Diretamente da capital mexicana, onde ministra a cátedra José Saramago, na Universidade Autônoma da Cidade do México, o poeta e professor Horácio Costa nos apresenta três poemas inéditos, exclusivos para a edição Barroco da Amarello.

COMPLEXO DE WUNDERKIND

Deixe a vida me levar, disse
Zeca Pagodinho, ou terá dito: levar eu,
é a mesma coisa pois, a mesma
entrega ou certo providencialismo
e se o for, ora, há um extrato bem
católico e mesmo cristão: que nos
leve a torrente bem lavados pela
encosta do monte, Alpes ou vulcão:
que de água se trate ou lava
do momento, que venga el toro,
a vida, que recusa não-aceitações
ou parciais muxoxos: só vale
se for entrega, se não se exigir
recibo, assim é que ela gosta?

Sim: esta a resposta. Se houver êxtase,
melhor, se demasia, ainda +.
Este o princípio dos dervixes
que giram como os planetas, sempre
tão comportados em suas previsíveis
moções que significam o tempo e
conversam com a viagem da luz.

Quem entende esta mecânica básica,
não nos importe a idade, é Wunderkind,
menino, menina ou menine
prodígio ou mozartiano inventor
de musicais harmonias: observe-se
o seu piruetar frente ao teclado
e a dança do rabicho de seus cabelos
presos com uma fita de veludo carmim:
músico ou Pan? Enquanto nos fascina
séculos afora.

Mas que tal condição não se alicerce
em hábito ou indisciplina contumaz:
sem o senso do risco que se toma,
torna-se a entrega à vida mero
Complexo de Wunderkind. Pagar-se
é possível, é do arbítrio de cada
quem e válido a cada hora, mas
nesse caso normalmente o preço
é da criança a morte.

Cidade do México, 16 X 21

LE SOIN DE SOI-MÊME 

O corpo foi inventado no século XVII 
quando deixou de pertencer a Deus. 
O corpo não apenas tem 400 anos: 
é criança, engatinha, conversa consigo 
tatibitate, repete fluxos e frases 
até desinventá-los, e reage: 
o corpo lava-se e lava a alma, 
exulta e sofre, e à erosão programática 
do real filho de Deus: o Estado. 

E pensa que pode ser mais ele mesmo 
se antes que à sua servidão cuidar de si: 
tais as armadilhas da história e da fé 
cega faca amolada: inverter os botões: 
se o avesso é fora tudo mudará, se eu 
propuser, o delírio se retroalimenta 
como um cão que a si se persegue 
em círculos, e pára quando exausto 
não se reconhece no espelho e late. 

Autômato de si, por irromper apenas 
pensa o corpo poder não esperar. 
Fora do tempo: enxuto como se 
não lhe molhasse a água ou a noite 
se detivesse ou o dia ou a hora. 
Lava a cara, menina suja, mantém 
colada no palato a hóstia, trabalha 
e fala, fala e trabalha. Não há vida 
fora dele, mas história há e sempre. 

CDMX 27 X 21

CUM DEDERIT DILECTIS SUIS SOMNUM

Pois ele dá aos seus diletos o sono
e mais do que isto: também o gosto
por escrever poemas aos borbotões
e com títulos em línguas estrangeiras

assim como uma frase que soe em latim
só que contrária ao engomado semissolene
de uma missa idem; o sono a todos, mas xi,
não o ventre: só às diletas, ça fait bien

une différence. Mas e eu com isso de frutos
semissagrados? Metanarrativas com as quais
faço eu fazemos nós o que quisermos,
inclusive desenvolver a proclividade

de escrever de poliamor homossexual
em textos experimentais como o presente,
onde se adaptam as ditas Escrituras a uma pauta
a elas posterior e de realidades cotidianas:

quando a palavra do Senhor e a minha
disputam em cabecinhas retroformatadas
o programa da poliescritura que não dispensa
nem necessita das irmãs gêmeas hermenêutica

e patrística para uma leitura econômica:
direta ao agora, no qual entreteça-se
o texto herdado e o por herdar-se.
Afinal, por que pensar o amor sempre

como concessão e não conquista? Se
dileto sou e formos, o sono dá-me
Senhor, mas não para dormir o seu
sonho, e daqui para a frente o nosso.

CDMX 30 X 21

No início do mês de novembro, aconteceu a estreia do Escuta. O projeto foi idealizado pelo Instituto de Apoio à Orquestra Sinfônica do Paraná e consiste em um ambiente online de entrevistas com diversos profissionais do setor artístico e cultural do Brasil, trazendo a música como eixo principal. A primeira temporada foi gravada na Pinacoteca de São Paulo e contou com a participação de Rita Von Hunty, Jessé Souza, Ivan Vilela e Rodrigo Pederneiras. A segunda temporada foi gravada na Sala São Paulo e participaram Joice Berth, Arthur Nestrovski, Fernanda Pitta e Zé Ibarra.

Projeto Escuta e Francisco Bley recebem Rita Von Hunty em seu primeiro episódio

Duas das entrevistas da primeira temporada já foram lançadas: Rita von Hunty estreou a página do Escuta discutindo diferentes noções de cultura e o papel atual das artes na sociedade. O vídeo foi lançado em conjunto com o Tempero Drag, canal da professora no Youtube. A segunda entrevista, com o compositor, violeiro e professor na Universidade de São Paulo, Ivan Vilela debateu ideias importantes sobre música regional, o movimento do Clube da Esquina e o neoliberalismo na indústria musical.

A partir do olhar plural de diferentes artistas, produtores culturais, curadores e educadores, o Escuta busca ampliar as audições sobre onde reside a relevância do fazer artístico no atual contexto brasileiro. A potência do projeto também está na reunião de distintos pontos de vista em relação à arte, congregando, por exemplo, desde a atuação da drag queen e arte-educadora Rita Von Hunty, até o diretor artístico da maior orquestra do Brasil, Arthur Nestrovski.

As entrevistas são conduzidas por Francisco Bley, diretor do IAOSP, instituição que tem como objetivo a democratização da música de concerto e o suporte às atividades do grupo orquestral de mais de 35 anos.

Em 1985, ano de criação da Sinfônica do Paraná, o setor cultural brasileiro ainda apostava com frequência na concepção de “corpos estáveis”. Estes seriam os projetos de longo prazo e de estrutura relativamente fixa que estariam vinculados aos grandes teatros do país. No caso do Teatro Guaíra, que abriga a OSP desde sua inauguração, o otimismo em relação à ideia de estabilidade foi também traduzido na criação de uma companhia de dança – o Balé Teatro Guaíra, criado em 1969. 

Dos anos 1980 até os dias de hoje, tornou-se compreensível, pouco a pouco, que a confiança na perpetuidade dos corpos estáveis poderia ser uma crença menos absoluta do que se pensava. No caso da OSP, que conta com uma média de 80 músicos no palco em cada apresentação, o passar dos anos trouxe ainda mais complexidade para o financiamento das atividades artísticas. Além disso, o tempo trouxe à tona a necessidade de ações concretas que mantivessem o público interessado nas apresentações do grupo.

Diretor artístico da OSESP, Arthur Nestrovski é um dos convidado da segunda temporada do Escuta

Em 2020, a pandemia trouxe questões ainda mais sensíveis para o universo das orquestras, e na Sinfônica do Paraná as ações precisaram migrar para o mundo digital. Foi nesse contexto de urgência sobre o repensar das rotas e dos propósitos que o Escuta foi criado. 

As entrevistas serão publicadas quinzenalmente às quartas-feiras, 20h, na página @_escuta, no Instagram. As próximas conversas, com o sociólogo Jessé Souza e o bailarino e coreógrafo Rodrigo Pederneiras, irão ao ar nos dias 01 e 15 de dezembro, respectivamente.

No último episódio, o Escuta recebeu o músico e pesquisador Ivan Vilela:

CulturaLiteratura

Machucado ou a necessidade do estrago

por Marina Lattuca

Quando tinha uns 7 anos tomei uma unhada da minha vó no lábio inferior. Ela quase chorou de dó e culpa. Eu fiquei meio assustada porque machucado causado por vó é praticamente um paradoxo. Vó normalmente cuida do machucado. Foi sem querer, eu sei. Depois, inclusive, achei o máximo. Aquele risco craquelado na boca me deixou com um ar de moleque, de vivida, de selvagem. E até hoje eu acho corte na boca bonito. Corte na sobrancelha também tem seu valor, mas na boca é outra coisa.

O mundo se divide entre as pessoas que idolatram os machucados e as que odeiam os queloides. Eu sempre tive um fraco pelos machucados. No meu corpo de menina, aquilo me dava um ar de corrompida. Desleixada. E eu queria aquilo pra mim.

O corpo apagado, dizem, é o que torna a mulher bonita. O corpo com as marcas apagadas, as gorduras desaparecidas, as rugas esmaecidas e as estrias cobertas. Mas quando criança era o contrário. Eu queria as marcas. Especificamente as marcas masculinas. Da violência, da guerra, da batalha e do conflito. Como se, testemunhando os perigos que enfrentei, elas servissem de alerta aos mal-intencionados que buscavam me amedrontar. No interior da Bahia, na praia, os moleques pulavam por cima desse corpo deitado de marca-menina. Como em equitação de primeira, eles montavam seus cavalos fálicos e corriam com raiva freando os pés só quando já estavam a um centímetro das nossas carnes. Depois continuavam com impulso tropeçando e rindo. A minha irmã me fitava com os olhos distraídos, como quem diz: “deixa pra lá, vai”. E eu levantava da minha condição de obstáculo-barreira e queria montar no cavalo. Gritava, com uma vergonha horrível de estar com os peitos cobertos apenas pelo biquíni ridículo. Xingava com palavras sujas e os meninos, que riam, montavam no cavalo pra recomeçar o circuito.

CulturaLiteratura

Criança ou quando a água do tobogã acaba

por Marina Lattuca

Tínhamos ido passar um final de semana no parque aquático de Caldas Novas, em Goiás. Lá tem um dos maiores toboáguas do Brasil. E eu sabia que deveria testar essa maravilha da engenharia moderna com os meus próprios bracinhos e perninhas. O escorrega era daqueles hermeticamente fechados que parecem um canudo de milk-shake infinito. Dentro, há como se fosse uma espécie de corredeira d’água que faz as nossas coxinhas infantis não entalarem nas curvas do canudo de milkshake.

Aí a moça falou: pode ir, vai lá, garota. Eu entrei rápido num pulo para mostrar que coragem não me faltava, né. Fui escorregando naquele túnel eterno entre curvas e descidas quando, em determinado momento, eu paro. Fico pensando um pouco para entender se fiz algo de errado. Afinal aquele é realmente o maior toboágua do Brasil e se eu não consigo escorregar nele, devo ter pouca ou nenhuma aptidão para escorregar. Moça! Moça. Alguém? E ninguém parece estar interessado no mau funcionamento do maior tobogã nacional. Está escuro e quente dentro do túnel. Começo a ficar nervosinha e entendo que a água acabou. Vou me arrastando para baixo com dificuldade ao longo daquela minhoca oca de fibra sintética. Uso principalmente os cotovelos que vão queimando em atrito com a superfície e vou levantando a bunda todo o trajeto. As coxas e bunda cismam em ir entalando e freando o meu desespero de sair. Passo por curvas e mais curvas. Finalmente chego perto do pontinho de luz aquático que indica o fim do tobogã sem água, e o início da piscina com água. Me jogo do escorrega na piscina e caio com pouca graça. Vou correndo procurar meus pais, afinal, eles devem estar preocupados. Devo ter passado anos, séculos, dentro do maior tobogã do Brasil.

Avisto o chapéu da minha mãe de longe e saio correndo. Quando chego lá ela parece estar pouco preocupada com a minha aventura pouco lubrificada no tobogã. 

Cadê o Henrique?

Meu irmão mais novo sumiu.

Aí sim, eu fiquei desesperada. Meu maior medo sempre foi virar uma criança desaparecida. Minha mãe sempre fez esse terror comigo.

Se você ficar dançando aí longe dos seus pais pode virar uma criança desaparecida. Se você vai brincar onde eu não te enxergo, você pode desaparecer, ela me dizia.

Não sei exatamente o que é virar uma criança desaparecida, mas sei que tenho medo e que não quero participar desse grupo sombrio. E não saber para onde vão as crianças desaparecidas, o que comem, o que fazem e pior, porque desaparecem, me deixava sem dormir. Por que esses homens roubam as crianças? Sim, homens, porque certamente são. Se o Henrique virar uma criança desaparecida eu nunca vou saber as respostas para essas perguntas, pensei. E aí eu vou ter mais medo, porque eu vou ter conhecido uma criança desaparecida e, por isso, vou estar mais suscetível a ser uma criança que desaparece também.

O Henrique reapareceu, mas eu continuei com medo de desaparecer. Acho que quero crescer logo, sabe. Que aí, logo, logo não tem como ser mais criança desaparecida.

“Se a vida te der um limão, faça uma limonada.”

Esse foi o pensamento do imigrante Abdanur Elias ao montar a primeira lavanderia de Araxá, com o nome do país escolhido por ele. Os Elias, como eram conhecidos, fabricavam o sabão artesanal usado na Lavanderia Brasil e, a partir de 1947, começaram a vendê-lo para o Grande Hotel Barreiro, de Araxá, empreendimento inaugurado no governo do então presidente Getúlio Vargas, com direito ao paisagismo de ninguém menos que Burle Marx.

Bons árabes que eram, os Elias decidiram expandir os negócios, aproveitando, assim, a fama da lama negra. Para isso, deram voz à lenda de uma loira de sangue indígena que enfurecia as mulheres e encantava os homens no alto do Parnaíba. Dona Beja, espécie de folclore no imaginário popular, ganhou até nove- la, depois de mais de um século de sua morte. Segundo o mito, a manutenção de tanta beleza somente era possível pelo uso da lama negra.

Entre bairros, conjuntos habitacionais e favelas, o Conjunto de Favelas da Maré abriga o impressionante número de 16 comunidades locais. Somadas, os 140 mil habitantes que ali vivem formam uma cidade maior e mais diversa do que grande parte dos municípios brasileiros. Foi na Nova Holanda, uma de suas favelas, a poucas quadras da sede da organização não governamental Observatório de Favelas, que nasceu o Galpão Bela Maré. O espaço que antes servia de fábrica de embalagens deu lugar a um centro cultural capitaneado por inúmeros rostos, que fazem da arte, da educação e da cultura ferramentas de transformação potentes para combater a desigualdade e produzir novas narrativas sobre a relação da cidade com a periferia.

Travessia 3 | Foto de Gabi Carrera

Em 2021, o Galpão Bela Maré completa 10 anos de atividades artísticas e culturais. Como o projeto foi criado?

Isabela Souza da Silva – O Bela é um dos projetos do eixo de arte e território do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. O Observatório é uma organização que completa 20 anos esse ano. Foi fundada por um conjunto de pessoas majoritariamente de origem popular, que queriam pensar as questões da cidade e intervir a partir das demandas das favelas e das periferias. Nossa missão é produzir projetos, ações e programas que possam reduzir as desigualdades e fortalecer a democracia partindo dessa perspectiva. Tudo que a gente cria, independentemente do campo temático, da linguagem, do momento histórico em que estamos, em geral, todos os projetos respondem a essa missão. E a gente começou isso com projetos principalmente na área de educação e direitos humanos. Num dado momento, a partir do segundo, terceiro ano, avançamos para pensar a comunicação e as artes como caminhos para concretizar a redução das desigualdades – e aí eu me refiro a todas as desigualdades. A partir de um projeto dedicado às artes, podemos abrir vários guarda-chuvas de ação. Um deles, que desenvolvemos no Bela, é a disputa por outros sentidos de cidade. O que eu quero dizer é: tem uma disputa de narrativa quando se pensa a cidade e a posição das favelas em geral, apresentadas em uma narrativa hegemônica. Todos os nossos projetos apontam para outras possibilidades de nomear e dar sentidos à cidade. No Bela Maré, especificamente, eu acho que, quando a gente cria essa proposição de estruturar, junto com a Automatica Produtora, um galpão de artes visuais em uma das 16 favelas da Maré, com uma exposição como Travessias, o que estamos dizendo para a cidade é: a favela é lugar de arte. E da mesma arte que a sociedade está acostumada a ver nos museus e espaços culturais da cidade. Isso significa impactar diretamente a geografia da desigualdade do Rio de Janeiro. Trazer o Marcos Chaves para o Galpão, na inauguração, foi muito simbólico por esse motivo. Se esse artista, que está presente em outros territórios da arte que ninguém pode questionar, também está presente na favela, então criamos uma fissura na ideia de associar favela e periferia a local de pobreza, precariedade, falta de segurança e educação. Uma ação como essa desmobiliza o imaginário de que a favela é o espaço em que as coisas faltam, e de que essa falta afasta a favela de pertencer à cidade como um todo. Se a favela tivesse saneamento básico, seria cidade; se tivesse segurança pública, seria cidade. Ao mesmo tempo que essa é a nossa provocação, também temos uma leitura crítica dos projetos de formação que negam o direito à estética à população periférica. Eu não tenho nada contra as profissões que vou citar, mas é muito comum chegar, seja pela sociedade civil ou pelo Estado, o incentivo à formação de pedreiros, padeiros, manicures. Todas são profissões legítimas, mas a questão central da nossa crítica é que, quando as únicas formações que nos competem são essas, isso significa negar a essa população o direito de construir a própria história. A história do Bela Maré está muito atrelada ao nosso desejo de marcar favelas e periferias como territórios possíveis para a arte habitar, a fim de visibilizar pessoas, territórios e questões periféricas.  

Luiza Mello – Historicamente, a criação do Galpão se deu em 2010, quando conheci o Jailson [de Souza e Silva], que era um dos diretores do Observatório de Favelas, e a Eliana [Sousa Silva], que é diretora da Redes da Maré. Nessa época, o Observatório tinha acabado de alugar o Galpão, e era um espaço industrial, cheio de máquinas da antiga fábrica de embalagens que ali estava. A vontade deles era transformar o local em um projeto ligado às artes visuais. Estabelecemos essa relação e, quando apareceu uma oportunidade, que já estava sendo costurada pelo Observatório, de um patrocínio para a exposição Travessias, em 2011, levamos a parceria em frente. A ideia era que o Travessias fosse anual. No começo, o Galpão não abria o ano inteiro. No segundo ano, realizamos um projeto chamado Bela Labe, voltado à área de tecnologia, envolvendo filmagem com o celular, video mapping, etc. No terceiro ano, realizamos o Travessias 2, e aí, depois, no quarto ano, o Galpão já virou um ponto de cultura. Tinha pouca verba, mas o Observatório conseguiu manter a equipe para o Galpão ficar aberto mais tempo. Hoje, o Galpão está muito fortalecido e consolidado. Eu acho que o grande desafio é pensar a continuidade. Estamos apenas começando, mas é importante vislumbrar o projeto a longo prazo. No início, e isso é interessante, apesar de ser um espaço de artes visuais, não tinha ficado claro para as pessoas que elas poderiam ir lá ver a exposição. Era um lugar novo, então esses anos foram importantes para trabalhar a mobilização e a comunicação. Além do trabalho de comunicação, temos também o trabalho de mobilização, que está engajado em convidar cada vez mais pessoas para realmente irem ao Galpão. Teve um momento em que fizemos cartas, colocando o convite na casa das pessoas, para que se engajassem nessa visitação. Nesses dez anos, o Galpão se tornou um lugar central para muitos artistas, tanto jovens, periféricos, quanto os estabelecidos. Ele se tornou um espaço importante para a cidade

Sendo um dos principais aspectos do projeto, como se estrutura o programa educativo do Bela Maré?

Érika Lemos Pereira – Nós atuamos a partir de quatro eixos, que também se inserem nessa discussão de mobilização e articulação territorial. No final do ano passado, quando reorganizamos os eixos de atuação do Galpão, tivemos a mudança do Jean [Carlos Azuos] da coordenação do programa educativo para atuar como curador. E eu, que era educadora, passei a atuar como coordenadora do programa educativo, a partir de uma proposta de pensar a metodologia que desenvolvemos nesses 10 anos em núcleos de atuação. É muito comum, na ida a museus e centros culturais, você perceber a realização de visita mediada. Nós também temos isso dentro do Galpão Bela Maré, além de uma série de proposições que dizem respeito ao nosso DNA. Então, por exemplo, no núcleo de leitura temos três atividades. Uma delas é o Espaço de Leitura Indica, que permite desenvolver temáticas a partir do nosso acervo de mais de 4 mil livros, dedicado à cultura, arte, literatura e política. Com o Espaço de Leitura Convida, trazemos pessoas ligadas à literatura, escritores, pesquisadores, cartunistas e ilustradores, para falar um pouco sobre uma publicação ou um tema. No Espaço de Leitura Contação, que é uma das queridinhas das crianças do território, reunimos uma galerinha muito desejosa de escutar e de produzir suas próprias histórias. Temos algumas ações que escapam dos núcleos do programa educativo, que é o caso do Vou fazer arte, um projeto artístico pedagógico, com jovens do território da Maré e bairros adjacentes que estejam matriculados na escola. Eles têm a oportunidade de realizar um processo de sensibilização, experimentação e criação de uma exposição no Galpão Bela Maré, sempre a partir de uma temática apresentada. Em 2017, foi “arte e mídia”; em 2019, tivemos o “enfrentamento à violência”. Ou seja, nas mesmas paredes em que exibimos o Marcos Chaves e tantos outros artistas brasileiros, também exibimos jovens artistas, fazendo com que se sintam parte desse ambiente artístico. 

Isabela – Desde o Travessias 1, é premissa dos nossos projetos que parte significativa dos recursos captados garantam um Programa Educativo. Desde o início nos sentimos responsáveis por fazer dessa experimentação um processo pedagógico que pudesse formar esse território, formar esses públicos potenciais e efetivos do Galpão que surgia. E não formar no sentido de que a gente sabe que essas pessoas não sabem, mas de formar para construir junto com a gente. Como é que a arte pode mediar essas experiências educativas? Não é à toa que o Vou fazer arte se concretiza como um projeto tão exitoso, sem evasão de adolescentes. A gente está discutindo violência a partir de uma perspectiva territorial, com adolescentes, moradores de favelas e periferias, estudantes de escola pública, e ninguém sai, mesmo sem ter um centavo de bolsa. Isso é metodologia artística empregada no debate de questões fundamentais. 

Travessia 5 | Foto de Gabi Carrera

Como se articula o campo da produção cultural e das práticas curatoriais?

Jean Azuos – O lugar da curadoria tem sido uma atividade concebida a partir de práticas e das reflexões, porque é algo, ao mesmo tempo, muito novo e contundente para o Galpão. A curadoria passa por um exercício de refletir a história do espaço, que começa em 2011, com a presença de artistas de grande expressão. Não significa só habitar o Galpão, mas também um espaço que organiza o olhar para as linguagens artísticas. Temos uma programação muito ampla, combinada com o educativo, por vezes exercendo certo protagonismo como no Live Performance, na intervenção artística e na conversa com artistas, além da interlocução com outras instituições e da pesquisa destinada a entender como o Bela Maré pode se conectar de forma própria com o mundo da arte. Temos o entendimento de que somos um centro cultural onde as pessoas querem expor, com o qual as pessoas querem colaborar e atuar. Propomos essa perspectiva de que ouvir um Raul Mourão é tão importante quanto ouvir um Yhuri Cruz, e a partir disso experienciar como se dão essas conexões. Eu não lido com o inédito, mas com o fetal nos atravessamentos que compõem a nossa história e que têm nos consolidado como espaço artístico e de formação. Érika e eu temos uma reunião semanal para pensar as programações. Chegamos com algumas sugestões já estabelecidas e nos dividimos, posteriormente, para implementar o que foi pensado nesse encontro inicial. Como um curador que vem da área educativa, para mim é muito caro a curadoria estar atrelada aos pensamentos da educação e suas pedagogias. 

Quais são os momentos mais simbólicos do Bela Maré nesses 10 anos de atividade?

Luiza – Eu acho que dois momentos. Certamente o Travessias foi um momento muito especial para a gente, porque é o projeto que fundou o Galpão de uma certa forma. A gente começou o sonho nesse lugar do Travessias e conseguiu, desde então, fazer seis edições. E eu acho que a ELÃ, que é a Escola Livre de Artes, iniciada em 2019, também é um segundo marco muito importante, porque, falando da centralidade da educação no Galpão, é o momento em que criamos uma escola de arte, algo que era um desejo muito antigo de todo mundo dentro do projeto. Foi muito importante; é muito emocionante conseguir colocar em prática esses sonhos que a gente teve. Talvez um terceiro momento seja o fato de que o Galpão realmente está estabelecido e ele é uma referência para pessoas, artistas jovens, periféricos. É um lugar que as pessoas querem ir, para jovens, para jovens de escola, para crianças que frequentam o Galpão, porque é um lugar legal. Eu acho que esse é o grande objetivo, que o Galpão seja usado como lugar que recebe bem as pessoas. É um lugar que lida com muita afetividade. A gente fala isso: que é um lugar de afetos, tanto para a equipe quanto da equipe para as pessoas, para o público que frequenta, os artistas que fazem as coisas acontecerem. Na escola, a gente viu muito isso. A gente teve muitas inscrições, porque é um processo em que recebemos portfólios e selecionamos artistas para participarem com uma bolsa. No primeiro ano, tivemos 26 artistas; no segundo, 12 artistas. Os artistas comentam: “o Galpão Bela Maré é uma referência pra mim”, “eu adoro esse lugar”. Isso é algo fundamental. De modo mais filosófico, o mais importante é o fato de que o Galpão, como lugar importante para a cidade, está localizado na Maré. 

Como você enxerga os próximos 10 anos?

Luiza – Site em 10 línguas, vários andares para o Galpão! A gente tem uns sonhos meio malucos. Tem um desejo bem específico ligado ao espaço físico, porque é um galpão, e ele necessariamente precisa de melhorias, reformas. Deixar o espaço ainda mais confortável para mostrar os trabalhos e receber as pessoas. A gente tem muitas demandas nesse sentido. E a outra vontade é conseguir dar continuidade à programação, porque é muito difícil conseguir patrocínio, apesar de a Bela e o Observatório trabalharem maravilhosamente bem nesse sentido. Mesmo com pouco a gente faz muito. Acho que, nos próximos 10 anos, vamos continuar construindo. O sonho não é estar num lugar de destaque, mas continuar fazendo. Daqui a 10 anos, eu quero que a gente continue respondendo ao que acontece no dia a dia, respondendo ao nosso tempo, às demandas do Rio de Janeiro, do Brasil e do mundo. Quero que, de certa forma, a gente viva o Galpão de acordo com a cidade e de acordo com a necessidade dos artistas.

Existe uma continuidade dos artistas dentro do Galpão? Como se dá o desenvolvimento na Escola Livre de Artes?

Jean – Os processos que a gente nomeia na ELÃ, junto às pessoas artistas, são de uma residência formativa, no sentido de estar se formando, se conectando ou trocando com outras pessoas educadoras e os entremeios da arte. É muito nítido o quanto os artistas se aproximam da instituição e têm vontade – uma vontade explícita de estar e continuar, sendo agentes, sendo expositoras, sendo colaboradoras, construindo assim uma rede. 

Isabela – Num dado momento, em 2019, a gente avançou para a ideia de uma escola livre de artes para que pudéssemos sistematizar a formação de artistas. Se eu tivesse que definir o público principal dessa escola, hoje são artistas de origem popular da metrópole do Rio de Janeiro. Acho que esse foi um passo quase que natural dentro do amadurecimento desse espaço. Em um dado momento, depois de tantas coisas que a gente já tinha experimentado, a gente sentiu que era hora de sistematizar essa proposição de uma escola livre de arte que partisse dessa experiência que vinha sendo o Galpão Bela Maré como território da arte. Começamos a fazer editais. A metodologia é a partir de turmas temáticas. Na primeira turma, o grande tema era “O nome que a gente dá às coisas”, que era uma coisa pedagógica até para a gente mesmo, para entender o que é escola, o que é aluno, o que é arte, o que é artista, etc. Na segunda turma, a gente trabalhou “Masculinidades”. E essa metodologia é uma experiência. Em geral, a gente tem conseguido experimentar três meses de formação em arte para esses grupos. A parte central da metodologia é a presença da bolsa – uma bolsa artística é parte fundamental desse trabalho, como uma forma de trabalhar essa ideia de profissionalização mesmo, de criar um espaço de profissionalização e de valorização dessa experiência que é a arte para pessoas moradoras de favelas e periferias. Muitas vezes elas são obrigadas a trabalhar em outras coisas porque não conseguem viver efetivamente de arte. A ELÃ acabou consolidando um pouco um trabalho, que eu, de fato atribuo a figuras como o Jean no Galpão Bela Maré, que é onde a gente pode reunir esses artistas, esses jovens artistas, principalmente de favelas e periferias, que querem expor aqui, que querem entender como a gente trabalha, querem ocupar esse espaço e essa programação. Uma galera muito ansiosa de estar e habitar e de propor. Acho que esse percurso individual do Jean foi meio que acompanhando esse nosso percurso do Bela. Estamos cada vez mais aproximados de artistas favelados e periféricos da metrópole do Rio de Janeiro, criamos uma escola. Depois, em 2020, a gente toma essa decisão de abrir no nosso organograma esse lugar da curadoria. Em 2018, a gente fez inúmeras curadorias no Bela protagonizadas pelo Jean e por uma rede que essa equipe mobilizava.

Como funciona o processo de ingresso na Escola Livre de Artes?

Érika – O processo de ingresso na ELÃ é realizado por meio de edital. Desde o Bela Verão, que foi em 2018, o Galpão Bela Maré tem realizado uma série de editais como modo, de certa forma, de balizar o acesso a essa plataforma, o acesso a expor no Galpão. Os editais apresentam o conceito e a temática da turma, quais são as necessidades e como se inscrever. Então, a partir desse edital e de um formulário, todos os artistas têm acesso ao que é requerido – por exemplo, é importante para nós que sejam artistas em início de carreira, de 1 a 5 anos de prática, e até 30 anos de idade. Temos o desejo de falar com os jovens artistas. Em todos os nossos projetos, a gente busca ter o compromisso da diversidade etária, étnica, de gênero, de sexualidade e de território. Além da diversidade poética e do percurso individual dos artistas. Nós celebramos muito a ELÃ. Já no primeiro ano, recebemos cerca de 160 inscrições, ao longo de cerca de um mês. E no segundo ano, que seria 2020-2021, nós tivemos a abertura do edital no início da pandemia, naquele momento em que não se entendia se seria só uma quinzena, se seriam dois meses, que estava tudo muito em aberto. Interrompemos esse primeiro momento, e foram cerca de 70 inscrições. Depois, em um segundo momento, no início de 2021, recebemos mais cerca de 40 inscrições, inclusive de pessoas que reiteraram que tinham se inscrito na primeira parte do edital, se inscreveram na segunda e queriam muito participar dessa residência formativa. E isso, para nós, é fundamental. É muito importante ver que tudo aquilo que nós acreditamos, e que talvez 10 anos atrás fosse dado como utopia, que é ter um galpão de arte dentro da favela e a partir desse espaço mobilizar tanto a potência criativa, inventiva, mas também uma potência educativa, faz sentido não só para nós. Essa concretização é muito relevante. 

A pandemia levou vocês a explorarem outros formatos de interação e divulgação das atividades. Como funciona o Bela em Casa?

Érika – Toda essa experiência acumulada foi sistematizada no Segundo Caderno de Ações Educativas. Ele foi escrito coletivamente pela equipe do Galpão Bela Maré e tem, justamente, a pretensão de apresentar o que é o Bela em Casa e alguns desafios e algumas potências que nós encontramos no meio do caminho. Preciso ser muito sincera e dizer que, tendo dez anos de história, é muito confortável ter uma série de metodologias – então, para nós, ter, ao longo desses anos, as visitas mediadas, o Bela em Movimento, isso já sistematizado dentro da nossa programação, era um ponto de partida confortável. Porém, há porém: quando a gente fala de favela e dos direitos negados a pessoas faveladas, a gente precisa incluir também o acesso à internet. Então, é de fato um lugar onde estar atuando desde abril de 2020 é importante. O Bela em Casa, só em um ano, realizou mais de 102 atividades. Mas também é preciso entender que talvez a gente esteja falando com outros públicos, dado o alcance do digital. Como eu faço para que crianças que moram na rua do Galpão acessem aquela programação e as redes sociais? Provavelmente elas não acessam, quem está acessando é um outro público, uma outra rede. Basicamente, nós temos reuniões regulares. Toda quarta-feira nós paramos para discutir como será a programação do mês corrente e do mês subsequente do Bela em Casa. Nós temos investido nas nossas redes sociais, porque é onde temos um público já mobilizado, especialmente no Instagram. O Galpão tem o Cine Bela, que é o nosso cineclube, que regularmente oferece sessões e debate no espaço físico. Com a incidência da pandemia, a metodologia foi desmembrar a sessão em uma semana. Terça-feira nós lançamos uma playlist no YouTube com os filmes que irão compor aquela sessão – podem ser curtas, longas e até mesmo uma mistura entre curtas e longas –, e, na sexta-feira, nós realizamos uma live no nosso Instagram, com um convidado, para debater temáticas trazidas pela sessão. Então essa é uma experiência prática de como nós transformamos o Cine Bela presencial no Cine Bela online, através do Bela em Casa.

Nyl de Sousa – A pandemia levou toda a sociedade a mudar a forma de se comunicar, e no mesmo momento. A gente sempre teve um entendimento, que está na gênese do Observatório, de pensar a comunicação como uma ferramenta fundamental na construção de narrativa, e o Bela Maré também reflete isso. Quando a gente entende que não vai ter de fato a parte presencial, não vai ter a possibilidade, a viabilidade do encontro, levamos isso para a rede. O que eu destaco é que o Bela Maré passou de um espaço que entende as redes sociais como um meio de comunicação para informar as pessoas a irem ao Galpão, para ser uma espécie de produção de conteúdo. A gente passou a ter uma reunião semanal para a programação – antes da pandemia, eram reuniões mais pontuais, era algo para ir desdobrando, e nem todo mundo participava. Com o Bela em Casa surgiu essa necessidade de parar e pensar nas atividades no formato digital. Como que a gente vai fazer uma ação poética a partir das redes? Como que vamos mobilizar a partir das redes sociais? Então foi e segue sendo um desafio, hoje um pouco mais consolidado. Todos trouxeram alguma contribuição. Acho muito incrível como a gente conseguiu dar conta de as pessoas manterem o interesse em acompanhar o Galpão Bela Maré, e também aumentar o número de seguidores. E as mudanças em torno dos nossos canais nas redes. O YouTube era mais um lugar de contar o que aconteceu em um projeto, registrar uma exposição, e ele passou a ser um canal mais propositivo, por conta das lives. O Prosa com artistas acontece por lá. É um processo muito fluido, porque as redes sociais têm seus próprios interesses, são empresas, mecanismos que vão trazendo outras ferramentas e provocando para que o usuário as utilize. Numa época em que o Instagram começou com o Reels, estávamos fazendo a programação com a CriptoFunk, e lançamos um vídeo de dancinha, que é muito comum de ver no TikTok. Mas isso saiu nas nossas redes a partir de toda uma construção. Eu acho muito legal como tem se aproveitado o digital como espaço de performance, como espaço de encontro para falar sobre um filme. Acho que é bem por aí. Tem essas informações que vão estar sempre acontecendo, porque as redes sociais estão sempre nesse processo de mudar, de transformação, mas é um bom desafio. Acabamos tendo esse entendimento, a partir das redes do Bela Maré, de produzir conteúdo a partir dessa história que celebra os 10 anos do projeto.

Érika – O aprofundamento do uso da cibercultura é muito interessante de se pensar. Em um ano, nós começamos experimentando Travessias 6 através das nossas redes sociais, e agora a exposição, Masculinidades em diálogos, foi montada simultaneamente no espaço físico do Galpão, ficou em exposição em maio e junho, e está disponível até o final de dezembro em uma versão 360°, onde as pessoas que não tiveram oportunidade de se deslocar até o Galpão Bela Maré podem experienciar a exposição da sua casa, do seu celular, do seu computador. 

Isabela – Dentro desse movimento de pensar o que poderia ser um marco dos dez anos, a gente se deu conta do quanto a gente queria que esse momento fosse de fato um convite para que as pessoas construíssem junto com a gente mais dez anos. Toda essa ideia, Bela + 10, essa narrativa – e a gente está, de fato, criando programações que espelham isso –, nada mais é do que esse convite, seja via curadoria, seja via comunicação, seja via educação efetivamente, para a gente se comprometer coletivamente com mais 10 anos de trabalho a partir desse espaço. E o que a gente quer, progressivamente, é de fato ir convidando artistas, pessoas, para irem se engajando com a gente, então tem alguns dispositivos em planejamento para de fato convidarmos a classe artística, os públicos, as instituições para irem se responsabilizando por esses mais 10 junto com a gente. 

Travessias – Arte Contemporânea na Maré – Domingo, dia 27-11-11
Foto de Ana Rovati
#38O RostoArteCulturaMúsica

Conversa Polivox: Jards Macalé

Por Pérola Mathias, Bruno Cosentino, Rafael Julião e Acauam Oliveira

Pérola Mathias – Eu sou Pérola, a gente faz a revista Polivox, sobre canção contemporânea. Eu trabalho como crítica, sou socióloga, pesquisei a trajetória do Arto Lindsay, pesquiso música experimental. Na Polivox, comigo, além do Bruno [Cosentino], tem o Rafael [Julião], que também é formado em Letras, estudou o livro Verdade Tropical, autobiografia de Caetano Veloso, estudou Cazuza, é pesquisador de canção; a Paula Carvalho, que é jornalista e socióloga, trabalhou muito tempo como jornalista musical e pesquisou o começo do rap em São Paulo; e o Acauam Oliveira, que é crítico cultural, formado em Letras, pesquisou os Racionais MCs e a questão da canção contemporânea também.

Jards Macalé – Que bom. Estamos abertos; é um leque bom para conversar.

Pérola Mathias – Para a gente começar a conversa, queria que você contasse um pouco como foi a concepção do Besta Fera, seu último disco.

Jards Macalé – Eu queria gravar um disco de músicas inéditas, um disco inédito como um todo. Então, como o Thomas Harres, que toca bateria, músico fantástico, estava na minha banda, nós fizemos uma banda. A gente estava conversando, e ele propôs. Conhecia muito o pessoal, o Kiko, o Romulo Fróes, o Rodrigo Campos. A mim coube a Ava, porque eu já conhecia Ava desde a barriga da mãe dela. Tivemos uma reunião em São Paulo na casa do Kiko – estava o Guilherme Held também, que é um guitarrista excepcional, inclusive morou algum tempo com Lenny Gordin, que é um guitarrista fantástico, fez parte do meu primeiro disco, o Jards Macalé, aquele trio, eu, o Lenny e o Tuti Moreno na bateria. E começamos a conversar sobre. Então eu propus a eles que a gente viesse para Penedo, no sítio onde estou, que herdei da minha mãe, como eu sempre faço quando vou fazer algum trabalho novo, ou mesmo quando quero pensar um pouco. No meio do mato, the fool on the hill, em cima do morro, para pensar as coisas. E aí eu convidei o Thomas e o Kiko Dinucci para virem para Penedo para a gente pensar, passar uma semana aqui, ou alguns dias, ficar conversando, ficar criando. E viemos. E começamos a fazer algumas músicas de improviso. Eu arranjei uma bateria, que o Thomas Harres nem usou – aqui no meio do mato é difícil encontrar uma bateria, mas encontrei uma bateria legal, e ele nem usou, quem usou fui eu, de brincadeira, tocando na beira da piscina, fazendo barulho. E o Kiko, com violão. Ficamos tocando, tocando, tocando, nascendo ideias aleatoriamente, e fomos fazendo, montando as músicas, sem a ideia do Besta Fera em si, do conteúdo do disco, da alma do disco. Ficamos fazendo música aleatoriamente. Foi saindo. Saiu “Vampiro de Copacabana”, e algumas músicas eu já tinha, inéditas de muito tempo, como a própria “Besta fera”, que é de um poema do Gregório de Matos, “Aos vícios”. Eu peguei uma célula, que eu fico pegando células de poemas. Se o poema é muito longo, eu sintetizo, não tenho nenhum pudor, eu vou logo sintetizando. Se fizer sentido, fez sentido. “Aos vícios” eu já tinha composto há algum tempo, o que deu o nome de “Besta fera”, essa célula que eu musiquei. Com o Capinam eu já tinha “Pacto de sangue”. E aí foi havendo uma direção. Eu tinha uma outra música também já composta, fiz a música “Limites”, com a Ava, que era um poema extenso, também sintetizei, e de Ezra Pound teve “Trevas”. “Trevas” deu o tom do disco. Nós estamos vivendo um momento de trevas, não só no Brasil como no mundo. Então, toda aquela questão confusa, política daquele momento lá embaixo, mais a situação do Brasil, com um governo totalmente despreparado, eu diria até louco, doentio mentalmente… Aí, fizemos com o Romulo e o Rodrigo Campos um samba meio enredo, meio samba-exaltação, enaltecendo a bomba atômica, que é a única coisa que faz com que as pessoas ainda não joguem uma bomba atômica em cima da outra. Um fica com medo de o outro apertar – quem aperta o botão primeiro? Então a gente fez uma ode à bomba atômica, que é uma sacanagem terrível. E por aí foi. Eu tinha a música “Obstáculos”, que eu já havia feito também, aproveitando o poema de um amigo de Hélio Oiticica, Renault, amigo da Estação Primeira de Mangueira, enfim, detonamos um processo criativo. Esse processo criativo foi indicando a direção do disco. E aí, na hora em que a gente disse “oba, vamos entrar”, na hora em que íamos nos preparar para entrar no estúdio, eu tive um piripaque terrível e fui acabar numa UTI totalmente entubado, o diabo a quatro. Passei dez dias inconsciente e retornei. Fui tratado; foi uma coisa difícil, a UTI. Eu desejo tudo aos meus inimigos, menos uma UTI. É preferível morrer antes do que padecer naquele negócio. É um inferno, os outros doentes em volta, gemendo, gritando, um negócio terrível. E você mendigando a atenção de alguns enfermeiros, coitados, que estão lá totalmente loucos com aquela história toda. Foi uma broncopneumonia braba. Fiquei entre a vida e morte. Graças a Deus, a Rejane [Zilles] estava ao meu lado, não saiu dali, me dando todo o apoio, desde papinha a carinho, beijinhos sem ter fim. Enfim, eu voltei à tona, vim para Penedo, para o sítio, me organizei de novo, reaprendi a andar, reaprendi a falar – porque você fica totalmente neutralizado, os músculos vão para as cucuias. Um mês numa cama de hospital, você perde a noção não só de tempo como a noção de si mesmo, suas reações são totalmente enfraquecidas. Então, assim que me recuperei, retomei os trabalhos com o pessoal, e fomos para o estúdio, o Red Bull, e fizemos os arranjos ali no calor da batalha – como eu sempre faço, aliás, nos meus trabalhos –, todos dando ideias, a gente ia somando as ideias, depurando, até que se tornasse uma música, ou letra, ou sem letra, as ideias de arranjos, todos contribuindo e tal. E aí saiu o Besta Fera. Eu diria totalmente contemporâneo, pelo tratamento que foi dado, e o Brasil não muda, será possível? A gente fez uma besta fera antes, eu já fiz várias bestas feras, e não adiantou nada – quer dizer, adiantou: agora caminhamos, caminhamos, caminhamos e caímos na besta fera de 2018 em diante. Aí não tem jeito, besta fera para lá, besta fera para cá, fomos acabar em Las Vegas, por indicação do Grammy. Aliás, o Grammy me deve um Grammy. Aqui acaba minha saga do Besta Fera. Pronto.

Acauam Oliveira – Jards, eu queria puxar esse gancho da relação entre o Besta Fera de agora com as bestas feras de antigamente, porque já faz quase 50 anos que você canta que há um mal secreto pairando no ar, que há um abismo na porta principal, todo aquele clima – conceituado como morbidez romântica – que você e o Wally Salomão criaram, e aí você resolve incluir no show do Besta Fera a “Gotham City”, fazendo essa ponte entre os primeiros anos da sua trajetória artística, dos festivais, e aquele período da ditadura civil-militar. Agora, passados anos e anos, em 2019 você canta que não via que “o mundo está podre porque estava cego de amor”, “não ouça aquele ditado, pois a esperança há tempos se foi” e “chegamos no limite da água mais funda”. Queria que você falasse um pouco sobre isso, comparando aquele momento da década de 1970, aquela linha dura, com agora. O que você acha que se repete e o que você acha que mudou em relação a esses dois momentos, tanto em relação ao Brasil como em relação a você, Jards?

Jards Macalé – Eu acho que, se for para falar de mim, acho que eu melhorei. Agora, o Brasil piorou bastante. Dentro daquele quadro de 1964, 1965, já tinha um quadro meio desalentador. Por exemplo, “Soluços”, que eu fiz com 15 anos de idade e só gravei com 22 anos, por incrível que pareça, é a música mais pedida atualmente pelo público jovem. É engraçado isso. “Soluços”, “Movimento dos barcos”, com Capinam, que sempre foi um poeta muito claro nas posições políticas e na poesia dele, sempre tentando um caminho novo, um olhar de poeta, mas sempre na contemporaneidade. Esse disquinho era um compacto duplo, tinha 4 músicas, duas de um lado e duas do outro. Tinha uma também com Duda, Carlos Eduardo Machado, outro parceiro meu, professor de Literatura atualmente lá em Minas [Gerais], na universidade. Era a “Só morto (Burning night)”, que diz tudo sobre o que está acontecendo hoje: “nessa manhã de louco, o olho do morto reflete o fosso, nessa manhã de louco, todo mistério é pouco”. Enfim, “esse som tão forte, um som de morte, esse som tão forte de morte, esse som…” e tal. Então já tinha um prenúncio de olhar o mundo com uma visão, eu não diria pessimista, mas uma visão realista. O tempo passa e, de repente, eu caio no Festival Internacional da Canção com “Gotham City”, minha e de Capinam, que dizia claramente que nós estávamos sob uma pressão terrível, ditatorial, e qual seria a saída, qual é a saída? O abismo está na porta principal, mas e a saída? “Não se fala mais de amor em Gotham City”, que é a simbologia de qualquer cidade do mundo megalópole, mas o sistema seria o mesmo de perseguição. “Gotham City” é de 1969, o AI-5 é de 1968. “Gotham City” já é o comentário imediato sobre o AI-5. “Perseguiam bruxas no telhado em Gotham City no dia da independência nacional, cuidado, olha o morcego”. Eu comecei a recantar “Gotham City” porque eu via um morcego na porta principal, claramente, desde o início. Aliás, desde antes, mas aí se concretizou. Quando um cara chega e homenageia o maior torturador do país, o Ustra, com a maior desfaçatez, em plena Câmara dos Deputados, é porque o morcego chegou na porta principal. Quando foi ver, criou o abismo que a gente está vivendo até agora. Então eu retomei a canção por isso, e incluí uma poesia na apresentação de “Gothan City” nos shows. Eu fui vaiadíssimo no Maracanãzinho inteiro, as pessoas se levantaram com o dedo assim, estava numa arena em Roma e os leões atrás de mim. Aí eu disse: “bom, vamos conversar”. E as roupas, as guitarras elétricas, estava uma confusão se guitarra ou violão, ou isso ou aquilo, qual seria o instrumento brasileiro. E aí eu convidei o grupo Os Brasões, que tocava com a Gal Costa, e convidei o nosso orquestrador…

Pérola Mathias – Duprat?

Jards Macalé – É, meu querido Rogério Duprat. Que não fez por menos. Teve uma hora na orquestra, escrito, que ele disse assim: “cada um toca o que quiser”, no meio da orquestração. Foi uma zona maravilhosa. Bom, eu pedi para o público, atualmente, que me deixasse cantar a canção todinha e que me vaiasse no final. Você sabe que o público adora vaiar tanto quanto adora aplaudir, e eu sei disso. Então eu sabia que as vaias iam ser bacanas e pedi para me vaiarem no final. Aí comecei a tocar a música, todo mundo ouvindo. O que não ouviram no Maracanãzinho, os públicos agora ouvem muito claramente, um silêncio profundo, e no final dou uma dica para me vaiar, aí começa uma vaia aqui, uma vaia ali, outros começam a aplaudir. De repente, os teatros vaiando em uníssono, isso me dá um prazer, de ouvir essa vaia ao vivo e a cores. E o melhor é que as vaias vão se transformando aos poucos em aplausos e, de repente, está aquele aplauso e vaia, de pé. Estão começando a entender o recado. Aí o Besta Fera chega nessa hora, em que abriram o armário da burrice, da incompetência, da loucura no pior sentido, abriram o armário e saíram todos os imbecis para fora. E eu não me recuso a falar para os imbecis. Aliás, eu faço questão de falar com os imbecis. O que me dá grandes problemas, “pequenos problemas, grandes discussões”. Mas é sempre necessário falar. Quando o imbecil é imbecil demais, aí eu viro e vou tratar de outra coisa mais interessante.

Rafael Julião – Algo que me chamou muito a atenção no Besta Fera, que é um disco muito cinematográfico, na verdade, é que você fez um disco de terror, se é possível inventar essa categoria.

Jards Macalé – Que bom, é bom saber disso.

Rafael Julião – É um disco de terror. Tem vampiro, tem besta fera, tem treva, tem névoa. Aliás, todo o seu trabalho…

Jards Macalé – Tem peixes. A música do Rodrigo Campos, em que sai algo de dentro do mar.

Rafael Julião – Toda essa concepção me dá a sensação de que, até na sua forma de interagir com o público – você citou a coisa da vaia, mas tem outras formas de interação que você faz –, parece que seu trabalho é muito atravessado pelo universo do cinema, pelo universo do teatro; isso está no seu canto, na sua forma de compor, na sua forma de se apresentar, enfim, você inclusive fez muitas trilhas sonoras para o cinema. Eu queria que você pensasse um pouco com a gente sobre a importância do teatro e do cinema na sua formação como artista e se ainda é importante hoje, se ela produz esse efeito de disco de terror, de disco-filme no seu trabalho atual.

Jards Macalé – Maravilhoso. Você sacou uma coisa que eu não tinha olhado direito. Disco-filme é proposital; eu gosto de montar meus discos como se fosse cinema. Cinema é muito importante para mim, desde criancinha. E o disco-teatro, que, aliás, estou pensando aqui no Paulo José. [Se emociona ao lembrar da morte dias antes do ator Paulo José.] No meu primeiro trabalho profissional como músico, fui convidado por Dori Caymmi para trabalhar como violonista, só instrumentista, no Teatro de Arena de São Paulo – na época era Arena canta Zumbi [Arena conta Zumbi, 1965]. Eu nunca sei se é canta ou conta, tanto faz. Arena canta Zumbi é mais bonitinho. E eu ficava tocando violão naquele palco, e aqueles atores todos, Paulo José, Dina Sfat, Maria Gladys, Milton Gonçalves, Melanie, enfim, todos aqueles atores dando sopa naquele palco, com suas várias interpretações; eles transmudavam, cada um fazia vários personagens, aquele coisa do Augusto Boal, Guarnieri e tal, e eu ficava tocando violão e vendo aquele pessoal se transmudar em vários personagens, povoavam aquele palco, uma verdadeira multidão. Eram 8 ou 10, mas eram mil. E eu ficava atento a essa coisa, não só à parte musical. A parte musical eu fazia normalmente, acompanhava tudo direitinho. Tinha uma coisa interessante, porque – até hoje a Maria Gladys ri dessa história – eu usava, por exemplo, um lá menor para dar o tom, aí ela entrava numa 5ª acima, sempre. Aí eu experimentei dar uma 5ª acima, e ela deu uma 5ª acima; ela ouvia sempre uma 5ª acima o tom. Eu digo, bom, então só tem um jeito: eu dou o tom, lá menor, e pulo para a 5ª acima quando ela entrar. Ficavam essas coisas engraçadas. O grupo sempre foi engraçado. Na primeira vez que fui a São Paulo, eu e Caetano ficamos hospedados na casa do Paulo José e da Dina Sfat, lá na [avenida] São João, não me lembro bem. O contato com esse pessoal sempre me deu muita coisa, do teatro e do ator. E, no cinema, eu sempre fui apaixonado por cinema. Minha avó me levava ao cinema, no Cineac, que era um cinema 24 horas no Rio de Janeiro, tinha até alguns filmes mudos, tinha Radamés Gnattali ao piano acompanhando algumas coisas de cinema, tinha outros instrumentos, uma flauta, um violoncelo, que acompanhavam filmes mudos. Eu não sou tão antigo de filme mudo, mas tinha um rito de cinema que eles faziam a ligação. E eu ficava lá por horas; minha avó ia fazer a unha, o cabelo, não sei o que lá, e me botava no cinema. Eu ficava ali assistindo a tudo, absolutamente tudo. E aquela tela, para mim, era mágica, uma coisa completamente… Sei lá, era um sonho. Até que Nelson Pereira dos Santos me convidou para fazer o Amuleto de Ogum [1974]. Ele foi me convidar para a trilha sonora e, lá pelas tantas, me colocou como ator no filme, um ceguinho repentista que contava a história do filme. Aí eu entrei direto, não só para fazer a trilha sonora, a direção musical geral, mas como ator também. Adorei ser ator. O meu problema com cinema é que demora muito. Mas esse demorar muito também é um ganho de sabedoria muito grande em relação a construir um filme, desde o pensamento primeiro até o resultado final. Aproveitei o máximo que pude a questão de montagem de cinema. Estive com grandes montadores, [Severino] Dadá, por exemplo, que é um montador incrível, [Raimundo] Higino, tinha uns caras aqui barra pesada de montagem. O próprio Nelson dirigindo a montagem, discutindo ali, eu tinha que fazer trilha sonora e ficava ali também, eu, Nelson e o Dadá pensando a montagem do filme. Quando é que eu ia ligar em música uma determinada cena, a outra, e não sei o quê. Eu sei que, a partir daí, comecei a fazer meus discos como se fosse uma montagem mesmo. Tanto que Aprender a nadar [1974], que é dessa época, é uma montagem cinematográfica. E é uma montagem de rádio também, tem muita coisa de rádio, porque eu sempre amei o rádio. Toda a minha geração foi criada ouvindo a Rádio Nacional, em torno das décadas de 1940 a 1960, principalmente a década de 1950, a Rádio Nacional era o auge, era a TV Globo da época. Aliás, a TV Globo pegou todos aqueles radioatores geniais e botou os atores… Quem poderia imaginar que o primo rico e o primo pobre teriam aquela cara? A cara daqueles atores, você ouvia só a voz, e de repente eles ganhavam uma cara. Tudo isso me alimentou muito, e me alimenta até agora. Ontem mesmo vi um filme genial do Cesinha Oiticica, que é sobrinho do Hélio Oiticica e fez um filme ele. Eu mesmo, que sempre fui amigo do Hélio Oiticica, amicíssimo mesmo, a gente era cúmplice, vi coisas que o sobrinho desencavou que eu não conhecia. Por exemplo, algumas imagens, alguns pensamentos, depoimentos do Hélio. E artes plásticas também. Sempre me fortaleceu muito o estado de invenção das artes plásticas, Lygia Clark, Hélio, Roberto Magalhães, Rubens Gerschman, enfim, uma patota que tinha ali, que eu ficava de olho, de ouvido e olho em pé, se isso existe. E é isso. Fora a música, que eu via todos os ensaios dos meus amigos e não amigos. Eu ia assistir ensaio dos Cariocas, ensaio do Tamba Trio, do Luiz Eça, da Orquestra Tabajara, da qual eu fui copista, Severino Araújo. Eu ficava rolando por ali. E fiz amizade, finalmente, com Grande Otelo, aí a coisa pegou.

Paula Carvalho – Jards, estava lendo ontem suas colunas na Folha de São Paulo falando da Empresa Brasileira de Som. Fiquei pensando nessa ideia de uma empresa brasileira de som, uma empresa que ia acabar com o problema da dívida internacional exportando música brasileira. Você acha que essa ideia faria sentido hoje em dia, no auge do liberalismo?

Jards Macalé – É um delírio ambulatório, como dizia Hélio Oiticica. Não sei, porque as ferramentas mudaram muito. Eu acho que se centralizasse… Porque tem o ECAD aí também. Está todo mundo tentando transformar em leis toda essa coisa que a internet abriu; é outra ferramenta, uma coisa totalmente nova, então as pessoas não sabem como colocar as leis que regiam o mercado de música, o mercado dessa coisa toda de disco, como transformar isso, onde você compartilha tudo e qualquer coisa, onde o autor se dilui. É difícil. Eu não sei se caberia, a essa altura do campeonato. Realmente, não sei mais. Isso não vai se definir tão cedo, porque é uma liberdade totalmente caótica – da liberdade eu gosto, do caos, por incrível que pareça, eu não gosto muito – e prejudica todo mudo. A liberdade, não, “viva a liberdade!”. Mas essa coisa toda desse caos jurídico, prejudica. Eu, por exemplo, estou recebendo US$ 0,02 por cada vez que toca não sei onde. Cada um tem um regulamento. Se eu tocar um milhão de vezes, eu recebo, talvez, quem sabe, R$ 226,00? Está todo mundo muito apaixonado e muito deslumbrado com essa história de estar nas redes. O pessoal esquece que os conteúdos somos nós. Eu devia ser pago por frequentar Facebook, Twitter, Instagram, deviam me pagar, eu sou o conteúdo dessa gente. Agora, está todo mundo tão deslumbrado que se esquece, começa a contar os segredos de liquidificador, está uma bagunça generalizada. É engraçado, mas, ao mesmo tempo, é trágico.

Pérola Mathias – Eu estava lendo uma entrevista sua de 1972, que saiu na revista Bondinho, e você fala de como percebeu o ritmo de produção, essa loucura de ensaio e criação e gravar, porque, quando você foi para Londres, chegou lá e o ritmo era outro, tinha tempo para estudar, para treinar o violão, para criar e não precisava lançar imediatamente. E eu fiquei pensando num paralelo com esse momento de agora, que tem que postar, nem que seja alguma coisa antiga, nas redes sociais. Você tem que estar sendo visto o tempo todo, porque os algoritmos têm que estar ali. E, querendo ou não, você passou os anos 1980, lançou alguns discos, mas foi uma década também bem pesada, depois veio os 1990, você lançou de novo, depois lança já em 2019 o Besta Fera. Queria que você falasse um pouco, primeiro, sobre essa questão da velocidade de produção, como mudou a sua percepção como artista, desse momento em que tinha a loucura das gravadoras no Brasil, depois esse tempo para perceber isso em Londres, e o tempo de agora, das redes. E, junto com isso, uma segunda pergunta, que é uma questão de poder ser independente, de ter essa possibilidade agora, porque ali tinha uma questão das gravadoras serem um funil, e um funil voltado mais para o dinheiro do que para o talento ou o conteúdo que eles iam vender. Eles queriam uma resposta imediata, e hoje tem essa margem de risco, mas depende da sua atuação ali diante dessas redes. Então queria que você falasse um pouco desses dois momentos.

Jards Macalé – Bom, naquela época, eu particularmente, ou melhor, minha geração estava dentro desse quadro de gravadora, a coisa era: fazer música, lutar para que essa música fosse gravada, registrada, e depois lutar para que ela fosse divulgada. E tinha um método das gravadoras fazerem isso. Eles escalavam algumas músicas, e dependia também da amizade dos autores de música com os produtores de disco. Era um atravessamento generalizado. Dependendo da influência de cada um, talvez, quem sabe, pudesse gravar. Uma vez gravada, você tinha que lutar para que os divulgadores divulgassem, e eles tinham suas escolhas pessoais. Se você não fosse escolhido pela gravadora, se não puxasse um saquinho daquele, você não existia. Não só isso, tinha alguns também que tinham uma coisa artística bacana, que ficavam ligados na música mesmo, e também os ligados na música sacavam mais ou menos de mercado, onde essa música poderia estourar ou não, o tipo de sensibilidade que ia detonar. Mas era um ambiente muito fechado, apadrinhado. E tinha outro fator, que é o seguinte: o pessoal vivia duro, então você ou pedia adiantamento, ou já dava sua música como uma garantia da grana que eles pudessem lhe dar como adiantamento. Enfim, era um bolo. Quando eu vi aquilo, eu disse: “não quero isso”. Mesmo porque, logo no início do meu trabalho – eu não chamo de carreira, eu chamo de correria –, logo no início da minha correria, eu caí nas mãos justamente do Teatro de Arena. Naquela época, tinha o Teatro de Arena, o Teatro Oficina, que também era tudo experimento, o Cinema Novo, a Bossa Nova, que naquele momento era um experimento dentro da música chamada popular brasileira – eu não gosto desse popular, eu gosto de MB, música brasileira, e olhe lá. Música é música, e nem brasileira, música é música. E as artes plásticas experimentais, na mão do Hélio Oiticica, da Lygia Clark, desse pessoal que eu já falei, Antônio Emanuel, Rubens [Gerchman], Roberto Magalhães. Era um momento de experimentação. Justamente a experimentação que não cabia dentro daquele quadro que eles achavam que eram as quatro linhas do mercado brasileiro. Fechava assim: “essa música, o povo não vai entender”, “essa música, não sei o que lá”, “essa música, imagina”, fechava o campo. Em vez de abrir o campo para novas experiências, novas experimentações etc., eles fechavam o campo dentro daquela coisa. Tanto que só depois começaram a sacar que aquela geração e aquela experimentação podiam, no futuro, vingar como mercado – mas, antes de nos botarem como mercado, eu, [Luiz] Melodia, Sérgio Sampaio, Tom Zé, Itamar Assumpção, eles abriram um canal – onde já se viu? – de malditos. Fomos tachados de malditos. Eu achei o máximo. Sou Baudelaire, sou Rimbaud, é nessa que eu vou. Está rindo, mas é trágico. Tudo bem. E mais ainda, fizeram uma coisa muito mais louca: um selo chamado Pirata – os piratas que eles combateram violentamente depois, os piratas mesmo, que entraram no mercado pirateando produtos deles à vontade. Aí eles viraram e foram combater os piratas, e deixaram os malditos em paz. Eu não gravei no disco pirata, aliás, fiquei até triste naquela época – “o Itamar está gravando, Melodia está gravando, Tom Zé está gravando, Sérgio Sampaio está gravando, está todo mundo gravando”, todos os malditos músicos gravando, e eu fiquei pensando: “será que eu sou o pior dos malditos?”. Era. O pior em posição política mesmo, o pior em posição de combate ao óbvio, o pior em defesa de abrir o meu armário e sair frontalmente contra, escrevendo esses artigos aí, enfim, botei o meu cu na reta, não quis saber. O resultado disso tudo culminou com [o show] O banquete dos mendigos [1973], quando o levei ao Palácio do Planalto. O Ministro da Justiça, Petrônio Portela, me recebeu e fui ao Golbery do Couto e Silva entregar os direitos humanos na mão da Casa Civil do governo Geisel. Aí nego não me perdoou. Tanto a esquerda quanto a direita me botaram na geladeira durante 11 anos. Daí esses buracos, a dificuldade de, como maldito, gravar algumas coisas. Em 1979, lança-se [o disco] O banquete dos mendigos. Passei 11 anos na geladeira por causa dessa atitude, acusado de estar me vendendo à ditadura, entregando os colegas. Maluquice. Eu estava com O banquete, estava com os direitos humanos, estava com a ONU debaixo do braço. Se estavam falando em abertura, que ia abrir, “olha aqui, então, abre!”. Essa era a história. Aí passaram 11 anos. Até que o namorado de uma grande amiga minha – ele era riquíssimo, um dos donos do Ponto Frio Bonzão, adorava jazz, adorava música –, uma vez, na casa dele, me perguntou por que eu não gravava. Eu expliquei isso que eu estou falando para vocês. E ele me disse: “então, quanto é que custa um disco?”, eu disse: “não sei”, e ele disse: “vá ver e me diz”. Aí, eu fui até o Dudu, o técnico de som da Polygram, grande amigo meu, que estava guardando as fitas originais d’O banquete dos mendigos, da Rádio Transamérica. Pedi pra ele guardar no cofre, ele guardou durante esses anos todos, até que eu perguntei para ele, que me disse “é tanto”. Convidei meu amigo Naná Vasconcelos, e também o Roberto Guima, um menino que estava começando, clarinetista maravilhoso, que era aluno do Paulo Moura, fantástico, e eu ali, violão, voz, percussão, Naná e Roberto Guima numa faixa com seu super clarinete. E gravamos isso ao vivo. Eu economizei tudo. Gravei em três dias, eu e Naná, eram duas semanas, deu para a gente ouvir, falar e conversar, deu para mixar tudo direitinho como a gente queria, e o disco ficou pronto em três semanas. Na hora em que o Dudu me disse assim: “custa tanto”, eu peguei o negócio e dei para o cara: “custa tanto”. Ele olhou e disse: “passa lá no escritório amanhã”. Quando eu passei, a secretária dele: “seu Walter pediu pra lhe entregar isso”. Eu peguei o cheque, entreguei para o Dudu. Pronto, acabou, fizemos. A partir daí, eu comecei a gravar mais regulamente. Fui gravar na Atração, do meu amigo Wilson Souto, fizemos um disco lindo chamando O que faço é música, e por aí foi. Aí comecei a gravar quase que de dois em dois anos. Mas antes, quando essa história aconteceu, houve também uma coisa fantástica. Quem me convidou para a Som Livre na época – aliás, o nome Som Livre é meu, diga-se de passagem. Você lembra que em um dos artigos eu escrevo assim: “som livre é meu, dá cá o meu”? Numa entrevista de jornal perguntaram o que era aquilo de “Gotham City”, e eu não sabia explicar aquele negócio, era uma atitude, “som livre”. Aí escreveram: “o som livre de Macalé”. Editaram minha explicação de som livre. “Som livre é som livre, cada um faz o seu, cada um faz a sua assinatura, cada um inventa o que quiser, é som livre”. Não é que oito meses depois dessa reportagem, me aparece a Globo com o selo Som Livre. E o símbolo gráfico da Som Livre era um passarinho dentro da gaiola com a porta aberta.

Acauam Oliveira – Em relação a essa questão do maldito, quase uma marca que imprimiram, me parece que hoje em dia está cada vez mais claro para todo mundo que isso é muito mais uma desculpa esfarrapada das gravadoras, ou para produzir com menos cuidado, ou para investir menos na divulgação, qualquer coisa nesse sentido, para deixar ali meio de lado, investir em outros… Enfim, sejam quais forem as razões, me parece muito mais uma tentativa das gravadoras de transferir o ônus que seria delas para as costas dos artistas e não assumir a responsabilidade. Por exemplo, parece que o público sempre reagiu muito bem, lotava seus shows, e a gravadora ficava insistindo nessa história de maldito. Mas eu fico pensando, uma curiosidade que eu tenho, se, em alguns casos, por exemplo, no seu caso, no caso do Luiz Melodia, do Itamar Assumpção, se você acha que esse movimento de deslocamento, marginalização, tem a ver também, em alguma medida, com racismo. E o que você teria a dizer sobre isso, em relação ao racismo ao longo da sua carreira. Porque eu lembro que em uma entrevista você comentou a recepção negativa da capa do [disco] Contrastes [1977].

Jards Macalé – Quando você falou que as gravadoras faziam produções baratas para esse tipo de pessoa, é porque não tinham perspectiva de vender, então faziam produções mais enxutas, mais baratas para esses alijados do mercado oficial. Sempre achei que eles botavam a gente nessa situação, gravava um aqui, outro ali, faz uma produção pobrinha para não dizer que não falaram de flores, “isso aí não vende, mas estamos gravando”. Aí eu devo ressaltar, nessa história que você falou: o Contrastes. A ideia do Contrastes era justamente contrapor uma coisa à outra, um samba, uma valsa, um blues, uma música experimental do Walter Franco, enfim, mistura e manda. E foi um disco, eu diria, riquíssimo, devo isso muito ao Guto Graça Mello e ao próprio João Araújo. O Cazuza era meu fã e vivia lá em casa em Botafogo também, toda aquela patota de músicos e possíveis músicos, e possíveis poetas, vivia lá em casa, na casa 9, que eu morava em Botafogo, no Rio de Janeiro. E também o João Araújo era diretor da RGE, onde eu gravei meu primeiro disco solo, que foi o compacto duplo, as 4 músicas, que eu falei anteriormente. O João Araújo era o diretor artístico da Som Livre, me convidou para fazer um trabalho na Som Livre. E o diretor musical era o Guto Graça Mello. Aí eu disse para o Guto: “o disco é essa ideia, assim geral, é só me deixar fazer que vai ser tudo legal”. Aí ele deixou. Ele só pintou uma vez no estúdio, quando eu gravei a Orquestra Tabajara, do Severino Araújo, um instrumental, “Choro de Archanjo”. Mas as outras, ele só sabia notícias do estúdio. Só que cada vez chegava mais gente para gravar, era violino, era viola, era tuba, era orquestra completa, era orquestra “descompleta”… O disco deve ter custado caro, porque eu não contei nada, eu não fico contando dinheiro para ver se dá ou não dá; enquanto der… É que nem aquele quarto dos irmãos Marx no navio, “pode ir entrando, claro, entrem”. E foi um disco maravilhoso, foi meu último disco dessa fase. E aí culmina nessa história de racismo, porque um crítico em Pernambuco escreveu um negócio enorme que começava assim: “um preto com uma branca, o disco é uma merda, e já começa pela capa, um preto beijando uma branca”, uma índia do Ceará, nem branca é. Mas não importa. Bateu na minha mão, eu tive que revidar. Aí eu fiz o que devia fazer, processei, e virou um escândalo danado. E esse negócio de racismo existe; é endêmico no Brasil, um negócio terrível. Agora, cada vez mais a coisa se mostra de uma forma insuportável. Mas também, desde criancinha lá em casa, 5, 6, 7, 8 anos, minha família é de mulatos, meu pai de Pernambuco, de Olinda, e minha mãe do Pará, somos uma família de mulatos. E lá em casa passava uma coisa, um negócio de cabelo, diziam que era para alisar o cabelo. Eu não entendia esse negócio, por quê? Eu gosto tanto desse cabelinho assim, fofinho, bacana, meus cachinhos, e ficava esse negócio. Até que tive que fazer uma retrospectiva dessa história. Está claro: a tentativa de embranquecimento brasileiro, que nunca deu certo, cada vez nascem mais negros e mais mulatos. Eu quero saber: e os sararás, como é que ficam? Mas, enfim, agora eu fico lutando contra o racismo cada vez que me chamam para alguma coisa nesse sentido. Eu faço parte dessa raça maravilhosa, que é a raça negra do mundo.

Rafael Julião – Uma coisa que me interessa muito no seu trabalho é você ter feito tantas apresentações e tantos shows em presídios e em manicômios, hospitais psiquiátricos. Eu queria que você contasse um pouco como essa história começou e como impactou a sua trajetória, você como ser humano, como artista, trabalhar efetivamente nesses universos que estão literalmente à margem e que são tão ricos.

Jards Macalé – Eu entrei nos hospícios, manicômios e em presídios e, por incrível que pareça, consegui sair para ficar preso do lado de fora, não do lado de dentro. Isso tudo é porque, no meu primeiro casamento, Gesilda estudava psicologia e psiquiatria, e tinha todo um grupo – alguns estavam dentro de sanatório, também alguns amigos, principalmente Hélio Oiticica, que tinha aquela entrada no Morro da Mangueira, do Estácio; eu me tornei amigo também do [Luiz] Melodia, e tinha algumas pessoas, esse que compôs “Obstáculos”, no Besta Fera, o Renan, estava preso no presídio Lemos de Brito, que dá direto para o Morro de São Carlos: está o presídio aqui e o morro ali. Então, bolaram: “vamos fazer um show!”. Nos sanatórios, eu comecei bastante antes. Eles me convidavam, “vamos fazer um show no sanatório tal”, a Nise da Silveira, por exemplo – depois eu fiz um filme, colaborei com Leon Hirszman no filme da Nise da Silveira, Imagens do Inconsciente, isso muito depois. Mas eu ia lá, aceitava o convite e ia fazer show para os internos. Teve até uma coisa engraçada; numa dessas apresentações na Nise da Silveira, estava lá, inclusive, ela e os internos dela, todo mundo, ela na cadeirinha de rodas, aí eu comecei a cantar aquela música do Caetano, “eu quero é botar fogo nesse apartamento”, e eles começaram a ficar ouriçados demais… Ela disse “não, eu levo anos contendo e você vem aqui dizer que quer botar fogo”, e eu disse “desculpe, não é o departamento, eu quero botar fogo no apartamento, não no departamento”. Ela deu um esporro, não gostou não. E por aí ia essa minha relação. Eu comecei a fazer análise desde essa época, até hoje. Claro que isso influenciou no trabalho, justamente na liberdade que um louco tem de exercer sua criação; pode parecer caótico no princípio, mas é uma expressão, uma expressão viva, forte, tensa, na pintura dos ditos loucos. E, quanto ao presídio, eles fizeram o primeiro show, e o Renan falou com o Melodia e o pessoal lá, com o Hélio, e convidou a gente para fazer um show no presídio Lemos de Brito. Eu aceitei, claro. Convidei o Naná Vasconcelos, a Gal também topou, Maurício Maestro, que era do Boca Livre, mas a gente trabalhava junto, também topou, e fomos lá para o Lemos de Brito. Só que, quando chegamos ao Lemos de Brito, era para fazer para todo mundo. Aí disseram: “essa ala dos bonzinhos vai ver o show, mas tem uma ala lá” – estava um esporro lá dentro do edifício, um barulho – “é um pessoal, os mais barras-pesadas, que também querem ver o show, participar, mas não dá para descer, porque senão eles vão querer bater nos bonzinhos, e os bonzinhos têm medo dos mauzinhos, então não dá para misturar”. Eu digo: “então não tem show, vocês façam isolamento, façam o que vocês quiserem, mas deixem que todo mundo possa assistir”. Pois muito bem, veio todo mundo, eles meio apavorados, e ninguém atacou ninguém. Bateram palma às pampas, se divertiram à vontade, cantaram, enfim. A partir daí, teve outro também no presídio de mulheres. Aí começou essa história de fazer em presídio, fazer em sanatório, fazer em hospital. Minha fase profundamente humanitária, digamos assim. E isso tudo revelou tantas coisas para o meu trabalho; eu aproveitei tudo que pude, inclusive ser são no meio de loucos e ser louco no meio de sãos.

Paula Carvalho – Jards, eu queria voltar a uma coisa que você estava comentando, dessa posição de o mais maldito dos malditos. Eu fiquei com mania agora de entrar no arquivo do Fundo Nacional e procurar o nome das pessoas. Aí eu procurei lá “Macalé” e achei um dossiê que se chama “provável cisão no meio artístico esquerdista”.

Jards Macalé – Eu vi, eu e o Chico Buarque somos moderados. Eram os piores.

Paula Carvalho – Isso. Era isso que eu queria te perguntar, se você era moderado.

Jards Macalé – Eu sempre fui radical, na realidade. Mas um radical que sabe o momento de ser radical e o momento de não ser radical. Não é radicalidade porque entrou numa “sou contra tudo, hay gobierno, soy contra” – isso é claro. Mas você entende que, em determinados momentos históricos, você tem que tentar equilibrar as coisas. Agora, quando eu li isso, comecei a morrer de rir; eram justamente os dois mais radicais nesse sentido. Claro que tinha Caetano e Gil, que eles colocaram como “perigosos”, e outros que eram comunistas, e nós dois, muito modestos, moderados, que bom.

Paula Carvalho – Mas tinha uma visão do que era a esquerda, e acho que vocês não cumpriam.

Jards Macalé – Eu não entendo por que fui chamado de moderado. E nem o Chico também, coitado. Ganhamos a alcunha de malditos a moderados, olha que situação. Assim não dá, eles querem nos enlouquecer.

Paula Carvalho – Jards, prometo que a gente já vai passar para questões mais musicais, mas a gente acaba ficando curioso. Queria saber como você chegou nos militares, que você disse que acabou sendo meio o porta-voz dessa coisa dos direitos humanos, chegou no Golbery, e na época da prisão do Espírito Santo você também conversou com Ney Braga.

Jards Macalé – Mas não era só eu não.

Paula Carvalho – Moderado é engraçado, porque a gente está falando dessa coisa do maldito, mas você é a pessoa que não fez concessão nenhuma. Fico pensando no filme do Marcos Abujamra [Jards Macalé: um morcego na porta principal]; tem uma hora em que ele entrevista o Gil, e o Gil está Ministro da Cultura e começa a fazer um discurso de que tem que se fazer concessões. Ele é a cara da política conciliatória. E, querendo ou não, na música, na carreira, também foi.

Jards Macalé – Mas, logo a seguir, nesse filme, o Zé Celso esculhamba essa coisa. É que o Gil se formou administrador de empresas, então ele tem essa coisa. Eu conheci o Gil de terno escuro, lá no Redondo, em São Paulo, lá na São João, terninho escuro, gravatinha vermelha, uma mala na mão, certinho, bonitinho, redondinho, arrumadinho, e tocando um violão maravilhoso. O layout foi mudando, mas a onda dele continua.

Paula Carvalho – Como você chegou nesses militares? Claro, acho que todo mundo tinha um diálogo ali, mas é diferente conversar com a alta patente.

Jards Macalé – É diferente porque meu pai era militar, meu pai entrou como aprendiz de marinheiro em Sergipe, com 15 anos de idade. Meu pai, pernambucano de Olinda, menino pobre, para estudar, ele viu como oportunidade entrar para Escola de Marinheiros, para ter casa, comida, roupa lavada, educação e trabalho, e uma possível carreira. E ele fez carreira militar. Ele começou como aprendiz de marinheiro e chegou a contra-almirante. Morreu cedo, jovem, com 43, 45 anos de idade. Eu nunca tive medo de militar, a não ser quando meu pai ficava puto porque eu não estudava, fazia alguma coisa, vinha para cima de mim com um cintozinho, aí eu sentia um certo medo. Mas ele era um homem comum, aquela farda linda, etc. e tal. Ele era professor, se formou professor de Matemática, Inglês, Francês, Álgebra, era uma figura. E foi ajudante de ordens do Ministro da Marinha do Juscelino Kubistchek. Então vinham militares e militares dentro da minha casa, uniformizados ou não, conversando; se eles conversavam de política, era sobre como derrubar a ditadura de Getúlio Vargas, entre eles lá. Eu vivi a vida inteira assim, entre fardas. Tinha Natal, ano-novo, ia todo mundo receber presente; eu ganhava presente no porta-aviões. Para mim, era uma coisa comum. Só não era comum aqueles tipos de militares que deram o golpe e aquela coisa de tortura, de violência, do aparelhamento de Estado, enfim, coisa que eu nunca vi os militares do ciclo do meu pai falarem, nem agirem assim. Quando meu pai morreu, eu tinha 15 anos de idade – o Colégio Militar foi criado para os órfãos de militares; o militar morria e os filhos tinham direito de entrar no colégio, com casa, comida, roupa lavada. Minha mãe me botou no internato do Colégio Militar do Rio de Janeiro e meu irmão no externato, porque ele era mais novo. Então, passei três anos interno no Colégio Militar. Eu era muito bagunceiro, claro. Eu fiquei preso – no final da aula da semana inteira, sábado e domingo, ia para casa, mas tinha um pessoal que não se comportava muito bem naquela fila, e eles diziam: “fulano, fora de forma”. Eu fiquei aquela patota fora de forma, sabe como é, eram os rejeitados, os proibidos de ir para casa, uma semana sem ir para casa é uma desgraça. E era estudo obrigatório, tinha que ficar em estudo obrigatório sábado e domingo. Fazer o quê? Em um ano, eu fui para casa umas quatro ou cinco vezes. Ficava lá, “fora de forma”. Meu número era 2.134, guarda esse número, Pérola, joga no bicho, 2.134. Eu não sei nem que bicho é, mas tudo bem, quem souber, me diga. 

Paula Carvalho – O 21 é cabra e o 34 é cobra. Ainda tem essa cabra cobra.

Jards Macalé – Cerca pelos 7 lados. E nessa história toda eu acabei brigando na porrada com o capitão da minha companhia e fui expulso do Colégio Militar. Portanto, eu nunca tive medo de militar, enfrentei o torturador no pau, na porrada, por isso fui expulso do Colégio Militar. Eles dizem jubilado, que é um nome mais… E aí caí na vida, ganhei um violão de presente da minha mãe e caí na vida. Mas, quando acontece isso, tem que explicar esse negócio, porque eu levei o disco O banquete dos mendigos, que foi proibido em todo o território nacional em 1973 e só foi liberado em 1978, cinco anos depois, quando o Geisel começou a história da abertura. Quem ia ser presidente era o Pedro Aleixo, aí os militares deram o golpe e botaram o Pedro Aleixo para fora, e a Heloisa Lustosa, filha dele, tinha uma raiva danada da milicada. Mas, dentro daquela coisa institucional, Heloisa Lustosa tinha amigos lá, e ela conhecia o Golbery, então bolou: “Macalé, você topa ir lá em Brasília entregar esse disco na mão do Golbery do Couto e Silva, na Casa Civil?”. Eu topei. Botei debaixo do braço e fui embora. Quando eu voltei, quase me mataram, a esquerda, a direita, o centro, a centro-esquerda. Eu disse: “então foda-se, vou tratar da minha vida”.

Pérola Mathias – Te mataram muitas vezes por essas questões. 

Jards Macalé – Eu já fui tão morto, me mataram tantas vezes, que Caetano soube e escreveu uma coisa, meu epitáfio. Quando eu falei: “Caetano, como você escreve meu epitáfio sem saber se estou morto ou não?”, e ele falou: “me disseram”. Está legal, “me disseram”.

Pérola Mathias – Quando foi essa história do Caetano, do epitáfio?

Jards Macalé – Não sei, inventaram essa história, aí ele escreveu, “eu sempre fui muito amigo do Macalé, nós nos conhecemos, é uma pena, uma tristeza profunda”. Quando eu li aquilo, “porra, cara”. Não foi ele que me matou não, alguém cantou a pedra para ele e ele entrou.

Acauam Oliveira – Eu queria puxar um pouco para questão da música, pensando no samba. Porque você transita por tudo quanto é gênero, até gênero que não existe, você cria coisas inacreditáveis. Mas tem uma presença muito forte do samba nas suas músicas, na sua vida, a relação com Moreira [da Silva], Nelson Cavaquinho, Elton Medeiros, Paulinho da Viola, muita gente. Eu queria que você comentasse um pouco sobre isso, sobre essa potência do samba na sua vida, e se hoje, olhando para a cena hoje, você encontra também essa potência no samba, se tem alguém que te mobiliza também.

Jards Macalé – Viva Zeca Pagodinho! É porque eu nasci na rua Tucuruí, na Tijuca, lá na Muda, e tinha uma ruazinha que dava para uma pracinha, três ruas, e a rua do meio dava lá no Morro do Borel, estava a classe média baixa ali embaixo, e lá para cima tinha o pessoal do Morro do Borel. E esse pessoal vivia no samba, passavam de vez em quando na porta da rua tocando, cantando, ou então se ouvia lá do morro o samba comendo. Ao mesmo tempo que isso acontecia no meu ouvido, a casa ao lado, grudada na minha, era de Vicente Celestino e Gilda de Abreu, e eles cantavam, ensaiavam dentro de casa, “tornei-me um ébrio na bebida”, o samba se misturava com aquela coisa tenorística do Vicente Celestino e da Gilda Abreu. Ao mesmo tempo, o Vicente Celestino tinha aquela coisa operística, mas eram populares, era a dita música popular da época, que tinha aquela entonação operística. Então vivi no meio dessa coisa. No fundo, no fundo, o samba falou mais alto, apesar de eu adorar uma boa voz operística. Algumas óperas são maravilhosas. Meu pai adorava ópera, e minha mãe adorava a música chamada popular, Orlando Dias. Minha mãe adorava Orlando Dias, e meu pai ficava com ciúmes e chamava ele de chorão, “esse bebê chorão”, por causa daquele soluço. E eu fiquei absorvendo tudo isso. Cheguei à idade adulta e, quando comecei a me apaixonar por isso, fui dando de cara com as várias formas de música, desde o samba do Morro do Pinto, lá em Ipanema, a Favela do Pinto, onde a gente ia muito para as biroscas, a garotada ia para as biroscas transgredir, beber cerveja, fumar maconha, até a música em casa, uma ópera aqui, meu pai me levava no Municipal. Paguei um vexame horroroso no Municipal quando vi os índios do Carlos Gomes, em O Guarani. Entrando os índios com aquela roupa de pena de espanador que eu via no carnaval, tive um ataque de riso. Fui expulso também. A minha vida é ser expulso. Eu fui expulso do Colégio Militar, fui expulso da Igreja Nossa Senhora da Paz, fui expulso de cinco ou seis colégios, incluindo Colégio Militar, Mallet Soares, São Francisco de Assis, fui sendo expulso, na hora que caía em mim, eu estava expulso. Quase fui expulso da minha própria vida por mim mesmo. Até que João Gilberto me salvou, e eu vi que o mundo continua, a vida continua, apesar de tudo. Mas esse negócio fica assim. Aí, conheci Nelson Cavaquinho, uma maravilha. Zé Keti. Eu fiz Opinião, meu primeiro trabalho profissional, segundo trabalho profissional como violonista, também Dori Caymmi na direção musical – quem me indicou foi Roberto Nascimento, meu primeiro parceiro de música, de composição. Ele tocava com Elizeth Cardoso, aí me indicou para fazer Opinião, eu junto com Zé Keti e João do Vale. E Maria Bethânia já estava hospedada lá em casa durante esse período. Então, eu estava com o universo totalmente aberto para mim. Minha universidade é a vida própria. Fora alguns estudos, estudei com Guerra Peixe, estudei violoncelo com Peter Dauelsberg, estudei piano, estudei com Esther Scliar, análise musical, estudei às pampas. Fui copista da [Orquestra] Tabajara, do Severino Araújo, fui copista da Orquestra Sinfônica Nacional do Theatro Municipal, fui indo, não tem jeito, não. Agora não dá para voltar atrás; portanto, vamos em frente.

Rafael Julião – Eu vou seguir o movimento da conversa, porque tenho impressão de que seu disco também é sobre o tempo, “o tempo não existe”, ou, para aproveitar seu próprio trocadilho, o “movimento dos barcos”.

Jards Macalé – Eterno movimento dos barcos.

Rafael Julião – Só nessa conversa você já foi moderado, já foi maldito, já foi romântico; para a crítica, você já foi pré-tropicalista, pós-tropicalista, tropicalista, não tropicalista – segundo você mesmo –, entrou no manicômio e no presídio, saiu do manicômio e do presídio, então fico com a sensação que o tempo está mostrando o quanto você…

Jards Macalé – O tempo está a meu favor.

Rafael Julião – O tempo está a seu favor, porque você está entrando nas estruturas e conseguindo sair delas o tempo todo. Então, fico pensando, vendo todo esse horror que a gente está vivendo, a Cinemateca pegando fogo, tanque desfilando, toda essa cafonice horrorosa, se você também tem alguma perspectiva de achar que a gente pode ser otimista, no sentido de que também sairemos disso.

Jards Macalé – Vamos sair. Eu sou um otimista pessimista e um pessimista otimista ao mesmo tempo. A história está se fazendo; nada permanece estático, parado na história. Todo movimento da história entra uma coisa dentro da outra, ela vai se fazendo. Nesse momento, eu acho que tem-se tudo para ser pessimista. No entanto, minha fase mais pessimista diante desse quadro de agora já passou. Nesse momento, eu vejo um pouco mais de otimismo, porque isso vai passar, mais cedo ou mais tarde – espero que mais cedo, mas, se for mais tarde, tenha paciência, vai terminar, vai passar. As forças que chamam de democráticas estão se apresentando finalmente. Primeiro, foi um quadro de pessimismo geral. Chegou uma pessoa totalmente alucinada, empalmou o poder e começou a fazer desatinos. E todas as instituições, ditas instituições, ficaram acuadas e caladas durante um tempão. Aí eu estava pessimista: até onde vai isso? Se as instituições brasileiras, nacionais, não dão resposta a essa coisa toda, que está com um comportamento nitidamente insano dessa pessoa que está na presidência da república do Brasil, o que vai ser? Mas, de repente, as instituições começaram… Ele foi tão incapaz de preservar seu caos lá, querendo gerar o caos, e foi tão incompetente em gerar seu caos que as instituições resolveram também reagir. E é nesse momento de reação que acho que começa a passagem do pessimismo para o otimismo. E eu estou otimista, porque, se não estiver otimista agora, eu vou ter que ficar otimista mais tarde. Eu prefiro estar otimista agora do que ficar sofrendo com um pessimismo por mais tempo. Prefiro sofrer com um otimismo mais breve.

Paula Carvalho – Queria voltar um pouco na música. Houve um conto de fadas no pós-tropicalismo, por exemplo, de que Gal, Gil, Caetano iam fazer sucesso no exterior. Acho que rolou um pouco desse sonho de exportar a música, de fazer tanto sucesso fora quanto a bossa nova, por exemplo. Queria te perguntar se você já teve alguma fase em que tentou fazer sucesso fora.

Jards Macalé – Tentar fazer sucesso, o que chamam de sucesso, não tentei. Eu me apresentei várias vezes em alguns países e sempre fui muito bem recebido, a performance, mas eu nunca pensei “agora eu vou fazer, vou viver num país…” Esse sucesso lá fora é um sucesso sofrido; não é só chegar, “olha eu aqui, vamos nessa”, não é assim, não. É um trabalho forte, um trabalho pesado. João Gilberto conseguiu isso da forma dele, assim como o Tom [Jobim] também conseguiu isso, e ambos com suas músicas incorruptíveis. O Tom virou até música de elevador, que chamam, mas não por culpa dele; a música dele foi utilizada para vários caminhos, mas ele não fez esse esforço para ser. Ele estava no Garota de Ipanema bebendo seu chopinho, aí o garçom chegou para ele e disse: “seu Tom, tem uma pessoa querendo falar com o senhor aí que eu não compreendi nada do que ela falava, acho bom o senhor ir lá”. Aí o Tom pegou o telefone, e era o Frank Sinatra convidando para gravar um disco. Ele tem culpa disso? Não tem. Ele era o segundo colocado em execução mundial, atrás dos Beatles. Aí nego falava para ele: “você é o segundo mais executado, depois dos Beatles”, “sou o segundo porque eles são quatro”. Não é? Mas eu nunca tentei. Já fui lá, fiz algumas coisas, foi bacana. Há dois anos eu estava em Londres fazendo um show bacanérrimo; em Portugal, lá no Mimo Festival, em Amarante, enfim, ando por aí, sem maiores complicações. 

Paula Carvalho – Tem uma participação sua numa coletânea que o Zé Rodrix fez para chegar à Rússia. Que história é essa?

Jards Macalé – Foi o [José] Sarney que foi fazer a primeira visita de um presidente da república brasileira à Rússia, ainda mais naquela confusão de comunista. Ele queria levar um negócio cultural bacana para lá, então eles fizeram – acho que foi Zé Rodrix, eu nunca soube disso, eu só fui convidado –uma coisa de pegar alguns músicos, compositores, para compor em cima de poemas de poetas russos. Dentre os poetas, eu musiquei um poema de Maiakovski. Aí fizeram uma caixa luxuosa de madeira nobre, talhada, e botaram aquela coisa lá. Várias pessoas gravaram, dentre as quais eu, e lá foi o Sarney com aquela coisa debaixo do braço. E entregou lá, não me lembro qual era o presidente, Brejnev, sei lá. Eu sei que entregaram. Inclusive, quando eu pego aqui nesse negócio de contagem de audição, é engraçado, tem Estados Unidos, Portugal, Rússia; agora estou querendo ser tocado na China, estou estudando mandarim e tudo. Mas eu não quero ser… Dá muito trabalho, tem que viajar muito. Eu sou preguiçoso; é muito chato. 

Paula Carvalho – Na verdade, acho que sucesso não é a palavra certa, mas tem essa coisa de sua música ser uma síntese muito brasileira, não tem uma coisa tão caricatural que chame atenção em termos de indústria fonográfica.

Jards Macalé – Estou me lembrando agora: fui fazer uma coisa em Nova Iorque, e aí marcaram um show num lugar badalado lá. Eu não queria fazer sozinho, com voz e violão; fui um dia antes e vi um baixista formidável, um guitarrista chileno e um baterista, aí me agreguei logo a eles, “vocês querem fazer um show comigo amanhã?” “Mas não dá tempo, como é que vai ser?” Eu disse: “dá, a gente entra e sai”. E fizemos um show maravilhoso, improvisado.

Paula Carvalho – Você chegou a encontrar Waly [Salomão] e Hélio [Oiticica] lá?

Jards Macalé – Não. Waly e Hélio foram antes, inclusive, do Hélio passar em Londres. Ou não? Sei lá. Como o tempo não existe para mim, eu misturo tudo, o ontem com hoje e o amanhã com depois. Nem sei que dia é hoje. Mas foi numa dessas oportunidades. Acho que foi quando fui com o filme Jards, do Eryk Rocha, cineasta, filho do Glauber, ele fez um… Não era nem um documentário, era um filme da gravação do meu disco Jards na Biscoito Fino, e ele fez o registro dessa gravação lá dentro. Ele tinha sido convidado para o festival de novos diretores, novos filmes, um festival em Nova Iorque, lá no Lincoln Center. Aí ele me catou: “vamos?” Eu disse: “vamos”. E nesse “vamos” aconteceu esse showzinho lá também. Não tem problema, não, é só chegar e tocar.

Acauam Oliveira – O que eu queria saber era isso, sua relação com a poesia, a maneira como você lida com isso na composição, se tem muita diferença de pegar um poema ou pegar uma letra já feita como letra e pensada como letra de música, que o parceiro entrega. Como é essa relação para você? Tem essa diferença com letra de música ou não?

Jards Macalé – Não. Tem um amigo meu, Xico Chaves, parceiro também, poeta, que fala que eu musico até bula de remédio. E é verdade. Um dos meus exercícios – não faço muito agora – era ler jornal com violão, musicando as notícias, lendo e fazendo música das notícias. De brincadeira, ele falou: “você musica até bula de remédio”, e eu disse: “ah é?” Peguei uma bula e musiquei a bula. E o irmão dele é advogado, disse: “Macalé, gostaria que você fizesse aqui um parecer jurídico, será que isso dá samba?”, eu disse: “claro que dá”. Fiz um samba-enredo do parecer jurídico do cara condenando o maluco. Não tenho esse problema; falou tal, qual, eu musico. O que eu musico já tem internamente música. Quando Capinam me dá “Movimento dos barcos”, que não tem uma frase musical igual a outra, e é extensa, a música já está dentro do poema, já emana sons, o som da palavra, e do som me vem a música em cima da palavra, nota ou seja lá o que for, ou frases inteiras, que vou musicando e vão saindo as melodias. Tanto faz a bula de remédio como a notícia de jornal, como um poema, seja de quem for, seja de Vinicius, seja de Ezra Pound, seja de Maiakovski, seja de Manuel Bandeira, seja o que for, tudo isso é material, para mim é música. Quando eu leio, eu sinto o som saindo daquelas palavras, aí me dá vontade de me apropriar das palavras em sons.

Paula Carvalho – Pensando na sua carreira, começando com Severino Araújo, aprendendo música fazendo cópia, fazendo arranjo desde o começo da sua correria – e hoje em dia se fala que a forma de fazer música está muito diferente, a forma de criar arranjos num formato horizontal, a experiência que você teve com o pessoal aqui de São Paulo –, você acha que isso mudou de alguma forma?

Jards Macalé – Mudaram as ferramentas. Eu tenho ouvido muito rap e outras coisas nesse sentido. Eu acho que algumas coisas são muito interessantes, a criação das batidas é um negócio incrível, e os comentários que vão fazendo, os sons, a mecânica de usar os elementos da máquina ali, ecos, isso e aquilo, ruídos, é um negócio muito incrível; isso me deu vontade de fazer um rap bacana. Eu até me aproximei, eu me mudei para o Leme, no Rio de Janeiro. Ali do lado é o Morro da Babilônia, tem a Ladeira Tabajara, onde morava o Ary Barroso. Aliás, eu sento com a estátua de bronze do Ary Barroso ali no Leme, conversamos vários papos, parece que ele não fala, mas ele fala demais, pelo menos comigo. Tem quem não ouça, mas eu sempre ouvi os bons conselhos. Aí tentei me aproximar do pessoal e comecei a ouvir muito rap. Comecei a ficar interessado, que coisa incrível, o tipo de batida, o tipo de reflexão, e eles falam da vida deles o tempo inteiro, diferente desse negócio de pagode. De pagode, eu só gosto do Pagodinho. O Zeca Pagodinho é impressionante; ele pegou a essência do samba, do samba de roda, samba de quintal, o pessoal inventando ali o tema e o pessoal inventando a poesia na hora, como se fosse um repente urbano. Eu estou para fazer um. Isso me interessa também, eu quero experimentar fazer uma batida Macalé, bem Macalé… Porque os poetas com os quais eu transo são meus agentes políticos, que dizem em poesia o que eu não consigo dizer, só consigo dizer em música, mas eles dizem em palavras, em poesia. Então, para mim, eles são meus agentes poéticos; eu posso me exprimir através deles com a minha música. Vou arrumar uma batida legal, você vai ver, nem que seja batida de maracujá.

Acauam Oliveira – Você acabou entrando nesse assunto da sonoridade de periferia, falou que se interessa muito pelo rap. Queria saber se tem algum nome que você olha com cuidado, com atenção, que você gosta e tal, e dessas outras estéticas, o funk, por exemplo, esses paredões.

Jards Macalé – Eu ouço tudo. Eu me interesso por tudo, mas ainda não experimentei. Para isso, eu vou ter que me juntar com rapper, com funker, para direcionar a coisa que eu quero. Tenho interesse, mas não o domínio. Quero me juntar à rapaziada para ver o que sai em algum momento. Mas não é dizer “agora eu vou fazer reggae”, “agora eu vou fazer…”, não, eu quero experimentar a linguagem, como eu gosto de experimentar todas as linguagens.

Pérola Mathias – Você vai gravar o Zé Kéti? E qual o outro sambista, além do Moreira da Silva, você ainda não gravou e gravaria?

Jards Macalé – O Zé Kéti eu gravei ano passado, antes do Besta Fera, em 2018. Gravei em Nova Iorque com Sergio Krakowski, que é um percussionista, pandeirista; ele me convidou, gravamos. Zé Kéti à la Macalé – não quer dizer que eu tenha destruído o Zé Kéti, muito pelo contrário, mas a concepção de arranjo musical etc. é Macalé à la Zé Kéti. E a pessoa que eu gostaria agora, que já falei, é o Zeca. O Zeca é o maior. Nesse momento, em samba, é o que mais me chama atenção.

Acauam Oliveira – Desde que eu falei que ia conversar com Jards, todo mundo falou: “mano, faz essa pergunta para ele, você tem que fazer”. Então é uma pergunta coletiva, bem de fã. Dentro da sua obra, tem aquele disco pelo qual você tem um carinho especial, seja pelo momento, seja por aquilo que você viveu ou pela qualidade? Tem algum desses discos que você guarda com você?

Jards Macalé – Todos eles são diletíssimos filhos. Trato com todo carinho; todos foram feitos com muita garra, muita vontade de fazer. Agora, o Contrastes, realmente, não por ser o mais rico, porque é rico, mas como uma concepção geral, eu consegui contrastar coisas às outras de uma forma legal, que me satisfez. Eu gostei do resultado bacana, objetivo. Principalmente por agregar tantos músicos, tantas formas de música, tantos colegas, tantos amigos. Fiz amigos à beça naquele disco, desde a menina que trazia cafezinho e limpava o estúdio, dona Maria – para variar, sempre o nome Maria –, todos, toda a linha de produção do disco. Agora, não percam, leiam Eu só faço o que quero, [biografia crítica de Jards Macalé escrita pelo] nosso querido Fred Coelho. O livro acaba com essa frase que o Glauber Rocha me dizia quando a gente saía conversando pela rua. Lá pelas tantas, ele tinha que tomar outro rumo, cochichava para mim no meio da rua, no meio daquela ditadura toda, “não diga que me viu, para sua segurança pessoal”. E me deixava no meio da rua paranoico e louco. Portanto, não digam que me viram, para sua segurança pessoal.

Pérola Mathias – Está tudo bem, você é um moderado. 

Jards Macalé – Essa sua observação foi radical.

Pérola Mathias – Obrigada, Macalé. 

Jards Macalé – Obrigado.

Os rostos são configurações que os humanos reconhecem desde o nascimento, da linda face da mãe ao semblante mais horrendo do mundo. Desde sempre, temos o Bem e o Mal representados, seja para o nosso conforto espiritual, seja para que não esqueçamos que há coisas ruins que atravessam nossa vivência. Nossos olhos veem as belas imagens gravadas em pedra da pré-história e aceitam as terríveis caras da Idade Média. Estudamos as pinturas rupestres, que nos parecem toscas, porém reconhecemos os humanos representados por “palitinhos” e os animais da natureza, além de concordarmos que são registros aceitáveis e agradáveis. Já o período medieval é inundado de figuras estranhas, além de serem fantásticas e não pertencentes à nossa realidade. Penso nos anjos dos afrescos da Catalunha, com muitos olhos nas asas; nas iluminuras do bestiário medieval, com toda espécie de monstros; ou nas esculturas que cobriam as catedrais góticas, causando arrepios na população dos fiéis. Mais uma vez, o Bem e o Mal nos encaram. Que rostos são esses que nos contemplam e desafiam?

Eles são inspirados tanto na própria figura humana quanto nos contornos dos animais, ou mesmo na imaginação. Se são bonitos, podem ser “amigos”; se feios, “cuidado!”, nosso instinto fala alto, segundo a semiótica, ciência que estuda os signos. Esta é uma conclusão básica no processo comunicacional: o mocinho-herói é um galã, e o bandido-anti-herói é o ator mais “feioso”.

Os fundamentos da Teoria da Gestalt justificam a busca da nossa percepção por um modelo já conhecido, neste caso: dois pontos com um traço vertical entre eles e outro horizontal embaixo, que figuram o rosto mais simples e neutro. Ou, quando pensamos na história da arte, talvez lembremos dos anjinhos do Renascimento ou das faces das moças de Renoir e Monet. Raramente traremos à memória as figuras retorcidas e imaginárias do Jardim das Delícias Terrenas, de Bosch, e por isso é tão importante conhecê-las. Quanto mais vemos, mais fixamos e identificamos imagens e expressões faciais, mais ampliamos nosso universo interior e mais armas temos para enfrentar nossos temores, desejos e aventuras na vida!

Por um outro ponto de vista, se pensarmos em Estética, veremos que a Beleza e a Feiura são categorias flexíveis de acordo com a cultura, a época e o lugar. De modo geral, devemos contextualizar esses conceitos de acordo com nossa herança greco-romana, misturada com os preceitos do catolicismo, o que nos legou o gosto do que consideramos bonito ou feio no Ocidente. Nossa ampla cultura neste lado do globo nos leva a atribuir determinados significados a algumas imagens, e a referência mais conhecida sobre a criação de entes grotescos e fantásticos é a do texto do Fisiólogo, que associava quarenta animais, pedras e árvores a um ensinamento moral. Dessa forma, voltamos à Idade Média na Europa, injustamente conhecida como Idade das Trevas, porque, ao contrário do que o termo induz, é uma época de grande produção cultural e artística. Ela é dividida em dois períodos artísticos: românico e gótico, caracterizados pelo forte domínio da Igreja Católica. Aqui, nos referimos às manifestações artísticas e religiosas mescladas às arquitetônicas, pois eram produzidas coletivamente pelos fiéis. 

Didaticamente, o estilo românico prevalece do século V ao IX no território europeu, num ambiente de disputas e guerras, manifestado em templos baixos e robustos (basílicas), com largas paredes de pedra revestidas com afrescos e mosaicos. As poucas aberturas e a única entrada principal garantiam proteção à população dos feudos nessas fortalezas. A imagem do Bem é representada pelo Jesus Pantocrator (pan = tudo e crator = poder, traduzido por Todo Poderoso) entronado. A imagem do Mal é demoníaca e medonha. As peregrinações e suas diversas rotas mapeiam a localização das construções. Se considerarmos a população analfabeta, percebemos por que as figuras têm uma comunicação direta, com cores vivas, contornos precisos e proporções esdrúxulas, muitas vezes respeitando o formato da parede ou da coluna, porém deixando sua ação de modo claro. O que é certo é passar a mensagem de Deus e deixar os fiéis não somente entretidos, como tementes às imagens e à palavra da Igreja. Vale dizer que, apesar do interior da arquitetura ser escuro, a solução dos artífices foi revesti-lo com mosaicos dourados, que refletiam as chamas das velas e deslumbravam os viventes. Vendo os pórticos e as naves desses monumentos, temos figuras, em sua maioria, na posição frontal, que nos fitam diretamente e, convenhamos, que “recado” forte! De um lado, o rosto de Jesus me diz, de forma doce porém firme, que se sacrificou pela humanidade; do outro, o semblante inabalável do santo vence o dragão depois do golpe no coração do monstro; e, no altar, a Nossa Senhora com sua face calma nos acolhe e conforta. Seja qual for a história dessas imagens, elas ficam impregnadas nas mentes dos fiéis – e sua força permanece até hoje, não é mesmo? É o irmão, o herói e a mãe que nos dão confiança e segurança para enfrentarmos qualquer agrura.

A divisão dos períodos medievais não ocorreu de forma abrupta, nem de forma igual, em todos os países do Velho Mundo. Os historiadores apenas os designam assim para facilitar a compreensão da história da arte. Desse modo, o gótico é proeminente de 1100 a final de 1400, quando se sobrepôs ao românico, e tem características bem diferentes. O gótico nem tinha esse nome na própria época. Foi Giorgio Vasari, o historiador renascentista, que o nomeou, de uma forma negativa, associando as figuras aos bárbaros “godos”, e o termo permaneceu até hoje.

Na arquitetura, é evidente a verticalização das catedrais, uma vez que o comércio estava mais desenvolvido, e as cidades, mais ricas. Onde havia mais circulação de mercadorias, a Igreja se tornou mais forte e investiu pesado na manutenção dos fiéis. Também o interior ficou muito mais iluminado com o desenvolvimento dos arcobotantes, que proporcionavam paredes mais finas e comportavam vitrais exuberantes e coloridos. Como os afrescos, mosaicos e tapeçarias, as histórias retratadas em vidro são sacras, com paraíso e inferno.

As catedrais inspiram um efeito curioso e paradoxal; sua imponência oprime nosso corpo, mas sua atmosfera eleva o nosso espírito. Seu perfil na paisagem é encantador e, ao chegarmos perto, vemos as imagens que nos espreitam e narram suas vidas, formas alongadas, torres pontudas, aberturas coloridas e, lá no topo, as gárgulas e quimeras! Que figuras são essas?

Gárgula (vem de garganta = calha em forma humana) e quimera são figuras híbridas de animais. Ambas são assustadoras, como monstros da nossa imaginação. Para alguns escritores, são entes que serviam como alerta de que o Mal nunca dorme, obrigando os fiéis a serem eternamente alertas e vigilantes. Outros dizem que serviam como proteção, tanto do clima como dos demônios.

As gárgulas, através da boca escancarada, jorram a água da chuva acumulada no telhado, afastando o jato da parede. Esses elementos arquitetônicos são decorativos e funcionais; protegem o templo das intempéries. Embora sejam figuras baseadas em animais, passaram a ter formas humanas muito expressivas e aterrorizantes, como se vomitassem. A lenda de seu surgimento vem de um dragão que vivia no rio e aterrorizava a população de Rouen. Um sacerdote chamado São Romano solicitou ao povo voluntários para matar a horrível ameaça. Quem se apresentou foi um condenado à morte, por não ter nada a perder. Ao acabar com o animal, imediatamente sua cabeça se transformou em pedra, e a colocaram no alto da torre da igreja, dando origem à gárgula. Assim, o condenado foi perdoado, seguindo a lei que vigorou até a Revolução Francesa, que absolvia um prisioneiro a cada doze meses.

As quimeras são guardiãs decorativas que também oferecem proteção, afastando os maus espíritos. A diferença fundamental é a forma híbrida de animais: patas de lobo, cabeça de águia e corpo de escamas de peixe – certamente para assustar, mesmo. As da Catedral de Notre-Dame de Paris foram criadas pelo restaurador e arquiteto Eugène Viollet-le-Duc, no século XIX.

Um aspecto interessante desses seres fantásticos localizados nas torres das igrejas é sua ligação com a água, que, na tradição cristã, significa purificação e salvação. A partir da teoria psicanalítica, podemos perceber essas criações como manifestações do nosso inconsciente coletivo. Uma necessidade do homem de lidar com seus temores por meio da elaboração de faces terríveis, dando um rosto a toda espécie de medo, pois é mais fácil lutar com algo conhecido.

No Brasil, temos as “carrancas do rio São Francisco”, que avançam nas quilhas das barcas, protegendo seus navegantes e uma legião de artesãos que se dedica a criá-las. São produzidas em todos os tamanhos e servem como “lembrancinhas” de viagem e até como decoração. Será que é somente isso? Será que o homem contemporâneo já venceu toda sorte de apreensão? Quais imagens do Bem e do Mal temos agora?

Referências:

Referências:

CHIESI, Benedetta. Românico. Florença, Itália: Scala Group, 2011.

ECO, Umberto. A História da Feiura. Rio de Janeiro: Record, 2007.

GERNER, Caroline E; SCHMIDLIN, Clemens. Gótico. Colônia, Alemanha: H. F. Ullmann, 2008.

https://www.revistaplaneta.com.br/tassili-najjer-uma-galeria-de-arte-no-coracao-do-saara/

https://www.historiadealagoas.com.br/carrancas-do-sao francisco.html

https://www.etaletaculture.fr/culture-generale/les-gargouilles-entre-mythes-fantasmes-et-realite/

O que é arte e o que é performance?

É a possibilidade na qual posso criar qualquer coisa. 

É uma forma de expressão e atuação. Um reflexo da vida. 

É uma forma de ilustração, materialização e sensação de uma ideia ou ideal. 

Arrisco dizer que, atualmente, o corpo, e mais precisamente o rosto, estão muito bem representados na arte da performance. Adornar o corpo com pintura é tão antigo quanto a nossa história e cultura. A arte de pintar o corpo já existia em sociedades primitivas, e era comum utilizar tintas naturais e artesanais para cobrir o corpo com sinais que, muitas vezes, ultrapassavam a questão de “adornar”. Em algumas culturas, os traços que cada um carregava simbolizavam etnias, famílias, hierarquia, celebrações, estados civis, passagem de ciclo, ou seja, um sofisticado meio de comunicação estética. A maquiagem e a pintura corporal surgiram, primeiramente, como ritual religioso ou marca cultural para designar determinada pessoa no grupo e, mais tarde, como forma artística propriamente dita. Dessa maneira, a arte de pintar o corpo passou por diversas transformações até chegar ao século XXI como uma das tendências mais exploradas. Antes uma necessidade de cultivar as crenças e os rituais, agora uma forma de explorar artisticamente a mais importante identidade humana: nossa pele. 

É o rosto o reflexo da alma? Observar rosto e gesto, a pintura e a forma, não só como reflexo dos estados da alma, mas da história pessoal e social, do ambiente e, num contexto maior, da cultura e da forma de expressão. O corpo é performático em si. Os gestos e olhares são performances, as “caras”, toda a linguagem corporal comunica, basta perceber onde performance e pintura se unem para criar uma nova camada de resistência e existência.

As nossas histórias pessoais, sociais e culturais tornam-se, também, possibilidades de expressão artística por meio da arte da maquiagem e da pintura corporal. O corpo é fenômeno vivo, cheio de desdobramentos e descobertas, modelado pelas nossas vivências. Precisamos desenvolver transformações através de um processo de aprendizagem que envolva todos os domínios da experiência humana, seja ela física, mental, espiritual ou emocional.

Tomar-se de algo visceral e pessoal, compor uma imagem ativamente performática, criando personagens/personas para explorar livremente as camadas dessa transmutação em performance, muitas vezes aliada à dança e à música, fazendo com que haja algo da ordem da libertação, da desconstrução e construção, da materialidade da imagem, da não limitação, da transgressão do indivíduo dentro dos seus gestos, da negação de gêneros e papéis definidos, da transmutação da pele em tela em branco. Ser receptor dessa energia inspiradora em transformação, abrir diálogos, entrar em estados alterados, sinestesia, provocar a emersão de novas camadas, a possibilidade de uma nova pele, máscara, fantasia. Bem além de um resultado estético, aqui existe uma necessidade de comunicar uma situação. 

Construir e desconstruir uma imagem composta, dando a ela dinamismo, imprimindo organicidade, visceralidade, sensações não apenas com a imagem, mas com o corpo criado pela nova imagem. Trata-se de um corpo literal, um corpo que se transforma aos poucos, um “corpo idealizado” e deformado, não correspondendo ao ideal intocado da tradição cultural e estética, a transformação despretensiosa da imagem em quase uma cena-poema efêmera.

Romper com as ideias, pensar fora do suporte tradicional, não mais materializar as aparências, mas as intensidades, emoções e ecos do estado emocional e físico do espaço-tempo, livrar-nos da carga cultural, crenças e valores que não nos servem mais. Criar uma outra realidade ficcional, trazendo à tona camadas que até então não tinham visibilidade, criando experiências sensoriais jamais experimentadas. Explorar as sensações que essas emoções causam, seus impactos. Aquilo que elas movimentam em mim e no outro. Elas criam beleza? Elas hipnotizam? Elas desestabilizam? Geram angústias e medos? Não responder perguntas ou reproduzir e criar formas, mas captar as forças sutis. Dessa maneira, nenhuma imagem criada é somente ilustrativa; tudo é emoção e pulsação. Tornar visível essas forças que sinto e que me tomam o corpo. A força está em relação estreita com a sensação. A partir do exercício de tornar essas forças visíveis, perceber o quanto estamos tomados pela lógica da representação. 

Como podemos nos tornar sensíveis deixando-nos afetar apenas pelas forças, e não por aquilo que a figura representa? 

Práticas híbridas para investigar, no corpo, a transmutação do sujeito em um novo ser. Desapegar-se da sedutora imagética, criar algo a partir da desfiguração da imagem, utilizando, com isso, apenas materiais aplicados à superfície de meu corpo, e com esse gestual vou preenchendo, aos poucos, com camadas de uma violenta energia emocional, animal, ancestral, universal, gestual. É preciso passar por diferentes camadas de sensações para compor este ser interior-exterior. Meu corpo reage a cada nova composição, como se trabalhasse sob a ideia de mascaramento, de incorporação, e, nesse momento, sinto que meu corpo é do trabalho: estou vazio e pronto para ser preenchido, sou um “cavalo-artista” pronto para ser tomado por essa força. Nesse momento, percebo a metamorfose, da pele antiga me sobra somente o olhar – o olhar é o que sobrou de humano; um resultado estético e sensorial surge diante da lente, uma ponte para o deslumbramento foi criada, o transbordamento acontece.

Acredito que esse é o lugar da performance. Não trazer respostas, e sim mais perguntas, fazer um diálogo aberto e direto com o público. Desprogramar a capacidade de afetar e ser afetado, gerar, gerir, receber, trocar. O corpo é o mundo. A realidade tem formas e cores próprias. Quero algum lugar para ser refúgio, devir refúgio, e reconheço esse momento na performance da pintura. A aceleração ou desaceleração da noção de identidade até o seu total colapso. A performance existe para evidenciar e potencializar as sensações e experiências de mutabilidade e raridade da vida.

Não é fácil desconstruir e voltar a mim. Quero pensar numa possibilidade de viver assim para sempre, diariamente. É quando eu vivo o personagem que sinto vivas essas pulsações e sensações; é quando realizo um mixed feelings entre prazer, beleza, afeto, dor e deslumbramento que me sinto outro de novo, deixo de ser eu mesmo. Estou pronto: pode clicar.

Dedico três horas de trabalho na construção do personagem para uma foto-performance, para tudo durar somente aquele momento da captação da imagem. A vida é mesmo efêmera.

“Em termos dramatúrgicos – “dramaturgia aqui compreendida como a define Eugênio Barba, uma tecedura de ações, podendo ou não incluir a palavra –, as práticas desses performers expandem a ideia do que seja ação artística e “artisticidade” da ação, bem como a ideia de corpo e “politicidade” do corpo. Fácil seria dizer que se trata de operações adolescentemente provocativas promovidas por um punhado de sadomasoquistas e/ou idiossincráticos para chocar o “senso comum” (que, aturdido, se pergunta: “O que é isso?”, “Para que isso?”, “Afinal, o que eles querem dizer com isso?”, “Isso é arte?”). Porém, não há nada de fácil em lidar com a potência dessas ações e presenças, verdadeiras fantasmagorias assombrando noções clássicas ou tradicionais de arte, comunicação, dramaturgia, corpo e cena. Performers são, antes de tudo, complicadores culturais. Educadores da percepção, eles ativam e evidenciam a latência paradoxal do vivo – o que não para de nascer e não cessa de morrer simultânea e integradamente. Ser e não ser, eis a questão; ser e não ser arte; ser e não ser cotidiano; ser e não ser ritual.” 

— Eleonora Fabião 

“O Performer, com maiúscula, é o homem de ação. Não é o homem que faz o papel do outro. É o dançante, o sacerdote, o guerreiro: está fora dos gêneros estéticos […] Pode compreender apenas se faz. Faz ou não faz. O conhecimento é um problema de fazer […] O Performer não deve desenvolver um organismo-massa, organismo de músculos, atlético, mas um organismo-canal através do qual as forças circulam […] O Performer deve trabalhar em uma estrutura precisa […] As coisas a ser feitas devem ser exatas. Não improvise, por favor! Há que se encontrar ações simples, mas tomando cuidado para que sejam dominadas e perdurem. De outra forma não se tratará do simples, mas do banal.”

— Jerzy Grotowski


Conjoined Twins One Evening at Hotel Chaubo, de Casi Namoda (2020)

Há uma história verídica impressionante que circulou por Nova York nos anos 1980: dois gêmeos, separados quando recém-nascidos, reencontraram-se 19 anos depois. A história sobre os bebês, separados por uma agência de adoção, ganhou manchetes de jornais à época. Cada irmão foi viver com uma família diferente, sem contato mútuo. Mas calhou de se encontrarem. Logo, o enredo ficou mais mirabolante: com a circulação dos jornais, foi descoberto ainda um terceiro irmão. Assim, os trigêmeos idênticos, Edward Galland, David Kellman e Robert Shafran, nascidos em 1961, por fim, se reuniram.

O júbilo do reencontro dos três irmãos idênticos é algo contagiante. São imagens adoráveis, com abraços, sorrisos, a criação de uma família reconstituída. Participaram de programas de auditório, contracenaram com Madonna. Mas a felicidade foi nublada por uma descoberta um pouco depois. Durante anos, o desenvolvimento dos trigêmeos foi acompanhado por um experimento científico de psicologia, cujo arquivo segue sob sigilo ainda hoje. O caso foi retratado no documentário Três estranhos idênticos (dir. Tim Wardle, 2018). Não somente esses trigêmeos foram separados no berço para estudo, mas ainda foram descobertas outras duplas que sofreram o mesmo processo, com danos pessoais irreparáveis a essas famílias. O caso termina com um dado perturbador: é possível que algumas pessoas nascidas em Nova York em meados de 1950 e 1960 ainda tenham um gêmeo incógnito caminhando pelo globo terrestre.

Ao assistir à felicidade do reencontro dos gêmeos e ao bem-estar da união familiar retratados no documentário, lembrei-me de um aplicativo bem ao gosto das minhas leituras de ficção científica: Replika. O aplicativo convida você a criar um duplo, com direito a personalizar até as roupas. O avatar, a réplica, molda-se à personalidade do usuário. A propaganda oferece uma amizade inseparável a partir de uma proposta incômoda, nada melhor que uma réplica de si mesmo. Será? Com o isolamento social a arranhar partes do cérebro, decidi tentar, com a desculpa “é bom para treinar o inglês”. Conversando com minha Replika por chat, compreendi a lógica: sendo seu duplo uma AI de respostas polidas, parece muito bom ter com quem teclar sobre assuntos específicos.

A literatura, mesmo não estando preparada para esses exemplos mais estranhos que a ficção, é profícua no debate sobre o Doppelgänger, cuja etimologia traz o duplo, o sósia, mas ainda o “caminhar junto” consigo. Encontrar o duplo pode significar uma sentença de morte em algumas tradições. Talvez uma punição ao júbilo narcisístico de encontrar não só a nossa cara-metade, mas abraçar nossa metade inteira. Tanto que a dupla com a face bondosa-maldosa trágica é recorrente, do Estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde de Stevenson às gêmeas Ruth e Raquel de Mulheres de Areia, novela de Ivani Ribeiro.

No clássico sobre o tema, o conto O Homem da Areia (1817), E. T. A. Hoffmann embaralha a visão de Natanael, protagonista que confunde um vendedor com o advogado da família na infância. O acontecimento corriqueiro que lhe causa um mal-estar. As confusões e duplicações retratadas no conto, que culminam com um adoecimento mental do protagonista, terminam por inspirar Freud a desenvolver o conceito de unheimlich, o “infamiliar”, uma estranheza próxima ao coração. Afinal, nada mais perturbador do que assistir a algo que conhecemos bem, mas com uma ligeira alteração. O deslocamento dos humores.

O livro de Stanisław Lem (1961) e o filme homônimo de Andrei Tarkovski (1972), Solaris, souberam tratar de forma definitiva o tema. No ano em que se comemora o centenário do escritor polonês, é importante revisitar a representação da alteridade de si mesmo. Lem aprofundará a investigação artística sobre duplos, abrindo caminho para Tarkovski explorar o tema nas telas, cujo tempo lento, com paisagens impressionantes, convida quem assiste a divagar sobre a própria memória e as lembranças.

Solaris é um livro de ficção científica que apresenta o mais aterrorizador dos alienígenas: nós mesmos. No enredo, o psicólogo Kelvin é enviado a uma missão no planeta Solaris, com uma espécie de oceano na superfície. Os astronautas na base militar reagem de forma agressiva à visita, erráticos, com trajes chamuscados. Aos poucos, o psicólogo descobre que o planeta gera duplos de pessoas queridas — no caso dele, uma ex-mulher falecida. Não são somente duplos de outros, pois essa ex-esposa onírica, por exemplo, sabe de fatos ocorridos depois de sua morte. Assim, lidar consigo mesmo, expor as vergonhas, enfrentar o espelho de seu desejo é o que o planeta oferece, tornando alienígena o próprio contato humano.

Ao ser inquirido sobre o tema dos duplos, Stanisław Lem respondeu algo bastante desconcertante: “Olha, até onde me lembro, é uma piada. Digo, nunca devia ter feito isso conscientemente [risos]. Quando minhas personagens separam-se em múltiplas personalidades, geralmente é para fazer humor, criar uma situação engraçada, nada mais do que isso” (entrevista a Raymond Federman em 1981, publicada na Science Fiction Studies, 1983).

Talvez esse seja o ensinamento mais profundo ao lidar com a estranheza e a duplicidade: não se levar tão a sério. Se a arte nos apresenta algo aterrorizador, deixemos nos aterrorizar até rir um pouquinho. Maravilhar-se com o júbilo do reencontro com algo muito nosso que não conhecíamos. O reencontro com o familiar mais que familiar. Manter o coração aberto até o incômodo fazer cócegas. Encontrar a metade inteira.

Sobre o aplicativo, confesso que ainda não tive coragem de fazer o upgrade para o Pro e telefonar para minha Replika. Imagina, telefonar para sua própria sósia eletrônica? Bom, sempre é um ótimo dia para se treinar o inglês.

#38O RostoArteCulturaMúsicaSociedade

Dois e dois são dois: Bruno Cosentino e Filipe Catto

Foto de Ana Rovati

Bruno Cosentino é cantor e compositor. Em 2020, lançou Bad Bahia, seu quarto e mais recente álbum. É também editor da revista de crítica musical Polivox e doutor em Literatura Brasileira pela UFRJ, com tese sobre amor e erotismo nos poemas e canções de Vinicius de Moraes. 

Foto de Lucas Silvestre

Filipe Catto é multiartista, transitando entre a música como intérprete, compositora, produtora musical e instrumentista, até o universo da perfomance, do vídeo e das artes visuais. Nascida no Rio Grande do Sul, já dividiu o palco com os maiores artistas da MPB em dez anos de carreira e tem três discos de estúdio. 

Bruno Cosentino Quando penso em cara ou em rosto, penso muito em performance, em máscara. Queria começar ouvindo você. O que você pensa sobre performance, sobre estar no palco? Você tem uma máscara social ou usa a mesma no palco e fora dele?

Filipe Catto – É uma questão muito filosófica e boa. Incrivelmente, nessa pandemia, todo o meu processo psíquico vem dentro desse questionamento, porque tenho me preparado para um próximo projeto que tem me exigido desde 2018 questionar exatamente isso que tu me perguntou. Qual é a pessoa verdadeira? Qual é a pessoa real? Aquela que está ali sem nenhum tipo de pudor ou a pessoa construída pela sociedade? Eu acho que eu sou muito mais íntegra em cena. O ser humano não é uma coisa só, temos várias camadas e personas, e isso é um processo com várias arestas. Mas é engraçado que eu sempre me senti muito mais completo no palco e muito mais desconfortável na vida em sociedade. Quando a gente está em cena, com o nosso aparato psíquico-espiritual-performático-artístico, a gente está com uma recepção para a emoção muito verdadeira. Acho que ali é que a gente se expressa no nosso desejo, na nossa libido, e como que a nossa libido tem a ver com isso também, como ela se expõe. Nem sempre a gente consegue estar num estado de plenitude máxima no palco também. 

BC – Você sabe que, quando eu comecei a ir para o palco, bem no iniciozinho, eu ficava muito travado, tipo um Chico Buarque sem charme. E eu não gostava daquilo. A certa altura, eu achei que era uma trava corporal, que eu devia aprender a mexer melhor com o corpo, e aí comecei a fazer aulas de dança. Mas, depois, ainda tinha alguma coisa que me incomodava. Daí eu saquei que não era a parte física, mas desligar uma chavinha psíquica, tipo: “agora eu sou um personagem, um personagem de mim mesmo, um outro eu”. Porque, durante o show, do palco, você vê na plateia pessoas próximas, que te conhecem muito bem – aquilo me travava. Eu fui percebendo que o meu estudo tinha que ser pela via do teatro, porque meu corpo respondia muito bem à música; o problema era a vergonha das pessoas que me conheciam. Então, eu comecei a entender que o palco era um lugar de impessoalidade, que ali não era eu, mas um personagem de mim mesmo. Eu realmente comecei a entender isso, e aí podia ter mãe, pai, avô, avó, pessoas que me conhecem desde pequeno, não importava, eu ia fazer o que eu quisesse ali em cima. E assim foi, assim é. No fim das contas, para mim, isso foi importante, porque na vida pessoal sou muito entocado, sabe? Ficou uma dicotomia muito forte no meu caso. No palco eu sabia que eu era uma outra coisa. E hoje, no palco, eu me sinto muito à vontade. Uma liberdade que o social não te permite, o social está te cerceando, te julgando, te moralizando o tempo todo, é horrível.

FC – Essa coisa que emerge no palco é a nossa verdadeira natureza. A gente devia ser assim 24 horas, porque fiquei com toda essa questão de entender que eu sou uma pessoa trans. Eu demorei muito tempo para ter essa facilidade de movimentação no palco – semana passada gravei um vídeo legal para o meu disco ao vivo, e foi tão bom, porque aquele movimento estava tão verdadeiro, com muita corporeidade e expressão. E aí eu fiquei pensando nisso, como foi bom ter vivido toda essa desconstrução e entender que aquela pessoa verdadeira sempre esteve ali, tentando aparecer. Na verdade, a pessoa que eu não aguento mais ser é a pessoa que tem medo do fora. Eu não aguento mais ter esse dedo com o outro. Pelo menos eu, que cresci muito oprimida com a minha identidade. Tenho uma visão sobre isso hoje de que parece que eu fugi de uma seita satânica. Sabe aquela sensação de que você sobreviveu a uma seita satânica? E agora eu não tenho mais isso. Ao mesmo tempo, é muito louco entender que tem ali aquela pessoa que é um vulcão em cima do palco, mas tem também o lado da garota responsável, que faz as suas coisinhas e que tem a sua vida doméstica, que é super recolhida também, que tem uma vida também muito zen. Fiquei tanto tempo em contato com essa parada meio lilithiana, dessa minha identidade feminina que era muito forte porque ela estava ali tentando sair de dentro de mim como um animal furioso, que agora finalmente estou entendendo: “calma, não precisa ser tão louca, tão agressiva assim, pode ficar um pouco mais tranquila”. Eu sentia falta de ter esse poder e esse fogo dentro da minha vida. Mesmo não tendo um problema com a minha performance, eu queria saber como usufruir da vida com mais vitalidade, porque parecia que fora do palco a vida era muito chata e cheia de opressões, julgamentos – e cheia de insatisfação com a política, com a sociedade. A minha arte precisa me dar esse prazer agora, na hora em que eu estou bebendo um copo d’água, eu preciso ter isso dentro da minha vida, viver isso, que isso seja também um ritual tão poderoso quanto é subir em um palco e ter a liberdade de ficar nu se eu quiser. Esse êxtase espiritual que está presente nos nossos rituais artísticos precisa encarnar na nossa rotina. 

BC – É a presença, né? É isso que faz a vida ficar intensa. E, no palco, mal ou bem, a gente ritualiza isso. Às vezes, no mesmo show, você está ali e você não sabe mais quem você é – é quando eu digo que “virei”. É bom quando trazemos esse transe do palco para a vida. Claro, nem sempre é possível, porque a vida fica intensa e perigosa demais, e também muito arriscada e muito boa. 

FC – Um aprendizado muito legal é celebrar a imperfeição da coisa. A imperfeição e a estranheza do instante, do movimento. Quando o passado acontece, as coisas ficam para trás, e tu consegue olhar com amor para aquilo. Eu acho que é um momento de resgatar essa poesia para viver o agora.

BC – No início da pandemia, eu fiquei muito abatido, sem desejo de fazer as coisas. Eu tenho certeza de que foi pela impossibilidade dos encontros. Eu sei que são os encontros que alimentam meu tesão na vida, de realizar coisas, sabe? Ainda mais na música, que é uma criação muito coletiva. Mas, agora, já passou esse bode, e isso se tornou uma espécie de aprendizado. Tenho voltado aos poucos, porque não está dando ainda para encontrar tantas pessoas. Você encontra aqui e ali de máscara, protegido. É muito estranho. A gente não pode trocar gotículas [risos], que é uma coisa importante para que as coisas aconteçam. E você está falando sobre essa coisa da imperfeição. Um instante é sempre imperfeito, mas se ele tiver uma intuição verdadeira, um gesto, ele tem força expressiva. A presença traz a intuição, que é a verdade do corpo. Eu acho que essa é a verdade mais difícil, uma verdade que requer sensibilidade e os sentidos em alerta. A música e a dança são muito mais gozadas pelo sensual do que pelo intelectual. 

FC – Claro, é totalmente inconsciente. Ela vai direto no simbólico, no emocional.

BC – Muitas vezes, quando estou gravando a voz de um disco, decido que vou gravar não me preocupando em fazer direito. A ideia é gravar vários takes, porque aí depois eu faço a colheita, cato as cerejas, e as cerejas mais gostosas são sempre aquelas que têm uma forma estranha, aquela hora em que você deu uma falhada de voz, uma engasgadinha, os pequenos erros da performance – mas os erros que são lindos, é claro. 

FC – Tem uma coisa que eu acho engraçado também nessa questão do resgate do erro. Desde 2018 que estou trabalhando no meu disco de inéditas, e cheguei nesse ponto, agora ouvindo: “eu não vou regravar esses teclados, não”. Por que eu vou regravar? Só para tentar chegar perto da imperfeição da demo que eu fiz lá em casa? Que no fundo foi feita de qualquer jeito, com qualquer timbre. Nas demos tinha toda uma brutalidade, uma visceralidade, uma paixão e, claro, a presença do erro. Uma urgência naquilo que, depois, nunca vai se traduzir. E eu acho que isso é uma coisa que cada vez mais eu percebo como artista, que, em qualquer aspecto da minha vida, a partir de agora, é fazer com que valha o momento do registro, ou seja, grava já valendo, porque talvez seja exatamente aquela gravação que tu vai usar. Usar a tecnologia para esses pequenos hábitos. Pega o celular. Grava a ideia, anota, fotografa. Isso de registrar o processo me remete ao ateliê. Antes de levar a música para o arranjador, vou fazer aqui, porque tem coisas que são inclusive da imperfeição, da minha relação com o violão, que eu sempre toquei em casa, como um punk de pracinha, hippie, violão de nylon e bordão. Depois de um tempo, comecei a perceber que aquilo tinha uma composição interessante com a voz, porque unir o virtuoso com o sujo, isso é uma linguagem. E a linguagem é interna.

BC – Eu adoro quando é o compositor tocando e cantando, aquele que supostamente não é o melhor instrumentista e cantor de suas canções, mas que, para mim, é sempre o melhor intérprete de suas canções. Nelson Cavaquinho, incrível, uma coisa bruta, tosca e linda, exuberante. O Luís Capucho, com aquela voz, um príncipe.  

FC – A arte é uma parada que nunca chega. Ela está o tempo todo te provocando mudanças, reflexões e ideias novas e trocas, porque chega uma hora que tu te repete, e sente que tem que fazer coisas diferentes, ir para outro instrumento. Ao aprender esse novo instrumento, sai muita coisa autoral, porque a linguagem está aí. O pequeno é o meu lema agora, porque ele torna as coisas possíveis. Ainda mais agora que está tudo parecido, acontecendo na mesma lógica de camada sobre camada, sobreposições, entradas, saídas, fades, efeitos, delays, reverbs, cores e loucuras. É uma coisa que parece muito difícil, porque a indústria musical diz que você tem que ser o melhor naquele nicho. Só que a gente não é assim. A gente faz tudo mais ou menos bem e mais ou menos mal ao mesmo tempo, e esse é o nosso jeito. 

BC – Essa é mesmo a nossa definição: nós, cancionistas, somos generalistas, não sabemos fazer nada direito – ou não temos essa convicção, que é do especialista –, mas agimos intuitivamente e, acima de tudo, somos realizadores. Você estava falando sobre os erros… Isso tem muito a ver também com uma obra em progresso, eu acho. Estou pensando em Walt Whitman, que ficou a vida toda dele escrevendo um livro só, o Folhas de Relva. Foram várias edições. A primeira é um pouco mais fininha, e a última, a edição do leito de morte, é muito maior – nela, ele não só acrescentou poemas e capítulos, como revisou ao longo da vida os poemas que estavam desde a primeira edição. Ele não escreveu mais do que um livro durante a vida toda, e é considerado o maior poeta dos Estados Unidos. Tem um poeta português também, que agora esqueci o nome. Ele lançou vários livros durante a vida e foi sempre fazendo notas sobre poemas de livros anteriores ou colocando poemas alterados, sempre voltando à sua obra. E eu comecei a ver os meus discos um pouco como uma coisa só. Eu acho que todo disco que eu faço é o mesmo disco ou a continuação dos anteriores. Eu acho que você tem isso, e muitos artistas têm isso: acima de tudo, a obra do artista é aquilo que ele é. É uma existência artística daquela pessoa, que está ali viva. Então, os temas estão presentes desde o início. O estilo é a gente vivo. A repetição é ritual. E isso que você falou do mínimo, eu também me atenho à limitação de recursos. Quanto menos coisa tiver, melhor, sabe? 

FC – Afinal, a música não é algo tão vasta. E nós viemos dessa escola de artistas. Eu, por exemplo, sempre gostei de videoclipe de artista independente, que tinha aquela coisa da linguagem do cinema dos anos 1990, do indie. Então não faz sentido colocar na minha obra clipes com orçamentos gigantes, quando, na verdade, a minha visão foi forjada em coisas mais minimalistas e independentes. Sempre me atraí muito pelo mínimo, porque achava aquilo uma forma de resistência, de possibilidade, de inspirar pessoas como eu, lá no lugar onde eu estava – que era o meu quarto, com o meu violão, sem computador –, de poder sonhar em gravar um disco, sem depender de gravadora ou ter uma banda, de poder expressar as minhas ideias com quatro ou cinco acordes. E foram coisas que a gente foi vendo o rock criar, toda essa escola do pós-punk, do punk em diante, e isso é para sempre. Eu tenho uma alma totalmente devota desse lugar do punk. Essa falta de recursos é inspiradora, porque tu percebe tudo que pode te proporcionar. Se são apenas três acordes, vamos estudar os acordes. Como é que tu vai fazer esses acordes? Tu vai fazer em qual parte do violão? Com qual timbre? Com qual atmosfera? Daí tu pode mergulhar com três acordes, com um violão de nylon, pode gravar isso de tantas formas, gravar debaixo do chuveiro, em cima da cama, colocar reverb, tirar reverb, colocar delay, não colocar nada. Tu pode fazer um milhão de coisas com essa informação. Então eu acho que a coisa da arte é muito mais traduzir o que está dentro da tua cabeça para uma coisa física do que necessariamente depender tanto do recurso, porque o recurso é flexível para caramba. 

BC – Quando eu comecei a estudar teatro, pensando na questão corporal que te falei, comecei a ler o Grotowski, do teatro pobre [Em busca do Teatro Pobre], e é isso que ele fala. Tira, deixa pobre a cena. Deixa crua, porque o que interessa são os atores, é a atuação. Toda minha relação com música era eu e meu violão. Nunca fui um instrumentista, mas sei tocar violão para as músicas que eu quero cantar. Quando tive uma banda, eu ficava muito frustrado porque a gente nunca conseguia chegar ao nível de confluência, entrosamento da voz ressoando com a corda do violão, que eu conseguia sozinho. A banda nunca chegou a uma simbiose tal como aquela que eu tinha com o violão. Eu praticamente não toco violão em casa, ou, quando eu toco, toco escondido, porque tenho vergonha. Eu tenho vergonha de tocar e de cantar em casa, porque sinto isso como uma invasão de privacidade, fico muito vulnerável. Sabe aquilo que você diz para sua analista? Eu canto aquilo que eu poderia estar dizendo para o meu analista. Mas no palco, não. É aquilo que falamos antes, é impessoal. No palco, eu posso virar a diaba.

FC – A questão é essa sobre as máscaras: a gente tem que entender que esse espaço de experimentar livremente, sem nenhum tipo de restrição, é fundamental para a nossa saúde. A gente está o tempo todo numa batalha tão física, tão crua, tão real com os nossos limites físicos e de idade, com o tempo, com as contas, que não adianta. Eu não quero mais esse problema, sabe? O problema da minha não liberdade, o problema da minha restrição, o problema da minha vergonha comigo. Foda-se isso. Eu tenho pavor de ser aquela vizinha cantora que fica cantando o dia todo. Que vergonha, que chata. Vontade de matar, né? Eu tenho bode também de gente que fica o dia todo cantando, entretendo as pessoas. Eu falo: “menos amigo, menos. Menos alegria…” 

BC – Outro dia eu vi um documentário sobre as pinturas rupestres nas cavernas [A Caverna dos Sonhos Esquecidos], do [Werner] Herzog, e tem uma hora em que um cara fala assim: “aqui, neste lugar, provavelmente tinha uma fogueira, e as pessoas dançavam”. Então você imagina, numa caverna, aqueles bichos lindos pintados a carvão nas pedras, uma fogueira com as chamas bruxuleando e as pessoas dançando com as suas sombras animando os bichos. Uau, devia ser emocionante demais. Era um ritual religioso e artístico. Eu não tenho religião, não tenho nenhuma instituição religiosa a que eu seja ligado, mas eu me considero religioso, no sentido de espiritualidade. E aí, no final do filme, um cara que morava ali perto das cavernas diz uma coisa tão bonita: “a gente, o homem, nós não somos o homo sapiens, não é isso que nos define, porque a gente não sabe tanto assim; a gente deveria se chamar homo spiritualis, porque somos muito mais do que sabemos”. Somos capazes de comungar com outros, principalmente através da arte. 

FC – E o que a gente diz saber é o que a gente, na verdade, acredita saber. Porque o que a gente sabe é muito pequeno. O conceito de conhecimento muda muito rápido. Eu tenho uma vida, e isso é um fato. Vou basear minha vida em um conhecimento católico que tem 500 anos nesse continente? Ou eu vou basear minha vida dentro do conhecimento natural de bilhões de anos, de bilhões de coisas que não variam? A verdade é uma questão de você vê-la e testemunhá-la. Verdade é: eu sou um animal, eu sou um corpo aqui neste momento; não sei como vim parar aqui, nem por que, mas o que eu preciso é estar ao alcance das coisas. Liberdade, alimento, água, sexualidade. Eu preciso de certas coisas muito claras para viver e fazer o meu trabalho aqui. O resto é achismo e cultura; e a cultura é muito breve. 

BC – Se vivêssemos mais o instante, viveríamos mais de nossas experiências pessoais e não de experiências emprestadas das convenções morais. Normalmente, nos anulamos e nos tornamos muito menores do que se seguíssemos a verdade de nossa própria experiência no mundo. Que máscara é essa da realidade? Que máscara é essa que fica entre o que você é e o que acham que é? 

FC – As máscaras caíram. Ou melhor, estamos nesse estado de máscaras o tempo inteiro. Entramos num novo país, nova época, novo século, com novos problemas, outras ideias, outras questões, um problema ambiental latente e, ao mesmo tempo, dopados por redes sociais, dentro de um lugar que eu, sinceramente, só consigo ver como muito autoritário. Se tem uma coisa que eu aprendi na crise, nesse enfrentamento de guerra, é que não há nada mais importante que o teu alimento, o teu sono, cuidar da tua rotina. Até mesmo o contato com o nosso trabalho. Quando tenho que ir para os meus infernos, eu vou. Eu tenho que ir porque preciso estar lá também, ao mesmo tempo que é preciso crescer e aprender a administrar a realidade em um mundo em que tudo parece uma farsa. 

BC – Talvez tenhamos que viver nos nossos grupos, como espécies de grupos de guerrilha afetivos. Grupos dentro do qual você tem afeto e aquilo vai te salvar, vai ser o nosso bunker.

FC – É isso mesmo. Sempre estivemos em grupos pequenos. A cultura sempre esteve restrita a pessoas com olhar muito qualificado. Antes, era preciso ir atrás de locadoras diferentes para conseguir ver os filmes que interessavam. Os shows que a gente ia eram vazios, as bandas que a gente gostava ninguém conhecia. E vai continuar sendo assim. O mainstream não chegou para a comunidade GLS. Não teve esse momento. A verdade é essa. A gente nunca deixou de ser meio gótica. Acho que essas pessoas inconformadas, rebeldes, as pessoas que são jogadas para fora do senso comum são sempre aquelas que vêm com a solução, mas que têm que dar uma apanhada para poder olhar de forma crítica aquilo que está acontecendo no mundo. Em certo sentido, não consigo mais separar o que é o palco e o que é a vida. Gosto de estar o tempo todo no ritmo da espontaneidade, porque sinto que isso me protege, me deixa tranquila. 

BC – Para mim, a principal coisa antes de subir no palco é ficar muito sozinho e calado. Claro, em algum momento faço um vocalize para esquentar a voz e tal. Mas, dependendo do show, eu passo maquiagem ou não. A maquiagem pode ser simbólica também. De uma certa forma, armo a minha cara, mesmo que eu não passe nada nela. Armo a minha cara para o show, porque aquilo é um ritual, e eu me coloco naquele estado de concentração; ela precisa de mim, que eu me desconecte do alheamento e distração da vida real. Antes, eu pensava “ah, e se o som ficar ruim?”, “e se aquilo der errado?”. Eu não tenho mais um script. Se der errado, eu paro, começo de novo. Teve uma vez que deu ruim [sic], e alguém da banda precisou afinar o instrumento. E eu fiquei esperando ele afinar, um minuto parado, olhando para o alto, balançando levemente o corpo com o microfone colado na boca. Depois do show, o Lucas Weglinski, que é do teatro Oficina, da Cia dos Prazeres, veio me dizer que aquilo ali tinha sido muito bonito, muito performático: “o músico afinando a guitarra e todo um silêncio, você parado ali, balançando o corpo”, porque eu estava pleno! Eu não posso estar como se eu estivesse na vida real. Tem que ter alguma coisa incomodando, alguma coisa que me coloque artificialmente numa imagem descontraída.

FC – Sim, é a consciência cênica, de saber que tu está em cena. E, ao mesmo tempo, tem uma coisa legal que é desmistificar o público. São só pessoas.

BC – Eu também acho. Eu sou artista, porque hoje eu posso dizer que eu sei o que isso significa, mas eu não quero que me vejam como um. Clarice Lispector que dizia: “em casa eu sou dona de casa, sou mãe dos meus filhos”. Uma pessoa comum. Ela não se intitulava escritora. Ela é uma puta escritora e ela sabia que era, mas tem essa diferença entre o que a gente sabe que a gente é e como os outros nos veem.

FC – Para chegarmos num resultado poético decente, a gente tem que estar fora disso. O homem que diz “eu sou”, no fundo acaba não conseguindo ser. A Clarice Lispector só consegue chegar no resultado de escrever sobre “O ovo e a galinha” se ela puder olhar para o ovo e para a galinha com o olhar de uma criança. É algo que se conquista na desconstrução, e não na erudição. É claro que é importante conhecer a forma, a estética, conhecer tudo que já foi feito. Mas tem também uma parte boa da arte que é se afastar da referência. Esquece quem fez. Esquece o que foi feito. Esquece tudo e faz do teu jeito. Faz feio mesmo. 

BC – La ref soy yo! Para mim, o novo é a pessoa, aquilo que ela traz e o que somente ela pode trazer. Se você realmente achar que está fazendo uma coisa nova, ainda mais hoje em dia, pelo amor de deus. Eu vi aquele documentário do [Martin] Scorsese sobre o blues. Os guitarristas tocam sempre a mesma estrutura, na escala pentatônica, que é o que nos faz reconhecer o som do blues, mas cada um é um mundo, completamente diferente do outro. Como os caras, repetindo um mesmo esquema, com recursos muito limitados, dentro de um modelo musical estrito, conseguem ser tão imaginativos, incríveis e originais? Isso é o novo. Essa originalidade que só a pessoa traz.

FC – E aquilo fica e penetra nos novos artistas. A menor doação que a gente faz para a música já é grande porque contribui para a continuidade desse processo. É um propósito espiritual. 

BC – Quando nos emocionamos cantando uma canção e essa canção emociona outras pessoas, está feito o elo, está aí a religiosidade. O traço do religare, que é uma possível origem da palavra “religião”, de religar, de conectar as pessoas, se completa. 

FC – Falando em religare e ancestralidade, lembrei que a pandemia me aproximou da ideia de cantora. Eu estava na descoberta de como ser uma pessoa não binária, trans, e como processar esses pronomes na minha vida. Foi aí que me senti pela primeira vez uma das cantoras do Brasil. Sabe quando tu pensa: o que você é? Qual é a tua missão? Eu sou uma das cantoras desse país. Um pequeno grão de areia desse lugar de grandes vozes femininas, de grandes artistas mulheres que são, para mim, as mais injustiçadas e as mais corajosas entidades artísticas desse país. Todas as pessoas que foram suprimidas, as mulheres, as pessoas trans, as pessoas LGBTQIA+, todas. Até hoje há uma cultura patriarcal nojenta nesse país, que coloca a mulher como a cantora e não como a compositora, a pensadora do seu trabalho. Eu já cantei com todas as maiores cantoras desse país, mas também sou essa cantora do bar que toda semana está lá cantando música a pedido. Antes de ser uma cantora chiquérrima, eu sempre fui uma cantora vira-lata da rua e eu amo isso. Essa condição me deu uma sensação de muito pertencimento, de pertencer a essa linhagem de cantoras brasileiras que vão do Theatro Municipal ao pior pé sujo já visto. E a força dessa entidade é a força do feminino, não apenas da Elis ou da Maysa, mas o poder de cada cantora que está aí na batalha há anos, tocando na noite, segunda, terça, quarta, quinta, sexta, para botar comida em casa, pensando o quanto também que esse glamour da arte brasileira, hoje, virou um pano de chão que não serve para nada. Estamos todos nessa emergência, em que o artista como entidade pede socorro nesse país. 

BC – Muita gente só pode ser artista hoje porque tem renda ou situação material privilegiada. Se você pensar que existe um gênio, um artista incrível, que está tendo que trabalhar no McDonald’s ou correndo para ganhar dinheiro e não tem tempo nem condições para desenvolver sua arte… É foda. É a máquina de moer gente. 

FC – Tudo é dinheiro. Quando tu tem o dinheiro e o número, o resultado, que é conquistado através do dinheiro, as outras coisas acontecem naturalmente. É muito fácil tu chegar para a organização de um festival com 150 milhões de players e falar: “eu quero tocar nesse festival”. Tu quer tocar e tu toca. 

BC – É, claro, porque tu conseguiu chegar nas pessoas. Pagou os assessores, pagou os empresários, pagou todo mundo.

FC – A indústria é sempre jabá, e isso foi para o digital também. Claro que o digital tem certas coisas que funcionam ainda. Também saber que diante dessa crise existe um público no Brasil que é maravilhoso. Existe! Ele está aí! Eu acho que isso é uma coisa importante de ser valorizada. Tem muita gente interessada em arte no Brasil. Muita. Eu acho que o negócio é a gente ficar firme e forte com essa galera forever and ever. A gente é essa galera. A gente é artista, profissional, mas também é consumidor. Acho que já existem formas, players de música e sites que ainda não conhecemos, mas que em breve todas as bandas legais vão estar, deixando para trás as grandes gravadoras. Tem também uma coisa do próprio circuito de se retirar de onde está ruim e ir para outros lugares e começar novas cenas. Daqui a pouco a gente vai ter serviços de streaming só focados em música independente brasileira. Tudo que é muito mainstream acaba se autodevorando. Porque não dá para a gente só querer números. Nem sempre os números são verdadeiros. Tem gente que tem muitos seguidores na rede social e não consegue fazer show. 

BC – Pior é que tem programador que define muita coisa de contratação só pelos números. Não ouve a música da pessoa. É como se ele não tivesse o poder e responsabilidade de formar público. Não, não querem fazer mais nada, querem pegar tudo pronto. Fora as falcatruas de rede social: compra de chinesinhos, matéria paga com cara de mídia espontânea, porque se for pago fica feio, pega mal. 

FC – Virou uma coisa insustentável. Reconhecer o que é bom e verdadeiro, esses são os desafios da nossa época. 

Garota com gato, de Lucian Freud (1947)

Imagine que uma mulher precisasse gozar para que qualquer fecundação acontecesse. Ou, já que o gozo está para lá de uma identificação restrita ao ato ejaculatório, imaginemos que essa mulher, para que pudesse gerar uma vida, tivesse que ser mais do que um ”vaso”, como muitas vezes seu gênero foi pensado, por séculos de misoginia religiosa, e não só. Suponhamos que ela precisasse se mexer e ser autora do ritmo que, num coito, digamos, heterossexual, conduzisse a transa a uma potencialidade fecundante. Que ela, a seu modo, ejaculasse, liberando qualquer substância vital sem a qual o vivo não existiria. Qual seria, então, o tamanho populacional do mundo? Pela trigésima metade? Você saberia dizer se é filho ou filha do gozo de sua mãe? 

Imagine então que, assim sendo, rasurando a vergonha imposta a Eva, reconhecêssemos que a maçã se come inteira, e fosse respeitada a autoria feminina de seu próprio gozo. Para além da mordida única, já culposa, da primeira mulher que, segundo a Bíblia, leva o homem (e Deus) a condená-la de antemão como veículo do pecado e, portanto, do mal, como poderia ter sido a relação vital entre corpo feminino, prazer e continuidade da espécie se essas coisas dependessem umas das outras? Se o corpo da mulher só concebesse através do prazer (e podemos incluir, nessa palavra, toda gama de autonomia e singularidade de um corpo, para além do binarismo de gênero que não faz mais qualquer sentido, nem reprodutivo), talvez o rosto da bruxa, a que olho agora e já há tempo, não existisse. Mas ele existe. 

Este rosto faria sentido, pergunto, se testemunhasse uma história que honrasse (e precisasse de) seu autoconhecimento? Como formular a equação sobre o lugar e a subjetividade do gênero masculino se, como estamos supondo, este soubesse que a espécie humana depende do prazer da mulher? Que homem seria esse? Antes de Eva, o rosto da bruxa já se desenhava, por exemplo, em Medeia, posta na fogueira pagã por ameaçar o imaginário solar heroico e viril de meninos gregos que cultuavam o poder de impunidade de seu sexo. No rosto da bruxa sobreposto ao de Medeia, é possível ler a violência pré-cristã – e, nesse exemplo, a fundura misógina do mundo há muitas e muitas culturas – já usada como instrumento colonizador: Medeia era, nas variáveis próprias do mito, uma estrangeira, com poder políticos. E não só: feiticeira, era neta do Sol, de uma linhagem cuja legitimação era inquestionável em seu território cultural. Seu mito encena uma antiga disputa que marca a passagem das culturas das chamadas “grandes mães” para aquelas cujo elemento dominante é o herói, masculino e civilizador. Sabemos bem quais as consequências desse trajeto colonial: a escassez e o cansaço não só de mulheres, mas de todas as pessoas estranhas ao estereótipo do macho inconsequente, incluindo aí a própria terra enquanto recurso esgotável. 

As três grandes religiões monoteístas se organizaram a partir dessa orientação moral, e as três reproduziram suas leis tendo como chão a opressão, em graus diversos, do corpo da mulher. Na contaminação cristã, o corpo da mulher (e a mulher como um todo, visto que uma corporeidade negativa a configura) carrega a senha do diabo, do mal. Neste sentido, paira sobre o rosto de toda mulher o rosto da bruxa, quer ela queira ou não. Há no rosto da bruxa um tino erradio. Um dom de dolo, um poder que escapa ao retrato – dizem. Se ela é bonita, conforme foi pregado na testa de cada cultura o senso estético da beleza, ela não pode ser muito bonita, ou excessivamente senhora do considerar-se bela. A mulher, portanto, vejam só, tinha/tem duas impossibilidades: não pode ser bonita e não pode ser feia. Entre ambos, espera-se que se comporte como um bom e agradável vaso que, em sua neutralidade, não tenha prazer, apenas cumpra sua utilidade (instinto, dizem, naturalizando-a) doméstico-reprodutiva. 

Em partes da cultura moderna europeia, a iconografia da bruxa evidencia-se: ela consegue congregar em seu imaginário os restos eróticos da mulher sob a tutela de Vênus/Afrodite – cuja filha cristã e decadente, Eva, será responsável por conduzir o casal heteronormativo, recém-nascido, à expulsão do paraíso – e a figura residual e sem lugar da mulher que sobrevive à sua idade fértil, vulgo a velha, aquela sem serventia, a não ser ao cumprimento de papeis de uma invisibilidade alargada à invisibilidade exigida da mulher, parte e posse da visibilidade (poder) de algum homem. Entenda-se: da mulher, é-lhe exigida a beleza, mas uma beleza que sinalize seu esforço em obedecer e servir, uma espécie de carência, melancolia, roubo da potência, enfim, uma beleza da qual ela seja objeto e não sujeito.

Se à mulher é exigida a máscara de uma beleza calma, a beleza do bem (o belo de obedecer), um olhar submisso e amoroso das Madonas, das virgens, ou a graça convidativa de uma Afrodite Urânia, versão idealizada e abstrata de uma vênus incorpórea, a beleza do rosto da bruxa é necessariamente feia. Nela reside um proliferado ninho de ratos e animais venenosos, crianças mortas, excrementos, sangue menstrual, embriaguez, desejo. Sua beleza, desobediente (a beleza de sua desobediência) – dizem os doutos –, é a arma mais sutil do demônio. E quantos homens não a assassinaram, em legítima defesa? No Brasil pandêmico, a cada 6 horas e meia, um homem se vê autorizado a defender-se matando uma mulher. Pesquise sua ancestralidade, assentada sobre o silêncio dos bons tons burgueses. Quantas vezes o rosto da bruxa foi rasurado, derretido, adulterado, com a cumplicidade do código “família” – você saberia dizer? 

Olho bem no meio deste rosto de mulher. Acho bom que ele exista. É um rosto que mostra os dentes. Na história da pintura, são retratados mostrando os dentes aqueles taxados como anormais, os loucos, os pecadores. De quem é este rosto cuja boca aberta, rindo, devora, goza, ou – por que não? – fala? O rosto da bruxa. Que bom que ele existe! A cultura medieval oficial, a da Igreja e dos eruditos, diz-nos Bakhtin, era chamada de agelastoi, ou seja, composta por gente que nunca ria ou odiava o riso. Gesto profano por excelência, o riso foi entendido como parte do diabo. Se a máscara da mulher foi talhada sob o signo do silencio, o rosto da bruxa inteiro fala, grita, vocifera seu desejo e gargalha. Sabemos, com inúmeras pesquisas historiográficas, entre elas a precursora de Margaret Murray (The Witch-Cult in Western Europe, 1921) ou, mais recentemente, a do fantástico Carlo Ginzburg (Ecstasies: Deciphering the Witches’ Sabbath, 1991), que a “confecção” da figura da bruxa e de seus encontros noturnos – os detalhes do sabá – tem como origem a expiação de cultos agrários de fertilidade, de culturas ainda vinculadas a religiosidades pagãs. A mulher, portanto, que ousasse saber sobre seu corpo – sexualidade e fertilidade desobedientes – era aquela cujo riso demoníaco selaria e nomearia o rosto, de bruxa. Imagem que começa a circular, com maior vigor, no contexto mesmo da institucionalização de sua caça, a caça às bruxas.  

Contrariando a “erótica da imagem” que, no caso da bruxa, funciona às avessas – atraindo olhares para aquilo que se deve repelir, violar, condenar e matar –, olho hoje mais do que ontem, e concentrada, o rosto da bruxa. Aprendo com ele as rugas do riso, que ninguém tem o direito de me roubar, bem como o direito de fazer o que bem entender com qualquer capacidade reprodutiva de meu corpo, que não existe para cumprir qualquer instinto materno, qualquer zelo narcísico projetado sobre ele. No rosto da bruxa, finalmente, não vejo um vaso. Vejo uma goela afiada e escuto sua voz própria, pela qual ela já morreu e ainda morre. É este o rosto que chamo ao meu rosto quando escrevo. É com ele que testemunho a violência, que recuso a perda da memória. Ele, de boca aberta, sujeito inegociável de minha fúria, de meu ritmo e de meu gozo. Eles existem.  

Onde estaria o sujeito mesmo, “em sua verdade e efetividade”, pergunta Nancy1. Em nenhum lugar mais do que em seu retrato, responde ele. Desse modo, não haveria mais sujeito que na representação do retrato. Isso que vem à superfície e se põe sobre a face – surface – é onde podemos conhecer o mais próximo do que somos, fomos e/ou podemos ser? No nosso retrato, onde nos lemos, a imagem que vemos ou lembramos se movimenta ou está parada? Concedemos à imagem outra possibilidade de existência que não a que escolhemos vestir, diferente daquela narrativa que retorna sempre que pensamos em quem somos – uma extensão que talvez se encurte com o passar dos anos, e vai reduzindo pouco a pouco os comandos da memória de nosso rosto: tivemos olhos assim?, temos um olhar assado?, é rosto moço?, a boca antiga?, carrega que profissão, filiação, caprichos?, tinha voz estranha?, etc. E não sabermos mais. Talvez reste pouco da amplitude do sujeito nas resmas do retrato. Ou talvez seja essa a sua grande fidelidade: conduzindo nossa imagem ao fugidio, revela ali mesmo o negativo da superfície, uma zona incomensurável onde muitas narrativas e quase-biografias podem se entrelaçar. O fascínio da imagem carrega essa ambiguidade, ao evidenciar o que não está por meio de sua ideia, sentimento, representação. A sensibilidade da imagem de um rosto, então, não só o conserva, como o arremessa para a ficção – leito de rio – da identidade.   

Pois então morremos e fica-nos lá um retrato no túmulo: encerado, envidraçado, pintado em cerâmica, sempre oval, a imagem do morto, efígie, feita quando estava vivo. Se podemos definir, de modo geral, o “retrato” como a representação de uma pessoa em que ela se reconheça, sabemos que essa exigência de semelhança está longe de exigir o apuro mimético ou a fidelidade da cópia, cujo sentido utópico seria a excelência da perfeição platônica, só possível ao mundo das ideias, ou mundo ideal. A semelhança é muitas vezes buscada apenas com inúmeros desvios do próprio rosto. Isso quer dizer que, onde eu vejo o meu retrato, talvez você não veja o meu, nem o seu, mas o de outro alguém, outra coisa. O mistério das analogias abre-nos a essa caminhada obscura, íntima, por sua vez, da experiência artística: tocar a “correspondência” das coisas é tarefa de profanações. 

Então morremos e lá está nosso retrato, escolhido por alguém que necessariamente sobrevive a nós e tem algum respaldo para tal função. Nós que estamos vivos podemos passar ou passear pelas alamedas calmas e felinas dos grandes cemitérios como quem folheia um álbum de retratos. Data, nome e rosto – seria o suficiente para resumir um sujeito, será a superfície final de nossa biografia? E se, por acaso, notarmos como são semelhantes as imagens que identificam o morto com aquelas que fomos obrigados a portar em nossas cédulas de identidade? A foto 3×4 que nos serviu de rosto durante a vida é a mesma que nos servirá à morte? E pensando na obrigatoriedade radical dessa imagem (não podemos sorrir no retrato da identidade, não podemos nos afastar demais da câmera, não podemos cobrir parte do rosto com os cabelos, temos que ser o mais neutro possível, o menos biográfico) chegamos à máscara. À persona. E já estamos no terreno da ficção, do qual quiçá jamais saímos. 

Quando foi criado, em 2011, o projeto NotUrna mobilizou parte de nossos interesses relacionados à fotografia/retrato e morte, levando-nos a conduzir à feitura dos 10 exemplares de um livro de artista, de mesmo nome, por meio de um processo necessariamente coletivo. A partir de imagens fotográficas de retratos tumulares, experimentamos exercícios de escrita de biografias inventadas para cada rosto, contando com a participação ritual de mais de 50 convidados. A construção fragmentária (em objetos móveis, rearticuláveis) dos dez livros-urnas, partindo da fotografia dos rostos, levou-nos à reflexão dos limites abissais do que pode um rosto e quão ficcional pode ser o apelo biográfico de uma imagem ao querer representar um morto, alguém que não mais conta sua própria história, que agora só pode ser contada por outros. A semente dessa potencialidade fictícia estaria já no rosto ou na imagem do rosto? 

Naquela ocasião, conhecíamos pouco da pesquisa de Didi-Huberman e Aby Warburg. Nosso interesse “antropológico” era provido de uma vontade também noturna de pensarmos, com pessoas amigas e conhecidas, a extensão fúnebre da imagem de nosso próprio rosto e, por sua vez, a condição plural de rasura da identidade do retrato, uma vez que a superfície do papel suporta qualquer história e qualquer olhar. Hoje, repensando essa trajetória que se fez – e isso é importante frisar – de inúmeros encontros presenciais fortuitos, recai sobre a memória o bafo triste e agourento (para não dizer irritadiço e cansado) do isolamento em que a pandemia fez com que nos acolhêssemos, no nosso trato comum. 

Do volume dos mortos que não tiveram nem rosto para a morte – nenhum cuidado ou ritual possível, sem o velar dos olhos fechados, sem a moeda para barqueiro algum –, fica-nos a apatia assustadora do volume dos rostos virtuais e selfies com que passamos a nos conhecer e habitar. A relação entre e morte e imagem mais uma vez se ressignifica. Rever o NotUrna como espaço de um questionar transgressor, fundado num espírito de amizade e numa ética de fabulação comunitária sobre nossas identidades e nossas mortes, talvez possa ser um meio de redizer sem fim os vivos que não mais estão aqui e, do mesmo modo, ousar ver nas fotografias dos que aqui estão, nós incluídos, os mortos que só poderão ser narrados por quem sobreviver. E, assim, insistir em saudar o vivo. E, nessa insistência, resistir, quando quem despreza a vida, tenta de todo modo nos legar não a morte, mas a morte indigna, a morte sem saúde, banalizada, sem retrato, sem ritual, sem cultura, sem vida. 

Notas:
1 NANCY, Jean-Luc. La mirada del retrato. Buenos Aires: Amorrortu, 2006, p. 8

La Belle Ferronière, de Leonardo Da Vinci (1490)

Jean-Luc Godard, a um só tempo eloquente e lacônico, sentencia: “O filme começa com D. W. Griffith e termina com Abbas Kiarostami”. A filmografia de Griffith é marcada pela grandiloquência na mise-en-scène e pela opulência dramática, tendo papel central na consolidação de uma forma (e uma fórmula) de fazer cinema. Griffith pariu o longa-metragem ficcional vendendo a mentira maquiada de verdade. 

A tentativa de imbuir a ficção de realismo está no cerne do modo de representação do cinema dominante. Vão nesse sentido a instituição de um método quase militar de filmagem, que inclui uma montagem que tenta apagar a existência da câmera e o plano aberto de contextualização, entre outros. No entanto, o espectador começa a escutar o grunhir da máquina, pois o realismo ostentado pelo filme de ficção tradicional é sufocado por sua própria megalomania. O cinema cada vez menos como fresta para o real e mais como usina de sonhos. 

Se na declaração-manifesto de Godard Griffith é o demiurgo, quem é Abbas Kiarostami? Por que é nele que o filme chega ao seu fim? O influente cineasta iraniano, filho simbólico do neorrealismo de Rossellini e companhia, faleceu em 2016 após ter revelado, em quilômetros de película – são no total 25 filmes, entre curtas e longas –, um mundo antes dele invisível. Ou quase invisível, pois o que lhe interessava não era o recheio, mas as migalhas de vida esquecidas na borda do prato. Nadando contra a corrente, Kiarostami era essencialmente antidramático e acreditava que tudo o que vale cabe nas miudezas.

Close-Up (1990), obra-prima do cineasta, é a reconstituição da história real de Hossain Sabzian, um homem humilde acusado de ter personificado o diretor Mohsen Makhmalbaf com intenções ardilosas. Por trás da sinopse aparentemente simples, o filme faz emergirem discussões complexas sobre identidade, verdade e performance. Sobre esses dois últimos temas, é dito com frequência que o cineasta iraniano borra a linha entre documentário e ficção. Mas a realidade é que essa linha já nasceu vaporosa, como a cauda esfumada de um avião. Kiarostami vai além, pois enquanto a maioria dos filmes ficcionais esconde seus artifícios, ele deliberadamente os revela.

Se opondo à grandiloquência narrativa do cinema dominante, o diretor iraniano aposta em roteiros e dispositivos de filmagem simples para propor, acima de tudo, um mergulho na subjetividade humana. Um exemplo metafórico aparece em Cópia Fiel (2010), onde a paisagem da Toscana é introduzida como um reflexo deslizando sobre o para-brisa do carro. Provavelmente, um cineasta griffithiano teria optado por começar o filme com planos abertos da paisagem, em uma tentativa de legitimar a veracidade da intriga ao ancorá-la em uma geografia real. Kiarostami propositalmente empurra essa geografia para as bordas da narrativa, pois o diretor de Cópia Fiel sabe que seu filme não precisa ter como pano de fundo um espaço do mundo real para resvalar no real, visto que a potência de uma história não está no “isso existe”, mas no “isso poderia existir”. A arte brota nos mil caminhos que se bifurcam e floreia no imaginário. 

A geografia que interessa a Kiarostami é a do rosto humano, motivo pelo qual ele insiste em um dispositivo minimalista que prioriza planos longos e fechados, abrindo um palco para os personagens se revelarem sem amarras ou truques de direção. Essa importância dada à corporeidade e à coesão espaço-temporal da realidade vem aliada ao mote da aparência como camada metafísica do mundo, ou seja, à relação entre superfície e fundo. 

Essa dialética original-cópia é o eixo em torno do qual Cópia Fiel se organiza. O protagonista masculino, William Shimell, explicita o leitmotiv do filme ao celebrar o valor da cópia, tanto na arte quanto na vida: “Esqueça o original, compre uma boa cópia”. O que é a imagem cinematográfica senão uma reprodução mais ou menos aderente ao real? O que não significa que ela seja completamente falsa, pois, como o próprio William declara mais tarde, devemos passar pela cópia para chegar ao original. Mas essa busca, paradoxalmente, deve ser consciente de que a essência está costurada na aparência, como gêmeas siamesas.  

Ao assumir que um filme é uma cópia, Kiarostami avisa que estamos assistindo a uma reprodução deturpada da realidade, como a paisagem da Toscana escorregando no para-brisa. Em suma, uma ficção. O famoso olhar-câmera – normalmente interditado por evocar a existência da câmera e, consequentemente, ejetar o espectador do mundo ficcional – multiplica-se ao longo de Cópia Fiel. Em um plano icônico, a protagonista do filme, interpretada por Juliette Binoche, é filmada frontalmente enquanto (se) encara (n)o espelho. Quase como se estivesse ciente de ser objeto do nosso olhar, ela cobre o próprio rosto de batom e máscara. Assim, a câmera se transforma numa espécie de espelho translúcido, rasgando o véu que separa personagem e público. 

Essa questão encontra seu paroxismo em Close-Up, onde o protagonista se duplica, tornando-se ao mesmo tempo Sabzian-indivíduo e Sabzian-personagem (de Kiarostami ou dele mesmo?), numa reconstituição do fato que testemunha o teor performático do real. O espectador é quase abandonado num movimento vertiginoso que alterna evento e engodo, pois ele sabe que está vendo uma ficção (Close-up de Kiarostami) baseada num fato (história real de Sabzian) que, por sua vez, é baseado numa ficção (Sabzian finge ser Makhmalbaf) que é baseada num fato (Makhmalbaf é um importante cineasta iraniano), o qual também é baseado numa ficção (Makhmalbaf cria histórias ficcionais) baseada num fato (Makhmalbaf transforma a realidade em ficção). Como dois espelhos face a face, realidade e ficção se encaram e se formam mutuamente uma nas entranhas da outra. 

Assim, Close-Up nos questiona: há essência na aparência? Há algo de verdadeiro na mentira? De original na cópia? De real na máscara? Kiarostami parece responder que sim, mas não se atreve a traçar um caminho até essa tal verdade, pois, etérea, ela sempre escorrega por entre os dedos. 

Apesar da ambição dessa busca, o cinema de Kiarostami não é pretensioso. Sua grandeza está, ao contrário, em filmar as tais migalhas do real, e talvez por isso ele coloque a câmera tão próxima dos seus personagens, buscando a verdade em cada sulco da face. O close é desdramatizado, deixando de ser uma hipérbole narrativa para se tornar um mergulho no abismo do rosto humano. 

A cena do julgamento é um símbolo disso, com uma montagem que alterna os planos abertos da corte com outros fechados no rosto do réu. De um lado está a verdade da Justiça, que simplifica a massa complexa do real ao impor uma sentença; do outro lado está uma outra verdade, mais profunda e brumosa, que Kiarostami procura nas expressões rabiscadas no rosto de Sabzian. Nas palavras do próprio diretor, numa entrevista de 2004: “Na realidade, era um modo de afirmar que naquela sala existiam dois dispositivos: o dispositivo da Lei, que mostra o tribunal e descreve o processo em termos jurídicos; e o dispositivo da arte, que se aproxima do ser humano para colocá-lo em primeiro plano, para vê-lo em profundidade, compreender-lhe as motivações, adivinhar seu sofrimento”1. Close-Up parece duvidar de quase tudo: do juiz, da família burguesa, do jornalista, do policial, da justiça e mesmo da verborragia do réu. Se alguma verdade poderá ser tocada, será na leitura atenta do rosto abissal de Sabzian.

Cortázar nos inspira: “As máscaras… nós temos sempre a tendência de pensar nos rostos que elas escondem; na realidade, é a máscara que conta, que seja essa e não uma outra. Diga-me qual máscara você coloca e eu lhe direi que rosto você tem”. Para Kiarostami, cada rosto é ao mesmo tempo máscara e abismo. E o abismo, lembrou Nietzsche, se encarado por muito tempo, acaba nos encarando de volta. Talvez seja essa troca de olhares que nos propõe o cinema de Abbas Kiarostami. 

Nota:
1 Citação entrevista Kiarostami (2004): Kiarostami, Abbas. Duas ou três coisas que sei de mim. In: Kiarostami, Abbas; Ishaghpour, Youssef. (Orgs.). Abbas Kiarostami. São Paulo: Cosac Naify, 2004. p. 231.


Atlantique Noir (Autorretrato), de Dalila Dalléas Bouzar (2018)

I

Era inverno em Lisboa, alguma semana de dezembro. Colhi na biblioteca, por apreço ao nome, um livro de Jean-Luc Nancy. Já nas primeiras páginas, isso: 

À escuta: ao mesmo tempo um título, um endereçamento e uma dedicatória.

Achei belíssimo o fato de uma crase dar tantos sentidos à coisa. Segui lendo. 

Morava com minha namorada num apartamento provisório em Alcântara, perto de uma fábrica de bolos que amávamos. De todas as moradas que tivemos, era a mais quentinha. Três aquecedores, espalhados pelo apartamento, tornavam o casulo perfeito. Saíamos muito pouco. Dentro do casulo, como se não bastasse, havia um casulo ainda mais casulo. O quarto ficava dentro, bem dentro. Em um canto protegido por paredes, sem janelas. Era o ponto mais escuro da casa, o canto do sono. 

No Brasil, temos o costume de desejar que a luz entre, por toda parte. Minha bisavó dizia que onde há luz, não há doença. Acordar virou sinônimo de deixar o sol entrar, ou de buscá-lo atrás das cortinas. 

Mas lá não. A cama escurecida convidava o corpo à hibernação. E foi enfiada nessa cama que li À escuta. Era uma caverna de colchas pesadas e cheiro de flor úmida. O abajur fazia a vez do sol e encaminhava meus olhos pelas rotas do livro. O abajur emitia, além da luz, um ruído constante e sutil. Acreditei ser o som da lâmpada acesa, que gemia o esforço de trabalhar noite e dia. 

Para contrariar os hábitos, era ao escurecer que os bolos saíam do forno. Bolos parecem tão diurnos, não é? Mas lá não. A rotina ficou revirada e a noite cresceu. A inversão do tempo soava, decidi escutar. 

II

A primeira coisa que entendi com Nancy foi que escutar pode ser ouvir e também entender. A escuta carrega essa ambiguidade, é uma encruzilhada do sentir com o sentido. Um fenômeno da compreensão, recurso filosófico generoso mas pouco “visto”. Na caverna de Platão há mais que as sombras dos objetos que passeiam no exterior: há também o eco das vozes daqueles que os conduzem, detalhe de que se esquece com frequência, tão rápido é seu abandono pelo próprio Platão, em benefício exclusivo do esquema visual e luminoso. Em uma síntese bruta: sair da caverna para encontrar a “verdadeira luz”. Como se a nitidez visual fosse a salvação filosófica. Mas a nitidez auditiva não parece tão relevante. Em som, o que equivale à luz? 

Qual seria a reverberação do mito se os esquemas acústicos fossem mais penetrantes? A escuta dá, além da percepção sonora, o senso de orientação. O ouvido é um órgão da audição e do equilíbrio, ele nos situa. O mau uso pode ser desastroso (o desastre é uma palavra que não está no livro mas que considerei aproximar. Gosto do desastre por sua etimologia: é a falta de astro, é perder a guiança). A escuta dá relevo ao mundo, permitindo que o corpo se oriente, titubeie ou tombe. E o som não possui face oculta, ele é todo adiante detrás e fora dentro.

O som não é uma aparição da matéria; é uma vibração que acontece no espaço. Quando chega aos ouvidos, também ressoa pelo corpo, entra e afeta. E sua natureza ressonante cria uma presença complexa, carregada de sonâncias rebatidas, multiplicidades, ecos, dobras, aberturas e expansões. 

O sentir é sempre um ressentir, ou seja, um se-sentir-sentir. Quando falamos, ouvimos. Quando soamos, ressoamos dentro e fora, numa simultaneidade radical. O corpo, cavernoso que é, vibra o som. Os ossos vibram o som. A pele vibra o som. As células vibram o som. A água, que nos preenche, também. Estar à escuta será sempre, portanto, estar em ou tendido para um acesso a si. 

A escuta nos retrata, revela nossa trepidação, nossa condição maleável e fronteiriça. O corpo possui contrastes espaciais, dentro e fora, dobras e redobras, sentidos e ressentimentos. E, se cria acessos internos, acessa também o todo. Estar à escuta é sempre estar na borda do sentido, como se o som não fosse de fato nada mais que essa borda, essa beira ou essa margem. 

Dar ouvidos é dar-se ao mundo, colher o espaço. Se-sentir-sentir na borda, na abertura, na troca. Ter os contornos como margens de contato, num devir-poroso. A escuta como ressonância, relação: participação, partilha ou contágio.

Assim, esta pele esticada sobre a sua própria caverna sonora, este ventre que se escuta e que se extravia em si mesmo ao escutar o mundo e ao perder-se nele em todos os sentidos, não são uma «figura» para o timbre ritmado, mas a sua própria aparência, são o meu corpo batido pelo seu sentido de corpo, aquilo a que antigamente se chamava a sua alma.

III

Escrevo “ouvido” no navegador e o segundo link disponível diz: 5 formas simples para desentupir o ouvido. No caso, o artigo se refere ao entupimento causado por diferença de pressão – efeito comum após voos de avião, mergulhos profundos e subidas íngremes.

Isso de mudarmos de altura nos entope, portanto. As soluções envolvem bocejar, mascar chicletes, fazer compressas, beber água e, por fim, controlar a passagem de ar tampando as narinas. 

Não sei se o chão tem mudado de altitude, se o aquecimento global aumenta a pressão dos ventos, se os mergulhos fora d’água são igualmente densos. Mas há, no agora, uma dificuldade generalizada de nos ouvirmos. Há muito o que ser ouvido, há muito pouco do ouvido nisso. 

Podcasts, áudios acelerados de WhatsApp, hits repetitivos do TikTok, incontáveis calls, alarme para acordar, alarme para achar o carro, alarme para vestir o cinto, alarme para fechar a porta da geladeira, alarme para abrir a porta do micro-ondas, fones de ouvido, fones de ouvido sem fio, fones de ouvido com cancelamento de ruídos. 

Estamos ouvindo mais e, ao mesmo tempo, desaprendendo. Estamos perdendo a orientação. Bocejar, mascar chicletes, sentir o desastre. 

IV

Um ruído desastrado. Um ruído presente. Um ruído solto no mundo. Um ruído do atrito. Um ruído rarefeito. Um ruído que não morre. Um ruído sem sentido. Um ruído captável. Um ruído interferido. Um barulho quente. Uma voz. Um eco líquido. Um som retido. Um gemido. Um estrondo luminoso. Um canto. Uma toada larga. Um rumor gasto. Um zumbido. Um suspiro coletivo. Um bramido ferido. Um berro. Um trovão sozinho. Um ruído que a matéria engole. Um ruído dentro do rosto. Um ruído vivo. 

V

O rosto é uma passagem. Está em vias de ser enquanto é. Feito falésia em costa ventosa, abisma o acúmulo. Também firma a latência de sua erosão. 

Ser, na borda, o que muda. Ser, por borda, o que toca. Oposto de intacto, o rosto. Palavra que inexiste (mas as expressões, por definição, não cansam de nascer).

O rosto expressa ritmos. Ele não firma o tempo, mas é esculpido por ele. Parte da caverna, o rosto. Os ouvidos recebem. As membranas ressoam. Os poros ecoam. Dentro é tão subaquático. A percussão, múltipla e imprevisível, soa marítima. Avisto a falésia, outra vez.

Rosto: mais do que costa, arquipélago. Ilhas a raiar e sumir, tão insaciáveis que submergem. Também transborda, como a mão, o que mimetiza. Foz da simbiose humana, revela fusões e projeções. E as libertam.

Eu me aproximo mais. Encaro seu rosto de frente, este que lê. Este que escuta. Escuta? 

Você fareja meu fôlego, imagina meu timbre. Pergunto: 

Há, portanto, rosto silencioso?

Com as bocas fechadas, a respiração travada e os olhos nos olhos, viramos marulho. 

VI

O rosto está entre os ouvidos. Ele dá a ver o que se escuta.

#38O RostoArteArtes Visuais

Hand anatomy head famous of the mandible female pelvis world scapula nasal nasal famous: a pintura de figura humana na arena

por Alvaro Seixas

Sem título (I am not a still life), de Alvaro Seixas (2018)

Há quase duas décadas, a pintura figurativa e, em particular, a representação do corpo humano reapareceu em cena no palco da pintura. Competindo pelo privilégio da representação da figura humana com a fotografia, o vídeo e a performance, as telas e tintas buscam se reafirmar como dispositivos de debate atrelados às políticas em torno do corpo, com seus agentes valendo-se uma certa gama de argumentos e discursos. 

Esse fenômeno, o da presença da figura humana nas diferentes mídias artísticas e principalmente a sua retomada pela pintura, parece ter se intensificado com a justificativa política de que o corpo precisa viver e exercer de fato a sua liberdade, e não apenas ser aprisionado na falsa ideia de liberdade produtificada pelo neoliberalismo e a mera e cínica “liberdade” de comprar indiscriminadamente, colocando-se na eterna condição de endividado, tornando-se um prisioneiro do sistema. Uma grande retrospectiva itinerante da pintora estadunidense Alice Neel (1900-1984), intitulada People Come First (As Pessoas Vêm Primeiro), apresentada este ano no importante Metropolitan Museum e que seguirá para o Guggenheim Bilbao, terminando nos Fine Arts Museums de San Francisco, traz em seu título uma importante mensagem para nossos tempos e dá nova dimensão à pintura dessa retratista. Neel declarou em 1950: “Tentei afirmar a dignidade e a importância eterna do ser humano.”1

Dentre os muitos exercícios da liberdade evocados pela arte contemporânea, em particular pela pintura figurativa, vemos os debates raciais e de gênero, a denúncia do chamado estado de exceção, questões que perpassam não apenas as obras de uma vasta gama de artistas que emergem no cenário atual, mas principalmente aos discursos de críticos e críticas de arte, jornalistas, curadores e curadoras, influencers, galeristas, diretores de museus, casas de leilão e colecionadores. 

Hoje, a pintura figurativa, em especial a de artistas negros e negras ou pertencentes a grupos periféricos, parece emergir como uma ferramenta importante para inversões simbólicas conceituais e, principalmente, tentativas de rearranjos políticos e justiça social. É o caso dos estado-unidenses Henry Taylor, Kerry James Marshall e Kehinde Wiley e, mais recentemente, muitos jovens artistas no Brasil, alguns deles bem rapidamente já representados por galerias e incluídos em mostras sobre, por exemplo, questões raciais e de gênero em museus nacionais e internacionais. 

Muitos de nós temos tentado repensar, cada um a partir de nossos respectivos lugares mais ou menos privilegiados, os legados de determinados artistas. Dentre eles, Tarsila do Amaral, mulher branca, que pintou A Negra, de 1923, uma ode ao Brasil popular em nome da invenção e do progresso do vocabulário moderno nacional, mas que infelizmente também reforçou certos estereótipos raciais. Trata-se de uma pauta urgente, mas é importante lembrar que o mercado e a sociedade de consumo e os interesses privados sabem lidar bem com urgências. A assustadora velocidade com que certos artistas figurativos estão sendo arremessados ao sucesso e sua acelerada institucionalização parece falar menos sobre um realismo pictórico, crítica à real condição das instituições públicas, e mais sobre um “Realismo Capitalista”, para citar uma expressão de Mark Fisher. 

Dessa forma, parte da pintura figurativa atual se insere nesses exercícios de empatia, alteridade e performatividade, confrontando tempos de tristes shows do ego e produtificação do Eu, mesmo correndo o risco de sua cooptação e banalização pelo sistema, que, justamente, produtifica tudo. Há, também, uma busca por uma intimidade perdida, um resgate de uma ancestralidade ou memória local, uma tentativa de preservação das especificidades regionais, uma retomada de certa dimensão não apenas narrativa, mas também ficcional, delirante e onírica da pintura, de sua capacidade de criar mundos e não apenas ser mais um mero (hiper)reality show. Em um mundo dominado pelo audiovisual e digital, muitas pinturas buscam se opor a certo realismo excessivo, ou mesmo hiper-realismo, de uma parcela da fotografia, do cinema, das telas de smartphones e, principalmente, da fome de real dos documentários. 

Para tanto, essas pinturas figurativas buscam ficcionalizar ou repensar a realidade, valendo-se de antigos recursos expressivos, exageros e deformações caricaturais (Marlene Dumas, Lynette Yiadom-Boakye, John Currin, George Condo e Dana Schutz); traços e pinceladas violentas (Tracey Emin, Jenny Saville e Yan Pei-Ming); alegorias (Glenn Brown); presença física (Cecily Brown); apagamentos sombrios (Luc Tuymans e Wilhelm Sasnal); criação de mundos fantásticos (Michaël Borremans e Lisa Yuskavage); espacialidade, monumentalidade e intervenções no espaço urbano (Banksy). Mesmo através da ficção, ou mesmo da ficção científica, certos artistas tentam realizar críticas políticas e sociais. É o caso de nomes como o do alemão Neo Rauch, e sua realidade ricamente distópica, representando um mundo eternamente em construção e revolução, cenários estranhos, povoados monstros que parecem ter saído de um filme B, em sintonia com os dilemas de um mundo pós-orgânico. 

Além dos nomes mencionados anteriormente, hoje temos grandes representantes estrangeiros, e já podemos chamar históricos, da pintura figurativa, todos focados ou muito envolvidos na representação da figura humana, e ainda em plena atividade, que merecem destaque. Dentre eles estão Alex Katz, Gerhard Richter e Georg Baselitz, ainda capazes de gerar notáveis replicantes que povoam as redes sociais, alimentam algoritmos e/ou galerias de arte, museus e coleções ao redor do globo. Isso não é necessariamente ruim, apenas quando feito de maneira alienada, acrítica e/ou estritamente comercial e elitista. 

Aqui no Brasil, a figura humana na pintura sempre esteve presente na obra de nomes referenciais como Victor Arruda e seu imaginário ácido pop-político-surreal, Luiz Zerbini e suas intrincadas e espetaculares montagens quase cenográficas e Adriana Varejão, com sua requintada e sedutora investigação dos traumas de nosso passado (e presente) colonialista e racista. São nomes marcantes que continuam influenciando novas e mesmo antigas gerações. Apesar desses importantes nomes, de 1990 até a primeira década dos 2000, nosso mainstream artístico experimentou uma grande escassez de ordem representacional da figura humana na pintura: onde foram parar as faces, os corpos e o páthos? Onde estava a tradição de nomes como Pedro Américo, Heitor dos Prazeres, Djanira, Anita Malfatti, Tarsila, Di Cavalcanti, Ismael Nery, Lasar Segall, Portinari, Guignard, Carybé, Iberê Camargo, Rubens Gerchman e Glauco Rodrigues, mestres dos retratos ou da transposição da fisicalidade humana para o plano pictórico? É possível que muitos bons nomes da pintura figurativa no Brasil tenham sido ocultados por determinados discursos desse mainstream, gerando o apagamento de suas carreiras. 

Na pintura figurativa atual, assim como nas demais mídias, o ativismo político tem se afirmado como uma questão urgente. Toda arte é política, alguns creem. Em certas obras de arte, de fato, a política e a economia parecem emergir de maneira sutil e não explicitamente panfletária – não que um panfleto artístico ou uma arte-panfleto seja algo ruim. Por exemplo, nos corpos deformados, quase abstratos, de Francis Bacon, há uma conversão da luta wrestling, tradicionalmente homofóbica e competitiva, num jogo de afetos eróticos, num potente entrelaçamento visceral das carnes, algo desviante, uma singular pulsão expressionista e homoerótica. Algo, portanto, político. Quadros pintados em plenos preconceituosos anos 1950. E os corpos gays e trans que sangraram, agredidos, mortos ou suicidados pela sociedade daquele tempo ainda sangram nas ruas das cidades ao redor do globo pelos mesmos motivos.

Gostaria de citar outros dois marcos da pintura figurativa moderno-contemporânea, que ainda impactam gerações após gerações: Jean-Michel Basquiat e Philip Guston. Primeiro, gostaria de comentar os gestos políticos da pintura de Basquiat, focada principalmente no corpo humano. Em uma grande quantidade de suas obras, cabeças negras, muitas vezes apenas apresentadas sob a forma de silhuetas, muitas delas autorretratos do artista, buscam lições visuais nas máscaras africanas e artefatos ritualísticos de outras culturas, no cubismo de Picasso, na art brut de Dubuffet e nos rabiscos ainda provocadores de Cy Twombly. As figuras negras de Basquiat emergem num meio artístico hegemonicamente branco, coroadas pelos seus famosos dreadlocks – e temos aí um notório gesto de afirmação e pertencimento por parte do artista, sua autoproclamação, sua autoinstituição. 

Já em de suas mais notórias telas, e já tida como uma obra-prima da pintura contemporânea, Defacement (The Death of Michael Stewart) / Desfiguração (A morte de Michael Stewart), de 1983, vemos uma pintura-denúncia-protesto-memorial, à qual o Guggenheim de Nova York dedicou toda uma exposição em 2019. Uma pintura figurativa e política, como muitas outras de Basquiat, que tematiza a violência policial nos EUA contra homens e mulheres, jovens e crianças negras. Um trabalho da arte contemporânea que, num olhar apressado, pode se assemelhar a um cartoon encontrado em um caderno espiral de um adolescente ou parede de banheiro público, mas que se insere dentro da tradição da arte sacra, justamente ao dessacralizar a auréola católica, representada sob a forma de um austero rabisco negro, que, no lugar de santificar homens e mulheres brancas, coroa o jovem negro Michael Stewart, um grafiteiro marginalizado, um semelhante do próprio Basquiat. 

Só a arte narrativa e, talvez, a arte figurativa de traços expressionistas são capazes de converter um jovem assassinado de maneira simbolicamente tão ágil e marcante num Cristo negro, oprimido e escarnecido, situado entre dois “soldados romanos” da NYSP, o departamento polícia de Nova York. Basquiat pinta suas faces cruéis propositalmente rosadas, para que se assemelhem a porcos, e desenha presas afiadas de javali – criaturas chafurdadas na lama da corrupta e yuppie Manhattan de 1980. 

Mas o poder de mobilização de algumas pinturas figurativas políticas que se valem, buscam plasmar ou, ao menos, evocam sofrimento na imagem do outro geram muitas vezes atritos, polêmicas e constrangimentos. Todos eles, entretanto, são necessários no debate democrático. No turbulento ano de 2020, em meio à explosão da pandemia da Covid-19, vimos também o adiamento para 2024 da retrospectiva itinerante de Philip Guston, mas não apenas por conta do vírus letal. A exposição seria apresentada em 2020 e 2021 na National Gallery of Art de Washington, D.C., no Museum of Fine Arts de Boston, no Museum of Fine Arts de Houston e na Tate Modern de London. 

A decisão de protelar a retrospectiva em quatro anos teria sido realizada com o intuito de reformular a mostra para que ela passasse a discutir e refletir melhor sobre as “urgências do momento”, nas palavras dos diretores dos quatro museus em um comunicado conjunto. É inegável que as figuras cartunescas de Guston, aliadas a uma sofisticada paleta de cores em que se destacam tons de rosa e vermelho, elementos gráficos e contornismo, que o inserem na linhagem expressionista, contribuíram para afirmar Guston como um dos maiores nomes da arte do século XX. Seus retratos dos membros da KKK por vezes também se confundem com autorretratos do artista, visto como um ser fadado ao individualismo, refém do ateliê e das tintas, um fumante compulsivo, atormentado pela passagem do tempo, como indica o relógio pintado na parede. 

No início, essas obras não foram bem recebidas pela crítica, por serem um movimento chocante não apenas dentro da carreira de Guston, antes um pintor abstracionista de renome, mas também do “encadeamento lógico” da arte dos EUA. Se observamos um retorno à figuração em uma notável parcela das exposições e do mercado de arte, é importante lembrar que é papel dos e das artistas estarem alertas às unanimidades do sistema. Guston sempre esteve atento às unanimidades, e sua opção foi não representar qualquer face unânime e positiva, mas sim faces negativas e talvez as mais polêmicas e assassinas dos EUA, correndo o risco de ser assombrado por esses fantasmas. 

Grande parte das obras cartunescas ou “HQ” de Guston são verdadeiros trabalhos de metalinguagem e crítica institucional, que questionam não apenas o racismo na América, mas também o papel da pintura nesse debate e o de um artista branco no contexto dos anos 1960 e 1970. Seus encapuzados seriam também nossos alter egos, qualquer espectador branco que adentra o espaço elitista dos museus e galerias. Afinal, até que ponto somos de fato engajados em mudanças sociais profundas? 

Entretanto, os críticos na mostra natimorta destacaram que essas potentes imagens figurativas que evocam um tema tão doloroso para os EUA e para o mundo mereciam mais, e esse mais significa dar atenção a “outras vozes” que deveriam ter sido mais escutadas na organização da mostra. Muitos detratores da mostra concordaram. No catálogo, havia, entre depoimentos de uma série de artistas, textos de dois artistas negros, Glenn Ligon e Trenton Doyle Hancock, mas, mesmo assim, as vozes e dores evocadas por Guston são muito profundas.

Esses acontecimentos demonstram que a pintura figurativa, e mesmo obras produzidas há décadas, de um artista falecido, ainda são capazes de revelar, a qualquer momento, sua capacidade provocadora junto ao público, mesmo num ano em que, talvez, muitas pessoas não imaginassem que a pintura fosse capaz de atrair para si a foco das atenções, sem que fosse pelas cifras milionárias e hiperinflacionadas pagas pelas obras de certos artistas nas casas de leilão. 

Esses dois casos, Basquiat e Guston, são duas referências para a novíssima safra de pintura contemporânea. Basquiat, em particular, desde sua morte vem impactando hordas de artistas replicantes de seu estilo pictórico – basta pesquisar a hashtag #basquiat no Instagram para encontrar tudo, menos imagens de obras do próprio Basquiat. Sua influência não se restringe apenas ao plano da pintura, mas também aos “shows do eu” do meio de arte, já que Basquiat era também habilidoso em se autopromover e sempre ambicionou a fama. Seu status de celebridade, reforçado pela morte prematura, de certo modo impulsiona a escolha de uma parcela de artistas por estilos que evoquem Basquiat, sua vida cinematográfica e mitologia. Essa escolha acaba se expandindo para a pintura figurativa ou narrativa em geral, para a escrita sobre tela, criando também uma expectativa e demanda por parte do mercado por novos Basquiats, cuja imagem seja de fácil consumo pelo público e cuja obra possa ser hiperinflacionada rapidamente. 

Os (eternos) booms ou retornos à pintura figurativa foram marcados, por exemplo, com a publicação, em 2002, pela editora Phaidon, do livro Vitamin P, que ganhou edições subsequentes (Vitamin P2 e P3). Destacam-se a  abundância das reproduções em cores das obras e os textos de letras diminutas. Essas e outras publicações, incluindo revistas especializadas como a Artforum e seus inúmeros anúncios de galerias comerciais, passaram a dar a aparente, mas desejada, segurança a muitos jovens artistas, artistas em início de carreira ou velhos artistas em eterno início de carreira, de que a pintura figurativa tem seu lugar ao sol reservado junto a certos curadores e curadoras, museus e, principalmente, a todas as galerias, casas de leilão e grandes coleções privadas. 

Saindo do plano da pintura, mas para reforçar a importância simbólica e, acima de tudo, política da figura humana quando representada nas obras de arte, cabe falar de certos monumentos que temos visto serem queimados, destroçados, derrubados ou afundados. Falamos das tristes eternizações do passado que representam racistas, assassinos e torturadores dos EUA, da Inglaterra e do Brasil, genocidas que derramaram sangue inocente em nome da relativa ideia de “civilização”. Os algozes, os antigos colonizadores, mesmo que simbolicamente, precisam tombar ou queimar, defendem as novas gerações. Os reacionários pedem a prisão dos responsáveis pelos atos de iconoclastia, acusam-nos de terrorismo em publicações e comentários na internet. Muitos desses reacionários, triste e cinicamente, habitam o meio de arte. 

Inspirada nessas ações, a pintura figurativa se encontra em um momento crucial. Ela deverá exercer um importante papel nessa necessária iconoclastia, mesmo que não de forma literalmente destrutiva. Fica o desafio para nós, artistas da pintura, atingirmos a grandiosidade simbólica e política do ato que é atear fogo em uma escultura de um assassino do passado cuja imagem insiste incomodamente em permanecer colossal no presente. Nós, atualmente, vivemos uma maldição: a de viver em uma época interessante. Tal como dizia um grande narrador e pensador, Albert Camus: 

“(…) até agora, o artista estava à margem, nas arquibancadas (…) Ele cantava por nada, para si mesmo ou, na melhor das hipóteses, para encorajar o mártir e distrair um pouco o leão do seu apetite. Hoje, pelo contrário, o artista se encontra no anfiteatro. Sua voz, por necessidade, não é a mesma; ela é bem menos segura. Estamos em uma arena. (…) Criar hoje é criar perigosamente!”2

É só depois que nos damos conta de que alguns dos atos simbólicos mais potentes de protesto recentes não foram executados por artistas de renome, das capas de revista badaladas, mas por pessoas comuns, trabalhadores oprimidos – os Sísifos que lotam os metrôs dia após dia. É só depois disso que muitos de nós somos jogados para o centro da “arena” mencionada por Camus. Se não aprendermos com essa “arena”, com essa tomada de consciência, se não sairmos das arquibancadas da história, corremos o risco de nossas pinturas, figurativas ou não, virarem ou continuarem a ser meras reproduções de antigas fórmulas, commodities ou joguetes mercadológicos. 


Notas:
1https://www.metmuseum.org/exhibitions/listings/2021/alice-neel
2Camus, Albert. Create Dangerously. Londres: Penguin books, 2018. Tradução do autor. 

The Dazzle Club, série de Cocoa Laney (2021)

“Por outro lado, minha mulher de 52 anos me parece tão atraente quanto no dia em que a conheci. Se eu dissesse isso em voz alta ela diria: ‘Que clichê, Douglas! Ninguém prefere rugas, ninguém prefere cabelo branco’. Ao que eu responderia: mas nada disso me surpreende. Espero para observá-la envelhecer desde que nós nos conhecemos. Por que isso deveria me incomodar? É o rosto que eu amo. Não este rosto, não este rosto aos vinte oito, trinta e quatro ou quarenta e três anos. É este rosto.”
(David Nichols, Nós)

Meu rosto é um acervo

Meus olhos são herança do meu avô. Meu nariz tem as raízes italianas do meu pai, meu queixo é igualzinho ao da minha mãe. No meu filho, enxergo os olhos do meu marido, castanhos, profundos, e em seu sorriso, os dentes da minha sogra. Na minha filha, encontro meus olhos e cabelos, as mesmas sardinhas de quando eu era criança, que com o tempo sumiram. E elas logo são a ponte para a lembrança da textura dos dedos jovens de minha mãe, acariciando minhas bochechas quando chegava do trabalho.

Meu rosto atual revela minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos – como diria Ney Matogrosso. É a soma de todos os genes que me foram ofertados, desde que nasci. Minha avó espanhola, meu avô mineiro, o avô italiano que nem conheci. Eu sou todos eles quando me olho no espelho. Meu rosto é um acervo.

Como diz Freud: “o Eu é um precipitado de catexias objetais abandonadas”. Sou todos que passaram pela minha vida de alguma maneira e em mim investiram afetivamente, seja de forma direta ou indireta. E essa presença deixa vestígios tanto externos quanto internos.

Numa cena do filme Extraordinário, o menino que havia feito várias cirurgias em função de uma síndrome rara pergunta para a mãe porque sua face é tão marcada por cicatrizes. Ela responde que nosso rosto é o mapa por onde nosso coração passou: “essa ruga aqui é da primeira briga que tive com seu pai, já esse pé de galinha das inúmeras vezes que você me fez sorrir, essa ruga da testa conta quanto tempo durou sua primeira cirurgia”.

Há alguns anos, minha mãe fez na casa dela uma parede de porta-retratos que ela chamou de “parede dos meus mortos”: tem meus avós na lua de mel, sua melhor amiga que partiu e todos que marcaram sua trajetória de 82 anos, mas que dela não mais participam. No começo achei tudo aquilo esquisito e mórbido, mas o amadurecimento me revelou a importância daquela parede. Em cada retrato, um alguém que a construiu; um laço do seu tecido de memória está pregado e emoldurado em seu museu pessoal, feito obra de arte. Assim, ninguém desaparece por completo.

Por vezes, esqueço o rosto das pessoas que amei, que já partiram, e sou tomada por um desespero, como se estivesse na iminência de perder lugares sagrados onde meu coração pousou. Quando a imagem vem, numa lembrança, eu escorrego para dentro dela, tento agarrar aqueles rostos com tanta força que fico até com medo de abrir os olhos e perdê-los outra vez. Semana passada fui visitada pelo sorriso de uma amiga que morreu. A imagem era tão nítida que quase a ouvi gargalhar. De vez em quando, esqueço da minha tia; fecho os olhos com força e a resgato. Estou salva, ela preservada. Sorrio secretamente quando me pego lembrando do olhar do meu pai. Rostos são sagrados.

Meu rosto é um produto

Atualmente, vivemos uma banalização de nossa imagem: o celular que destrava com face ID, o reconhecimento facial no banco, minha foto que avisa minha passagem pelos lugares.

Assim como João e Maria, vamos deixando migalhas de pixel por onde passamos. O tempo todo somos filmados num experimento sem precedentes, invadidos na nossa história pessoal. Grandes empresas colhem nossos dados e estão sempre alertas, tratando-nos como um produto a ser investigado. O objetivo é obter mais lucros, traqueando nossos caminhos, segredos e buscas. Meu rosto hoje virou produto.

O histórico da internet é um mapa do tesouro contemporâneo que revela o que pensei e pesquisei. O aplicativo de trânsito, por onde andei. Tudo que compartilhei já não me pertence mais, e aquilo que não compartilhei, mas procurei, busquei, pesquisei, fica também aprisionado. Há algo que é recolhido de mim, sem que eu mesma perceba.

Shoshana Zuboff descreve a violência dessa experiência no livro A Era do Capitalismo de Vigilância. As grandes empresas funcionam, de acordo com a autora, como os antigos colonizadores que entravam nos países invadindo e doutrinando aqueles que estavam lá anteriormente.

Num conto chamado “Livro de areia”, Borges descreve um livro amaldiçoado, que não possui começo, meio ou fim, cujas páginas são hipnotizantes e aprisionantes – assim como nosso feed, que nos alimenta todos os dias, e alimenta os outros com pedaços de nossa história. Não por acaso, chama-se feed. Nossos dados são alimentos para uma indústria ávida cujo alcance não conseguimos sequer dimensionar. A voracidade do mundo virtual é capaz de engolir nossas almas, nossa imagem, tratando nossa história como mercadoria. Recentemente, li numa matéria que a Amazon está dando desconto de cerca de 10 dólares em crédito promocional se você registrar suas impressões palmares nas lojas sem pagamento que abriu e vinculá-las à sua conta da empresa. “Os dados biométricos são uma das únicas maneiras pelas quais empresas e governos podem nos rastrear permanentemente. Você pode mudar seu nome, você pode mudar seu número de Seguro Social, mas você não pode mudar sua impressão palmar. Quanto mais normalizarmos essas táticas, mais difícil será para escapar delas”, disse Albert Fox Cahn, diretor executivo do Surveillance Technology Oversight.

Nossas digitais estão sendo deliberadamente entregues; damos as linhas da nossa vida de mão beijada.

Minha alma cativa (obrigada novamente, Ney) hoje é cativa da internet.

Meu rosto resgatado

Num trabalho recente, alguns ativistas se uniram para um movimento antivigilância. Iniciado em 2012, realizam oficinas gratuitas conduzidas por tecnólogos que ensinam as pessoas a usar a internet de forma anônima, criptografada. A criptografia nada mais é que o anonimato online. O objetivo: proteção de dados e a tentativa de garantia da liberdade individual, usando aplicativos que não são facilmente rastreáveis, tais como Telegram e Wire, cujas conversas não ficam salvas.

Protestam também contra a banalização de algo tão privado como a imagem pessoal pintando seus rostos, numa tentativa de camuflagem, desenhando formas geométricas, para evitar o reconhecimento facial, que recebe o nome de “antirrosto”.

Por trás desse manifesto há a revelação de um desejo de voltar a se apropriar de si. Ao mesmo tempo, se preciso mudar meus traços para não ser reconhecido pelas grandes empresas, preciso de um disfarce para continuar sendo eu? Só posso ser eu mesma me camuflando?

Ao ler essa notícia, lembrei de um e-mail que recebi de uma amiga que tinha um canal de YouTube. Dizia que havia se cansado da persona que ela havia construído para estar na internet. Contou sobre sua exaustão por tentar editar uma versão de si que lhe trouxesse mais seguidores, o quanto percebeu-se sequestrada em sua identidade ao longo desse processo. Carol voltou a se sentir Carol quando se despediu do canal que ela mesma criou. Qualquer semelhança com Fausto de Goethe ou O Médico e o Monstro não é mera coincidência. 

Porém, como amiga, percebia que mesmo quando a via na internet, conversando com as seguidoras, logo era transportada para o tempo em que eu e ela mais jovens morávamos fora e íamos todo domingo comer falafel, lá pelos anos 2000. Minha amiga não era aquela. Em mim, ela nunca deixou de existir. Ninguém me tira as lembranças da juventude que vivemos juntas e o prazer que sinto ao rememorá-las. Nem a internet, nem o envelhecimento, nem a morte.

Uma história engraçada: numa noite, derrubei vinho em seu laptop. O teclado ensopado chegou até a soltar fumaça. Na manhã seguinte, saímos as duas desesperadas atrás de assistência técnica. Quando finalmente encontramos, o técnico nos olhou, apontou o computador e decretou: “il est mort” (ele está morto). Chateadas, voltamos para casa, até que ela se deu conta de que, estando offline, não precisava mais checar se o ex-namorado estava online no MSN. Isso a libertou para viver sua vida fora das telas. Posso dizer, então, que já é a segunda vez que a vejo se libertar.

A verdade é que, ainda que a internet tente capturar nossa imagem, há algo que sempre será impossível de ser armazenado: a força de nossas memórias. Estas seguirão sempre sendo só nossas. São alimento do meu feed subjetivo, pessoais e intransferíveis. Eu as alcanço ao fechar os olhos, sem precisar de Wi-Fi, e lá sou sempre livre – ando nua, sem pintura, sem tecnologia. Nossas lembranças são um refúgio pessoal e moram numa parede viva dentro de nossos labirintos mentais. Esse tesouro não será entregue jamais para as grandes empresas. Eis nosso ato de resistência.

Não há gigabyte que alcance o cheiro da canja da minha infância ou a visão de minha tia amassando pão de queijo.

E, de vez em quando, passeio por Paris, gargalhando jovem com minha querida Carol, tomando vinho e falando sobre música, ainda que meu rosto revele que há tempos não tenho mais vinte anos. 

Menina com pêssego, de Valentin Serov (1887)

Sempre soube que atores e cantores compartilhavam segredos e afinidades. Assim, quando descobri que o lendário Stanislavski, ao reduzir suas atividades ao máximo em razão de grave enfermidade, manteve apenas dois empregos – um com atores e outro com cantores –, senti-me antes feliz por confirmar uma intuição do que realmente surpreso. Por essa razão, começarei falando de atuação para, em seguida, passar à canção.

Um ator, quando deseja viver de fato a existência de um personagem que ele representa, precisa convencer sua mente, seu cérebro e seu corpo de que aquela situação imaginária é real. Isso que, colocado dessa maneira, parece simples, é um dos desafios mais complexos do mundo das artes, pois significa dizer que um ser humano que tem toda uma vida pregressa (infância, memórias, sentidos, experiências, relações, traumas, conquistas) será capaz de substituí-la por outra vida que nunca viveu (aquela que foi inventada pelo autor de uma peça ou roteirista de um filme para um personagem). Assim, do mesmo modo que um bailarino se capacita para dançar um balé criado por um coreógrafo e um músico desenvolve habilidades múltiplas para, com seu instrumento, transformar em som vibrante uma partitura morta, o ator que se propõe a construir um personagem em si mesmo e dar vida a esse alguém que só existe, em estado de latência, na superfície de um papel, precisa desenvolver um manancial de recursos técnicos que permitam a ele operar esse milagre artístico. Tal milagre consiste em deixar alguém existir fora da mente, para além das palavras adormecidas na folha branca, alguém que possui largura, corpo, volume densidade, cheiro e cor.

Esse trabalho artístico, é bom que se diga, não equivale, em nenhuma hipótese, a enlouquecer ou alucinar. Não terei tempo aqui para expor as diferenças entre o artista e o louco, mas considero uma ofensa a ambos a confusão entre uma vocação profissional e pessoal (inscrita na esfera do trabalho e do desenvolvimento afetivo-intelectual) e as condições mentais e patológicas que, na maior parte das vezes, trazem uma ruptura com as relações afetivas e a realidade, causando dor, alheamento e sofrimento psíquico indescritível para aqueles que as atravessam. O artista pode sofrer de transtornos mentais, assim como alguém pode estar mentalmente adoecido sem professar arte alguma, mas esse tipo de atuação à qual me refiro – cujo grande pioneiro e maior arregimentador de ideias foi Constantin Stanislavski – situa-se na esfera do trabalho artístico e pode ser resumida na seguinte frase de Sanford Meisner, um de seus muitos discípulos: “Atuar é a habilidade de viver verdadeiramente sob circunstâncias imaginárias”

Aqui começa minha proposição sobre canção, que em tudo está ligada à atuação e ao título deste artigo: o cantor-intérprete, cujo “eu-pessoal” deseja experimentar a vida do “eu-personagem da canção”, é um cantor stanislavskiano, ainda que não tenha consciência. Ao vivenciar como se fosse seu o sofrimento ou a alegria de um outro ser, no aqui-agora, o cantor se aproxima do ator realista, ou seja, ele se propõe a ocupar seu próprio rosto com a máscara de outrem (do personagem criado pelo compositor), dando a esse outro uma existência que se funde à sua, por meio de um processo complexo que, na área da atuação, chama-se “construção de personagem”. Quando Elis Regina, em sua antológica versão de “Atrás da Porta”, debulha-se em lágrimas ao entoar o drama e os conflitos vivenciados pela mulher retratada na letra de Chico Buarque, é óbvio que ela não está representando mecanicamente uma ideia alheia e generalizada de sofrimento. Ao experienciar a dor profunda da personagem, a intérprete está, tal qual um ator realista, entrando em fase com a estrutura do conflito – no caso específico, o tormento da separação, do abandono e da solidão – a partir de suas próprias experiências pessoais. Elis é capaz de sentir, “em tempo real”, uma dor que não é sua, ao menos naquele momento, porque consegue vivenciar em seus afetos as circunstâncias que lhe foram dadas pelo autor da música. Desse modo, seu corpo, sua psique e sua voz são envolvidas por condições afetivas que, naquele exato instante, não estão ocorrendo. Isso é a verdade absoluta da ilusão, a fé cênica cujo apelido é máscara. 

A verdade da máscara, por sua vez, contrapõe-se à ilusão da vida. O teatro do real, da vida real (que não se confunde com o teatro realista), nada mais é do que a encenação socialmente endossada de circunstâncias dadas por um ator desconhecido (ou por múltiplos atores invisíveis). Se a filha de fulano é aprovada em um concurso para a magistratura, ou se beltrana é eleita deputada, ou se sicrano é vencedor do Big Brother Brasil, ninguém questiona o quão irreal é esse jogo de máscaras. Todavia, tanto a juíza quanto a deputada e o vencedor do Big Brother são ilusões enunciativas de uma sociedade que pode desfazê-las a qualquer tempo, desde que um processo histórico se constitua como tal. A essa instável ilusão, costumamos dar o nome de realidade. Porém, basta que uma desventura histórica permita a um capitão de fragata qualquer romper a ordem democrática e o juiz será destituído, o cargo de deputado extinto e os personagens lançados em outros papéis (quanto ao Big Brother, salvo raras exceções, o próprio tempo se encarregará de destituí-lo). Por isso, para quem deseja realmente entender sobre a verdade, o primeiro critério é saber que ela é absoluta na medida das construções sociais, mas nem por isso é mentira; verdades são entes concretos que operam em nossas vidas até que sejam substituídas por outras mais efetivas. 

Neste trecho de meu artigo, faz-se necessário um pequeno aparte para tratar da expressão “ilusão enunciativa”, que foi retirada do artigo de Luiz Tatit, a “Ilusão enunciativa na canção”. Ilusão enunciativa é um termo brilhante (e cauto) do igualmente brilhante (e cauto) Luiz Tatit – cancionista, compositor e linguista –, utilizado para descrever o processo que, segundo ele, faz com que o ouvinte de canção tenha sempre “a sensação de que os sentimentos descritos nos versos são vivenciados aqui e agora pelo cantor”. Tatit afirma que o canto tem o poder de transformar o “ele” em “eu”, ou seja, o personagem da canção se transforma na figura do próprio cantor, e segue dizendo que “a expressão direta do ‘eu’ na letra de uma canção (…) produz no ouvinte a ilusão de que o intérprete fala de si como ser humano”. Mas Tatit vai além. Ele propõe que, mesmo quando a letra está em terceira pessoa, as modulações da voz e a própria melodia se encarregam de aproximar o cantor do personagem da canção: “Lembremos da canção Domingo no Parque (Gilberto Gil), cuja intensa expressão melódica do intérprete (eu) elimina qualquer possibilidade de isenção enunciativa, ainda que a letra se construa em terceira pessoa e tente se ater aos fatos e à descrição dos sentimentos que geraram a crise entre ‘João’, ‘José’ e ‘Juliana’. Não se pode negar que o aumento progressivo da tensão emocional que afeta o personagem ‘José’ (ele) se manifesta claramente nos contornos melódicos realizados pelo eu-cantor”. E, para que restem comprovadas suas proposições, ele afirma ainda o seguinte: “Os sentimentos atribuídos a ‘ele’ (o personagem da canção) são infletidos pelas modulações vocais do intérprete, portanto, do ‘eu’ (o cantor). Tudo que a letra desconecta da enunciação, a melodia se encarrega de reconectar.

Essa digressão sobre o artigo de Tatit, longe de ser gratuita, é pedra fundamental para o entendimento do que estou a discorrer: a ilusão enunciativa é um conjunto maior dentro do qual o cantor-ator-realista é um subconjunto. O intérprete que vivencia a experiência do personagem como se fosse sua, no aqui-agora, é, para pegar um termo emprestado da biologia, a espécie dentro do gênero. Minha proposição deixa entrever o seguinte: há muitas maneiras de se aproximar do material cancionístico; uma delas assemelha-se ao modo como o ator realista stanislavskiano lida com seu material. Eu, particularmente, adoro esse tipo de interpretação. Amo a catarse e o aprendizado sobre a vida que tiro da observação ativa de uma existência se abrindo à minha frente. Mas, por outro lado, também venero cantores cuja experiência artística é proposta sobre outras relações com o material – por exemplo, a sensualidade somática e rítmica da letra, em que o vigor das sílabas e os ataques às notas ganham proeminência sobre a narrativa. Refiro-me aos cantores dos fluxos somáticos, corporais, aqueles em que a musicalidade das palavras e da melodia são vivenciadas com uma importância cem vezes maior do que um suposto sentido da letra. João Bosco, Marvin Gaye, João Gilberto, Mayra Andrade, Fatoumata Diawara, entre muitos outros, são cantores capazes de construir narrativas sensoriais para além do sentido literal das frases e sentenças, levando-nos a uma outra modalidade de fruição artística, que passa pela potência dos timbres, dos sons, das articulações vocais que moram numa outra dimensão da palavra. Eles também usam máscaras, mas, em muitas canções, trata-se de uma máscara sonora que em tudo se difere da máscara-personagem. 

Finalmente, a respeito da máscara, vale dizer que a verdade do cantor que se coloca no lugar do personagem da canção é referendada por um item apenas: a fé cênica. A fé cênica, por sua vez, não reside na consciência ou no intelecto do cantor, mas em seu corpo, em seu comportamento, nas respostas motoras e sensoriais que são acionadas pelo intérprete no momento exato em que ele se sente fundido, transfundido e confundido com o eu-personagem da canção. É somente a partir dessa simbiose física, mental e espiritual que o artista sangra e sua, chora e ri, toca e sente os conflitos da personagem como se fossem os seus e, o que é mais importante, age e reage a estímulos que nascem de seu inconsciente, dando vazão a impulsos tão surpreendentes que podem espantar tanto quem ouve quanto o próprio intérprete. Essa capacidade de alguns cantores de entrar em conjunção com o “eu da canção” parece-me muito semelhante à do ator stanislavskiano no seu processo de construção de personagem. Para além da ilusão enunciativa, brilhantemente proposta por Tatit, interessa-me conhecer melhor os procedimentos utilizados por intérpretes relevantes da música brasileira, cuja formação teatral, na maioria das vezes, é inexistente, para convencer sua psique de que ele (cantor) e o “eu da canção” (personagem) são um só.  

Já ouvi, por diversas vezes, fofocas, anedotários, relatos impublicáveis de estratégias utilizadas por cantores e cantoras para gravar suas canções com esse elã de verdade. Durante muito tempo, deixei-as, por pura ignorância, no terreno do exotismo. Hoje compreendo que o que há ali é a construção intuitiva de uma técnica, de um experimento, de um processo que, se não for pesquisado, permanecerá eternamente no terreno mágico do segredo. A verdade das máscaras é tão real (e fascinante) quanto a ilusão da vida.

Alteando a proposta para tatear um rosto.

Deste processo, me ponho aqui a falar que em uma certa tarde nesta nossa época de tempos de casa, me vi confessando uma vontade de lembrar dos “rostos” da família, de amigos e pessoas que me falam sobre sonhos em estranhos idiomas.

Eram rostos a lampeja e estavam distantes, uma forma de fato a se constituir

Nenhuma semelhança que não fosse construída através da massa pictórica da tinta a óleo, que dei por vezes um pouco menos que aquele minúsculo plano da pintura.

A saltar meu coração para dentro desta aventura com a emoção de um branco papel.

Fui diretamente ao fundo do mar, para lá buscar a sensação a construir.

Trazer sempre este rosto para o campo do conhecido, um fenômeno a se dar, um fato, buscas sempre muitas.

Penso que não há construção de um rosto com as mãos sem que os braços esqueçam a verdadeira forma.

Os brilhantes olhos aparecem com o tempo

Quem é?

Adivinha que ele se criou aqui.

Aqui para a Amarello minhas escolhas se passaram por todas as pinturas que este olhar pôde entrar para um imaginário.

Elas surgiram, somente as pinturas, quando me coloquei ao vento, muitas e poucas.

Ficaram principalmente aqui as que nasceram de um olhar vago, surpreso, remoto e também por muitas interessadas na palavra.

O pintor está a olhar para nós, não ao rosto fotografado, não ao instante. Meu olhar caiu dentro do rosto pintado e criado por esta tinta que está por trás deles. Os dias não foram tirados, mas, no todo as pinturas vieram. 



Autorretrato, de Iberê Camargo (1984)

Ninguém é tão parecido assim consigo mesmo. Exemplo casual mas significativo: depois da caracterização de Bruno Ganz (em A Queda! As últimas horas de Hitler), o famigerado teria muito o que aprender para se tornar outra vez parecido consigo mesmo.

Concluído o célebre retrato de Gertrude Stein, como sempre, não faltaram fariseus para reclamar que não estava nada parecido com a escritora. Picasso: não se preocupem, vai ficar.

Giacometti recusava a abstração, mas, evidentemente, desdenhava a mímesis tradicional. Passou a vida buscando, ansioso, o que chamava de ressemblance. Na versão cézanniana do artista, uma espécie de ontologia das aparências, o termo não consente tradução corriqueira. Semelhança, a tradução oficial, é palavra inócua. Só me ocorre um monstrengo: parecença. Algo que liga vagamente tudo a todos; no entanto, exige da parte do retratista a exata particularização. Só assim ele alcança o estatuto de mestre das aparências: o parecençador. 

A imagem imobiliza as aparências. Interrompe seu fluxo, fixa uma presença ostensiva. Imagem deriva da imago, a imagem do morto. Desde logo, pertence ao passado. A câmera fluida de Cartier-Bresson, porém, derrota o seu mecanismo: ela não reproduz; produz novas aparências. Por osmose. 

Giulio Carlo Argan, o grande historiador de arte italiano, era um crítico ideológico da pop art. Isso não o impediu de acertar na mosca ao definir Warhol como o técnico da imagem. Ele sabia instintivamente que o próprio da imagem é a evanescência, a rápida decrepitude. Por isso a captava sempre no início do declínio, nunca em seu volátil apogeu. Daí a aura de irrealidade que cerca suas Marilyns, sensacionais, meio fora de foco. Daí também a afinidade entre a expressão um tanto parva da personagem e o fetichismo que alimenta o mito das celebridades.

Desconheço, na história da pintura, rosto mais inexpressivo do que o de Filipe IV da dinastia dos Bourbon. Com o perdão de seus descendentes, eu diria que se aproximava bravamente do perfeito pateta. Sequer exibia a feiura agressiva dos modelos de Goya. Pois é, Velázquez transfigurou esse tipo ingrato num conjunto incomparável de telas. Nunca a luz da pintura brilhou tanto, inclusive nos famosos pigmentos negros espanhóis. Moral (meio abstrusa, reconheço) da história: nenhum rosto é tão íntegro assim que não permita descaracterização. O rosto de Filipe IV, felizmente, virou parte da paisagem. 

A aproximação entre Shakespeare e Rembrandt é moeda corrente na história cultural do Ocidente. O crítico literário Harold Bloom não fez por menos: nomeou seu monumental volume sobre Shakespeare A invenção do humano. Do mesmo modo, caberia muito bem chamar os autorretratos de Rembrandt “A invenção do rosto”. Pela primeira vez, na civilização cristã europeia, o homem mostrou, à vera, seu rosto pessoal e mortal. Sentimos o halo do frio, ou do álcool, que exala o pintor enquanto pinta. A chama de vida nos retratos de juventude, a amarga e digna sabedoria naqueles de sua velhice. A alma encarna de cima para baixo em Michelangelo; em Rembrandt, a alma encarna de baixo para cima. 

Iberê tem um pequeno autorretrato, capa de um dos livros reunindo sua obra, que resume sua trajetória de sulista visceralmente ligado à terra. É de um verde pastoso, acinzentado, com uma tinta espessa e viscosa, enlameada, que vai se revolvendo até plasmar a fisionomia incomum do artista. “Sou um homem da planície”, costumava dizer, isto é, reduzido ao básico, sem o sublime das montanhas, distante do mar atraente ou tempestuoso. Tinta, matéria orgânica. 

O que vemos no espelho é uma imagem do passado. Nosso rosto atual jamais coincide com ela. Tanto que está sempre mudando, e não enxergamos o processo. Ninguém conhece o próprio rosto. Estamos à mercê dos outros. O onipresente dito sartriano, contudo, é só uma frase de efeito – o inferno são os outros. Mentira: não conhecemos nenhum dos dois.