, ela disse: “Eu gostaria de saber muito mais sobre o povo quilombola, mas não dou conta nem de saber sobre os indígenas”. “E eu a mesma coisa”, eu falei. “Queria saber sobre os indígenas, mas não dou conta nem do quilombola.” Ela disse: “Como é que nós vamos fazer isso um dia?”, e eu disse: “Pela confluência”. “Como assim?” “Como é que você imagina que as águas do São Francisco se encontram com as águas do rio Nilo, se tem um oceano no meio? E elas se encontram ainda doces.” Ela disse: “Ué, não sei”. Eu disse: “Pelo rio do céu. As águas do São Francisco evaporam e vão pelas nuvens e chove lá em África. E as águas do Nilo chovem e vêm pra cá. As águas confluem também pelos rios do céu”. Caramba! Então, o nosso povo foi transportado pelos navios dos colonialistas, mas eles transfluíram pelos astros. Ou seja, quando os africanos chegaram aqui, eles se comunicaram com os indígenas através das plantas, através dos astros, através das águas, por entender esses entes foi que eles se comunicaram. Então os quilombos foram formados pelos africanos com o apoio dos indígenas. Ou seja, como fazer política? Nosso povo já ensinou. São os quilombos. Os quilombos são as mais importantes referências que nós temos, nesse momento, no mundo. Porque o resto é referência teórica, e referência teórica é desconectada. Como é que Karl Marx vai nos ensinar, se Palmares aconteceu antes de Karl Marx nascer? Palmares fez tudo que Karl Marx apenas escreveu. A esquerda e a direita são dois membros do mesmo corpo. Tanto a esquerda como a direita são colonialistas. São cristãos. A direita diz que apoia a democracia, a esquerda diz a mesma coisa. A direita diz que a solução tá nas eleições, a esquerda diz a mesma coisa. Onde tá a diferença? A diferença é que a direita defende o Estado, mas constrói uma estrutura paralela. E a esquerda defende o Estado, mas não constrói uma estrutura paralela.

Noguera – Escraviza a gente cada vez mais, não é? E acaba com a oportunidade de liberdade.

Bispo – Os euro-cristãos criaram o Estado mas mantiveram as igrejas. E as igrejas são Estados paralelos, tanto é que hoje elas têm banco, universidades, hospitais, elas têm tudo que elas precisam para viver bem. E a esquerda construiu o quê? A esquerda ficou fortalecendo o Estado e eles saqueando o Estado.

Noguera – Você tá falando uma coisa disruptiva. Você faz uma crítica estrutural à direita e à esquerda, dizendo que a solução para uma sociedade mais justa não tem nada a ver com essa opção: são dois membros do mesmo corpo.

Bispo – Eu não tenho nenhum órgão do Estado como aliado. Mas nós temos confluentes. Deixa eu te contar uma história… Eu fui adestrador de bois. E adestrar e colonizar é a mesma coisa. Primeiro: ou eu confinava esse boi no seu território ou eu tirava ele do seu território para confinar em um território estranho. Eu mudava os hábitos desse boi. Eu ensinava ele a comer outras coisas para ele esquecer de comer o que lhe era habitual. Ou seja, eu fazia com que ele saísse dos seus modos de vida, da sua cosmologia. E eu lhe trocava o nome. O colonialismo faz a mesma coisa. O colonialismo confina, ataca os modos, tira do seu meio ancestral e coloca para trabalhar. Da mesma forma que tem animais que são adestrados e tem animais que não são, tem pessoas que estão dentro dessa estrutura, mas estão insatisfeitas. E aí é que tá o grande segredo. Depois que o nosso livro chegou nas universidades, muitas pessoas de pele de outras tonalidades, pessoas que têm uma herança colonialista, têm questionado a sua própria herança. Eu acredito que é possível a gente contribuir para que os colonialistas se reeditem, pelo menos as gerações mais jovens. Então eu não vou dizer aliado, mas confluente. Por exemplo, professor Zé Jorge deu grande contribuição para a publicação do nosso livro. Ele é um aliado? Não. Mas ele é uma pessoa confluente. Há uma diferença entre o aliado e o confluente. Um rio não deixa de ser rio porque conflui com outro rio. É o contrário: ele é um rio da confluência para a nascente, e da confluência para a frente ele também continua sendo um rio, só que um rio mais fortalecido. Ou seja, pelo fato de confluir com o Zé Jorge, eu não vou ser dominado pelo Zé Jorge e nem vou dominar o Zé Jorge. Mas nós vamos fazer coisas juntos, que fortaleçam a trajetória dele tanto quanto a minha.

Noguera – É melhor confluir do que ser aliado. Você vê que o aliado, de repente, é uma pessoa que pode querer tomar o território, trair, fazer aliança.

Bispo – Quando Dilma caiu, um amigo me perguntou: “Bispo, você acha que foi golpe ou não foi golpe a queda de Dilma?” O que eu falei pra ele: “Meu amigo, formiga que vai para banquete de tamanduá não volta”. É isso.

Noguera – Eu penso que é a melhor análise que eu vi nos últimos tempos, ou seja, não que fosse golpe ou não, já estava previsto, pré-programado que não tinha saída, porque o grupo que estava ali não tinha confluência. Não tinha projeto junto. O inverso da confluência, Bispo, fala um pouco sobre isso. Assim como o orgânico se contrapõe ao sintético.

Bispo – O inverso da confluência é a influência. O povo contracolonialista transflui para confluir. E o povo colonialista se transporta para influir. Ou seja, o povo contracolonialista, por pensar organicamente e na circularidade, quando encontra com o outro, ele pensa em uma situação de fronteira, e a fronteira é um espaço de diálogo, de conversa, de possibilidades. O colonialista não chega na fronteira, ele chega no limite. E quando ele chega no limite ele quer influenciar, quer trazer o outro para o seu dele ou invadir o território do outro. Ele não respeita a fronteira. O limite é sempre um espaço de guerra, não de diálogo. Então o colonialista chega para influenciar.

Noguera – Ela se transporta para o território do outro, mas na verdade ela quer influência. Tem hoje essa expressão digital influencer, um negócio meio colonial. Você se posiciona como um pensador quilombola e recorre ao Abdias Nascimento, que é um autor muito interessante para pensar a questão do quilombismo.

Bispo – A grande questão é que o Abdias Nascimento ainda tinha muita influência do Estado. Quando ele chama a atenção pro quilombismo, ele dá uma grande contribuição, mas, como também navegava por dentro da academia, ele trazia esse debate como uma teoria. Ele não trazia esse debate como um modo de vida. Porque o quilombo é um modo de vida, tanto é que na comunidade, quando uma criança não tá fazendo uma coisa que os adultos acham certo, como é que a gente diz: “Cria modo, menino!” Então o modo, o quilombo, ele é um modo. Por exemplo, eu sou lavrador. Na academia, tem a categoria que é o engenheiro agrônomo. O engenheiro agrônomo não sabe fazer uma cerca, na maioria das vezes. Na maioria das vezes, ele não sabe cuidar de um animal, não sabe plantar, mas sabe ensinar. Como é que tu sabe ensinar uma coisa que tu não sabe fazer, rapaz? Mesma coisa o engenheiro civil.

Noguera – Provocando os teóricos, você vê essa cisão entre teoria e prática, que deveriam estar juntas.

Bispo – O desafio é mandar o engenheiro agrônomo pro quilombo, pra ele viver na agricultura aplicando as teorias que ele aprendeu na universidade. Ele sozinho. Será que ele vai escapar? Aí é só separar o que é o saber orgânico do que é o saber sintético. O saber acadêmico é o saber sintético. O saber das universidades é o saber sintético, que ensina fora do lugar de fazer.

Noguera – Por isso a colonização permeia tudo. Essa trajetória que você nos diz, como que ela é um problema a uma sociedade democrática? Se tivermos o ideal de democracia, se a gente puder reclamar democracia, ela tem que ser quilombola, tem que ser dos povos originários, indígenas.

Bispo – Tu sabe como que a nossa comunidade chama democracia? Burrocracia. Se a democracia fosse boa, não precisava de armas. A democracia mais importante do mundo é a americana, e é a mais armada. Então, no quilombo não se tem democracia. Se tem compartilhamento. É outra coisa.

Noguera – É o deslocamento completo. Não é reforma. Reforma não adianta. Qual o desafio que a gente tem diante de um governo, hoje, de extrema-direita, e com algumas várias leis trabalhistas solapadas?

Bispo – Eu nasci entre a caatinga, o cerrado e os cocais. Nasci em uma encruzilhada. Você já ouviu falar, com certeza, que o cerrado tem o fogo natural. Com o passar do tempo, muitas vidas no cerrado vão dispondo sobre a terra materiais. Os animais soltam pelo, esterco; as aves soltam penas; as árvores soltam galhos e folhas secas. Chega um momento em que essa matéria deixa de se decompor e a terra deixa de alimentar as outras vidas. De repente, um ser inteligente, que pode ser um indígena, um quilombola, mas pode ser também uma descarga elétrica, pode ser uma pedra que rola sobre um penhasco que rola e gera uma faísca e gera um incêndio no cerrado. O fogo vai queimar aquela matéria seca; o vento vem e espraia a cinza, e depois que passa o vento vem a chuva e infiltra aquela cinza na terra. Ou seja, a terra se alimenta de novo e alimenta os outros seres. Assim a vida se reedita no cerrado. É isso que aconteceu na sociedade brasileira. Sindicatos, partidos, ONGs eram essa matéria seca. Ela não permitia mais que as condições de vida fluíssem. Então isso que chamaram de crise, na queda de Dilma, isso é o fogo do cerrado. Ou seja, o povo quilombola, o povo indígena, os povos e comunidades tradicionais são as sementes que quebraram a dormência, são as árvores que rebrotaram, são os animais que tão pastando novos brotos. Então hoje são os povos, e não são mais os partidos. São as comunidades, não são mais os sindicatos. Eles ainda têm um papel, mas um papel de transição. Ou seja, o povo passou a reaprender os quilombos. Desde Palmares, desde Caldeirão, desde padre Cuié, aprendendo a capoeira, aprendendo os terrenos de matriz africana, aprendendo o samba, nos batuques, nas nossas escolas.

Noguera – Tem uma luta, uma disputa que é burocrática. E tem uma titulação do quilombo, de ter garantido a terra indígena, mas que só isso não basta.

Bispo – Até porque o território não é apenas físico, ele é cosmológico. Eu não sou quilombola só quando eu estou no Saco Curtume, eu sou quilombola aonde eu for. A minha natureza vai comigo aonde eu for. Se eu chegar no Rio de Janeiro, eu sou quilombola do mesmo jeito.

Noguera – Você está dizendo outra coisa: confluência não é aliança. Não é fazer aliado. Não é, porque o sintético é justamente uma colonização. O sintético coloniza, o orgânico não.

Bispo – O sintético coloniza e o orgânico contracoloniza. Um quilombo não tem ingerência sobre outro. Você nunca vai encontrar, no Brasil, um quilombo igual. Mas todos os quilombos se respeitam. A gente se comunica, a gente compartilha. A primeira confluência entre o povo africano e os indígenas foi no início do colonialismo, se comunicando através da cosmologia, através das plantas, das águas, das estrelas, dos astros. A gente acabou se comunicando, e teve uma primeira confluência, e aí formamos os quilombos. Daí os quilombolas eram uma organização criminosa, e a aldeia era uma organização selvagem. Na Constituição de 88, quilombo passou a ser uma organização de direito e aldeia também, então nós confluímos agora. Agora nós confluímos no sintético. Nós confluímos primeiro no orgânico e agora nós confluímos no sintético.

Noguera – Se a gente fosse pensar, quais caminhos podemos pegar hoje em uma sociedade que vive um acirramento e passa por uma crise política e sanitária?

Bispo – Só dizer que quem tiver oportunidade e quem não tiver faça por onde ter. Ou seja, converse com a sua geração avó. A sociedade que põe a geração avó no asilo e a geração neta na creche é uma sociedade doente. É uma sociedade desconectada. Isso que é começo, meio, começo. A geração avó é começo, a geração mãe é meio, a geração neta é começo de novo. Essa é uma questão. A outra questão é: é preciso ter políticas públicas, mas é preciso ter políticas próprias. As políticas públicas só servem se for para estruturar as políticas próprias. Se não tiver política própria, não precisa ter política pública. A outra questão é muito fundamental: os seres humanos precisam saber que a vida deles também depende da vida dos outros seres, e com um detalhe, preste bem atenção nessa questão da pandemia: os únicos seres do mundo que precisam de hospital são os humanos. Os outros seres vivem seus ciclos de vida só através da biointeração, só através da confluência, só através do compartilhamento. Os demais seres só adoecem quando entram em contato com os seres humanos. Os seres humanos adoecem todo mundo. Quantas pandemias o agronegócio já provocou nos outros seres? Essa pandemia agora pode ser uma resposta dos outros seres. Antigamente, você entrava no supermercado e encontrava muitas variedades de manga, de banana, uma grande quantidade de peixe. O colonialismo não atinge só os seres humanos, ele atinge a todos, porque é contra a diversidade. Cada vez que nós formos tomar uma atitude na vida, vale lembrar que todos os seres são importantes. O que não é importante não existe.

Noguera – Que ode à cosmofilia! Um amor ao mundo, um amor à vida, ao existir. Como é importante a existência!

A presente conversa foi gentilmente cedida por Renato Noguera e Nêgo Bispo para esta edição da Amarello. O conteúdo aqui publicado segue fiel ao original, contendo apenas edições básicas para adaptação ao formato impresso.