#35PresenteArteArtes Visuais

A Temperança

por Mavi Veloso

Quase sempre representada como uma pessoa derramando líquidos de um receptáculo para outro, a Temperança é uma pessoa/anjo, andrógina, com um pé na água e outro na terra. Uma mediadora alquimista entre mundos. Intuitiva e extremamente sensível, simboliza evolução, conforto, gentileza, proteção, paz, continuidade, conciliação e estabilidade, anunciando transformações radicais com um espírito pensativo e maduro.

Não sou real oficial uma esotérica, nem diretamente conectada a assuntos espirituais. Me considero muito mais uma pessoa sensitiva (ou a própria bruxa). Não exercito com frequência e dedicação práticas relacionadas a tarô, cartomancia, quiromancia, astrologia e afins. Mas acredito fortemente nas energias do mundo, nas energias dos astros, nas conexões emocionais, psicológicas e físicas. 

Apesar de não ter uma prática relacionada ao tarô, sempre me encontrei bastante curiosa em relação aos seus mistérios e possibilidade de leituras. Imagino o tarô muito mais como um oráculo que pode nos dar uma literatura com relação a coordenadas subjetivas.

A carta Temperança – não lembro exatamente como essa imagem surgiu para mim. Não lembro quando e como me deparei com ela…

A Temperança representa uma figura híbrida, andrógina. Uma entidade com capacidade de articulações dos sentidos, dos temperamentos subjetivos, uma manipuladora dos ares, das águas e da terra. Identifico-me enormemente com a travesti Temperança. Anunciadora de mudanças radicais, portadora de energias transformadoras. Femme fatale, anja, flutuando pelos espaços, trazendo a promessa de uma novidade que vem para abalar o sistema.

Há mais ou menos dois anos, fiz uma releitura em desenho, uma versão minha da carta Temperança. Na ocasião, eu havia recentemente conhecido a pessoa que atualmente se tornou meu parceiro, meu amante, meu companheiro. Presenteei-lhe com essa releitura da Temperança em seu aniversário. Tanto para ele quanto para mim, o fato de estarmos nos encontrando e nos aproximando afetivamente era o símbolo de mudanças muito representativas e bombásticas. Para ele, eu era um novo universo inteiro a descobrir, a desconstrução de muitos padrões em relação a um relacionamento e em relação à sua história como homem, branco e europeu. Para mim, ele representava uma fissura dentro de um sistema excludente, a exceção a uma regra. A partir de então, eu, travesti imigrante latino-americana, passava a ter acesso a uma afetividade sempre negada às nossas corpas travestis. 

Eu, particularmente, possuo um temperamento bastante volátil. Possuo um universo interior povoado de fantasias, alucinações, ansiedades sexuais e desejos diversos. Posso ficar temporadas inteiras hibernando em meus pensamentos, inerte. De um momento para outro, posso explodir meu mundo inteiro e causar uma revolução em nível cutâneo, sanguíneo e metafórico de meus arredores. Nestes últimos tempos de abalos econômicos, políticos e pandêmicos, tenho passado muuuuito tempo a sós. Já tive meu momento de deleite com o isolamento, já estive à beira de ataques de pânico, ansiedade e disforia solitária.

Eu sei que não sou a única travesti com tais dificuldades. Eu sei que muitas manas estão em posições menos privilegiadas do que a minha neste momento. Em nossas políticas interpessoais, estamos fazendo o que podemos para nos mantermos sãs, salvas, para conquistarmos mais e mais o espaço que é nosso de direito. 

Ao invocar esta figura da Temperança, penso em acentuar um fenômeno sísmico, penso em anunciar a chegada de novas ondas. Penso em presentear a mim mesma, à comunidade trans e LGBTQIA+ e ao mundo com essas energias transformadoras, anunciando uma nova era de prosperidade travesti.

#35PresenteArteArtes Visuais

O possível para hoje à noite

por Silvia Jábali

Editora de Artes Plástica da
edição Amarello Presente

“É isto que amamos nos outros: o lugar vazio que eles abrem para que ali cresçam as nossas fantasias. Buscamos, no outro, não a sabedoria do conselho, mas o silêncio da escuta; não a  solidez do músculo, mas o colo que acolhe…

Como seria bom se as pessoas fossem vazias como o céu e não tão cheias de palavras, de ordens, de certezas. Só podemos amar as pessoas que se parecem com o céu, onde podemos fazer voar nossas fantasias como se fossem pipas…”

Rubem Alves

O presente chegou tão bem embrulhado que foi difícil abri-lo. Um presente atípico, ofertado numa circunstância permeada pelo medo e pela incerteza. 

Quando abracei meu presente, me deparei com um momento novo, estranho até, por me defrontar com uma realidade completamente diferente do que, até então, havia vivido.

Mudei de cidade e casa por tempo indeterminado. O que mais valeu foi usufruir do acalanto de minha mãe, um tocar na alma e um pulsar que há muito não experenciava; deixar para trás uma vida automática para aprender a viver um dia após o outro, tentando não projetar uma visão de futuro. Fui adentrando e percebendo que era uma questão de ajuste.

A desconstrução de um tempo, a construção de outro tempo, a transformação, a reinvenção, a readaptação, tudo mexido e misturado, tornando aquele momento um desejo de finitude  quase que real.

Tentei construir um universo que me lembrasse um pouco do que ficou para trás – meu ateliê –, me debrucei, mergulhei e me senti um pouco mais perto do meu âmago.

Foi assim que comecei um trabalho totalmente novo para mim, tendo como universo o ambiente doméstico. 

Parti dos objetos da casa de minha mãe, com os quais tenho uma relação quase amorosa, e fui tentando humanizá-los e ressignificá-los.

Trabalhei com diferentes aspectos da casa, com a poética do espaço, ampliando o significado da casa e sempre me perguntando: qual a relação de memória com esse lugar?

Fui criando provocações para mim mesma, atravessando essas possibilidades.

Meu silêncio junto com o silêncio do lugar, o eco da casa, fizeram transformações no meu trabalho; algo novo começou a surgir, como esse tempo presente.

Um fato curioso aconteceu pouco antes da quarentena começar: no dia 13 de março, abri uma exposição intitulada O Possível Para Hoje à Noite, que partiu da multiplicidade de interpretações do presente na plasticidade da instalação apresentada. O sentimento de aversão, a sensação de incerteza do tempo, o obscuro e o nada foram ideias que transitaram no meu imaginário, e, com esse trabalho, materializei “o desejo real”. 

Existe uma analogia, a materialidade daquele trabalho e o tempo presente. O fato de não identificarmos, num primeiro olhar, o que é, causa um impacto de dúvida e impotência e cria uma avalanche de incógnitas no espectador.

Esse corpo estranho quase escultórico cria formas abstratas que sugerem contornos figurativos, silhuetas enigmáticas que buscam presentificar-se por uma ambiguidade erótica e soturna. 

Qual a poética deste presente? Qual a poética presente neste momento?

O laço do presente, o presente desejado, o estar presente, abdicar do presente, o afeto do presente, o presente da vida, a escolha do presente, o presente incerto, a surpresa do presente, o presente da conquista, o amor como presente, o perdão como presente, a ilusão do presente, o presente coletivo, a expectativa do presente, o presente de se reinventar, o presente hoje, o presente da pausa, o presente com a alma, a dor do não presente, a euforia do presente, as perdas do presente, o presente como escolha, a arte do presente, o urgir do presente, o presente obscuro, a magia do presente, o presente sem presença, o silêncio como presente, ser presente, a cor do presente, o deleite do presente, a loucura do presente, o presente inesperado, a escolha do presente, o presente gratuito, o presente do gesto, o presente exaurido, a negação do presente, o presente frágil, o presente abstrato, o presente indignado, o presente impróprio, o papel do presente… Que presente!

#35PresenteArteArtes Visuais

O ovo que vê

por Rodrigo Braga

Parece ser este um tempo de cegueira, quando aparentemente só o grito nos resta. Mas que, ainda assim, não chega a ser suficiente. Por serem muitos os berros, já não há mais tantos ouvidos que escutem essas ruidosas verborragias com gosto de sangue. E a comunicação se perde até mesmo entre pessoas com as melhores intenções. 

É preciso dar a voz — sabemos. É preciso ouvir — dizem.

São muitos os que sempre falaram livremente em voz ativa; que sempre ditaram demais, na verdade. A pretexto de igualdade, não reconhece-se que o colorido existe; logo aniquilam-se as diferenças. Ou, de outro modo, reduzem-se as cores, limita-se a paleta ao preto e branco, criando altos contrastes intensos.

Cegos não enxergam preto, não enxergam branco.

Do outro lado, são tantos aqueles que, ainda que certamente em maior número, costumeiramente foram obrigados a calar, mas que possuem vozes altivas a serem ouvidas, de bocas que contêm palavras necessárias ao espetro da diversidade que existe. Mas suas vozes não saem desses corpos em tom plácido; pelo contrário, são estridentes; gritos da altura que suas causas pedem, com a força que julgam ser necessária para serem ouvidas. Tão fortes que podem incomodar à mesma altura, que por vezes fazem sangrar ouvidos alheios. Discursos diretos com faca nos dentes.

Mais uma vez, rompe-se a comunicação.

As mãos se agarram forte, e ninguém deve soltá-las. Mas as mãos também apontam, mimetizam poderes e as suas armas, estapeiam as faces das consciências. Com sangue nos olhos, ouvidos cerrados e gritos nas gargantas, pessoas se revelam animais não dóceis, destemidos indomáveis que avançam uns aos outros sem medo dos riscos e feridas próprios do embate com o espelho.

Esquartejam-se os sentidos.

Mas, sutilmente, percebo que há algo de novo no olho do furacão. Apesar da poeira que turva a visão, há mesmo algo à vista. É um ovo com aparência de semente, é um ovo com olho cristalino. Um ovo novo, diferente de todos os ovos, mas que também traz em si toda a ancestralidade desse arquétipo infinito. No fundo, ele é atemporal e só precisa voltar à superfície para ser visto. É como uma pedra retirada do fundo da Terra depois de uma era pregressa, para ser revelada sob o sol e oferecida à paisagem aberta; um elemento a ser exposto à visão de todos. 

Em oposição ao ovo cego que não mais eclode, ofereço-lhes o ovo de ver além.

#35PresenteCulturaSociedade

De qualquer forma, que horas são agora?

Tinha uns dez anos quando vi O Beijo da Mulher Aranha, filme icônico de Hector Babenco, pela primeira vez na televisão. O filme conta a história de Luis Molina, um gay exuberante interpretado por William Hurt, e do seu companheiro de cela, Valentin Arregui, interpretado por Raúl Juliá. Molina está preso por causa do seu comportamento sexual; Arregui, por conta das suas atividades políticas. Os dois homens estão em uma prisão sinistra de São Paulo durante a ditadura militar. Eles escapam do desespero e da violência cotidiana através de trechos de um filme que Molina nos conta, dia após dia e noite após noite, sobre a trágica história de amor entre uma glamurosa cantora francesa e um soldado nazista, por quem ela morre ao final.

Foto: HB Filmes/Divulgação

Quando criança, só me lembrava de dois momentos do filme, ambos próximos ao fim: em um deles, a aparição da mulher aranha, no outro, os protagonistas encontram finalmente a liberdade em uma praia do além. Não me lembrava que o filme acontecia em São Paulo, e não tinha a menor ideia de que 30 anos mais tarde assistiria a esse mesmo filme sozinha, no meu sofá, prisioneira voluntária do meu próprio apartamento na mesma cidade, e que ficaria encantada ao ver suas ruas animadas, cheias de vida na tela.

Isso me deixou com a sensação estranha da história se repetindo, de que a experiência que estava tendo do meu sofá poderia também ser um filme, uma vertiginosa “mise-en-abîme”. Tento me tranquilizar, pensando que a vida evolui como a espiral de uma concha, passando pelo o mesmo ponto, mas em um nível mais alto. Nós não estamos no mesmo lugar; é somente uma fase parecida e, mesmo que a maioria esteja confinada em casa, não estamos no meio de uma ditadura militar. Ou estamos? 

A realidade pode, aliás, ser pior do que a ficção. E, ao olhar o atual circo político brasileiro mais de perto, poderíamos pensar em um filme de Romero, no qual mortos-vivos assaltam cidades, não temos como fugir, e defensores raivosos do atual presidente a.k.a. o chefe dos zumbis atiram em seus opositores políticos quando protestam pelas suas janelas. Enquanto o resto do mundo aplaude e canta para encorajar doutores, ou outros heróis da Covid-19, no Brasil, eles são baleados, e carreatas pedem o fim do confinamento e o retorno dos trabalhadores aos seus postos, bloqueando entradas de hospitais. No fim das contas, o líder deles vai cair, pois não é sério o suficiente para satisfazer as exigências dos marionetistas; ele foi suficiente no início, agora não é mais. Vamos terminar com os militares, que estão, de fato, manipulando as cordas.

Nessas circunstâncias confusas, se pode facilmente perder o contato com a realidade: será que é um pesadelo, um filme ou será que é real mesmo? Melhor tentar não cair no desespero, não imaginar a volta oficial de um regime que nos impediria de beijar quem bem quiser na boca, seja um namorado ou uma namorada, quando eventualmente nos reunirmos, arriscando a liberdade ou a vida para um drinque no Cabaret da Cecília, curtindo uma noite queer no decor vintage desse pequeno aconchego no centro de São Paulo. Em que ano estamos? Será que os alemães estão prestes a deportar e matar milhões de pessoas ou será que é um inimigo invisível que mata tantos? Será que estamos no meio dos anos 1970 em uma ditadura ou estamos no século 21, prontos para afrontar um regime militar legalmente instaurado? 

O tempo está borrado, tudo está misturado; dinossauros ainda existem, assim como fascistas e zumbis. Eles são machos, brancos, velhos e raivosos, porque sabem que o reino deles está acabando, portanto ficam mais violentos e loucos.

A situação em que vivemos parece uma rachadura no tempo linear: uma fissura social, político-sanitária, é exatamente onde estamos agora. Talvez seja nessa fenda que a luz finalmente entrará. Talvez esta crise possa trazer uma mudança no paradigma atual e nos ajude a criar um mundo um pouco mais humano. É quase engraçado pensar que esse deslocamento potencial seria induzido por algo tão pequeno que nem podemos ver a olho nu.

Esse é o assunto exato da conversa que tive com o artista Simon Fernandes. Queria visitar o ateliê do Simon há um tempo, mas agendas cheias, viagens e a quarentena decidiram o contrário. O dia da nossa ligação parecia somente um outro dia. Acabou sendo diferente. A tranquilidade e o leve tédio desta quarta-feira ordinária se iluminaram quando nossa conversa começou e as sincronicidades surgiram. Achava que o trabalho de Simon tratava da tecnologia, um assunto um pouco afastado da minha pesquisa sobre o maravilhamento, a alteridade e o sublime; mesmo assim, estava interessada. Contudo, falamos das mesmas coisas, só que com outras palavras ou imagens.

De fato, se as obras de Simon podem parecer frias, sua proposta – através de suas esculturas híbridas, instalações ou pinturas – é uma volta ao afeto e à condição humana, usando a tecnologia para ressaltar esses assuntos. No trabalho dele, uma outra temporalidade surge, na qual metal e luz fria coexistem com elementos baratos, como sacolas de plástico transparentes, em uma mistura despretensiosa de alta e baixa tecnologia e cultura. A pesquisa de Fernandes também aborda a tensão e o movimento permanente entre a matéria e elementos digitais, que não estão tão distantes como podemos inicialmente pensar. Para ele, a imaterialidade acaba se encarnando em nós na forma de sensações, percepções, e voltam sempre para a matéria e o humano.

À medida que a nossa conversa fluía, o encantamento, a genialidade e a magia da vida viraram o foco do nosso papo. Acordamos que, ao final das contas, a arte tem essa capacidade única de deixar visível o laço que existe entre nós e o que nos cerca, desvelando o que normalmente ficaria escondido por um simples deslocamento, reanimando a vida, no senso de trazer sua alma, sua anima, de volta.

Esse exercício poderia antecipar o futuro, explorando os elementos invisíveis do nosso presente. Veiculando a hipótese de Berrardi sobre o pós Covid-19, sugiro que o futuro possa conter a rejeição da tecnologia como trauma vinculado à nossa experiência da quarentena. Simon tem uma outra hipótese e considera que a tecnologia poderia recobrar parte do seu charme inicial e da sua pureza, liberada dos aspectos tóxicos da nossa relação como o digital e sua consumação. Acho animador e escolho adotar essa perspectiva.

Acabamos conversando sobre a arte contemporânea e o que realmente significa. Simon cita outro filósofo italiano, Agamben. O que ele escreveu sobre o contemporâneo resume bem nosso entendimento da situação atual e o papel da arte neste contexto. Nossa habilidade de olhar no retrovisor e através do para-brisa ao mesmo tempo, sem julgamento, percebendo a repetição de padrões e a emergência de novas formas em um lugar onde nada é permanentemente definido e, em vez disso, está em suspensão: isso é o contemporâneo. A capacidade de olhar para o presente com distância.

Como o sugere Agamben, concordamos que talvez estejamos no caminho certo, pensando a arte como A Ferramenta para redesenhar relações de poder. O artista aparece, nesse contexto, como um vetor de algo maior do que ele, um tipo de mensageiro do inconsciente coletivo.

Somos compostos de átomos, e átomos são compostos de energia. Somos energia, a nossa e a que está flutuando a nosso redor. Algumas pessoas conseguem catalisar e traduzir nas suas palavras ou imagens esse tipo de sabedoria atemporal, como xamãs, responsáveis por trazer de volta o afeto como fundamento de nossas vidas. Talvez a arte possa criar esse novo território, sem fronteira definida; um tipo especial de heterotopia, como se fosse uma ilha mágica ou um jardim a se expandir de forma infinita. Isso nos obriga a ter a capacidade de prender a respiração e observar, ficar imóveis e quietos, olhando para nosso passado coletivo e para nosso possível futuro a partir de um tempo presente que pode ser reinventado. Isso é provavelmente o que estamos fazendo, de forma intuitiva, enquanto confinados, experimentando a própria definição do que é o contemporâneo, das sincronicidades e fendas temporais. O que significam a arte, o amor e a vida, e o que esta crise pode nos trazer? Esse é também o motivo de às vezes nos sentirmos presos em um filme. E também o motivo que deixa os dinossauros furiosos e os zumbis assustados, e alguém se perguntando “de qualquer forma, que horas são agora?”

#35PresenteCulturaSociedade

Dois e dois são dois: Dado Salem e Ronaldo Lemos

Dado Salem é economista e mestre em Psicologia.
É um dos pioneiros da Psicologia Econômica no Brasil. Trabalha há 20 anos com direcionamento de carreiras e famílias empresárias na gestão de questões complexas envolvendo famílias e negócios.

Ronaldo Lemos é advogado, especialista em tecnologia e graduado em Direito por Harvard. Professor da Universidade de Columbia, escreve semanalmente para a Folha de São Paulo.

Dado – Que bom te rever, Ronaldo.

Ronaldo – Muito bom, Dado. Bom ver que você conseguiu um barbeiro aí na quarentena para fazer o cabelo e a barba.

Dado – Fui eu mesmo. (risos)

Ronaldo – Ficou ótimo. Parabéns. (risos)

Dado – Aliás, eu vi que você, numa viagem para a China, foi num barbeiro bacanudo, né? Fez um corte incrível.

Ronaldo – Você não tem ideia. Primeiro o cara fez um corte autoral na minha cabeça. E, depois, ele fez a barba. Quando terminou, ele me agradeceu: “olha, é a primeira vez que eu faço uma barba na minha vida”. Porque ninguém na China tem barba!

Dado – Pô, que legal.

Ronaldo – Ótimo. Excelente.

Dado – Primeiro, eu adorei te ver na Sapucaí! Foi a última vez que a gente se viu, e foi muito incrível porque estava aquela bagunça de escola de samba, festa e multidão, você num canto da sala eu no outro, impossível de um chegar no outro, e tivemos uma troca sincera de olhar.

Ronaldo – Foi importante. Quando eu me lembro do carnaval desse ano, parece que a gente estava em outro planeta, vivendo em outro tempo, em outro lugar, e agora nada daquilo faz sentido. Foi realmente uma ocasião muito especial.

Dado – Foi como se ali a gente tivesse se visto de longe e falado: “Assim que der, precisamos marcar um encontro” – que acabou acontecendo desse jeito. Quando a revista Amarello me ligou dizendo que queria que eu batesse um papo sobre o presente com alguém, na hora me veio você na cabeça.

Ronaldo – O nosso próximo encontro já foi pelo Zoom! Você vê que a gente está muito no espírito do tempo, no zeitgeist.

Dado – Exatamente. Já fomos direto para o digital. Muito impressionante essa mudança. Para mim, foi muito interessante. Eu estava de mudança para o Uruguai com minha família, em busca de uma vida mais tranquila. A gente queria morar em cidade pequena, ter contato com a natureza, acordar de manhã e ir na peixaria, passar no supermercado, cozinhar e, à tarde, trabalhar. Queremos uma vida mais simples, no sentido de custos, para conseguir um equilíbrio do jeito mais simples possível. A pandemia chegou no dia em que voltamos de lá. Tínhamos ido para ver escola, casa, essas coisas. E aí minha vida virou exatamente o que eu queria que fosse lá no Uruguai e que eu não conseguia implementar no Rio de Janeiro com toda aquela estrutura.

Ronaldo – O Uruguai veio até você. (risos)

Dado – Exatamente. Quando vi, estava no Uruguai. Falei para a Tininha, minha mulher, “olha só, que presente, essa coisa horrorosa, a gente vai ter oportunidade para fazer exatamente o que queríamos fazer no Uruguai aqui”. Se de repente não for legal, a gente já nem se dá ao trabalho de ir para lá. Vamos tentar fazer aqui e agora. E aí entramos nessa nova vida imediatamente, foi impressionante.

Ronaldo – Já fui muito ao Uruguai, e a minha memória de Montevidéu é que, quando você chega lá, pensa: “será que é feriado no Uruguai hoje?” – porque a cidade está sempre vazia. Tem uma sensação de feriado perpétuo no ritmo da cidade, que, de fato, é bem mais lento do que São Paulo, por exemplo, ou mesmo o Rio de Janeiro. Eu estou com a mesma sensação que você; não estou com a menor saudade de Congonhas. Nenhuma. Quero ficar o máximo de tempo possível sem ir a Congonhas.

Dado – Para você ter uma ideia, eu moro no Rio há oito anos e, durante sete anos, eu viajei todas as semanas para trabalhar em São Paulo. Quer dizer, três anos e meio eu viajei todas as semanas, e até o ano passado eu estava semana sim, semana não. Não aguentava mais. Falei: “não aguento mais, só vou atender pelo Skype, não vou mais viajar, preciso ajustar minhas contas para isso, preciso enxugar minha vida”. E comecei com esse discurso para a Tininha, até que ela topou. Eu concordo plenamente com você. Só quero ir para Congonhas para viajar para o Nordeste, fazer viagem que eu queira. Não quero viajar a trabalho em hipótese alguma.

Ronaldo – Faz todo sentido. E mesmo isso eu já acho um suplício. Depois desse detox de aeroporto, eu estou me sentindo muito melhor. Porque aeroporto, mesmo para viagem curta, pode ser pesado. Eu tenho achado essa desacelerada incrível, Dado.

Dado – Você é um dos caras mais ativos que eu conheço, no bom sentido. Uma pessoa que sabe usar o tempo criativamente. Sinceramente, Ronaldo, você tem quarenta e poucos anos, e eu nunca vi alguém fazer tanta coisa com essa idade. Coisas relevantes, construtivas. Eu espero que você continue muito ativo, mas conseguindo equilibrar a coisa do aeroporto, pelo menos.

Ronaldo – Você sabe que várias vezes eu penso em bater um papo profissional com você, sempre lembro de você, porque várias vezes eu acho que eu estou fazendo coisa demais, e o meu ritmo é insano. Mesmo na quarentena, estando em casa – e não posso reclamar disso –, eu estou trabalhando mais do que estava trabalhando antes, com um ritmo absurdo. Aí eu sinto que preciso falar com você para organizar minha vida, criar um ciclo, porque, de um certo modo, também é perigoso ficar com a vida tomada. São todos projetos que eu gosto, que eu tenho prazer em fazer e me deixam feliz, mas, ao mesmo tempo, isso reduz o espaço para reflexão, para pausa, o que eu acho que é igualmente valioso, até para a criatividade. 

Dado – Então já vou te falar uma coisa. Eu me inspiro muito nos gregos, e eles tinham duas palavras para trabalho. Uma delas era erga, que é no sentido de você se erguer, é um trabalho criativo, construtivo da sua pessoa. E outra era douleiadoulos em grego é escravo, servo, então douleia é um trabalho escravizante, aquele que você faz para viver. Saber navegar dentro dessas duas coisas é muito importante. Quando você diz, “poxa, eu preciso de um tempo para parar e pensar”, você está entrando mais no mundo de erga. Por exemplo, os diálogos de Platão eram esse tipo de trabalho, em que você reflete, você aprende, e aí tem aquele outro trabalho que você diz “agora eu vou pagar conta”, ou “agora eu vou fazer um projeto de implementar algo em que eu acredito”, e você vai e faz. Você tem que ter tempo para refletir para conseguir avaliar “poxa, o que eu vou fazer?”, “a que vou dedicar meu tempo?”, “qual o melhor projeto que eu posso fazer com o tempo que eu tenho?” Uma coisa mais ou menos por aí. Eu fico espantado com as coisas incríveis que você fez. Toda a legislação que regula a internet. Eu não estranho que o teu mundo agora vá ficar superlotado, porque você é “a” pessoa que eu tenho como referência na internet. E o mundo está agora direcionado para isso. Espere que você vai ter muito mais trabalho do que condição de atender, e vai ter que escolher bem o que fazer.

Ronaldo – Por isso que eu preciso da sua ajuda (risos). Eu preciso escolher. Está complicado e é super importante. Gostei dessa divisão do trabalho, das duas coisas. São duas coisas que eu acho interessantes. A minha felicidade está muito ligada à possibilidade de participar de trabalhos de esfera pública. Eu não sou político, não exerço isso como profissão, mas participar desses debates públicos me deixa feliz, e minha felicidade está ligada muito a isso.

Dado – Para mim, está evidente. No dia que eu te conheci, pensei: esse é o tipo de gente que precisamos trabalhando pelo coletivo, porque é um cara competente pra caramba, honesto, dedicado, que fala com todo mundo e de quem todo mundo, de todas as praias, respeita e gosta, e é um cara equilibrado e centrado. Sinceramente, acho que seria um desperdício se você dedicasse seu tempo a uma coisa pessoal, de interesses próprios.

Ronaldo – Não consigo. Impossível (risos). Mas a gente estava falando do presente, do modo de vida, e da questão do trabalho. O trabalho está mudando muito agora, né? Eu gosto muito de um desenho feito pela Ray e o Charles Eames, os designers que fazem aquelas cadeiras muito bonitas, que tem três círculos com uma interseção e sugere “qual lugar você deve trabalhar”. Existe o círculo do interesse pessoal, o do interesse público, do bem comum, e o do interesse do seu cliente. O Charles Eames dizia que, se você conseguir trabalhar na interseção dos três círculos, lá no centrinho, você vai ser feliz – e é verdade. Tem gente que trabalha muito bem no círculo do interesse próprio e do interesse do cliente, mas o interesse público fica descartado; e tem gente que também trabalha só no interesse próprio e no interesse do espaço público, sem que aquilo se converta em um benefício, e que a pessoa consiga viver e prosperar profissionalmente. Sempre que conseguimos trabalhar ali no meio, isso é fonte de felicidade, de criatividade, e assim por diante. 

Dado – Eu conheço esse diagrama e acho que você é um cara que, se vivesse no Japão, seria um samurai. Mas não qualquer samurai – o samurai que, com a venda nos olhos, acerta na mosca. Você já ouviu falar? Tem um livro chamado…

RonaldoA Arte e o Zen.

Dado – Você acertou na mosca. Você é um exemplo de ser humano porque é a pessoa que vai buscar dentro de si seus talentos e suas paixões para dedicá-los ao coletivo. Isso é a melhor coisa que uma pessoa pode fazer na vida. Demos uma desviada disso na nossa cultura, porque hoje em dia buscamos uma profissão baseada naquilo que é mais rentável, que dá mais dinheiro, e aí a galera vai para o mercado financeiro. A pessoa para de pensar em si, de ir atrás das suas paixões, e assim a sociedade desanda um pouco como um todo.

Ronaldo – Eu entendo. E nem sempre isso é felicidade também, né? Claro que ganhar dinheiro é importante, e eu acho que todo mundo tem que prosperar. Inclusive nesse período de Covid, uma das coisas que me incomodou muito é que só agora muita gente percebeu que prosperidade real só existe se está todo mundo prosperando. Se tem uma pequena parcela de pessoas prosperando e outras regredindo e se descolando, isso não é prosperidade real. E em momentos como esse, de emergência, a conta chega, e a conta chega para todos. Então prosperar é importante. Mas se você só age no sentido de prosperar materialmente, isso não necessariamente implica realização, uma vida que seja, vamos dizer, feliz mesmo. 

Dado – Os gregos usam a palavra eudaimonia, que foi traduzida como “felicidade” para nós. Eudaimonia é a vida que é boa para o daimon – o daimon é como se fosse a alma, é o demônio que nos habita, mas que não tinha essa conotação negativa de demônio. Ele pode tanto ser legal com você, se você se relacionar com ele, quanto pode infernizar sua vida, destruir sua vida. Então eudaimonia é a vida que é boa para o daimon, ou seja, é a vida em que você vai se realizar como indivíduo. Geralmente, isso tem uma conexão muito séria com a sociedade, porque você dedica seus talentos ao coletivo, e a sociedade obviamente precisa desses talentos, isto é, as coisas se cruzam. A questão é assim, “poxa, eu tenho esse talento aqui, mas esse talento não dá muito dinheiro”. Na época, quem tinha um talento, mesmo que ele não desse tanto dinheiro, a pessoa dedicava a vida àquilo e vivia feliz, e evidentemente existia um equilíbrio maior na sociedade. Hoje em dia, é uma loucura. É o que você falou, se não está bom para todo mundo, gera um problema enorme.

Ronaldo – O que é importante é as pessoas terem a possibilidade de prosperar, e isso não quer dizer que vai ficar todo mundo bilionário, o que seria até impossível e não sei se seria bom para o mundo. Não existe recurso para isso.

Dado – O mundo não aguenta, Ronaldo. O mundo não aguenta sei lá quantos bilionários. Já não aguenta nem milionários. A Terra acaba antes.

Ronaldo – Esse é o problema. Estamos saindo de uma pandemia podendo voltar a outra situação de emergência, que é a emergência climática. Tem um ensaio interessante que eu li nesse período, falando exatamente sobre isso, que estamos, nesse momento, vivendo um ensaio de uma crise ainda maior, que pode, inclusive, chegar mais cedo do que a gente imagina.

Dado – E amplamente anunciada. Existe um estudo dos anos 70 chamado The Limits to Growth (Os Limites do Crescimento, de Dennis L. Meadows, Donella Meadows e Jorgen Randers), que diz que a Terra vai até um limite, e depois desse limite dá problema. Os cientistas todos já estão batendo nessa tecla há um tempão, mas como é que você faz a sociedade cair na real? Sinceramente… Eu sou otimista em relação ao futuro, mas acho que vamos precisar sofrer muito para essa mudança de comportamento acontecer. Agora temos uma oportunidade enorme para ressignificar tudo e voltar para uma vida mais pé no chão, mais real, mais simples e feliz. Acho que é o momento perfeito para isso, mas esse excesso de consumo e essa ansiedade toda é difícil frear. Até porque o discurso dos governantes de “dependemos disso”, “as pessoas têm que comprar”, “temos que acelerar, senão…” – senão o quê? O mundo não aguenta continuar acelerando. A gente vai ter que se reenquadrar de algum jeito.

Ronaldo – Esse mundo que nós estávamos vivendo até há pouco era um mundo que, ao mesmo tempo, acelerava e estava estagnado, isso é muito louco. Ele vivia duas coisas ao mesmo tempo. Tínhamos uma economia americana vibrante e pulsante, com nível de pleno emprego, juros negativos em vários países da Europa, para fazer o dinheiro circular e não ficar parado no banco, e, ao mesmo tempo, sinais de estagnação muito claros, inclusive do ponto de vista econômico. E do ponto de vista da inovação, que é a minha área, existem as inovações da internet, dos celulares, etc. Mas o impacto disso para a economia, para a produtividade e, principalmente, para a prosperidade, não é um impacto significativo. Ao contrário – é isso que é paradoxal. Temos a sensação de que estamos acelerando no trabalho, nas interações pessoais, mas isso não necessariamente está se traduzindo em progresso e prosperidade. Na década de 80, tinha um economista que falava que a era do computador estava em toda parte, menos nas estatísticas de produtividade, porque a produtividade, desde então, continuava a cair. Quando você olha a produtividade do trabalhador nos Estados Unidos, mesmo com tudo isso que temos hoje, é declinante, o que é uma loucura. Ainda não existiu uma invenção que tivesse o impacto no bem-estar das pessoas como teve, por exemplo, o antibiótico ou a privada. Quase inacreditável. O antibiótico e as privadas promoveram um salto na qualidade das nossas vidas, e, nos últimos 20, 30 anos, ainda não teve nada parecido. Esse paradoxo da aceleração com a estagnação é preocupante. E um ponto muito importante, agora com a Covid, é que estamos passando por um momento que nos permite refletir se, talvez, não estávamos acelerando para o lado errado.

Dado – Acho que temos poucas pessoas pensando no que estamos fazendo, e eu acho que as cabeças dos governantes deveriam estar focadas nisso. Para onde estamos indo? Existe uma ética por trás dessa aceleração toda? Porque, se não existe uma ética ligada a tudo isso, pode ir fácil para o lado do mal. Primeiro se cria, depois se vê se é bom ou não é. Eu ouvi essa frase uma vez em Boston e fiquei preocupado.

Ronaldo – Outra preocupação é uma espécie de convergência para um único ponto, que muita gente chama de singularidade. Acho que uma das missões que temos não é promover a singularidade, mas resistir à singularidade, porque o que precisamos não é uma coisa só; precisamos de multiplicidade. Quando falamos em tecnologia, a tendência é a promoção de convergência para um modelo único. One size fits all. E isso é preocupante, porque, quando você perde o contato com a ética, com os modos de vida que são diferentes em cada lugar, com a cultura, a tecnologia fica divorciada da história – independentemente da história que você viveu, o uso da tecnologia é o mesmo para todos. Se seguirmos por esse caminho, primeiro, a ideia de ética se torna inviável; segundo, você tem uma força de convergência. Devemos promover a tecnologia como princípio, mas não como resultado, e a tecnologia como princípio permitindo a multiplicidade, sem convergir para o mesmo ponto. Por exemplo, eu escrevi um artigo na Folha de SP falando que a escola “home office” deu errado. Pega qualquer pai ou mãe agora nesse período e pergunta se eles estão tendo uma boa experiência com a educação online dos filhos em casa. Zero. Não tem ninguém feliz. Pelo contrário, os pais estão putos, as crianças estão putas da vida. Ficar achando que criança de 6, 7 anos vai ficar na frente do Zoom por três, quatro horas é irreal. Esse experimento deu errado. Essa camada tecnológica que a gente julga universal tem limites. O quanto perdemos abdicando do modelo da escola formal para tentar jogar a escola para dentro de casa? É pesado. É um modelo pior. Temos que fazer essa mesma reflexão em relação ao trabalho, pois a tecnologia modifica o plano da cidade, da vida urbana, uma série de coisas. A cidade inteligente talvez não seja a melhor cidade, entende? A tecnologia tem limites, e precisamos lembrar disso, ela não resolve todos os problemas. Pelo contrário, alguns ela piora muito.

Dado – Fico feliz de ouvir isso, porque tudo que eu ouço por aí é a galera acelerando nessa história com pouca reflexão em cima. Uma pessoa especializada em tecnologia, na minha opinião uma das referências no país nisso, falar isso que você falou, poxa, eu fico mais tranquilo.

Ronaldo – Hoje de manhã, só para você ter uma ideia, teve um seminário do BID, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, sobre educação, com o ex-Ministro da Educação da Coreia do Sul, a Priscila Cruz, que faz um trabalho genial aqui no Brasil no Todos Pela Educação, a Lucia Dellagnelo e eu debatendo isso. Eu falei para o BID que o homeschooling (modalidade de ensino em que o aluno recebe as lições escolares em casa) falhou, não deu certo. Pode ser que a gente consiga daqui dez ou cinco anos, mas achar que dá para trazer a escola para dentro de casa, esquece. E foi interessante porque as pessoas ficaram tocadas com isso. E, de fato, a tecnologia tem limites, e temos que saber qual o lugar que queremos que ela ocupe na nossa vida. Usar a tecnologia para substituir a religião, a ética, as relações pessoais e uma série de outras coisas é tornar a nossa vida pior. Precisamos tomar muito cuidado com isso.

Dado – Assisti a uma live em que você falou que veio de uma cidade que tinha acesso a TV a cabo e que isso foi fundamental na sua vida, que, se não tivesse tido essa fonte de informação, você não seria quem você é hoje. Hoje, a internet escancara isso para nós, mas obviamente precisamos saber o que buscar. Como podemos aproveitar a internet para levar educação para as pessoas no Brasil? 

Ronaldo – A importância da internet e da infraestrutura para a vida das pessoas é fundamental. De fato, eu devo muita coisa da minha vida a isso. Eu nasci numa cidade pequena, no interior de Minas Gerais, que foi escolhida aleatoriamente para ser a primeira cidade do Brasil a ter TV a cabo. Na época, não tinha internet, não tinha nada. Um cabo era um salto informacional. Imagina, uma cidade que só tinha dois canais de televisão e o correio como conexão com o mundo externo, e de repente você tem 150 canais, incluindo CNN, BBC e uma série de coisas. Foi um choque. Não só para mim, mas para várias pessoas da minha geração. Eu posso listar um monte de gente que veio dessa mesma época que eu na cidade e hoje é empresário de tecnologia, investidor em tecnologia. É muito curioso isso. O Manoel Lemos, meu primo, é um dos sócios da Redpoint eVentures, um fundo de investimento em tecnologia no Brasil; o Gustavo Caetano fundou a Samba Tech, que é uma startup conhecida; o Gustavo Debs vendeu agora a Zup, empresa dele, para o Itaú por 400 milhões de reais – são todos de Araguari, e a minha hipótese é exatamente essa: como é que uma cidade de 80 mil habitantes conseguiu dar esse salto? Porque teve acesso…

Uma das brigas que eu tenho, por exemplo, é levar banda larga de excelente qualidade para todas as escolas do Brasil. Se a gente conseguir se mobilizar, 6 bilhões de reais resolvia esse problema. Isso nem é muito dinheiro dentro do orçamento público e do que se gasta no Brasil com besteiras e bobagens – se investissem 6 bilhões do orçamento nisso, seria possível colocar banda larga de primeira qualidade em todas as escolas públicas do Brasil. Eu venho brigando por isso há bastante tempo, com vários parceiros aqui no Brasil. Às vezes avançamos, às vezes voltamos. Isso mudaria a vida das pessoas. Conectividade e infraestrutura é o básico, não tem jeito. Foi por isso que a Ásia deu certo. Passei quatro meses na China no ano passado, fazendo uma série de documentários chamada Expresso Futuro. Gravei oito episódios, fazendo um mergulho no que a China mudou de tecnologia, e como eles deram esse grande salto tecnológico. É realmente chocante, porque, em 40 anos, o país tirou 750 milhões de pessoas da miséria. E não é qualquer miséria; é miséria de não ter o que comer, de comer pedra, capim, muito pesado. E em 40 anos essas pessoas foram trazidas, em grande parte, para a classe média. A China hoje começa a competir, por exemplo, com os Estados Unidos em tecnologia e inovação. Então, como é que saíram da fome para potência tecnológica? Muita gente fala, “ah, porque a China é autoritária, por isso que deu certo”, e não é por isso. É o contrário; se autoritarismo levasse a desenvolvimento, a Coreia do Norte seria uma potência, o Irã, a Arábia Saudita… O que eles fizeram? Eles investiram em infraestrutura educação para todos. A fórmula nem é tão complexa. E isso, para nós, no Brasil, parece simples, mas é chocante. Quando pensamos na maneira como criamos infraestrutura no Brasil, é uma tristeza. Se você é rico, você vai ter infraestrutura; se você não é, não vai ter. E isso vale para tudo. Conectividade na escola – se você é rico, você tem; se não é, não tem. Saneamento básico – se você é rico, você tem; se não é, não tem. Mobilidade urbana, mesma coisa. Acesso à mobilidade nacional, mesma coisa. Eletricidade, mesma coisa. E, lá, o que eles fizeram foi inverter essa equação. Começaram a construir infraestrutura de grande escala para rico e para pobre, para todo mundo. Um exemplo, que eu vi na China, é o trem-bala. Você viaja hoje de trem-bala para qualquer cidade na China; a malha tem mais de 30 mil km; é o melhor jeito que existe de viajar no mundo hoje, totalmente confortável, limpo, trafega a 350 km/h, o trem é moderníssimo – e em todo o trem-bala chinês, só tem um vagão de primeira classe; todos os outros são para a galera, tendo grana ou não. E fizeram a mesma coisa para a educação. O acesso à educação chegou em todo mundo, não só em quem é rico, mas também em quem é pobre. E aí, não tem jeito. Se você tem infraestrutura e educação para todos, o país vai se desenvolver.

Dado – Na minha opinião, falta uma coisa nessa equação. Como é que eles estão em relação à sustentabilidade?

Ronaldo – Esse ponto é importantíssimo. A China pagou um preço muito alto por esse desenvolvimento rápido. A economia chinesa saiu de uma economia agrária e virou uma economia industrial e, agora, estão entrando numa economia de informação. Mas essa economia industrial poluiu o país inteiro, destruiu rios e o lugar onde as pessoas vivem. Em Pequim, por exemplo, durante muitos dos dias do ano você não consegue ver o sol, porque tem uma camada de poluição tão espessa que o sol fica escondido. Como o preço que eles pagaram foi muito alto, nos últimos seis anos houve uma guinada no sentido de economia verde, e hoje, por incrível que pareça, a China está liderando o mundo em economia verde, investindo em carro elétrico, painel solar, mudando as regulamentações ambientais – fábrica que jogava dejeto em rio agora ou é multada, ou é fechada, e tem que cuidar de reciclagem, de economia circular, e assim por diante. Provavelmente vai levar dez, quinze anos para resolver essa questão, mas o que é importante é que eles perceberam isso, até porque a qualidade de vida das pessoas ficou horrorosa por causa da degradação ambiental. Uma cidade como Shenzhen, no Sul da China, por exemplo, tem 15 mil ônibus, todos são elétricos. São Paulo tem 14.500 ônibus, nenhum elétrico. Todo táxi lá é elétrico. Caminhão de lixo elétrico, carro de polícia elétrico… Isso é visível a ponto de você ir às cidades chinesas e tomar um susto por causa do silêncio do tráfego, porque carro elétrico não faz barulho. Para nós, ocidentais, é até perigoso, porque nos acostumamos a nos orientar para atravessar a rua pelo som, e lá você anda e tem cinquenta carros e nenhum barulho. Isso chama muita atenção. Vai resolver o problema de imediato? De jeito nenhum. Mas pelo menos eles deram uma guinada e estão acelerando no sentido de tecnologias e infraestrutura verdes.

O Brasil deveria ser o líder mundial em tecnologia verde. Não existe razão para não sermos. Fomos muito bem com o etanol, e tivemos um papel importante. Mas estagnou, e uma das razões para isso também foi o pré-sal. O pré-sal pode ter seu lado bom, existem mil análises, mas um efeito colateral dele que provavelmente vai ser alto é que ele nos fez desinvestir na economia verde e desestimular o país a lidar com ela, sendo que poderíamos liderar no mundo todo essa discussão. 

Dado – Com certeza. Obviamente, um erro estratégico terrível, que vai ter que ser corrigido rapidamente. Quem sabe aproveitamos esse momento e fazemos esse movimento pela consciência, e não pelo sofrimento, como pode ser que aconteça mais adiante.

Ronaldo – Pois é, foi o que aconteceu na China. Eles precisaram sofrer para mudar.

O brasileiro é um povo que quer botar para quebrar no sentido positivo, um povo empreendedor, criativo, indomável, e isso é muito bom. Como você falou, estamos num momento muito aquém do que poderíamos estar para permitir essa criatividade. Estamos buscando botar a culpa no outro, dizer quem é o culpado. E sempre que você pergunta quem é o culpado, você gasta energia que poderia estar investindo para criar caminhos, soluções, e assim por diante. Por isso, quando eu falo em construir infraestrutura para todo mundo, eu realmente acho que, se conseguirmos integrar mais gente na participação na cultura, na criatividade, etc., podemos dar um salto como país. Precisamos aprender a transformar ideias em produtos e serviços. Hoje, o Brasil, como país, sabe muito bem transformar recursos naturais em produtos e serviços derivados deles, mas ainda não conseguimos transformar ideias – sejam ideias culturais, científicas, e assim por diante – em produtos e serviços. E não precisa ser ideia grande; pode ser ideia pequenininha também. Pequenos conhecimentos que as pessoas têm na sua vida cotidiana podem gerar ideias de serviços e produtos novos. Quando conseguirmos fazer isso, acho que nos desenvolveremos muito rápido. Estamos em um momento derrotista, mas vai passar. 

Dado – Fico feliz de ouvir sua visão, porque é muito fácil olharmos a realidade com maus olhos. Você olha para o potencial, para o que pode ser. Você vê ali a quantidade de sementes que tem e que estão prontas para brotar, e é só trabalhar bem isso. Eu super concordo com você e acho que temos que brigar menos, apontar menos o dedo um para o outro, tentar nos unir. Como fazer isso? Está todo mundo brigando tanto. Na política também. Sinceramente, acho isso um desperdício de energia. Enquanto estivermos desunidos, essa coisa não rola. 

Ronaldo – Concordo. Mas vai passar. A internet teve um papel muito negativo nesse processo, e acabou sendo utilizada para incutir medo e raiva na cabeça de muita gente. Estamos vivendo, no Brasil, nos últimos quatro anos, campanhas massivas de desinformação, e essas campanhas têm por base provocar esses sentimentos muito básicos nas pessoas, como medo, raiva, insegurança. E a pessoa, quando está com medo e raiva, desenvolve uma visão em túnel, só enxerga o que está imediatamente na frente dela e perde a visão periférica. A pessoa que entra nesse estado só se preocupa com coisas muito imediatas, fica paranoica, e começa a responder a estímulos que se relacionam com esses sentimentos muito básicos. Mas eu acho que essa onda de medo e raiva, essa neurose coletiva que a internet ajudou a inocular no nosso país, está começando a regredir.

Dado – Quais são os sinais que você está vendo? Ou existe algum trabalho efetivo sendo feito nessa direção?

Ronaldo – Pior é que não. Ela não regrediu por nenhum antídoto, nenhum remédio. Ela está começando a regredir por um esgotamento das ferramentas que são usadas para promover essa inflamação. Nos últimos quatro, cinco anos, essas campanhas de desinformação, no WhatsApp, nas redes sociais, robôs, etc. realmente conseguiram inflamar as pessoas, e agora já estão começando a perder o efeito. As pessoas já não estão mais tão suscetíveis a esse tipo de inflamação. Não porque elas mudaram, ou porque houve um remédio, mas porque essas ferramentas estão esgotando sua capacidade.

O brasileiro médio, hoje, recebe no WhatsApp todos os dias de 50 a 200 conteúdos novos que são uma mistura de violência com política e com pornografia, justamente para instigar esses sentimentos muito básicos, que deixam a pessoa nervosa ou com medo, e assim por diante. E o que está acontecendo é que, depois de um tempo, esse ecossistema está começando a perder efeito.

Dado – Existe alguma forma de regular isso sem perder a liberdade, que é a beleza, na minha opinião, de toda a internet?

Ronaldo – Nesse momento, eu estou envolvido até o último fio de cabelo no debate sobre o projeto de lei das fake news. E a minha preocupação, Dado, é exatamente a sua. Como é que regula isso sem afetar a liberdade de expressão, que não pode, em hipótese alguma, ser afetada? Eu me posicionei muito forte contra o texto original do projeto, porque estava perigoso para a liberdade de expressão. Na minha visão, o único jeito de combater essas fontes de inflamação não é combater as folhas, mas a raiz, de uma vez só. E como é que se combate desinformação? Com mais informação. Por exemplo, em vez de combater o conteúdo, devemos combater o financiamento oculto a esse conteúdo. Fazer um follow the money. Não podemos punir uma pessoa por falar alguma coisa na internet, mas podemos punir quem oculta patrimônio ou recursos que são usados sem transparência para mover campanhas de desinformação. Falar besteira e desinformação, todo mundo fala, é da natureza humana, é fofoca, etc., e isso não tem nenhum problema. O problema é ir do amador para o profissional. O amador sempre vai existir; agora, o profissional, que coloca dinheiro, que movimenta campanhas com robôs, compra engajamento, monta designs e bunkers com designers para produzir conteúdo violento, pornográfico, o dia todo, para depois propelir isso com grande alcance, às vezes falando para 50, 60 milhões de pessoas, isso depende de dinheiro, porque falar com muita gente sempre é caro, não importa a mídia. É caro se for na televisão, e é caro se for na internet. Falar com 80 milhões de pessoas sempre vai ser caro. Então essas campanhas massivas de desinformação têm muito dinheiro por trás, e o único jeito de combatê-las sem afetar a liberdade de expressão é follow the money, siga o dinheiro. Esse é o único jeito. Agora, qualquer um fala o que quiser. O que não pode é, de forma oculta, você financiar uma rede de laranjas, intermediários e robôs e uma série de coisas e, como resultado disso, espalhar desinformação para 50 milhões de pessoas. No mínimo, você tem que fazer isso de forma transparente, assumindo a responsabilidade. Se não fizer isso, pode ser punido.

Dado – Parabéns, você está trabalhando em cima de uma coisa que é fundamental. Eu não imaginei que tivesse alguém se ocupando disso, e fico muito feliz que seja justamente você.

Ronaldo – Nas últimas duas semanas, estou o tempo inteiro em cima disso. Agora, tem que fazer pressão, porque, para fazerem coisa errada lá no Congresso, não custa nada.

Dado – Fala para nós como podemos pressionar que pressionamos.

Ronaldo – Tem que pedir follow the money. Não mexam com a liberdade de expressão. Quem financia campanhas massivas, com robôs, etc., é que tem que ser punido. Essa é a forma. Precisamos de uma lei simples, que tenha dois parágrafos. A lei original estava com oito páginas. Um mastodonte horroroso. Com esses dois parágrafos, resolvemos o problema, em boa parte.

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Uma cesta com coisas da minha horta e a cartilha do MST

por Adelaide Ivánova

O trabalho com a terra marca a história da minha família. Meus avós maternos eram pequeníssimos agricultores familiares, no interior de Pernambuco, e também criavam bode e abelha.

Para mim, ter minha hortinha num espaço urbano serve, antes de mais nada, para auxiliar a sobrevivência das abelhas nativas que, como você deve saber, correm imenso risco, no mundo todo. As flores das fotos, por exemplo, são todas comestíveis (servem para salada, bolo, chá, tudo que você imaginar!), mas eu as uso o mínimo possível, só em ocasiões especiais, para que fiquem disponíveis para as abelhas. Segundo, e igualmente importante, é que construir e participar da horta comunitária do meu quarteirão é uma forma de construir um espaço de convivência coletiva, onde mil possibilidades políticas se abrem – desde politização sobre questões de moradia e direito à cidade, passando pela importância da agroecologia e da soberania alimentar, até a luta antirracista. Terceiro, e aqui entro numa esfera mais pessoal, é uma forma de me conectar com essa ancestralidade sertaneja, o que também ajuda a lidar com a saudade e sensação de solidão.

“A produção do camponês é a produção simples e pessoal em que ele mesmo utiliza sua própria força de trabalho. No processo produtivo da banana, da batata, do feijão, do algodão, do arroz etc., um camponês intervém desde o começo até o final, tal como o artesão que começa e termina o produto sem dividir com outros o processo produtivo.

(Elementos sobre a Teoria da Organização do Campo, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, 2015)

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Um dia de chuva no Sertão

por Zé Manoel

Fotos de Fred Jordão
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Conversa Polivox: Banda Cisma

Como se deu o encontro do que veio a ser a banda Cisma?

Bartolo: O primeiro contato que a gente teve a respeito de fazer alguma coisa foi quando o Marco e a Luísa me procuraram com umas músicas deles, querendo saber se eu queria produzir o disco. Eu escutei as músicas e gostei muito, achei que dava para fazer um disco ótimo. A ideia era que eu entrasse como produtor, mas não existia uma banda. Eram as músicas do Marco, da Luísa, e algumas com outros parceiros. As músicas existiam assim, eram umas demos que eles tinham feito em casa. Eu vi que ia acabar participando um bocado como instrumentista também, porque não tínhamos muito uma configuração de como tocar as coisas. Ia ser algo criado desde o início mesmo. Começou o processo assim: fizemos uns encontros só para descobrir as músicas, ficar tocando e vendo o que elas poderiam sugerir em termos de arranjo, o que poderíamos fazer, se daria para fazer coisas só nesse núcleo de nós três, se viriam outras pessoas, como viriam e quem seria. Esse início foi até bastante longo, foram pelo menos uns três meses em que ficamos rodando ali as músicas, tocando e vendo o que acontecia. Até dar um clique e começar a caminhar mais num ritmo de gravação mesmo.

Quanto tempo levou do começo da gravação até a finalização?

Luísa: A gente demorou um bocado mesmo no começo, batendo cabeça, porque era tudo abstrato. Nós tínhamos desejos, ideias, mas a maioria estava só na cabeça. Era uma coisa assim: imaginava isso, imaginava aquilo, e não tinha como fazer. Nos primeiros três meses, ficamos muito no tenta ali, tenta aqui. Tem alguns marcos ao longo desse processo, que foram momentos de chegar alguém e gravar algum instrumento e dar um: “Ah, opa! Isso começou a ficar com aquela cara que a gente imaginava”. Ou não a que a gente imaginava, outra, mas uma cara linda. Quando entraram as baterias, do Domênico Lancellotti e do Marcelo Callado, por exemplo, e quando entrou o piano do Marcelo Caldi, acho que esse foi o primeiro momento.

Nós começamos a conversar em março de 2017 e terminamos de gravar instrumentos exatamente dois anos depois. Claro, teve pausa. Eu lembro que teve um momento, logo no primeiro ano, em que paramos totalmente por três meses. Estava todo mundo enlouquecido.

Bartolo: Teve uma peça de teatro em que eu toquei, Lá Dentro Tem Coisa.

Luísa: Eu tive umas viagens de trabalho. Lembro que ficamos, no primeiro ano, três meses parados. Aí voltamos. Acho que o ano de 2018 foi o mais efetivo, em que a gente fez a maior parte das coisas. E terminamos em fevereiro de 2019, mas o Bartolo veio para Portugal e ainda fez uma última gravação aqui, mais ou menos em março do ano passado, e mandou. E teve o processo de mixagem e mais toda a finalização. Acho que o disco está pronto desde julho do ano passado. 

Bartolo: É, porque primeiro a gente terminou e, como teve todo esse processo da minha mudança para cá [Portugal] também, a gente não tinha feito uma prospecção. Quando eu vim para cá, em fevereiro do ano passado, estavam praticamente finalizadas as mixagens. Essa gravação que eu fiz aqui foi realmente uma pós-produção, um negocinho que ficou faltando, que eu fiz com o Ricardo Dias Gomes e mandamos de volta. Mas eu acho que o curioso, para mim, é que foi um processo muito atípico de fazer um disco. Acho que hoje em dia a gente está num momento da fonografia que você pode escolher qualquer maneira de fazer um disco – desde as coisas mais à moda antiga que você imaginar, que estão disponíveis e podem ser acessadas dependendo das possibilidades tanto financeiras quanto de infraestrutura de estúdio e tal, até coisas totalmente atuais, o mais home studio possível, e muita coisa no computador. Todo o espectro está disponível. E, para mim, como produtor, minha cabeça fica trabalhando no sentido de como vai ser feito determinado trabalho, desenrolando em cima de uma ideia. Porque isso diz respeito a muita coisa: se vai ter muito ensaio, se vai ter pouco ensaio, se precisa de sala grande, qual infraestrutura você precisa no estúdio, quanto vai gastar. A maneira como você imagina que vai fazer um disco dita muito sobre o processo. E, nesse caso, a gente teve uma coisa que foi excelente – o Moreno [Veloso] deixou a gente usar o estúdio dele sem taxímetro rolando. A gente tinha o tempo que quisesse para ficar lá. Isso foi muito bom, porque deu para testar as músicas. Esses três meses de teste foi uma coisa que nunca aconteceria se não fosse isso de ter o estúdio à disposição.

Marco: Acho que é importante dizer que eu e Luísa não tínhamos experiência nenhuma de estúdio. Nesses três meses de experiência, foi o Bartolo com muita paciência aqui a ver conosco. Só podia ser o Bartolo a fazer isso, porque a gente não sabia nada. Muita, muita paciência da parte dele, e aos poucos nós adquirimos a confiança. É importante, quando a pessoa toca em estúdio, a pessoa estar confiante para fazer alguma coisa minimamente razoável… E foi assim.

Luísa: Não teria sido possível, mesmo, sem o estúdio do Moreno e a paciência do Bartolo. Não só a paciência – a paciência, a guitarra, o baixo, tudo. Mas, realmente, isso foi fundamental, eram condições muito privilegiadas. Teve essa conjunção. O Moreno estava fora e, mesmo morando fora, não precisava fazer isso, mas teve essa generosidade de nos deixar lá, soltos.

Quando vocês gravaram, estava todo mundo no Rio e usando o estúdio do Moreno. Mas muitos dos músicos que estão no disco estão vivendo essa “ponte” Portugal-Brasil, como o Ricardo Dias Gomes e o Domenico. Mas, na época, em 2017, ainda estava todo mundo no Brasil? As músicas foram pensadas aí em Portugal ou aqui no Brasil?

Marco: A gravação do Ricardo Dias Gomes foi aqui em Lisboa, com o Bartolo.

Luísa: O Bartolo já tinha passado um ano e meio em Portugal e tinha voltado. A gente não tinha Portugal na cabeça. O Marco é português, mas ele estava vivendo no Brasil, e todos os músicos participantes também estavam vivendo no Brasil. Imagina, de 2017 para 2019, o tanto de coisa que não aconteceu no entorno e, desde então, não para de acontecer, né? O disco é 100% localizado no Rio, e todos os músicos viviam lá na época. Agora, está acontecendo muito, né, essa conexão com Portugal. E, por acaso, viemos nos encontrar aqui um tempo depois. Quer dizer, um pouco por acaso e um pouco por vontade, ou sorte.

O disco passeia por diversos ritmos e ambiências sonoras. “Só”, por exemplo, começa com um solo de cuíca, que abre o disco. “Fim” tem uma tensão que lembra trilha sonora de filme. “Bilhete” explora ruídos. Como foi pensar os arranjos e as composições?

Luísa: As músicas foram feitas ao longo de muito tempo e em situações completamente díspares, então elas pediam coisas muito diferentes. Elas têm ambiências muito diferentes. Esse foi outro desafio. Pensar: caramba, como é que a gente vai dar uma unidade para esse troço, como é que isso vai virar um disco, qual vai ser a ordem. Porque a gente via cada música separadamente. Depois, a gente foi percebendo quais delas conversavam entre si, e pensava “que tal botar mais essa coisa nessa e juntar?”. Mas foi muito devagarzinho. Fomos percebendo isso ao longo do tempo.

Eu li uma outra entrevista que vocês deram falando que o Marco tinha aprendido a tocar um instrumento árabe…

Luísa: Não era um instrumento, era uma escala.

Marco: Ah, sim. Eu aprendi na flauta transversal com um amigo que toca, Eduardo Sérgio, que o Bartolo também conhece. Ele viaja muito e descobriu essa escala turca em um hotel na Turquia. No almoço do hotel tinha um pianista, e ele pediu para se juntar, subiu ao quarto, buscou o clarinete e começou a tocar com o pianista. Aquilo não funcionou bem, e o pianista, depois, sugeriu uma escala que foi a que usamos para “Sherazade (Canção de Ninar)”. Nós acrescentamos uma nota à escala – ela pedia uma nota extra, não ficou bem a escala certa, mas foi inspirada nessa música lá da Turquia.

E, Luísa, todas as letras são suas?

Luísa: Tem duas que são parcerias. A música “Cisma” tem parceria com o Quito Ribeiro. Fizemos a música nós três, depois eu mandei a letra e o Quito deu sugestões maravilhosas que foram incorporadas. E a letra da “Canção de Empédocles” foi baseada em um poema. Não é uma musicalização de um poema porque não tem nenhum verso do poema, mas tem palavras, imagens, pedacinhos. “Canção de Empédocles” é uma letra em parceria com o Fernando Santoro, que não é músico, mas professor de Filosofia. Ele foi meu orientador de tese e é um parceiro de trabalho constante. E também é poeta. A história dessa música foi assim: ele ouviu a música que depois ficou batizada como “Réquiem”, que também é uma música de inspiração grega, do mito de Pandora – eu mostrei a ele porque comecei a cantarolar e compor essa música numa situação de universidade, num evento. Mostrei para ele, e ele falou, “ah, você podia fazer isso com o poema de Empédocles também”. Ele tinha traduzido os fragmentos do poema de Empédocles, poeta de 2500, 2600 anos atrás, e depois fez o dele também muito livremente inspirado, e aí eu fiz a música também livremente inspirada no poema dele. E, quando mostrei a letra, ele deu sugestões de mudanças que ficaram bem legais.

“Máquina planetária” é uma música que fala de um acontecimento real, uma tragédia que parece que ter sido uma das muitas que viriam, que é o acidente da barragem em Mariana. E ainda veio Brumadinho, o Museu Nacional, o Impeachment, a eleição de 2018, a pandemia, a crise que a gente vive agora. Todas elas têm uma relação com disputas de poder e envolvem “a mão tirana do algoz”, que é um dos versos da canção. Queria saber se vocês consideram que a música e a filosofia se encontram inevitavelmente. Bem como a questão social e política, como isso se expressa na música?

Luísa: Eu não acho que tenha uma relação necessária entre música, filosofia e política. Mas, no meu caso, como eu sou professora de Filosofia – é assim que eu me defino; não sou filósofa, sou professora de Filosofia; professora, especialmente, de História da Filosofia –, são temas com os quais eu lido, que ficam pairando aqui na minha cabeça. Para mim, se torna quase que inevitável isso se materializar nas letras das músicas. E o engraçado é que essa música, por exemplo, eu acho que, se não me engano, foi composta em 2015 – não tinha nem tido golpe ainda. Tem um traço que é muitas vezes a fraqueza da filosofia, mas que também é sua força, que são tendências generalizantes. Tem a menção à Mariana na música, tem um evento específico ali, mas o resto todo é mais genérico. É uma tendência que eu tenho de, muitas vezes, ser, digamos, generalista – que pode ser muito ruim, mas também tem esse lado de várias situações diferentes poderem caber ali. Eu acho engraçado, porque você ouve e, às vezes, parece que é de agora, mas não necessariamente. Na verdade, se você for prestar bastante atenção, tirando a lama, a lama de Mariana, a lama que vai chegando à foz, serve para muitas coisas. Foi essa a sensação que eu tive.

Muitas vezes, tenho uma dificuldade de contar histórias mais específicas nas músicas. Eu vejo isso como um defeito, mas, no caso dessa música, acabou ficando interessante, porque você encaixa: “ih, está falando disso, está falando disso”, ou nem estava falando disso, porque isso nem tinha acontecido ainda, mas também se encaixa.

Bartolo: Tem uma coisa que eu acho curiosa. Do jeito que está a coisa no Brasil e no mundo – eu já vi algumas pessoas falando sobre isso, achei que estava só na minha cabeça, depois vi que isso é uma coisa coletiva –, há uma sensação de ressignificar as letras, as canções. Tem várias coisas que eu tenho escutado, antigas, que eu não escutava há um tempão, e que parecem estar tomando outros significados. Aquela letra que você já ouve há décadas. E eu acho que é esse turbilhão de coisas que a gente está vivendo que faz a gente entrar nessa viagem de ressignificar. Eu acho que, nesse sentido, esse disco tem letras muito ricas. A parte do disco que eu acho que tem as letras mais pesadas, vamos dizer assim, mais densas, parecem mesmo que foram feitas agora, mas tem esse espectro de tempo em que a coisa aconteceu. E aí eu acho que entra uma outra coisa que é engraçada, que eu gosto muito em arte, de maneira geral, que é o imponderável. Você não doma muito o objeto artístico. Eu acho que isso é uma das grandes riquezas de colocar arte para fora, de se comunicar com as pessoas. É isso que eu vejo no disco: as letras da Luísa soam tão atuais, como se tivessem sido feitas nos últimos seis meses. E, na verdade, é muito mais do que isso. Acaba dizendo respeito a um timing que o disco teve; entrou numa hora em que eu acho que tem muito a ver entrar, e isso é o imponderável, sabe? Se a gente tivesse terminado o disco um tempo atrás, se a gente não tivesse ficado tanto tempo vendo se ia lançar independente ou fazer parcerias com selos, e não sei o quê… Mas aí as coisas acontecem, de uma maneira ou de outra. É o imponderável.

E como foi lançar num momento em que o mundo vive sob o risco e a incerteza de uma pandemia, com quarentena, etc.?

Luísa: Nós temos, todos, outros trabalhos. A falta de trabalho na pandemia possibilitou o esforço final de botar o negócio no ar, porque foi tudo feito por nós, batendo cabeça e aprendendo. O Bartolo ensinando um bocado aqui, até como se registra o fonograma. Essa parte toda de internet foi um enorme esforço. O Marco conseguiu se dedicar muito a isso na pandemia. E foi isso, assim, do jeito que deu. Então, claro, dificulta para o lançamento, mas possibilitou a dedicação final de tempo, que é necessária para colocar online.

Bartolo: Tem uma coisa curiosa nessa pandemia. As pessoas estão em casa e ávidas… porque, se tem uma coisa que ficou óbvia, é que as pessoas não aguentam 72 horas sem arte. No dia a dia, sem pandemia, eu sentia muitas vezes que vários lançamentos de amigos meus, de bandas que eu gostava ou gostaria de escutar, de artistas ou coisas minhas mesmo, as pessoas estavam sabendo, mas num frenesi tão grande que dava para sentir que elas não tinham o momento de parar e escutar. E, agora, por mais que em casa esteja uma loucura – nós que temos criança em casa sabemos muito bem o que é a loucura de tudo isso que está acontecendo confinados –, é uma coisa meio urgente que você pare um pouco e tenha um momento de introspecção. Os privilegiados que podem, né? É urgente que você tenha um tempinho seu, escute um negócio direito, consiga ter um devaneio, uma viagem estética, uma coisa que alguém está te oferecendo, seja um amigo, uma banda ou um artista que você goste. E eu tenho sentido que as pessoas estão mais atentas, assim. Eu tenho recebido feedbacks de pessoas que eu sinto que escutaram mesmo. Isso tem sido excelente. Na verdade, essa é uma coisa que eu não sentia já há algum tempo. E esse é um efeito colateral, é isso que eu estou querendo dizer. No fim das contas, as pessoas agora conseguem parar e escutar um disco, o que não estava acontecendo tanto antes, eu acho. Eu mesmo tenho escutado muito mais coisa com atenção, apesar das dificuldades do dia a dia.

Luísa: É muito difícil generalizar. Para algumas pessoas, sim, há mais possibilidade; outras, com certeza, estão tendo muito menos, tendo que trabalhar tantas horas por dia no teletrabalho. E, com criança, então, tem gente que com certeza não está conseguindo ouvir nem meio CD. Mas, para outras pessoas, teve esse efeito colateral. E a música ainda tem uma vantagem, porque você pode colocar na sua casa enquanto você cozinha, enquanto você faz outra coisa, e consegue prestar atenção, não tem que estar parado na frente do computador. Para ver um filme, para ver uma dança, uma peça, aí você tem que realmente parar tudo e ver, e a música não. Acho que tem essa companhia que a música faz.

Acho que o lance do feedback também tem muito a ver com estar confinado, né? Se você não escrever para a pessoa, não ligar, você não vai falar com ninguém, então tem que criar a comunicação.

Luísa: Boa. Pode ser que não estejam ouvindo mais, mas estejam dando mais notícia.

Bartolo: Ou seja, pode ser que tudo o que eu falei aqui esteja errado (risos).

Acho que são milhões de possibilidades.

Luísa: Acho que, para algumas pessoas, foi isso, mas tem muitas configurações diferentes.

Bartolo: Mas tem acontecido isso. Eu tenho recebido muito feedback por escrito. É isso, as pessoas se comunicando.

Que bom que pelo menos acontece essa comunicação.

Luísa: É muito bom quando alguém dá um retorno assim, né?

Bartolo: É ótimo!

Luísa: Dá muita satisfação.

Bartolo: A sensação que eu tenho é que, quando você coloca uma obra de arte no mundo, é um impulso de comunicação, também. E aí volta um monte de coisa que você jamais tinha pensado, mas fazendo todo o sentido. Você cria uma rede de impressões e sentimentos daquilo que você fez. Isso eu acho que é o grande lance e que acontece mesmo numa situação como essa, em que a gente está. Mesmo em confinamento, a gente tem que manter esse fluxo, esse tipo de comunicação e compartilhar.

Ainda em “Máquina Planetária”, o verso que fecha a música diz: “uma saída avistarás”. Olhando para o Brasil de hoje aí de Portugal, o que vocês têm a dizer sobre um possível futuro para o nosso país?

Luísa: Olha, muito sinceramente, eu não avisto nenhuma saída. Eu sou bastante pessimista, não sou a melhor pessoa para responder a essa pergunta. Porque eu não avisto uma saída para o Brasil e eu também não estou avistando uma saída para o mundo. Porque o mundo acha que não tem nada a ver com o Brasil, mas tem (o mundo europeu, pelo menos, que é onde a gente está agora). Mas é interessante pensar que, por acaso, o final de “Arte da pesca” seja “Oxalá a sorte venha”. Quer dizer, eu não avisto uma saída, mas também a gente torce, né? Tomara que a sorte venha, mas é muito difícil responder isso porque depende se você se atém a um micro, a um tempo pequeno, médio, longo prazo. Qual é o corte que você vai fazer para dizer se alguma coisa melhorou ou piorou? Saída para o quê? Uma saída mínima que é possível talvez a gente possa ter em 2022, mas não vai ser uma saída mesmo, então é difícil falar…

Bartolo: É isso. Tentando fazer um corte, como a Luísa falou, eu acho que, desde o que começou a se circunscrever na época da Copa (ainda um pouco antes, em 2013), e que depois com o golpe e tal, eu acho que o Brasil entrou numa situação geopolítica em que era muito bom que ficasse nessa desorganização, nessa bateção de cabeça, nessa disputa interna, como está, porque eu acho que muita gente tira muito proveito disso. A indústria do petróleo, desde que descobriram o pré-sal até o golpe, você vê que é uma curva muito coincidente com a crise do Brasil. Tem muitos interesses que você consegue mapear e ver. Mas, no meio disso tudo, veio uma pandemia. E aí é novamente o imponderável. É muito difícil de tentar entender, porque parece que o negócio tá meio que regido por um caos, sabe? Tipo estar no meio do caixote. Você pegou uma onda, virou o caixote e, cara, só vai acabar quando acabar. Eu não sei, eu não consigo ver, num curto prazo, uma melhora, não. Mas quantas vezes a gente não viu, no Brasil, esse fluxo de estabilidade e instabilidade? Só que agora está muito temperado, tipo nunca antes visto. Os nossos pais viveram 1964 e foi terrível, e todo mundo sabe quão terrível aquilo foi, mas o que acontece agora não tem paralelo, não dá nem mais para comparar.

Luísa: Algumas várias desilusões acontecendo. Primeiro, achar que algumas mínimas, mínimas coisinhas básicas a gente já tinha conquistado, adquirido, e não. É o “só que não”. E outra coisa também é reconhecer que nunca conseguimos, mesmo nos pequenos bons momentos, assim, nos livrar dos nossos problemas estruturais mais profundos. Não chegamos nem perto disso. A única coisa que eu acho que nós podemos dizer que começou a acontecer é um reconhecimento maior disso por uma pequena parcela da população e… só. Reconhecer os problemas estruturais é o primeiro passo para, talvez, tentar começar a pensar.

É difícil pensar em uma solução para um conjunto enorme de problemas tão entrelaçados, tão complexos, tão antigos. Parece que a gente está em um nó górdio, e os problemas locais são também relacionados aos problemas globais. É tudo tão complexo que é muito difícil avistar uma saída, é muito difícil pensar em uma solução. Mas a gente pode pensar em pequenos recortes no espaço também. Existem algumas iniciativas locais, atualmente, que são muito interessantes, muito criativas, que dão uma sensação de uma lufada de ar fresco, de poder tirar a cabeça para fora d’água e respirar um pouquinho. De repente, a gente vê coletivos de vários tipos, artísticos ou de ativistas, de reivindicações, de… Não sei, modos de vida… Iniciativas tão interessantes, e eu acho que isso é uma coisa importante de ressaltar. Agora, está todo mundo confinado, atuando sempre nesse plano do virtual. Outro dia eu recebi um abaixo-assinado que tinha um título e um texto muito bonitos: “Enquanto houver racismo, não haverá democracia” – e esse é um título que eu acho absolutamente verdadeiro. Não dá para deixar de notar que, no meio dessa pandemia, está havendo uma importante reação antirracista mundo afora. Apesar de ser pelo pior dos motivos, pelo mais horroroso, pelo mais condenável, essa onda espontânea, de alguma maneira, não pode deixar de ser notada, e ela é grande, aparece em vários lugares do mundo. Esses são os nossos “oxalá sorte venha” que a gente ainda pode ver por aí, né?

Vocês chegaram a se apresentar?

Luísa: Não. A gente tinha a ideia de, talvez, fazer uma primeira apresentação de lançamento aqui, já que estamos aqui e tem, como você disse, outros músicos que participaram que estão aqui também e que poderiam se juntar a nós, mas agora não vai dar.

Marco: Quem sabe no futuro?

Luísa: Oxalá!

#35PresenteCulturaLiteratura

O presente que nos habita

por Marisa Giannecchini

Viviane Sassen em Visible/Invisible, no Palácio de Versailles

Sou feita de narrativas. Encanta-me o processo de construção, sem uma ordem que exija a materialidade da história, rumo ao ponto final. É pelo caminho que amarro os fios e, muitas vezes, desfaço a trama para recomeços.

Visitando o espaço que habito, andei em busca de uma referência que guardasse em si esse percurso de produção. Como visitante nova em ambiente já conhecido, propus-me a reinventá-lo em novas significações. Ali estava meu cesto de novelos de lã. Vinha de antigas grandezas, velhas matrizes de família, hábito que herdei, em meu projeto de ser tecelã.

Aprendi, em um momento de escolha, que ele valeria como Presente a quem pudesse recebê-lo, se mergulhasse comigo, em estrutura profunda, na polissemia do material a ser transformado em matéria poética. Confesso que, em tempo de ficcionalidade, o ritmo rege esse percurso, a romper latências para um vir a ser.

De tons amarelo mostarda, o novelo continha nuances que me punham em movimento. Apostei na textura da lã, a aguçar o tato de quem o tomasse em suas mãos. Em correspondência, à maneira de Baudelaire, outros sentidos aflorariam sinestesicamente. Havia um desejo incontido de tornar meu interlocutor um ser de poesia, a recompor os fios de suas velhas novas narrativas.

Nesse trabalho de desatar possíveis nós, eu ofereço meu Presente a quem possa descobrir comigo a insólita experiência de destecer, para recompor o material, com vistas a novos desafios e à espera. Ele leva parte do meu acervo, mas ainda há muito de meadas no cesto da minha infância. Caminhar às nascentes dos sentidos, sem chegar à ponta do novelo, é também lição de Kaváfis em sua Ítaca, um convite a fruir o meio de tantas viagens. 

O melhor que tenho hoje a oferecer, portanto, partindo da minha CASA para o Outro – para os Outros –, é a certeza de que todo Presente leva a atemporalidade em sua matriz. Em uma perspectiva cubista, diante de tantos ângulos para olhar a cena cotidiana, há, em mim, um convite manifesto para não perdermos a beleza de Troia a Ítaca!


Marisa Giannecchini Gonçalves de Souza é doutora em Semiótica e Estudos Literários (Grego Clássico) pela UNESP – Araraquara 
#35PresenteCulturaLiteratura

Distância de contato

por Francesca Cricelli

A veces no hay tiempo para confirmar el desastre.
(Samanta Schweblin, Distancia de resgate)

Não nasci para ser longevo. Aqueles como eu já vêm ao mundo com os dias contados. Somos somente uma parte da engrenagem. Nasce-se para alimentar o outro; existência fugaz. Entre o ímpeto e uma brecha, fugi ao meu destino e, por isso, ainda estou por aqui, posso contar-lhes minha história.

A última manhã da minha velha existência raiou como todas as que haviam-na antecedido. A rotina, na correria dos dias, obrigava-me a seguir pedalando, como tantos outros, empenhado em girar a roda interminável do ser. Vivia, naquele então, como se o ritmo fosse sempre ditado por outrem. Nem mesmo minha fome nascia das minhas vísceras. Vivíamos num espaço apertado, eu, meus quatro irmãos, duas irmãs e alguns colegas sem moradia fixa. Mas isso, o excesso de corpos em pouco espaço, nunca foi um incômodo para mim. Há algum tempo, porém, perturbava-me a falta prolongada dos nossos pais; era comum se ausentarem, mas não assim, por tempo indeterminado.

As mesmas mãos que vieram pelos meus pais se apresentaram no limiar da porta de casa. Dedos longos, firmes e rosados, as pontas levemente calejadas, as unhas polidas, denunciavam outra maestria, algo de cordas e arcos, sopro e oclusão, algo alheio ao que faziam ali, mãos que enfim vieram por mim, vieram por nós. Seguimos, sem saber o destino, amontoados, chacoalhando no escuro.

Pelo abrir e fechar das portas, havia duas ou três antessalas antes de chegarmos ali. Ainda no breu, apinhados, ouvíamos chacoalhos, um atrito de anéis, um coro de sibilos. Pressentiam a carne, nosso sangue quente, vibravam, e nós, ainda sem saber ao certo o paradeiro, incrédulos, sacolejávamos.

A primeira a ser agarrada entre os dedos firmes e rosados foi minha irmã mais nova. Depois, meu irmão do meio; em seguida, o mais novo; depois, nosso vizinho. A morte desfilando diante de mim. Ainda que não pudesse vê-la, eu a ouvia nos guinchados. Quando, por fim, chegou o momento da minha extração, debati-me, dificultei a aferição, mas acabei sendo agarrado pela cauda. Oscilei algumas vezes e previ a distância de contato entre os dedos que me sustentavam e a boca da serpente. Não era um ofício dos mais fáceis esse de segurar-me com uma mão e com a outra empunhar a vara com gancho — do tipo com dupla pinção dobrável — para deter a fera em plena orexia. Havia aí talento e destreza nessa peça de engrenagem que faz mover a máquina que leva a presa à boca, a fome ao alimento. Quando o sujeito deslocou o olhar para certificar-se de que havia empunhado bem o gancho e que a pinça detia devidamente os movimentos da jararaca, iniciei meu balé de resgate. Há uma sabedoria no corpo; não sei de onde vem. Há algo que insiste, um quinhão de vida a subjugar a morte. Rodopiei com todas as minhas forças sobre o meu próprio corpo, uma e outra vez, à direita e, depois, à esquerda. Fiz-me pêndulo, fui peão, Nijinski e Nureiev, ensaiei piruetas infinitas sobre a extensão de minha coluna vertebral. Poucos sabem, mas nós e outros cordados temos na cauda a extensão de nossa coluna vertebral. É ela a responsável pela termorregulação em nossos corpos, dilatando e contraindo os vasos para que o sangue flua de acordo com sua necessidade. É ela que o resfria e faz com que retorne ao corpo com uma temperatura mais baixa. Mas não é só essa sua função: é ela, em toda sua extensão, o nosso prumo, o nosso leme, o que ampara o equilíbrio.

Entre morrer intacto e agarrar-me à chance do porvir, mesmo amputado, optei pela segunda alternativa: seguir. Nem todos podem se entregar à dança macabra das ablações; há o medo de não resistir diante de um corpo despedaçado. Claro, não se corre nem se salta da mesma forma ao ser privado do que nos norteia o equilíbrio; é existir sem o labirinto, que em nosso caso habita a periferia do corpo. Antes de medirmos a distância de contato entre a própria pele e a boca do abismo, vivemos embebidos na fantasia da integridade e da inteireza. Mas esse delírio era adequado à primeira parte da minha existência, àquela em que vivia para fazer girar a roda dos dias. Às vezes não há tempo para confirmar o desastre. Não perdi por completo minha agilidade, foram alguns dias em fuga entre qualquer fissura possível até que se abrisse uma porta, depois outra, e mais uma. O presente da liberdade custou-me a cauda. Debrucei-me sobre o abismo antes de encontrar meu canto no jardim do Butantã.

Ilustrações de Mateus Acioli

Convidei a poeta, escritora e tradutora Francesca Cricelli1 para abrir esta nova seção literária da revista, da qual muito feliz cuidarei. O presente que me é ofertado eu partilho com entusiasmo. Francesca é dessas pessoas que deixam rastilho aceso por onde passam e por onde seus textos chegam. Habitante de muitas línguas, doutora em Letras Estrangeiras e Tradução pela USP, Francesca viveu a infância entre o Brasil e a Itália, a adolescência na Malásia, e, depois, ainda jovem, entre Barcelona, Florença, Nova Délhi, Cidade do México e São Paulo. Hoje, mora em Reykjavík. De muitas dessas encarnações de sons, espaços e tempos nasceu o livro Repátria (Brasil: Demônio Negro, 2015 / Itália: Carta Canta, 2017) e, também, o mais recente Errância (Brasil: Dulcinéia Catadora, 2018 / Islândia-Brasil: Edições Macondo e Sagarana forlag, 2019), com suas crônicas de viagem e ficções autobiográficas. 

Se, como lemos num de seus poemas mais comoventes, “é uma longa estrada repatriar a alma / a rota é na medula”, sabemos que essa viagem do sangue encontra sua bússola mais potente na palavra, e na hora mágica da palavra: a poesia, a literatura. Errar em sua busca é tornar o corpo presente, na contínua demanda ética por um mundo pautado pelo diálogo, pela escuta e pela coragem da alegria. 

Especialmente para a Amarello, Francesca respondeu à presença da literatura com este magnífico miniconto. Nele, ouvimos de um narrador incomum sobre a situação de seu destino (e o nosso): estar diante da morte, esperar pela boca da serpente. E quem não o sente, especialmente nos tempos atuais, cuja violência conservadora de fascismos de mil faces paira como mão sombria a tentar controlar nossos corpos, conduzindo-nos à asfixia e à ausência de perspectiva?

Mas eis que a literatura sublinha sua audácia: a subversão, o risco libertário de qualquer ser que ousar buscar sua voz e ouvir as vozes daqueles que questionam o girar de uma roda invariável. 

Há respiro enquanto houver presença, e haverá presença onde o corpo insistir em desviar-se, hábil, vivaz, eloquente, das goelas abissais de um presente assustador.

Roberta Ferraz,
editora de Literatura


1Nascida em 1982 em Ribeirão Preto, Francesca Cricelli é poeta, pesquisadora e tradutora literária. Doutora em Letras Estrangeiras e Tradução pela Universidade de São Paulo, publicou os livros Repátria (Demônio Negro, 2015), 16 poemas + 1 (edição de autora, 2017 e 2018), As curvas negras da terra (Nosotros, 2019) e Errância (Macondo e Sagarana forlag, 2019). Atualmente vive na capital mais ao norte do mundo, Reykjavík, onde estuda língua e literatura islandesas na Universidade da Islândia.
ArteCinemaCulturaFotografiaSociedade

Gambiarra

O filme Gambiarra é o espelho de uma sociedade que tem o improviso como processo político-econômico-estrutural. É uma tentativa, um mal-entendido, uma ginga epistemológica cujo objetivo final é deixar claro que a pobreza não é, nem nunca foi, uma condição de degradação neste país.

Em seu manifesto A estética da fome, Glauber Rocha deixa uma coisa muito clara: nada se pensa e se diz nesse país sem que antes a Fome venha primeiro. O filme escancara nossa felicidade. Mesmo quando nossas mãos estão preocupadas em torturar, esganar e trucidar. Não a felicidade dos gringos, é claro. A felicidade das manhãs de feira. A felicidade dos corpos em movimento. Do samba, da capoeira, do carro de pamonha que diz “sim” à vida mesmo com 13 milhões de desempregados.

Mais uma vez, a cultura popular brasileira é capaz de esplendores estéticos com baixíssimos orçamentos. Seria essa a nossa tragédia?

Gambiarra vem para jogar luz, ou melhor, ensolarar nossas contradições sociais, amorosas e sentimentais que, agora, após 20 ou 25 anos sendo empurradas para baixo do tapete pela vassoura da “globalização”, voltam a ficar evidentes. O mundo vem encolhendo para as novas gerações brasileiras. Trump, o Brexit e nosso esfacelamento econômico estão abrindo uma nova porta histórica. Ou se volta a pensar o Brasil, ou não se faz mais nada. De Sérgio Buarque de Holanda, passando por Maria da Conceição Tavares, Mãe Menininha de Oxossi, Gambiarra LTDA, estão todos “aprendendo a ler, para ensinar aos camaradas’’.

Assista a Gambiarra:


GAMBIARRA é um produção inédita da Brazil 1,99 e Seconds.tv

SECONDS é um coletivo-produtora independente que se divide entre Brasília (Brasil) e Londres (Inglaterra). Com uma equipe pequena de dois diretores e uma diretora de arte, criamos e produzimos conteúdos originais, com foco em vídeo e fotografia. Em 2020, ganhamos o cubo de bronze no prestigiado ADC Awards, em Nova York, concorrendo pela categoria Documentário.

BRAZIL 1,99 é um coletivo barraca-itinerante que, fazendo uso da fotografia, design e audiovisual, estuda as múltiplas formas como o brasileiro vive a realidade nacional e como essa vivência é traduzida em um produto, narrativa e cultura no geral.

Produção e Direção: Luiza Herdy e Sávio Drew
Narração: Leandro Coelho
Direção de Fotografia: Elvis Lins e Luiza Herdy
Montagem: Elvis Lins
Identidade Visual: Thomas Cosin
Trilha sonora original por Cícero Fraga com participações de Pizero Boys & Rozeno e Banda
Design de moda e manifesto: Pedro Hermano
Créditos: Nic Ferguson-Lee
Design: Isabela Lima e Ívanno José 
Animações: Brunno Balco
Texto: Ian Viana
Tradução: Júlia Thomson, Luiza Herdy e Quim Tortajada Pons
E com participações de: Alisson & Kananda, João do Tomate, Rodrigo dos Santos “Rodrigão”, Thiago, Márcia Fernanda, Daniela, Mariana & Vitória, Amaro Batista, Espedito Cesário, Ailton Pereira, Carlos, Igor, Laércio Queiroz, Francisco Bezerra, Márcio “Palhaço Bombijoo”, Daniel Dias e Thais Lopes.

Agradecimentos: Victor do Carro Propaganda, Julio Vidal, Feirantes da Feira do Produtor de Ceilândia, Vendedores do centro de Taguatinga, Roberto da Uva do Caminhão de Frutas, Rodrigo do Caminhão de Utilidades, No Setor, Ian Viana, Rachel Denti, Diego Sullivan e Revista Amarello 


#35PresenteDesignEstilo

A Bolsa Maria

por Savio Farias

Eu nasci na Anhuma, uma vila que fica no sul do Piauí, pelas mãos de minha bisavó, parteira da região na época. Nessa região, existiam muitas outras vilas. Cada vila podia ter até mais de um dono da terra. A Anhuma era dividida entre quatro senhores, e cada propriedade tinha uma casa grande (a do senhor) e o vaqueiro que cuidava da terra e dos animais em troca do teto sobre sua cabeça (sem salário fixo). Essa prática fazia com que nós, vaqueiros, e nossas famílias não tivéssemos terras, então sempre fazíamos rodízio entre os senhores de terras e nos mudávamos muito. Às vezes, passávamos alguns meses em uma propriedade; outras, mais de ano.

Isso sempre dependia da relação entre as duas partes. Eu e minha família chegamos a mudar de “senhores” cinco vezes, até que meu pai conseguiu um pedaço de terra em uma cidadezinha vizinha, com cerca de 3 mil habitantes na época. Bertolínia foi escolhida por meu pai e minha mãe como lugar da nossa tão sonhada propriedade. Os dois construíram uma casa pequena, só as quatro paredes-base e o teto de palha de coco babaçu, solução mais barata na época. 

Nós nos mudamos para essa casa em busca de novas oportunidades. Para mim, foi difícil a adaptação, porque antes, na vila, vivíamos cercados pela caatinga e por tudo que a natureza podia oferecer, quase sem pudor ou maldade. Na cidade, valores capitalistas são postos à prova. Minha mãe trabalhava de doméstica por 150 reais por mês, e meu pai caçava e plantava para manter a casa. Eu tinha muita vergonha da casa; por estarmos na “cidade”, ela não se parecia com as outras que eu via, como as dos meus amigos. Nunca me senti em casa, nunca a vi como minha. Queria mudar aquela cara de casa improvisada que nem banheiro tinha. 

Com 16 anos, falei para minha mãe que eu precisava me mudar e que uma tia minha que morava em Brasília tinha deixado eu morar com ela. Feito! Embarquei para Brasília com a ideia de voltar um dia e poder derrubar aquela casa e construir uma casa linda para minha família. Em Brasília, apesar do carinho da minha tia, eu não via a casa dela como minha. Eu tinha passado 16 anos sem ter uma porta para chamar de minha, pois todas as casas da vila mal tinham teto. Na minha tia, eu dividia o quarto com meu primo; logo, a porta do quarto não era minha. Muita coisa se passou, e hoje, com 24 anos, eu consegui a tão sonhada porta. Aluguei um lugar para mim, e foi incrível estar em casa – finalmente a minha casa. Eu me senti seguro e extremamente feliz. Casa sempre foi um lugar que me inspirou muito em meu trabalho e minha pesquisa, seja ela a casa matéria ou nossa cultura nacional, nossa grande casa. 

A bolsa Maria é um símbolo do que eu acredito no meu trabalho e fala sobre a força da mulher nordestina e das Marias que levantam todos os dias para mover esse país.

Hoje, muitas dessas Marias encontram-se sem condições de ter um lar saudável ou com comida na mesa, enquanto uma grade parte da sociedade se isola em grandes casas ou na “fazenda da família”. Dentro da bolsa, uma mensagem de que minha casa está aberta, cheia de honestidade e respeito por nossa cultura e por todos que mantêm esse país vivo, mesmo sendo explorados e marginalizados. Nesse momento de isolamento, eu não estou em casa, porque trabalho em uma fábrica que se viu obrigada a fazer máscaras para suprir as necessidades da população. Nessa fábrica, sou professor, e recebemos muitos alunos, em sua grande maioria mulheres, para tal produção. Ouço muitos relatos dessas mulheres que estão sofrendo em pequenos espaços e com a responsabilidade de manter uma família em meio a essa crise. Isso me faz pensar que, enquanto estou lá, minha casa está vazia, só com minhas memórias de um país possível e saudável. Se eu pudesse presentear alguém hoje, seria com esse lugar de aconchego, segurança e respeito, e a bolsa seria um símbolo desse meu respeito pelas Marias que necessitam tanto de carinho e cuidado.

Revista

Amarello Presente #35

A Amarello chega à sua edição de número 35 com o tema Presente, tendo a escritora Noemi Jaffe como editora convidada e capa do artista plástico Marcelo Amorim

Garanta a sua edição

Por Noemi Jaffe
editora convidada da edição Amarello Presente

A palavra presente deriva, etimologicamente, do latim e significa estar diante de. Estar diante de, estar à mão, estar aqui, estar neste momento, instantaneamente, agora. De um sentido originalmente espacial, o presente acabou adquirindo o sentido sobretudo temporal. Presente é aquilo que chamamos de agora.

Mas o tempo do agora é impossível. Ele é o único realmente existente, mas é o mais inapreensível de todos: se o que foi já não é e se o que virá não é ainda – tempos imaginários –, aquilo que é, é o quê? Quando é, já era.

Mesmo assim, existem algumas formas de fazê-lo – o presente – restar.

Como?

Estando exatamente onde e quando está o tempo em que algo acontece. O instante dura quase nada, mas a sucessão de instantes em fluxo parece formar uma continuidade rítmica a que damos o nome bonito de duração. A duração é algo como o processo e o percurso que algo leva para acontecer. Mas esse conceito, tão concreto e abstrato ao mesmo tempo, implica também, para ser percebido, uma sensação subjetiva. A percepção da duração só pode existir se há alguém que a experimenta, que a acompanha. Dessa forma, sentimos, muitas vezes, que algo que cronologicamente dura um minuto, subjetivamente teve a duração de uma hora, e vice-versa.

Se acompanhamos o batimento cardíaco enquanto o coração bate, se escutamos uma música enquanto ela toca, se prestamos atenção à produção de um bolo enquanto o cozinhamos, ocorre o milagre de percebermos a textura mesma do tempo presente: ele existe em mim e eu existo nele. É o presente vivo. 

E presente é também oferta, doação, homenagem. Por quê? Porque coloco algo diante de alguém, agora. Ponho em oferta (que depois adquiriu o sentido mais trivial de diminuição do preço). Dou-te, agora, diante de ti, uma coisa. Presentear é tornar presente um objeto, na presença de alguém, por algum motivo. 

É por isso que o presente como oferta, quando oferecido com sinceridade e sentido, é a própria presentificação de uma ausência. Não estou com você, mas, pelo presente que te ofertei, me coloco diante de você, me faço presente. Da mesma forma, o presente também presentifica um ritual rítmico: há dez anos você nasceu. Se te presenteio agora, torno novamente presente a alegria do teu nascimento, todos os anos. E assim também com as celebrações, as festas religiosas, agrícolas e comemorativas.

Ocorre que, por inúmeras razões – que não cabe desenvolver aqui –, o presente, como tantas outras coisas, há muito perdeu seu caráter presentificador. Distribuímos presentes a rodo, muitas vezes desprovidos de significação e simbolismo, apenas como cumprimento de uma obrigação comercial ou social. Meias, gravatas, tigelas, eletrodomésticos inúteis, gadgets descartados assim que desembalados. Nada de presente, nem temporal, nem como oferta. O presente vira passado, esquecimento.

Durante a pandemia atual, o tempo tem se convertido em algo diferente do que aquilo a que nos acostumamos. Os dias se repetem na quarentena, os minutos e horas ganham espessura, conseguimos fazer coisas que não fazíamos e passamos a adotar hábitos que não conhecíamos (isso para quem pode estar em casa). Aqui no Brasil, além de tudo, além da atenção máxima exigida pela doença (higienizar tudo, usar máscara, não encontrar as pessoas, não sair às ruas), estamos em estado de tensionamento máximo pelo suceder dos acontecimentos políticos. Como é possível assistirmos, praticamente inertes, à ascensão de um ditador? O presente é o tecido em que temos nos movimentado ou nos imobilizado, atônitos e concentrados. Estamos, como nunca antes, mergulhados na passagem do tempo, que muitas vezes parece nem passar. O futuro parece nos ter sido sequestrado, e o passado se distancia como um filme distante. O agora assusta e desafia, como um continente de possibilidades.

A Revista Amarello, na tentativa de compreender e expressar esse fenômeno tão singular na vida de todos, mas principalmente dos brasileiros, tematiza, neste novo número, a ideia do presente em suas múltiplas atribuições: como tempo, como oferta e como presença.

Para isso, convidamos pessoas de várias partes do país, com várias ocupações, origens e etnias, para presentearem o leitor com algo que se relacione ao seu presente. Em meio à situação atual, com o que você presentearia alguém?

Ao solicitarmos os presentes para os participantes, fizemos questão de destacar a importância de escolher algo que possa ser passado adiante ou que seja rapidamente descartável ou consumível. Os presentes não poderiam ser mercadorias, bens imóveis que pudessem ser guardados. Em vários povos indígenas espalhados pelo mundo, o presente é dado como uma espécie de troca. Eu te ofereço algo, e você me oferece algo em troca, não necessariamente paritário. Em muitas dessas sociedades, oferecer um presente durável é mau sinal: significa que a pessoa que o recebeu irá se tornar dependente dele. É preciso gastá-lo ou passá-lo à frente, para que ele mantenha seu significado de “presente presente”.

Qual é o seu presente presente? 

Nas páginas da revista, conheçam os tempos e as ofertas de pessoas como vocês, e, esperamos, sintam-se também vocês presenteados.

Como é a sua história com essa casa?
Essa casa foi inventada, desenhada e construída pelos meus avós, entre os anos 50 e 60. Eles compraram o terreno, que tinha uma casa pequena que dava para a rua, e iam nas demolições do centro do Rio, na Lapa, nos fins de semana, e catavam azulejos, catavam mármores, catavam essas portas. Tudo isso vem de outras casas. Ela é uma junção de várias casas. A única coisa que eles compraram foi tijolo e cimento. Até as telhas eram telhas antigas de outras casas. Como não tinha essa moda de demolição, muitas vezes as pessoas que estavam se desfazendo desses materiais davam para eles, com a condição de que fosse lá retirar, para poder se livrar disso. Eu tinha uns 10 anos e, junto com a minha irmã, íamos muitas vezes lá para botar azulejos em caixinhas, descascar a parede para tirar os azulejos. Fui fazer isso novamente mais tarde, quando dona de antiquário. Refiz esse mesmo percurso com outras coisas, mas já dentro de um mundo que dava valor a isso. Na época deles, não se dava.

Quando você teve o antiquário? 
O antiquário foi de 95 a 2008. Então, por exemplo, isso aqui são duas bases de balcões de uma casa na Lapa. Essa é a base. Aqui, acima disso, vem um gradil para a pessoa pôr o pé. Aquelas frentes de casa que são todas de pedra de cantaria que tem muito na cidade. Então isso formava com aquilo, vários outros granitos que iam naquela casa, importados e tudo, formavam as frentes das casas, que eram derrubadas, e as pessoas não sabiam o que fazer com isso, porque ninguém queria isso. 

Mas quem que era a pessoa que tinha essa criatividade? 
Os dois. Aí eles desenharam, depois que ficaram 10 anos juntando. Você vai ver que não tem uma porta aqui igual à outra, as janelas também não são iguais.

Por conta disso, agora entendi, a casa parece ser muito mais antiga do que ela é. Parece ser uma casa dos anos 30, 40.
Mas o que você vê que é o pulo do gato, porque ela é uma casa com a cozinha aberta para a sala, que é uma coisa muito moderna, não tem porta na cozinha. É uma casa que não tem fundos. É uma casa que não tem grandes corredores. Todas as casas do século XIX e do começo do século XX tinham uma estrutura articulada de pequenos cubículos, um banheiro do lado de cá, vários quartos ao meio e o banheiro no fundo do corredor. Nesta casa, por exemplo, no meu quarto, tem o quarto de vestir e o banheiro; nos outros quartos, tem banheiro. Então são quatro quartos com banheiro, o que não é uma prerrogativa de casas mais antigas, em que a sala de banho era comum a todos. E ela tem um design de uma casa muito moderna, porque a cozinha é totalmente aberta, de frente para a vista, e não nos fundos. Não tem fundos. Todos os lugares dão para a frente. A lavanderia é aberta. Você está na sala de jantar e está vendo tudo. Não existe aquele outro lugar, entende? Aquela segregação. Todos estão desfrutando do mesmo verde do jardim.

E isso também vem muito da cabeça dos seus avós? 
Que eram europeus e tinham outra cabeça, outra maneira de pensar. Essa casa foi desenhada por eles e, depois, pintada pelo meu avô.

E eles moraram aqui até quando?
Eles moraram aqui quase 40 anos. Você vê, por exemplo, aqui é uma mesa que foi feita para fazer polenta e macarrão. Eles eram italianos, né? Então você vê que nenhum lugar dessa casa fica escondido. É um outro uso do espaço. E eles desenharam a casa toda com lápis Caran d’Ache. Eu tenho os desenhos. 

Quando você veio para cá e assumiu a casa deles?
Eu vim em 95. Arrumamos a casa e tentamos vender, mas não conseguimos. Até alugamos um tempo para uns franceses, mas, quando eles precisaram voltar, nesse momento eu vim. Foi por volta de 1995.

Então você veio e já fez o antiquário?
Eu já vim para fazer o antiquário. A ideia era morar em cima e deixar a parte de baixo como antiquário. Eu sou museóloga e já trabalhava com isso. No fim, tanto a parte de cima como a de baixo viraram antiquário, porque acabava que… ah onde é que vai botar a mesa para mostrar para o cliente?” Era assim, todo mundo que chegava jantava numa mesa diferente. Um dia você poderia chegar aqui e ter uma mesa de terreiro. Se viesse quinze dias depois, jantaria numa mesa inglesa.

E, a princípio, era a mesa da casa?
Era a mesa que estava ali, como o lustre também… Uma coisa com que eu me surpreendi muito durante esses 15 anos de antiquário foi o encontro das belezas, das estéticas. Porque, como eu tinha que pôr a mesa que tivesse chegando para vender, eu poderia ter a mesa de terreiro com as cadeiras de Jacarandá Dom José, porque eram de outra pessoa e tinham que estar aqui de alguma forma, em algum lugar. E aí, quando eu passava pela casa em outros momentos, olhava e pensava: “Nossa, não é que combina?”

Mas antes você não tinha essa cabeça? Porque a gente consegue ver essa mistura aqui hoje.
Não, eu tinha. Mas eu não bancava ela tanto quanto eu banquei durante o antiquário. E ninguém também bancou ela tanto quanto eu, porque ninguém comprou uma mesa de terreiro com cadeiras Dom José. Todo mundo olhava e dizia assim: “Ah, está espetacular essas cadeiras com a mesa de terreiro”. Claro, porque a mesa do terreiro, com as cadeiras do terreiro, morre. Quando está sem as cadeiras, acende. E a discussão entre ela e a cadeira Dom José é que é a graça. Não é que se põe tudo com tudo; um pensamento estético tem que estar presente, porque, senão, a coisa não vai dar certo. Mas essa coragem estética, ou estética com coragem, é interessantíssima. Óbvio que, muitas vezes, não dá certo. Certa vez, uma pessoa deixou aqui vários móveis lindos, africanos, mas você não conseguia encostar neles, tinham presença per se. Então não era que fossem menos interessantes. Tem tanta coisa assim que você vai reparando e o seu olhar vai afinando.

O gosto, pelo menos assim eu tenho aprendido, muda muito com o tempo.
Muda muito. Tem uma coisa que eu também utilizo, dentro da minha experiência, que é a humildade da mudança. E a surpresa da mudança, que às vezes não é feita por você, mas por outra pessoa. Como eu deixo as pessoas mexerem na casa, eu me surpreendo profundamente com algumas coisas. Por exemplo, móveis que por vinte anos estiveram aqui, às vezes a pessoa chega, muda de lugar e encontra onde sempre deveria ter estado.

E quando a casa assumiu o jeito que está agora? Quando você fechou o antiquário?
Eu não tenho essa sensação de que a casa se “fechou” como está agora. Tem horas que ela fica mais assim, depois muda. Aparece algo por que eu me apaixono e penso “é aqui que eu quero botar”. 

Você continua comprando coisas?
Não, porque eu não tenho um tostão. Se tivesse, compraria. Todo dia me apaixono ou vejo o site de leilão e falo ”ai, eu quero!”. Por exemplo, se eu tivesse dinheiro, eu compraria aquele do Paulo Roberto Leal que eu amei.

Você se apaixona muito pelos objetos? 
Me apaixono. Na hora que quebram… Porque tem aqueles que basta tocar para quebrar, ainda mais quando tem sessão de fotos aqui. Quando quebra, pego os cacos, guardo… E o meu mais novo desejo é comprar uma cola para porcelanas. Eu tenho essa coisa totalmente século XIX, então você não tem ideia da quantidade de cacos lindos que eu quero fazer, refazer objetos quebrados.

Mas depois que eles quebram, você desapega?
Eu desapego. Acabou, acabou. 

Como acha que o seu gosto se formou? 
Bom, você adoraria ver os álbuns que eu tenho das casas das minhas duas famílias, que, de alguma forma, foram meu convívio com a beleza desde pequena.

São os italianos que vieram?
São, mas tem os brasileiros. Eles tinham casas bem interessantes sempre. Minha avó era, assim, uma pessoa que tinha um jeito próprio de fazer as coisas. E, como eles tinham muito dinheiro, eles faziam tudo que eles imaginavam. “Ah, eu quero fazer um lago aqui e botar no meio do lago uma ilha com um templo dentro”. Põe! E tinha, aliás, quando eu era pequena. Eles eram extravagantes; se uniram por um saber, vamos dizer assim, de bancar o que você está querendo fazer. Além da cultura atávica, de família brasileira. As casas em que eu vivi na infância, as de campo, as daqui (Rio de Janeiro) e as de Petrópolis, moldaram esse gosto.

Onde eram essas casas?
No Rio, tinha na Urca, depois no Rui Barbosa. Tinha uma casa na Avenida Keller, ali em Petrópolis. Tinha sítio, tinha fazenda de café. Essas casas da família do meu pai eram muito interessantes, pois eram extravagantes e, ao mesmo tempo, eles tinham um olho para peças, móveis e suas combinações. Algo inusitado para a época. Meu gosto vem dessa liberdade de olhar e viver nas casas que não eram óbvias. Essa casa em que estamos tem muito de uma coisa que eles aprenderam uns com os outros, na minha família, da cultura europeia daquela época. A proporção da casa não é pequena, pois não foi feita com olhar acadêmico de sala de jantar, depois copa e cozinha e não sei o que, e os cubículos e tal… A toda essa experiência, juntei meus estudos em Museologia e História, além das viagens incríveis que fiz nas décadas de 60, 70 e 80.

Quais lugares você visitou?
A Índia dos anos 70 e, em especial, a casa das pessoas. Eu tive o prazer de conhecer casas de pessoas muito diferentes por conta dos amigos que fiz no colégio na Suíça. Tenho um grande prazer em parar e ficar olhando.

Você é uma pessoa observadora?
Muito. Até gosto de festa em que não conheço ninguém, porque fico numa posição estratégica. Se a pessoa disser: “você quer ir tomar um chá com um velhinho de 90 anos, mas temos que andar 4 horas de carro, 50 graus…”, eu vou! Ninguém quer ir para a casa, mas eu vou, com prazer. Então fiz muito isso em vários lugares do mundo e, inclusive, aqui no Rio. Na época do antiquário, vinha uma velhinha: “eu moro em Nova Iguaçu, mas eu herdei dos meus bisavós o mobiliário, gostaria tanto que a senhora visse”. É uma beleza. Às vezes, eu via coisas incríveis, como uma casa toda Art Noveau em Nova Iguaçu. Mas aquele Art Nouveau que eles chamam em alemão de “jugendstil, em que as pernas das cadeiras são caules e se transformam em flores entalhadas em madeira cara. A casa inteira, quarto, sala, banheiro. Impossível de vender, claro, mas com o melhor estilo austríaco. Art Nouveau num apartamento em Nova Iguaçu.

O que você viu de mais impressionante nas suas andanças?
Eu vi muita coisa impressionante. Comecei a ser antiquária quando não tinha computador, não tinha Google, não tinha internet, não tinha outra informação a não ser o seu saber. Eram os livros, apenas. Tinha que ler, pegar, estudar, ir à Biblioteca Nacional. A gente corria às vezes para uma biblioteca para poder ver o que era aquilo, poder dizer o preço para a pessoa, achar uma pessoa que também entendesse daquilo para comprar. Hoje em dia, existe uma globalização que tornou tudo possível. Você tem poucas descobertas a serem feitas. Eu me lembro, por exemplo, quando descobri o Jean-Michel Frank. Ele é dos anos 40, e eu fui descobri-lo nos anos 90. A relação, o processo, era diferente. Você via algo em algum lugar e pensava: “Ah! Eu vi isso naquele livro”. Nos anos 90, vendi o mobiliário completo de um apartamento na Avenida Atlântica para Paris, porque o apartamento todo era com móveis do Lelé. O cinzeiro, a cozinha, a sala, a mesinha de lado. Outra coisa que também lembro é a Casa Julieta de Serpa, que eu conheci quando era ainda o palacete da família Seabra. Nem pode-se dizer que eu amo aquele estilo, mas o fato de ver aquilo como era, com todos os seus defeitos, com suas manias, com suas gracinhas… Hoje em dia é tudo parecido.

Não é necessariamente do seu gosto, mas é um coisa boa.
É incrível. E as misturas são vitorianas.

O que você levou desse know-how para o cinema?
Eu trabalhei como figurinista, e levei meu conhecimento sobre cor e textura. Aprendi muito também sobre como as roupas ficam diferentes quando filmadas. Você pode estar com uma roupa linda, mas, quando ela é filmada, talvez não funcione. Minha avó era modista e costureira, então aprendi muito com ela. A museologia me ajudou também a saber o que era roupa do século XVII, XVIII, XIX, e não obrigatoriamente a trabalhar com reconstituição de época. Às vezes, era apenas o olhar sobre uma época. Tanto que eu fiz filmes em que as pessoas comentavam: “ai, mas que beleza, isso é o Brasil rural”… Não, não era. Era Botticelli, porém servia àquele personagem, e você faz para que pareça o Brasil, colocando talvez a cor da borboleta que passa atrás. Agora, se ele é um personagem que é o príncipe encantado da moça, ele não pode estar vestido com uma túnica, descalço e chapéu de palha, que era como as pessoas se vestiam. Ele tem que estar vestido como D’Artagnan, só que um D’Artagnan brasileiro, para ninguém notar que eu usei o D’Artagnan por completo. Esse aprendizado vindo da magia do cinema foi muito importante.

Porque você tem que colocar no seu trabalho parte do imaginário coletivo sobre aquilo.
Lógico, e trabalhar com figurino não tem nada a ver com moda. Nada, nem que seja um filme feito hoje. Figurino é uma coisa, e moda é outra, totalmente diferente.

Qual é a diferença fundamental?
O figurino serve à cena. Então, se sua cena é uma cena de beijo, não interessa qual é o sapato, ou se a manga é bufante. Se o figurino serve a uma mulher que tem de tirar a roupa em uma cena de sexo, não interessa se a roupa é da moda, interessa se a roupa sai bem do corpo em três gestos. É outra outra lógica, e tem que ser estudada para cada item. Tem que ser estudada junto, inclusive, com o fotógrafo e o cenário. Tem que ter esse estudo preliminar, porque tudo pode mudar com a luz. Esse é o aprendizado da imagem. A moda, que é fascinante, procura outras coisas. A pessoa que é esperta na moda olha para quem está na rua, para quem ainda não entendeu o que está vestindo.

Você aproveita muito o bairro? Qual é a sua relação com Santa Teresa?
Eu aproveito o bairro, mas aprendi a gostar muito do Cosme Velho, de Laranjeiras. Acho um bairro interessante. Vou muito ao cinema. Eu gosto do bairro mesmo ele não estando um show. Mas eu uso e gosto.

Sua mãe chegou a morar aqui antes de você?
Nós moramos com minha mãe quando meus pais se separaram. Eu tinha uns 14, 15 anos. Minha mãe voltou para a casa dos pais com os filhos. Mas doida para sair, ir à festa e arrumar outro marido. O que ela fez rapidamente. Ficamos aqui um ano. Eu, minha irmã e meu irmão menor. Detestando, porque a gente morava em Copacabana, do lado do Arpoador. Éramos duas meninas da praia. Tínhamos namorados surfistas. Íamos e vínhamos. Vínhamos de uniforme do colégio direto para a praia. E paramos nesse lugar sem a menor possibilidade de sair daqui, porque a gente não dirigia. Com 15 anos você tem milhões de regras, de horários… Queria me matar. Eu e a Mônica, a gente sofreu, viu? Ficamos um ano até que minha mãe arrumou outro marido, que nos carregou a todos para Copacabana de novo… E a gente: “ah, qualquer um serve, contanto que seja para sair daqui”. E aí acabei voltando mais tarde.

Então a casa passou da sua vó para você?
Exato. Ninguém da minha família gosta. Engraçado, né? Mas eu gosto. Quer dizer, não que eu não goste de ir a Ipanema, mas gosto de ir e de voltar. Por exemplo, só consigo comprar livro na Livraria da Travessa, em Ipanema. Então eu saio daqui, pego um carro para ir à livraria em plena Visconde de Pirajá, me delicio de estar lá naquela esquina, naquela livraria, de comprar os livros, de sentar para tomar um vinho, de olhar o livro, de curtir. Então, para mim, Ipanema é aquilo.


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Para todos os mares

A artista Gabriela Machado apresenta a sua mais recente exposição, na galeria Anita Schwartz, no Rio de Janeiro

Nesta exposição, tentei criar, na sala grande, que é onde os trabalhos podem ter uma escala pública pela própria dimensão do local, uma relação entre os trabalhos pequenos e os grandes. Criei uma narrativa entre essa composição em que os trabalhos pequenos caem num lugar de mesmo valor, apesar da dimensão diferente, das escalas diferentes. Pelas escalas distintas, tentei trabalhar justamente esse olhar do espectador: ele teria uma leitura da pintura grande através da projeção do seu próprio corpo, e dos pequenos, num tempo em que a percepção precisa ser mais aguçada, precisa de mais tempo para a observação e o entendimento. Ao colocar todos juntos, potencializei os trabalhos dentro do mesmo tempo de visão para o espectador. Consegui fazer isso através não só da pintura, mas também dos materiais que fui agregando à obra.

Percebi que, quando colocava os trabalhos grandes perto das pinturas pequeninhas, estas pediam uma luz e uma expansão. Comecei a criar esta exposição através de uns materiais de tecido de papel que se usa na época do Carnaval. Como eu sou muito ligada ao Carnaval, durante esse período eu vou para a rua e deixo o acontecimento aparecer na minha frente. Essa coisa de ir tocar sem saber direito onde, deixando as surpresas acontecerem. Tenho muito essa relação com meu próprio trabalho. Eu deixo o trabalho vir e me mostrar o que tem que ser. Deixo ele andar por ele mesmo.


Nesse universo do Carnaval, pude achar materiais que trouxessem um brilho e que pudessem acentuar e potencializar as pequenas pinturas. Então, criei molduras que têm essa cor cítrica, brilho, furta-cores, e resultam nessa mistura de olhar. São papéis brilhantes, que confundem o olhar, especialmente quando colocados juntos à uma pintura tradicional, a óleo, que normalmente tem paisagem e contém o peso da História.

A exposição Para todos os mares é dedicada aos mares, porque venho fazendo residências artísticas em países diferentes, mas sempre relacionada com o mar. Esses materiais se agregaram a essas pinturas formando um novo trabalho, um novo ateliê. Meu ateliê, que era de pintura, passou a ser um ateliê de costura e colagem, porque fiquei com as pinturas e todos esses materiais espalhados aqui dentro e pude criar uma disciplina de entender essa estamparia riquíssima que temos no Brasil durante o Carnaval. Trabalhar com a composição dessas estampas foi um jogo de fazer, de potencializar o plano pictórico bidimensional e entregar novas formas de olhar para as pinturas.

Nesta exposição, temos dois espaços: o grande, que seria a nave central da Galeria, com o pé direito alto, em que potencializei as pinturas grandes junto com as pequenas; e o segundo andar, onde apresento somente as pequenas. Construí uma narrativa, uma conversa entre elas, sem colocá-las de forma linear, na mesma altura do olho, mas deslocando-as para que se possa criar um novo olhar ao entrar na sala.

Minha próxima exposição será na galeria 3 + 1, em Lisboa. Lá, vou repetir o processo, levar algum material daqui, as molduras expandidas, e procurar material característico de lá, como tecidos e papéis. Ainda não sei no que irá resultar, mas quero criar essa conversa com os materiais que estarão disponíveis. Atualmente, me interesso muito em fazer os trabalhos nos lugares em que estou, porque me permite um entendimento daquele espaço, do que ele pode me dar. Minha pintura vem disso, do sentimento de estar em um lugar específico. Meu trabalho não vive de um projeto a priori, mas do momento. Esta exposição do Rio tem, em cada pintura, uma história, como se cada uma fosse um diário sobre a minha vida.

Meu trabalho se dá basicamente pela curiosidade das formas, e não pela cor. A cor acaba por cair no lugar que tem que cair. É um impulso pictórico, no qual eu começo fazer e, de repente, a pintura se dá a partir da consistência da tinta e da pincelada. Ela brota do fazer. 

O texto da exposição foi escrito pela poeta portuguesa Matilde Campillo. Conhecemos de perto a poética uma da outra, e ela sabe muito bem como é o Rio de Janeiro, suas ruas e seu cotidiano. Essas pequenas coisas que são da cidade e se tornam temas interessantes. O texto que ela fez ficou muito bonito, porque fala do estar na rua, desse estar aberto para a surpresa, que é você entrar no ônibus e, de repente, ver uma purpurina no chão, trazer essa purpurina para o seu olhar e incorporar no seu trabalho. 

Há um tempo, comecei a inserir a palavra dentro da minha pintura. Isso vem de O Livro do Cuco. Eu comecei a fazer esse trabalho porque tem um cuco no meu ateliê, e toda vez que ele toca, me predispus a escrever num caderno qualquer coisa que venha à cabeça. Pode ser a frase de uma música ou algo que seja fiel ao momento. Mas minhas pinturas começaram a ter escrita justamente porque um dia o cuco tocou e eu não tinha nada por perto para anotar, então escrevi na tela. Quando você chega na frente de uma pintura e ela tem uma frase escrita, você lê e, claro, percebe a pintura com essa frase na cabeça. Não tem como desassociar. A partir de então, a palavra passou ter importância central na minha poética.

O BRILHO SEGUNDO GABRIELA MACHADO

Por Matilde Campillo

Já é Março, e a cidade ainda está toda cheia de purpurina. Um de nós entra no ónibus e lá está ela, cintilante, marcando o lugar de uma mulher que há um mês se sentou ali fantasiada. Ou caminhamos um pouco na calçada, e na nossa frente alguém deixa ficar para trás uma pegada de brilho. Encostamos um ombro ao poste elétrico, esperando o sinal abrir, e quando finalmente chega a nossa vez de avançar na estrada, notamos uma mancha colorida que nos ficou na camisa. Estas coisas, já sabemos, ainda hão de acontecer por muitos meses. O Carnaval deixa um rastro fluorescente na cidade, difícil de apagar. E se existem aqueles que se esforçam por esfregar o fulgor colorido até que desbote, existem outros que fazem por ele permanecer. Gabriela Machado é desse grupo: através do seu trabalho, ela faz por recordar que o brilho ainda é a marca forte desta cidade.

O Carnaval é a grande festa pública. Traz para a rua o circo, a canção, a máscara e a liberdade. Durante dias a fio, mulheres e homens desfilam em comunhão, oferecendo a cada passo banal o ritmo da dança. Até na hora de pedir um café o folião agita um pouco o pé, ou a cabeça, quem sabe até só os olhinhos. Dentro da máscara – mesmo que a máscara nalguns dias seja só um risco amarelo no rosto – alguma coisa visceral e livre se sacode sem parar. Não importa se aquele que veste a fantasia é alto ou baixo, gordo ou magro, se tem o cabelo escuro ou claro, nem sequer importa a língua que fala ou o lugar de onde vem: dentro do círculo carnavalesco que ocupa a cidade durante um par de semanas, cada um é aquilo que deseja ser. E do centro de si brota, girando, uma bola de fogo. Cada uma das pinturas de Gabriela expostas nas paredes desta sala traz para a tela esse clarão. Repare: tal como acontece com as pessoas que passeiam pela cidade inteira nos dias da folia, há nesta exposição trabalhos de corpo maior e trabalhos de corpo menor. Algumas telas parecem ocupar o nosso olho inteiro, outras se alojam com aparente cuidado num canto mínimo de nossa retina. Mas, como sucede com todas as coisas vivas que brilham, de nenhuma delas conseguimos afastar o olhar. E olhando-as, seja lá em que mês for, regressa ao nosso corpo aquele agitar de pé ou de cabeça, um que nos recorda de nosso ritmo natural. Nada disso é por acaso.

Quem conhece a Gabriela sabe que o seu é um trabalho feito em cima da verdade, e um para o qual ela transporta a própria vida. O pandeiro que ela toca reverbera na pintura. O mar que ela atravessa, seja nadando ou equilibrada sobre a prancha, salpica de água salgada os pigmentos. E do asfalto das cidades sobre as quais ela caminha sobra sempre alguma pedra de gravilha que se mistura na penugem de seu pincel. A esse aparente trabalho do acaso alia-se ainda a constante busca de Gabriela pelos materiais certos que, como não poderia deixar de ser, são muitas vezes os mais vulgares. A vida é vulgar, e é por isso que ela brilha tanto. Então a artista vagueia pelos mercados à procura dos papéis mais fluorescentes, mais sonoros, muitas vezes até melodiosos, e embrulha neles a pintura. Consegue assim fazer com cada um dos seus trabalhos um reflexo muito puro daquilo que é mais humano: envolvendo o tesouro, está quase sempre o banal. Veja-se, por exemplo, aquela pinturinha com um mar estrondoso e sereno ao centro – delineando-o, um papel de todas as cores grita a alegria. Veja-se um outro jarro de flores, quieto e abandonado sobre um fundo amarelo – em volta dele, a cor laranja toda viva. Ou uma concha, cheia de movimento e ao mesmo tempo suspensa – emoldurando-a estão dois tipos de papéis brilhantes, e eles cantam o Carnaval na beira do mar. Há ainda aquela montanha noturna, uma de minhas preferidas, pintada dentro de uma forma oval e aparentemente fechada – a envolvê-la estão dezenas de salpicos de tinta rosa-choque. A chuva de cor que embrulha a paisagem está ali para lembrar-nos que ao fim da noite escura está sempre um fogo de artifício, mesmo que silencioso. E que a solidão não é, não pode ser, o constante sinónimo da melancolia.

No Carnaval, para além da música que toca nas ruas noite e dia, e para além dos fatos coloridos que esvoaçam por todos os lados, há cartazes sendo levantados a toda hora. Os foliões seguem o bloco, e carregam nas mãos as frases curtas, que na maioria das vezes incitam à alegria. Frases do tipo “Vem com a Gente”, “A Rua é Nossa”, ou até “Casa Comigo” avançam na cidade desfiando palavras pela rua. É a linguagem se expandindo, e dançando com os corpos. Gabriela Machado, nas suas pinturas, transporta esse mesmo movimento verbal para a tela. E, da mesma forma, faz com que ele avance. São sussurros, às vezes. Aparentes gritos, outras vezes. Chegam até a ser apenas inquietações, porque mesmo alguém que dança se inquieta de vez em quando. Numa pintura muito serena, feita de um sol ao centro, a frase aquele que sabe o que é meu surge ali como um afago no tempo. Numa outra, de um azul celestial, aparece de repente isto: foi ontem que eu vi. Quem observa, vê também. Não ontem, quando o Carnaval ainda estava nas ruas, mas hoje, em qualquer hoje do ano. Que, se suceder num dia em que você se depare frente a frente com uma pintura de Gabriela Machado, cai num dia de Carnaval de qualquer jeito. Feito de brilho e de canção, feito do rasto cintilante que atravessa as coisas a toda a hora.

 

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O Sertão dentro da gente

Após cinco anos em processo de preparação, o bailarino Diogo Granato conta a experiência de adaptar a obra de Guimarães Rosa para o palco, junto ao grupo de improviso cênico Silenciosas.

Fotos de Carol Quintanilla
Por Diogo Granato*

“Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições.”

Estórias são mais pessoais que histórias, eu acho. Não? Desde o começo de nossa pesquisa, há cinco anos, exploramos a mistura de ficção e depoimento pessoal no livro Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa, sobre o qual nos debruçamos para criar o espetáculo Nosso Primeiras Estórias. Você é que não me conhece. Diogo, do grupo de improviso cênico Silenciosas… Para contar o livro, nos apropriamos dele, misturamos suas estórias às nossas; o abandono paterno em busca de uma impossível Terceira Margem espelhado pela partida de um Audaz Navegante, espelhado por nossos abandonos paternos, e, quem sabe, espelhando a estória de Guimarães Rosa?

Esse grupo, Silenciosas, mistura dança, teatro, literatura e música, mas o mais importante é que se mistura. Seria muito pretensioso tentar traduzir uma obra do Rosa, e um exercício de fracasso. Arte não se traduz, mas pode inspirar muito, muito. Nesse livro, sentimos o universo de Guimarães começando a desmoronar, seja porque estão construindo uma cidade em seu coração, seja por uma palavra nova que mostra a necessidade de aposentadoria de um jagunço, um trem que leva embora as loucas da cidade, um dono de fazenda que queima sua casa e distribui suas terras, e tudo começa a virar lembrança. A memória já não está tão boa, não? 

Uma coisa era certa, precisávamos nos desmoronar um pouco também.

Fixemo-nos no concreto. Começamos uma série de experimentos. Imagine! Foram anos. Colocávamos o Sertão dentro da gente, e a gente dentro do Sertão. O corpo precisava estar memória, precisava xurugar, precisava estar Cerrado, vivo, Dagobé, Brejeirinha, Nhinhinha. Desmoronávamos. Experimentamos dançar nossos abandonos e nossas mortes, nossas despedidas e alegrias, e nos aprofundamos em cada uma das estórias, na mais buscante análise. Nos dois primeiros anos, reservamos um mês para cada conto, um mês para incorporar as estórias, as personagens, as emoções e incluir nós mesmos naquelas estórias. Ninhinha deseja uma pamonhinha de goiabada, e, nem bem meia hora, chegou uma dona, no conto e na nossa sala de ensaio! Sim, uma senhora, que nunca tinha vindo antes, chegou para vender goiabinhas durante o mês de estudo do conto “A menina de lá”. Milagre? Eu continuo cético, e você? 

Eu aprendi a dançar o moço, a moça, o amor, a safadeza, a morte, a fatalidade. Todos do grupo aprenderam, mas não era o mesmo Doutor Perdigão, nem a mesma Mula-Marmela; cada um dançou o seu, contou a sua estória de um cavalo que bebia cerveja, fez a sua subida na palmeira, perseguiu a sua vaca e encontrou o seu amor. Posso explicar para você, depois de cinco anos misturado a tudo isso? Minha objetividade sobre o método ou métodos de que me vali não existe mais. O que estamos fazendo, todos, de uma vez, é contar a nossa estória inventada. O Nosso Primeiras Estórias. O Silenciosas é um grupo de improviso cênico, que vive entre a ficção e o depoimento pessoal, ou, como eu gosto de chamar: na ficção pessoal. Assim entramos no universo de Guimarães, com o máximo respeito por sua obra, e, exatamente por isso, nos misturamos; a gente junto, juntos. Assim como Zé Boné, encenamos nossa estória inventada, e não paramos de encenar e pesquisar nunca. É a nossa vida, é quem somos. Sim?  


*Diogo Granato é bailarino e coreógrafo. Diretor do grupo de improviso cênico Silenciosas, que ficou em cartaz com o espetáculo online Nosso Primeiras Estórias durante a pandemia. Criador e intérprete de solos de dança-teatro como Seis Sentidos?, Sketchbook e Aretha, que lhe rendeu um APCA de melhor intérprete. É intérprete-criador da premiada Cia Nova Dança 4 e membro do Le Parkour Brasil.

Sexo e gênero: qual a diferença?

Embora todo mundo utilize os termos “sexo” e “gênero” como semelhantes, eles têm significados bastante diferentes. Na verdade, eles não concordam necessariamente.

O gênero é baseado em normas aceitas culturalmente – atitudes ou comportamentos que são tipicamente atribuídos a homens ou mulheres. Já a identidade do gênero tem a ver com o senso interior de quem nós somos. As pessoas expressam seu gênero, geralmente, por meio da forma como se vestem ou se comportam.

O sexo é determinado na concepção, pelos genes que cada um de nós herda do nosso pai e da nossa mãe. Ele é visível desde o momento da gravidez.

Os cromossomos detêm o sexo. Eles são as pequenas peças do DNA que falam para as nossas células o que fazer. O ser humano tem 23 pares de cromossomos. Um desses pares contém os cromossomos do sexo. Eles chegam de duas formas: X e Y. As mulheres têm dois X. Então, quando elas partilham a metade de seu par com o feto, o cromossomo que oferecem é sempre o X. Os homens, por sua vez, têm cromossomos X e Y. Então, se o pai partilhar o cromossomo X com a criança, será uma menina (XX); se partilhar o cromossomo Y, será um menino (XY). Ou pelo menos esse é o caso mais usual.

Ainda em relação ao sexo, investigadores compreenderam que a biologia pode ser mais complexa que apenas afirmar que é um “menino” ou uma “menina”. Por exemplo, algumas pessoas detêm dois cromossomos X misturados com fragmentos de cromossomo Y. Essas pessoas se desenvolvem com um aspecto masculino, embora a presença dos dois cromossomos X signifique que são fêmeas biologicamente.

Isso fica ainda mais complexo quando a identidade do gênero entra em consideração. Para mais de 99% da população mundial, a identidade do gênero e o sexo biológico estão em consonância. Essas pessoas são denominadas de cisgênero (o prefixo em latim, cis-, significa “do mesmo lado”). No entanto, uma pequena amostra da população experiencia uma incompatibilidade entre sexo e gênero. Algumas dessas pessoas crescem sentindo que não têm o gênero com o qual o resto do mundo as identifica (inclusive seus familiares e médicos). Essa experiência se chama transgênero – termo distinto da orientação sexual, independentemente de a pessoa sentir atração por machos ou fêmeas.

Os transgêneros podem, estranhamente, parecer machos ou fêmeas, mas, por razões que ainda não são claras, eles se sentem do sexo oposto. Alguns podem mesmo sentir que são dos dois gêneros.

Durante a gravidez, fatores genéticos influenciam o desenvolvimento do embrião à medida que ele se torna um feto. Uma pessoa XX (menina) desenvolve, usualmente, os ovários. Uma pessoa XY (menino) desenvolve os testículos. Nos indivíduos com cromossomos XY, existe um gene no braço do cromossomo Y chamado SRY. Esse gene assinala o desenvolvimento dos testículos. Quando o SRY não está presente, os ovários se desenvolvem, e assim surge a anatomia feminina. Se os testículos se desenvolvem, eles irão produzir um hormônio masculino chamado testosterona. Esse hormônio instrui o corpo a desenvolver os genitais masculinos. Ele também dita o desenvolvimento de ossos maiores, uma estrutura do cérebro única dos homens, entre outras características físicas.

A biologia básica por trás de como os cromossomos e os genes ditam a anatomia masculina ou feminina do corpo humano é há muito conhecida. Mas os investigadores continuam pesquisando sobre a complexidade da determinação do sexo humano e ainda estão distantes de saber o que determina realmente o gênero.

“Até que eu saiba, nenhum estudo foi conclusivo sobre de onde a nossa identidade sexual vem” – diz Kristina Olson, da Universidade de Washington em Seattle.

Como psicóloga de desenvolvimento, Olson estuda como as pessoas se desenvolvem e mudam à medida que crescem, da infância ao estado adulto. Algumas pessoas especularam que os genes, o ambiente ou o nível de hormônios podem desempenhar um papel importante na determinação do gênero. Olson, por sua vez, fala: “Eu não conheço nenhum estudo que mostre um ou outro, ou a combinação de hormônios que determina o gênero”.

Por muitos anos, cuidadosos observadores identificaram que crianças em fase inicial começam a expressar fortemente sua preferência por determinados brinquedos, cores e roupas. No mesmo momento, as crianças começam a expressar sua identidade de gênero.

“O que nós sabemos sobre o desenvolvimento típico do gênero é que crianças de 2 ou 3 anos sabem se são meninas ou meninos”, diz Olson.

Na mesma idade, muitas crianças transgênero irão também expressar sua identidade. Porém, nesses casos, será diferente do esperado. Olson fala: “A maioria das pessoas acha chocante que uma criança transgênero possa saber que é de um determinado gênero tão cedo.” No estudo de Olson, fica claro que a identidade de gênero aparece na mesma idade para crianças transgênero e cisgênero.

Trabalho de Adriana Varejão

Minha ideia sobre o Feminino é muito pessoal e delicada, pois faz parte da minha vivência como mulher. Ainda que não tenha nascido mulher, me tornei mulher.

Tenho certo cuidado em não contextualizar de forma errônea o campo lexical da palavra Feminino: feminismo, feminilidade, feminicídio, feromônio, e por aí vai…

Como a maioria das mulheres trans, a tendência ao feminino e o descobrimento do universo feminino são fortes desde criança e marcados por ações positivas e negativas. Sempre sonhei em ser mulher, em viver como mulher. Hoje, sou realizada em um mundo que ainda não vê isso com bons olhos. Mas vivo, e agradeço a Deus por ter conquistado meu lugar ao sol.

Acredito que, sendo uma professora com 23 anos de magistério, só tenho a contribuir, valorizando o universo feminino, que aos poucos vem ganhando um espaço merecido – e tomara que melhore.

Para muita gente, hoje em dia, o universo do feminino não se limita apenas a mulheres heterossexuais. Vejo, já por algum tempo, homens héteros femininos, lésbicas femininas, gays andróginos, travestis e trans. Sinto na pele a dor e a delícia de ser o que é uma trans – sim, uma trans feminina, que adoro ser no meu dia a dia.

Feminino, para alguns, ainda remete ao sexo frágil. Não no meu caso. Para ser quem sou, batalho todo dia, para mostrar que estereótipos negativos são de pessoas de pensamento fraco. Biologicamente, não tenho cromossomos XX, mas, na prática, meu modo de ser mostra o quanto sou feminina.

Adoro ver o lado feminino do ser; todo mundo tem um lado feminino. O melhor de tudo é quando você faz uso da feminilidade, e, quando o resultado dá certo, fico em êxtase. Tão em voga atualmente, o feminismo segue sempre lutando pelos direitos das mulheres e sendo interpretado de várias maneiras.

Particularmente, sou mais o feromônio, usado tantas vezes, de várias formas. A minha fica nos cinco sentidos, literalmente: tato, audição, visão, paladar e olfato. O melhor jargão ou frase de impacto para resumir minha vida: “Aceita que dói menos”.

As pessoas tendem a descrever materiais flexíveis e facilmente transformáveis como o plásticos. A maioria desses materiais é feita de polímeros, geralmente criados a partir de combustíveis fósseis. Mas até mesmo comportamentos podem ser flexíveis e mutáveis. Nesse sentido, eles também podem ser considerados plásticos.

Paul Vasey trabalha na Universidade de Lethbridge, em Alberta, no Canadá. Como psicólogo comparativo, ele estuda os comportamentos dos animais, e percebeu que, em termos de sexo biológico, estes geralmente não são rígidos ou imutáveis. Alguns comportamentos parecem ser plásticos.

Ao fazer comparações entre as espécies, é importante levar em consideração algumas diferenças importantes, Vasey observa. Por exemplo: “Quando você tem uma identidade, você precisa ter um conceito de si mesmo”. Na verdade, a identidade e o gênero estão intimamente conectados nas pessoas. Pode ser quase impossível desligar um do outro.

Porém, com exceção talvez dos grandes primatas, diz Vasey, há muito pouca evidência de um conceito de “si mesmo” nos animais. Isso significa que eles não sabem que estão agindo como machos ou fêmeas. Eles simplesmente manifestam seus comportamentos típicos – e às vezes não típicos – do sexo ao qual pertencem. Apesar disso, há muitos exemplos de condições de intersexualidade no reino animal. Esses sinais de ambos os sexos podem aparecer tanto nos comportamentos como nos traços físicos.

Por exemplo, o livro Biological Exuberance, de 1999, aponta que mais de 50 espécies de peixes de recifes são capazes de inverter seu órgão sexual (ovários que produzem óvulos e testículos que produzem espermatozoides). Isso se chama transexualidade. Ela pode afetar bodiões, garoupas, peixes-papagaio, peixes-anjo e outros. Os peixes que começam a vida como fêmeas, com ovários em pleno funcionamento, podem sofrer uma mudança radical e, voilà, passam a ter um sistema reprodutor masculino. Mesmo com a mudança de sexo, os machos e as fêmeas continuam capazes de se reproduzir.

Diversos tipos de aves, como parulídeos e avestruzes, também podem exibir um mosaico de características masculinas e femininas. As cores, a plumagem, o canto e outras características de um sexo podem aparecer em membros do sexo oposto.

Pesquisadores já documentaram condições de intersexualidade em ursos pardos, negros e polares. Em certas populações, uma pequena percentagem de fêmeas tem genitálias que se assemelham às masculinas. Algumas delas têm filhotes, apesar de parecerem machos. A intersexualidade também apareceu em babuínos, cervos, alces, búfalos e cangurus. Ninguém sabe bem por que, mas, ao menos em alguns casos, poluentes na água – como pesticidas – criaram condições claramente anormais. Por exemplo, biólogos encontraram óvulos nos testículos de alguns jacarés e peixes machos que haviam sido expostos a certos pesticidas.

O que são disruptores endócrinos?

Em alguns experimentos, a exposição a pesticidas chegou a transformar sapos geneticamente machos no que pareciam ser fêmeas. Estas eram capazes de ter uma ninhada saudável – embora sempre composta só por machos (como eram ambos seus pais originalmente). Em outros casos, condições de intersexualidade surgiram em cenários completamente naturais.

Talvez um dos melhores exemplos da plasticidade sexual venha de um novo estudo sobre rãs europeias. Uma única espécie – Rana temporaria – vive nas florestas entre a Espanha e a Noruega. Uma quantidade aproximadamente igual de machos e fêmeas se desenvolve a partir dos girinos na “raça” norte. Porém, na região sul, outra raça dessa espécie somente gera fêmeas. Todas têm ovários, o órgão que produz os óvulos, mas nem todas permanecem fêmeas. Cerca de metade dessas rãs eventualmente perde seus ovários e desenvolve testículos, tornando-se machos também capazes de se reproduzir.

A raça que inicialmente tem ovários depende de estímulos ambientais para desencadear sua mudança de fêmea para macho. Pesquisadores registraram essas diferenças nas rãs na edição de 7 de maio de 2008 do periódico Proceedings of the Royal Society B.