#6VerdeCulturaSociedade

A dança do plástico

por Leticia Lima

“Foi num desses dias, quando está prestes a nevar e há uma eletricidade no ar. Você quase pode ouvir, certo? E este plástico estava simplesmente dançando para mim como uma criança chamando para brincar… por quinze minutos. Foi quando entendi que havia essa vida toda por trás das coisas e essa incrível força benevolente que dizia não haver razão para ter medo. No vídeo, eu sei, não é a mesma coisa, mas ajuda a lembrar. E eu preciso lembrar. Às vezes, há tanta beleza no mundo! Penso que não vou suportar e meu coração parece que vai sucumbir.”

— Beleza Americana, 1999

Quem não se lembra daquela cena, já icônica, do saco plástico sendo carregado pelo vento numa dança melancólica do filme Beleza Americana? A beleza da cena, e do filme, é mesmo “americana” – é a beleza urbana, do supérfluo, do vazio, do desnecessário, do consumo sem sentido. E, infelizmente, é esse padrão de beleza que pegou no resto do mundo também.

Aqui no Brasil já somos adeptos do saquinho plástico e de tudo que representa. Supermercados, farmácias, lojas e até a brasileiríssima feira de bairro – todos embalam seus produtos no maldito saco.

Quando surgiram, no final da década de 1950, os modernos sacos plásticos eram motivo de orgulho para as redes de supermercado, e símbolo more do American Way of Life para as donas de casa. Porém, a imagem de mocinho dos sacos se decompôs rapidamente – aliás, a única coisa a respeito dos saquinhos que se decompõe – e hoje são considerados verdadeiros vilões ambientais. Isso porque o plástico demora ao menos trezentos anos para se decompor no meio ambiente.

E, no Brasil, o plástico filme, produzido a partir de uma resina chamada polietileno de baixa densidade (PEBD) e matéria-prima dos sacos plásticos, já é responsável por 9,7% de todo o lixo produzido no país. São 210 mil toneladas de plástico filme produzidas por ano.

Mas o nosso vício pelo plástico é difícil de largar. Outro dia fui ao supermercado com as minhas sacolinhas ‘verdes’ de lona. O segurança do estabelecimento de alto-padrão não queria me deixar entrar com tantas sacolas vazias. Desconfiado, por fim me deixou entrar, mas tive que deixar as sacolas no guarda-volumes. Na hora de passar pelo caixa, coloquei as compras do carrinho na esteirinha para a atendente cobrar, expliquei que já voltava e saí correndo, feito uma louca, até o balcão para buscar minhas preciosas sacolinhas. Quando voltei ao caixa, metade das compras já estava em sacos plásticos. Mas, como sou brasileira e não desisto nunca, ajudei o empacotador a tirar tudo de dentro dos sacos e passar para minhas sacolas.

Diga-se de passagem que a caixa estava me olhando como se fosse um e.t., o empacotador (coitado) provavelmente xingando a senhora minha mãe nos pensamentos, e os outros fregueses da loja, que tiveram o azar de escolher aquele caixa, resmungavam da minha demora.

Tanta dificuldade para uma coisa que deveria ser mais do que natural. Na Alemanha, quem não tiver sua própria sacola e quiser usar um saco plástico tem que pagar uma taxa extra – mais ou menos sessenta centavos cada saquinho. (Já imaginou quanto iríamos faturar aqui no Brasil, onde um bilhão – isso mesmo, bilhão – de sacos plásticos são distribuídos por mês nos supermercados)? Já a rede de supermercados CO-OP, na Grã-Bretanha, lançou uma campanha bem ‘verde’; todos os sacos plásticos usados na rede são 100% biodegradáveis, feitos de um material que se decompõe na natureza após apenas dezoito meses (parece muito? Melhor do que trezentos anos!)

Mas e nós, brasileiros, estamos fazendo o que a respeito dos sacos plásticos? Além de reclamar das enchentes nas ruas de São Paulo, decorrentes dos bueiros entupidos por todo o lixo que jogamos fora? Além de achar bonito um brasileiro gastar em média 66 sacos plásticos por mês?

Nem tudo está perdido, afinal. Em maio deste ano, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou o texto substitutivo ao Projeto de Lei 496/2007, que proíbe a distribuição e a venda de sacolas plásticas no comércio da capital paulista a partir de 1º de janeiro de 2012. Os estabelecimentos comerciais terão até 31 de dezembro de 2011 para acabar com o uso dos sacos plásticos. Durante este período de transição, os comércios terão de exibir placas dizendo “Poupe recursos naturais! Use sacolas reutilizáveis”. A partir de 2012, o descumprimento da lei implicará numa multa que vai de 50 reais a 50 milhões de reais – a fiscalização será feita pela Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente.

Quando soube da noticia, aplaudi de pé. Finalmente um esforço digno de uma nação tão verde! Orgulhosa, peguei minhas sacolas verdes de lona e fui à feira, bem aqui em frente à minha casa. Parei na barraca de frutas. Estavam lindas, uma verdadeira orgia tropical – athemoya, maracujá, abacaxi, carambola -, e refleti: como é bom ser brasileira, com toda essa abundância natural que Deus nos deu. Na hora de embrulhar, agradeci e expliquei à feirante que não queria os sacos plásticos, pois tinha minhas sacolas de lona.

– Bonito isso aí, moça. Nunca tinha visto, não.
– É que eu não gosto muito de usar saco plástico, sabe, faz muito mal ao meio ambiente.
– E onde é que se compra essas sacolas aí?
– Bom, é… essas eu comprei no exterior, mas já vi pra vender em supermercado aqui também…
– É? E quanto é que custa?
– Ah, baratinho, uns R$ 5,00 a sacola.
– Baratinho? Eu tenho cinco filhos, a compra do supermercado é grande. Preciso pelo menos de umas vinte dessas aí. R$ 100,00 não é muito pra você, filha, mas pra mim é comida na boca dos meus filhos.

Epa. O ideal bateu de fuça com a realidade. Ainda acho que estamos no caminho certo, mas, até viabilizarmos alternativas eficazes e baratas, o povo não vai querer dizer adeus aos saquinhos plásticos. Enquanto levar sua própria sacola às compras for uma “modinha” – hoje vi uma versão em couro do designer Jeremy Scott, queridinho da Katy Perry e Lady Gaga, que diz “I NY” – e não um movimento social, que envolva a educação, o apoio consciente dos estabelecimentos comerciais e um mínimo de esforço por parte da população (porque, cá entre nós, os malditos saquinhos plásticos são fáceis e convenientes, não são? Você não tem que se lembrar de levá-los quando vai às compras, e, se sujarem, joga fora, não é?), nós nunca vamos vencer nosso vício plástico.

E é preciso lembrar que há tanta beleza no mundo…

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Amarello visita: Bhering

Bhering Maravilha

O progresso do Rio de Janeiro cruzou duas vezes com a história da fábrica de chocolates Bhering – e um terceiro encontro, decisivo, parece em pleno curso. Rui Barreto, atual proprietário, costuma dizer que a trajetória da empresa confunde-se com o desenvolvimento e com a ocupação da cidade.

Agora, no entanto, sob uma diferença relevante: depois de desalojada duas vezes, e sempre de forma arbitrária, pelo prefeito Pereira Passos – responsável pelas monumentais intervenções urbanas que modernizaram o traçado do Rio no início do século XX –, a sede carioca finalmente integra o processo de transformação.

Instalada, desde a década de 1880, na estreita rua Sete de Setembro, a Bhering seria desapropriada para dar espaço à nascente avenida Rio Branco. Transferida, então, para a 13 de Maio, em seguida teria de arrumar novo endereço, desta vez devido à construção do Theatro Municipal, de quem se tornara vizinha.

“Nesse período – conta Rui – houve um litígio entre o Theatro e a Bhering. Todo o sistema de distribuição da fábrica era feito por carroças de dois burros. Eram quarenta carroças e, portanto, oitenta burros a defecar e urinar em frente ao Theatro, na hora da ópera. Dependendo do vento, era uma tragédia… Isso resultou numa campanha pública para tirar a Bhering dali”.

A nova mudança levou a empresa para a única região que, nos primeiros anos do século XX, parecia oferecer futuro – local que reunia todas as condições para um crescimento consistente: a zona portuária do Rio de Janeiro.

“Era uma área nova, aterrada, com o porto novo. Tinha tudo para ter êxito. Mas aquele sonho, de que realmente fosse uma região de grande futuro, desapareceu com o tempo. O porto acabou se transformando na zona mais decadente da cidade, a mais abandonada, a mais relegada pelo setor público” – contextualiza Rui.

O processo de esvaziamento da fábrica teve início em 1980, quando a circulação de veículos de transporte foi inviabilizada pelo acanhamento do entorno. As ruas do Santo Cristo, estreitas, estavam preparadas apenas para carroças e carros pequenos. “Nossa estrutura – registra Rui – transformou-se em um ‘peru no pires’. Uma construção imensa, com vinte mil metros quadrados, em um local sem meios de receber caminhões de grande porte”.

Com as dificuldades relativas à logística agravadas, a direção da empresa optou por levar o maquinário para a unidade de Varginha, no sul de Minas Gerais, e vendeu o equipamento restante. Em seguida, começou-se a pensar no que fazer com o prédio.

Em tempo: quem não se lembra da bala boneco, aquela, rosa, que tinha formato de um moleque robusto e que – para desespero dos dentistas – fez imenso sucesso nas décadas de 1970 e 1980? Pois bem: era um produto da Bhering, que já não o fabrica mais, dedicando-se apenas ao café Globo e ao chocolate em pó.

No lugar onde outrora eram produzidas toneladas de doces, hoje – vencendo o período de obscuridade e quase abandono para se reinventar num novo e dinâmico uso – há uma série de ateliês e estúdios de artistas, que devolveram vida e movimento à antiga fábrica por meio de expressões variadas: escultura, pintura, fotografia, arte sonora e digital etc. Também funcionam no local, por exemplo, uma gráfica, uma editora e uma loja de móveis de madeiras, e é comum realizarem-se ali filmagens para cinema, televisão e propaganda. (Em breve, aliás, será inaugurado um restaurante, que atenderá a demanda crescente daqueles que trabalham no edifício).

Quase 100% dos espaços estão ora alugados, e cerca de sessenta pessoas aguardam na fila, espécie de lista de espera, por uma vaga – o que se intensificou com chegada do projeto Porto Maravilha, que pretende revitalizar a zona portuária do Rio. As obras, capitaneadas pelo governo municipal, já começam a alterar a paisagem da região e, neste contexto, deixam o prédio da Bhering – cuja estrutura foi trazida da Alemanha – numa posição privilegiada.

O Santo Cristo, um apêndice do Centro longamente esquecido, é bairro de fácil acesso e tem ótima localização, bem próximo do Aeroporto Santos-Dumont. Transformou-se, faz pouco, num lugar relativamente tranquilo depois que Unidades de Polícia Pacificadora [as famosas UPPs] foram implantadas nos morros da Providência e do Pinto. Hoje, as pessoas que trabalham em seus arredores circulam sem medo e frequentam restaurantes, lojas de material de construção, bancos, farmácias, supermercados, sapateiros, estofadores e toda sorte de estabelecimentos da vizinhança.

Algo promissor – saudável – desenvolve-se ali, e a modalidade de ocupação da antiga fábrica da Bhering talvez seja o recorte mais representativo do que está em curso: despretensiosa e plural, reúne linguagens e propostas independentes num ambiente não necessariamente artístico, mas favorável à arte, à criação, à troca.

ARTISTAS QUE ESTÃO POR LÁ:

Abel Duarte, Alessandra Bergamaschi, Alessandro Sartore, Alexandre Rangel, Ana Ouro Preto, Barrão, Beatriz Carneiro, Brígida Murtas, Cadu, Carina Bokel, Carolina Martinez, Chiara Banfi, Daniela Dacorso, Denise Terra, Dudu Garcia, Elisa Pessoa, Fábia Schnoor, Felipe Messina, Gabriel Jauregui, Gabriela Bonomono, Gabriela Maciel, João Magalhães, Jorge Luiz Fonseca, Jorge Vasconcellos, Jozias Benedicto, Luciana Palhares, Maíra das Neves, Marcelo Jácome, Rodrigo Miravalles, Veridiana Leite e Vivian Caccuri, entre outros.

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Inventário No 1: O Sobrado Amarelo

por Mateus Acioli

#6VerdeCulturaSociedade

Verde Próprio

Vivemos uma revolução, como a tão conhecida Revolução Industrial. Agora é a vez da ambiental, que indica estarmos no limite da necessidade de mudança comportamental. Sustentabilidade, mais que uma poderosa ferramenta de marketing para as grandes corporações, virou uma questão de sobrevivência. Todas as discussões acerca deste assunto deveriam ser conduzidas com mais seriedade, clareza e respeito do que comumente é feito.

O instinto de sobrevivência é um dos mais primitivos e poderosos do ser humano; e, para que nosso futuro não seja a extinção, através da intoxicação planetária provocada por nós mesmos, teremos que lançar mão dele.

CARLOS Saldanha

Qual o seu contato com “o verde”?
O estúdio da Blue Sky, onde trabalho, fica numa área super arborizada. Durante minha hora de almoço, quando não tenho reuniões, como do lado de fora, para aproveitar um pouco do verde. Mas aproveito mais na primavera e no verão, pois no inverno fica tudo coberto de neve. Na verdade, meu contato mesmo com a natureza acontece quando venho ao Brasil de férias, passeando no Jardim Botânico e nas Paineras, e indo ao sítio do meu cunhado, no sul de Minas.

Muito se fala de sustentabilidade. O que significa esse conceito para você?
É tentar evitar o desperdício e viver dentro de um equilíbrio entre o conforto da vida moderna e a responsabilidade para com o meio ambiente. Temos de ter a consciência de que nossos recursos naturais são limitados e estão se deteriorando. Temos de encarar este desafio de preservação como prioridade para que possamos ter, através de soluções imediatas, alguma chance de melhorar nossa qualidade de vida em médio e longo prazos.

Nossos pais nos abriram portas com a revolução sexual feita por eles e pelos laboratórios farmacêuticos nos anos 1960. Nos dias de hoje o tema da sustentabilidade está em voga. Você acha que isso será a herança da nossa geração?
Espero que sim. Será o mundo que deixaremos e, se não cuidarmos agora, o futuro certamente será mais problemático.

Você, que mora em Nova York, qual a principal diferença que percebe no tratamento da responsabilidade verde entre Brasil e Estados Unidos?
O brasileiro vem evoluindo muito no que se refere à consciência de preservação, mas ainda estamos longe dos padrões dos americanos. Nos EUA, a noção de responsabilidade para com o meio ambiente envolve mais camadas da sociedade e, com isso, tem mais impacto no dia a dia. No Brasil, este movimento ainda é bastante restrito.

Você acredita no sistema de reciclagem de lixo da sua cidade? Recicla seu lixo?
Sim, temos um programa eficiente de coleta seletiva, e todos participam. As crianças lá em casa já aprenderam, e isso agora faz parte de nossa rotina.

Além da reciclagem do próprio lixo, o que você considera ações básicas para um cidadão urbano sustentável?
Economia de energia e água, e redução de emissão de CO2, procurando meios de transportes alternativos.

Como é a sua utopia do verde nas grandes cidades para as próximas décadas?
Cidades arborizadas, com parques e jardins. Espaços que valorizem os pedestres e ciclistas, com transporte urbano de mínimo impacto ao meio ambiente. Reciclagem de 100% e controle dos poluentes e resíduos. E uma população consciente de sua responsabilidade de preservação e respeitosa para com o mundo a seu redor.

Carlos Saldanha é diretor do filme Rio.

PATRICIA Lobaccaro

Qual o seu contato com “o verde”?
Em Nova York, durante a semana, se saio do trabalho cedo, costumo correr no Hudson River Park, meu favorito. Nos finais de semana, vamos pra nossa casa de campo, onde cultivamos uma horta orgânica e tenho oportunidade de passar mais tempo em contato com a natureza, junto com meus filhos. Enfeito a minha casa com flores do jardim e adoro os farmer markets.

Muito se fala de sustentabilidade. O que significa esse conceito para você?
A capacidade de permanência a longo prazo. Com relação à sustentabilidade do planeta, refere-se à gestão de recursos naturais a fim de atender às demandas da sociedade de hoje e não comprometer a sobrevivência de futuras gerações. Aí surgem questões específicas de preservação de ecossistemas e da biodiversidade. Os indígenas, por exemplo, têm uma visão holística do planeta que não distingue o ser humano do meio ambiente. Somos todos parte do mesmo sistema. Na prática, significa cuidar do planeta com muito carinho, tendo em vista não apenas o bem-estar imediato mas o impacto que nossas ações terão nas próximas décadas, séculos e milênios. É importante destacar que o conceito e a prática da sustentabilidade estão intimamente ligados ao desenvolvimento humano. Não podemos esperar que aqueles que vivem em intensa pobreza adiem o bem-estar imediato de suas famílias em função de um futuro abstrato. Muitos não têm esse privilégio, essa liberdade.

Nossos pais nos abriram portas com a revolução sexual feita por eles e pelos laboratórios farmacêuticos nos anos 1960. Nos dias de hoje o tema da sustentabilidade está em voga. Você acha que isso será a herança da nossa geração?
Infelizmente, acho que nossa herança não será ainda uma de mudança. Estamos presenciando hoje um aumento de consciência, mas ainda não vejo uma transformação significativa no estilo de vida das pessoas. A sociedade está mais consumista do que nunca, com a facilidade de acesso a produtos pela internet e sites de compras coletivas que fazem as pessoas adquirirem o que não precisam. Podemos dizer que colocamos o assunto firmemente na agenda internacional. Talvez a geração dos meus filhos consiga reverter o ritmo de destruição do meio ambiente e do consumo desenfreado.

Você, que mora em Nova York, qual a principal diferença que percebe no tratamento da responsabilidade verde entre Brasil e Estados Unidos?
Em alguns lugares dos Estados Unidos, como na Califórnia, existem medidas que estimulam práticas sustentáveis. Pistas expressas para carros com pelo menos dois passageiros, estacionamentos com vagas mais baratas para automóveis movidos a energia alternativa, lugares destinados ao estacionamento de bicicletas; movimentos que ainda não vejo em metrópoles no Brasil. A reciclagem do lixo também me parece mais organizada em Nova York do que em São Paulo, por exemplo. Não vejo nos Estado Unidos rios poluídos e degradados, como o Tietê, cortando metrópoles. Por outro lado, grande parte do consumo de energia no Brasil vem de fonte renováveis e, nesse ponto, o país está bem à frente.

Você acredita no sistema de reciclagem de lixo da sua cidade? Recicla seu lixo?
Sim, sempre reciclei o lixo desde que vim morar aqui. Meu prédio é bastante organizado a este respeito: separamos o lixo em três latões, um só para papeis e embalagens de papelão, outro para plástico, vidro e metais, e um terceiro para os resíduos orgânicos.

Além da reciclagem do próprio lixo, o que você considera ações básicas para um cidadão urbano sustentável?
Usar transporte público sempre que possível, caminhar ou andar de bicicleta, consumir alimentos produzidos localmente, reciclar, reaproveitar, evitar desperdício de energia, consumir de forma consciente, tratar com carinho os espaços públicos, respeitar o próximo.

Como é a sua utopia do verde nas grandes cidades para as próximas décadas?
Melhor planejamento urbano, edifícios que reaproveitem a água, utilizem melhor a luz e a ventilação naturais, menos áreas impermeáveis, transporte público eficiente, mais parques, mais feiras com produtos orgânicos e locais, menos restaurantes de fast food, menos poluição sonora e visual, melhor gerenciamento do lixo em nível publico e individual, e legislação que estimule práticas sustentáveis.

Patricia Lobaccaro é C.E.O. da BrazilFoundation.

LUISA Moraes

Qual o seu contato com “o verde”?
O contato com o verde é um dos aspectos principais da minha vida. Os meus pais criaram meus irmãos e eu sempre próximos da natureza. Aproveitar o mar, as cachoeiras e subir em árvores sempre apelaram mais do que brincar dentro de casa. Temos uma casa de praia a duas horas de São Paulo e tento ficar o máximo que posso lá. Não tem telefones, televisão ou internet, então você se reconecta com a natureza e com nossos instintos e vive no presente. Me faz bem ir até lá. Sem ter a natureza ou os animais à minha volta, piraria. Quando estou na cidade, também observo o céu e as fases da lua. Posso encontrar a beleza e a natureza em algumas cidades mesmo quando parece difícil ou quase impossível. É importante saber onde encontrar a simplicidade da natureza, especialmente em uma cidade.

Muito se fala de sustentabilidade. O que significa esse conceito para você?
A sustentabilidade é essencial no meu dia a dia. Tem coisas que tento fazer para conservar os recursos naturais. Tento sempre evitar garrafas e sacos plásticos. Bebo água de torneira filtrada. Reciclo o máximo possível e tento comprar apenas o que realmente preciso. Gosto de comprar móveis e roupas vintage porque acho que se enquadram nessa categoria. Tento usar minha bicicleta quando posso. Desde criança meus pais nos criaram comendo comida orgânica, mas agora que os tempos mudaram e os alimentos são transportados distâncias absurdas, tento sempre comprar produtos locais e apoiar os agricultores da região. Acho isso muito importante, e assim acabamos comendo exatamente o que nosso corpo precisa, porque nossos alimentos e nós estamos crescendo no mesmo ambiente. Meu sonho é um dia viver da minha própria horta. É isso que o conceito de sustentabilidade significa para mim no meu dia a dia, mas, numa visão geral, também tem a energia solar e muitas outras iniciativas e recursos que precisamos buscar juntos.

Nossos pais nos abriram portas com a revolução sexual feita por eles e pelos laboratórios farmacêuticos nos anos 1960. Nos dias de hoje o tema da sustentabilidade está em voga. Você acha que isso será a herança da nossa geração?
Infelizmente, acho isso pouco provável, já que poucas pessoas estão conectadas ou preocupadas com a sustentabilidade ou com uma revolução global consciente. Talvez em alguns anos ou décadas isso mude.

Você, que mora em Nova York, qual a principal diferença que percebe no tratamento da respon-sabilidade verde entre Brasil e Estados Unidos?
Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos temos verde em abundância. A água nos Estados Unidos é muito limpa, bebemos da torneira – no Brasil não podemos fazer isso. De onde venho, em São Paulo, temos um rio muito poluído, enquanto que aqui temos cidades lindas que são preservadas e onde os cidadãos são mais responsáveis em não poluir o meio ambiente. Mesmo assim, os Estados Unidos poluem muito e geram muito lixo. São o país mais consumista.

Você acredita no sistema de reciclagem de lixo da sua cidade? Recicla seu lixo?
Sim, eu gosto de acreditar que o lixo da minha cidade está sendo reciclado de alguma forma. Eu sei que a realidade é outra, e temos um longo caminho a trilhar. Acho que separar o lixo em casa é o mínimo que podemos fazer. Tento não produzir lixo, reciclo e faço compostagem.

Além da reciclagem do próprio lixo, o que você considera ações básicas para um cidadão urbano sustentável?
Outras coisas básicas são simples como economizar água. Fico louca quando vejo uma torneira correndo e ninguém usando. O nosso futuro em termos de água me preocupa muito. A água precisa ser mais valorizada.

Como é a sua utopia do verde nas grandes cidades para as próximas décadas?
Não sei se será possível viver numa cidade daqui a algumas décadas. Gostaria de acreditar que será possível, mas não posso imaginar meus filhos não vendo o horizonte ou tendo contato com a natureza. Com o passo acelerado da tecnologia, o tempo passa cada vez mais rápido, e está ficando cada vez mais difícil parar e curtir os momentos especiais em uma cidade agitada.

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Lampião de gás, lampião de gás: que saudade que você me traz

por Ronald Sclavi

Essa fonte de luz e de energia iluminou a cidade de São Paulo até 1937. Gente como a poeta Zica Bergami traduziu em versos a saudade de uma certa “luzinha verde azulada”, que iluminava sua mocidade nos anos 1910. A energia era produto da queima de carvão mineral. Para iluminar São Paulo, bastavam pouco menos de dois mil postes, que substituíram as lamparinas de azeite do século XIX.

A música eternizada na voz de Inezita Barroso lembra “do bonde aberto, do carvoeiro e do vassoureiro, com seu pregão”. Veículos e pessoas que desapareceram há décadas. Um mundo, com outro compasso, outra energia.

Afinal, quando os lampiões de gás deixaram a maior metrópole brasileira, éramos menos de quarenta milhões. Um país exótico, uma promessa…. O mundo não era tão diferente. Menos de dois bilhões de habitantes viviam a expectativa da segunda grande guerra, quando o bem e o mal ainda escolhiam lados.

Neste ano, seremos sete bilhões no planeta. Isso mesmo! A humanidade atingirá essa marca. Sete bilhões de bocas para comer, catorze bilhões de pulmões para respirar e, para cada pessoa, um conjunto de dezenas de objetos que só funcionam às custas de um conceito, algo invisível, que nos cerca, que não pede licença e, principalmente, que não pode acabar… a energia!

Televisores, geladeiras, microondas, DVDs, computadores, celulares, iPods (fones, pads e outras palavrinhas encantadoras inventadas por Steve Jobs), máquinas de lavar, secar, passar e até carros…. Tudo, em algum momento, frequenta uma tomada que recebe a vibração invisível que alimenta o mundo. Nada, rigorosamente nada disso, fazia parte da poesia e da juventude da nostálgica Zica.

Quando tudo se apagava, ela fechava a janela e dormia, aguardando o sol que até hoje brilha, inequivocamente, toda manhã. Nós nos desesperamos com o apagão ou, simplesmente, com o risco de escassez que aponta. Trocamos poesia por eletricidade. Agora, pagamos o preço.

A demanda projetada de energia no mundo aumentará 1,7% ao ano, até 2030, quando alcançará 15,3 bilhões de toneladas equivalentes de petróleo (TEP) anuais, de acordo com o cenário-base traçado pelo Instituto Internacional de Economia (Mussa).

A matriz energética mundial tem participação total de 80% de fontes de carbono fóssil, sendo 36% de petróleo, 23% de carvão e 21% de gás natural. O Brasil se destaca entre as economias industrializadas pela elevada participação das fontes renováveis em sua matriz energética.

Isso se explica por alguns privilégios da natureza – como a existência, em seu território, de uma bacia hidrográfica, fundamental à produção de eletricidade (14%) – e pelo fato de ser o maior país tropical do mundo, um diferencial positivo para a produção de energia de biomassa (23%).

Zica Bergami não sabia disso; apenas rimava sua saudade com graça e delicadeza. Rimas bem mais ricas que apagão e geração, por exemplo. Isso mesmo: agora não adianta produzir, também é preciso distribuir a tal energia. Aí mora o problema. A população galopa enquanto a energia engatinha. A solução rima com poesia. A palavra é economia.

No mundo de dona Zica, os recursos estavam todos ali, ao alcance de um lampião. Aos poucos, nosso mundo ganhará novos lampiões. Limpos, sem fumaça e fuligem. O nome é pouco poético: Light Emitting Diode, ou apenas LED.

Essa é a sigla que, silenciosamente, ocupa os espaços das necessidades que o homem contemporâneo construiu para iluminar a própria vida.

Esse tipo de iluminação é o terceiro estágio na evolução da lâmpada elétrica. O primeiro foi representado pela incandescente, que substituiu os lampiões, para a tristeza de dona Zica. A segunda fase, com o uso das lâmpadas fluorescentes (que geram luz a partir de uma mistura de gases), representou economia, mas não conseguiu substituir sua antecessora em todas as aplicações.

A tecnologia do LED é bem diferente. A lâmpada é fabricada com material semicondutor semelhante ao usado nos chips de computador. Quando percorrido por uma corrente elétrica, emite luz. Enquanto uma lâmpada comum tem vida útil de mil horas e uma fluorescente, de dez mil, a LED rende entre vinte e cem mil horas de uso ininterrupto.

Nossos lampiões modernos funcionarão assim: dez anos sem parar, sem apagar. “Queremos preparar as pessoas para esse novo momento, promovendo uma migração tecnológica com critério e informação”, afirma Mônica Ferro, à frente da Wall Lamps, empresa brasileira na vanguarda dos projetos de iluminação no país.

Segundo Mônica, viveremos algo parecido com o que foi a chegada dos microcomputadores ou telefones celulares. Um caminho sem volta e uma tecnologia que começa com custos mais altos e, aos poucos, toma conta do cotidiano.

Se todos nós conseguirmos apagar as luzes e dormir tranquilos, como a poeta que se ressentia do velho lampião, talvez, em um futuro próximo, consigamos novamente produzir versos e cantar nossa saudade.

Saudades de telefones pretos e geladeiras brancas; de caminhar com calma; de namorar no portão; da matraca que anunciava o quebra-queixo; da buzina do algodão doce; de ouvir “muito obrigado”, “por favor” e “com licença”; de um tempo mais doce; de um compasso mais lento… de mais poesia e outra energia…

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Missão quatorze mil

por Léo Coutinho

de Márcia de Moraes

A ministra do Meio Ambiente, Isabella Teixeira, publicou artigo na Folha de São Paulo comemorando o fenômeno mundial que aponta o crescimento do protagonismo feminino nas questões de consumo. Segundo sua excelência, “dos alimentos ao vestuário, da casa ao carro, dos bens culturais à viagem de férias, são elas que estão decidindo o presente e o futuro do consumo e, obviamente, o futuro da produção.” Como prova de que não está palpitando, oferece estatísticas de estudos recentes: de 60% a 80% das decisões de compra são tomadas por mulheres.

As palavras da preferida da presidenta Dilma Rousseff para a pasta do verde me surpreenderam não pelo excesso, mas pela magreza dos números. Se na conta entrassem as escolhas indiretas, isto é, aquelas que o homem faz na intenção da mulher, o número seria absoluto. Porque, desde que mundo é mundo, quem toma as decisões de consumo são as meninas. Ou alguém acredita que, tendo alternativa, Adão não pediria um chope no lugar da maçã? Tenho uma tia que, não contente com a última palavra na hora da compra, arbitra diariamente até sobre as roupas que vão no marido. É a minha querida Maria Amália, e, mesmo que Amélia fosse, não seria diferente, apenas dissimulada.

Alguns dias antes, no jornal concorrente, O Estado de São Paulo, o professor Samy Dana, da Fundação Getúlio Vargas, apresentou números estarrecedores: o carro novo desvaloriza, em média, catorze mil reais no primeiro ano. É uma assombração matemática! A média considera tanto aqueles que possuem um único automóvel, mais ou menos caro, quanto os que têm um segundo ou terceiro – esses veículos que ficam parados na garagem de quem ainda sofre de alergia às calçadas e ao transporte coletivo. Curiosa esta aflição. É como se as pessoas negassem de propósito que o avião é transporte coletivo. No dia em que o idioma inglês chegar à Miami, descobrirão que a tradução de avião é ônibus aéreo – e tudo poderá mudar.

Mas o ponto aqui é que quem quiser continuar levando prejuízo individualmente, que troque de carro todo ano, e que tenha um segundo e um terceiro modelo na garagem. O problema é o dano coletivo, o custo ambiental que a fabricação e o uso desmedido do mais cretino e egoísta dos meios de locomoção já inventados vêm causando às pessoas, tanto às que preferem o lado de fora, morrendo atropeladas ou sufocadas pela fumaça, quanto às que lhe ficam dentro, sepultadas em vida numa caixa de metal com dez vezes o seu peso, e que, no meio ambiente, tem origem suspeita e destino impossível.

Juntando o que aprendi com a ministra ao que o professor me ensinou, percebi que, para termos noção do prejuízo, a frieza do cálculo não basta. É necessária a emoção da alternativa: opções claras e diretas de onde gastar essa gaita. A partir disso, procurei cinco amigas especialistas, cada uma em seu ramo de atividade, todos muito sensíveis ao coração das meninas: arte, moda, design, celebrações e gastronomia. A pergunta que lhes propus foi direta:

Se, da mesma forma como descobrimos aqueles vinte reais esquecidos num bolso de casaco, você encontrasse catorze mil reais inesperados sobrando na conta, o que faria, onde gastaria? Recomendação importante: é para torrar.

A primeira resposta veio de Florence Antonio, marchand e colecionadora de arte: “Investiria no trabalho de um dos quatro jovens artistas brasileiros promissores de que mais gosto e que estão dentro dessa margem de preço: Marcius Galan, Marina Rheingantz, Thiago Rocha Pitta ou Tatiana Blass. Cada um tem sua especialidade – escultura, pintura, fotografia. Todos têm obras em coleções privadas e públicas, tanto no Brasil quanto no exterior. Só trocaria o termo gastar ou torrar por investir, porque, além de prazeroso, arte é um investimento”.

A arquiteta e urbanista Elisa Friedmann também não demorou para contribuir com seu sonho de consumo em design, e enviou inclusive o retrato da poltrona Cité, obra-prima de Jean Prouvé fabricada pela Vitra. O designer francês, falecido em 1984, era um industrial e executivo capaz de produzir e comercializar seu trabalho genial e abrangente, que ia de simples maçanetas a casas inteiras, de espátulas de abrir cartas à mobília. A Cité foi batizada assim porque venceu um concurso para móveis residenciais da Cidade Universitária de Nancy. Feita em aço e couro, suas semelhanças com um automóvel encerram-se no material. Até porque os automóveis se encerram, e a Cité é eterna.

Em Paris, aonde foi se pós-graduar em design e gestão de moda na IFA (International Fashion Academy), minha cunhada querida, Renata Lima, quase se perdeu quando soube que tinha catorze mil reais para gastar. Foi uma luta brava para descobrir, entre as vitrines da Cidade Luz, onde empregar o dinheiro – o que, garantiu-me a irmã dela, é absolutamente compreensível. Quando o vestido que escolheu chegar às lojas sul-americanas, é bem possível que não caiba mais na verba em função dos impostos e outros bichos – sorry, Cidade Jardim. Porém, na Chanel da Avenue Montaigne, por 8.750 euros, qualquer menina poderá encontrá-lo. O uso, contudo, já é mais restrito: à semelhança do arame farpado, a peça protege o corpo sem obstruir muito a vista. É todo transparente, bordado, com um decote em V profundo nas costas e a terminação em botões de pedras. Vai lá!

O cronista Rubem Braga, em certa missão internacional, conheceu uma Alice, que, na prática, dizia-se Hélice. De quando eu soube para cá, é assim que trato Alice Moura, my dear Hélice, que, fazendo jus à pronúncia, entrou de sola, no sentido literal e no figurado também. Ela é a inventora do Rent a Local Friend, uma espécie de cooperativa de guias de turismo descolados dispostos a levantar uma graninha passeando com pessoas que procuram um amigo da terra para não errar em viagens. Militante do próprio negócio, Hélice botaria os catorze mil num projeto de turismo local, em que cada um sairia a pé – ou de sola – para conhecer a cidade natal, o que, sabemos, é um hábito infelizmente raro. Como nem todas as meninas estão prontas para isso, entretanto, decidiu atacar de Nova York – o que, mais uma vez, é entrar de sola.

Reverenciando a estátua símbolo da cidade e do país todo, ela preferiu deixar o investimento em bilhetes e hospedagem a critério de cada um e optou por sugerir coisas muito mais caras ou, antes, valiosas, que custam nada ou muito pouco. Que tal levantar sem pressa e sair para correr à beira do rio Hudson, no Píer 25, numa das pontas do Cais Moore? Depois, um brunch simples e sofisticado no Buuby’s, em Tribeca. O que lhe parece? No meio da tarde, a proposta seria flanar pelas galerias do Soho, como Tom Jobim lembrando da Gamboa: “ai-ai-ai que coisa louca; ai, meu deus, que coisa boa”. Trata-se de um museu a céu aberto, com o creme da arte moderna, pop e contemporânea. Em seguida processar tudo tomando um refresco visual no bar do hotel Gansevoort, de onde se contempla toda Manhattan, ou bebendo alguns drinques para o espírito no telhado do Rooftop Garden Bar and Restaurant, feito um gato fujão e cheio de ideias modernas. Saudades do Brasil? Churrasco na laje do Terminal 5, ao som da melhor programação de música ao vivo da cidade. Ah, assim nego se diverte muito e gasta pouco? Hospede-se no Plaza.

E, se a proposta aqui é uma convocação pelo coletivo, por que não juntar os amigos em torno da alegria de ver sobrando catorze mil reais? Telefonei para a Janaína, do Bar da Dona Onça, e perguntei que festa a gente poderia fazer com o dinheiro. Por um desses caprichos do destino, ela – que, por princípio, não tem carro e que sempre convida para uma folia – estava imaginando uma despedida para o Jeferson Rueda, seu marido, que parte em breve para um laboratório de três meses na Espanha enquanto seu restaurante novo em São Paulo não fica pronto. “Segue o orçamento da festa para cinquenta pessoas: seis caixas de Veuve Cliquot, R$ 6.084; canapés de presunto San Danielle com figo fresco, R$ 380; coquetel de camarões, R$ 660; estrogonofe de filé com chips de batata e arroz soltinho, R$ 980; merengue de morangos, R$ 450; uma caixa de uísque oito anos, R$ 828; doze unidades de vinho tinto Amayna Pinot Noir, R$ 1.068; o meu cachê para preparar tudo fica de presente para ele e, para a verde freguesia de Amarello, ofereço a consultoria.”

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Mutuus

por Márcio Simnch

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Opção pela Hipocrisia

por Fernando Grostein Andrade

Muitas gerações cresceram sob o lema de que o Brasil é o país do futuro; todas, no “passado” ou no “presente”, enfrentando um mesmo obstáculo: a hipocrisia. Explico: temos uma das cargas tributárias mais altas do mundo, e não é raro irmos a um médico e ouvirmos a recepcionista perguntar – “Com nota ou sem?”. Não é raro conhecer alguém que “tem que” sonegar. Não é raro saber de uma campanha eleitoral feita com “recursos não contabilizados”. Ou encontrar um camelô vendendo DVD pirata na porta de um cinema (o que, para alguns, também resulta da alta carga tributária). Com o assunto drogas, não poderia ser diferente. E custa vidas.

Nos últimos dois anos estive à frente do documentário Quebrando o tabu, em que pude registrar um pouco do trabalho do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no combate ao consenso da “guerra às drogas”. Viajamos por dezoito cidades, passando por presídios, pelo Capitólio e até por um campo de papoula das FARC. Entrevistamos 168 pessoas, de chefes de estado, como Bill Clinton, até um menino, morador de favela no alto de um morro, que nunca se envolveu com o tráfico mas que ficou paralítico em decorrência de uma bala perdida.

Um episódio, contudo, não me sai da memória: um delegado que veio me dar uma bronca “por estar fazendo um desserviço à sociedade brasileira com o filme”. Afinal, o documentário defende que dependentes sejam tratados como pacientes, e discute uma porta de acesso à regulamentação da maconha. Meses depois, esse mesmo delegado seria preso por revender armas apreendidas a traficantes. Se é inocente, não sei; mas me pareceu mais um a manifestar pura hipocrisia.

Os motivos são vários: como alguém experimentado em combate, sabe quantos jovens morrem e matam com armas de guerra no tráfico de drogas; a maioria composta de afrodescendentes – como uma visita a qualquer cadeia no Brasil (e até nos EUA) pode revelar. Ele sabe também que esses jovens integram uma engrenagem perversa, peões para uma indústria que lucra, e muito. No Rio de Janeiro, existe um depósito com mais de cem mil armas apreendidas, de carabinas da vovó a fuzis e bazucas de guerra, a maior parte usada em disputa territorial entre traficantes. O delegado sabe, pois, que dificilmente alcançaremos o objetivo da ONU: um mundo livre de drogas. Sim, existem usuários e dependentes de todas as classes sociais, cores, preferências sexuais e profissões. Apesar de ser claro que podemos diminuir o dano causado pela droga, é utópico pensar que seja possível erradicar o consumo. No entanto, a opção do delegado, e da sociedade, é pela hipocrisia; afinal, que “se danem” essas vidas perdidas: o importante é manter a moral e os bons costumes em alta. Custe o que custar.

No caso específico da maconha, a hipocrisia é maior. Segundo a revista médica inglesa The Lancet, ela é menos nociva que o álcool e o tabaco – que são regulamentados. Hoje, cada vez mais, é usada como remédio. A heroína e a cocaína já foram legais e utilizadas como tal. Mas, dado o alto grau de compulsão que provocam, foram trocadas por medicamentos mais modernos, sem esses efeitos colaterais perigosos tão apreciados por alguns. Já a maconha vai na contramão. Dezesseis estados americanos já legalizaram sua versão medicinal.

Documentei na Holanda o único centro de produção de maconha medicinal legal da Europa. Tive de assinar um contrato para nunca revelar sua localização e pude até acompanhar a inspeção do governo por qualidade farmacêutica no processo. Entra-se ali só com roupa cirúrgica estéril. A farmacologista me explicou que as aplicações do produto vão desde um simples analgésico até o estímulo ao apetite em doentes terminais ou o combate à esclerose múltipla. Já foi até usado, num passado distante, pela rainha, de modo a enfrentar cólicas menstruais, ou por George Washington, para amenizar a dor de dente. A lista de doenças contra as quais pode ser utilizado é imensa. E, para livrar o doente do risco causado por fumar, existia até um aparelhinho, o Volcano, que emitia um vapor-d’água muito quente, que passava pela maconha e produzia um vapor cannabico.

No Brasil, acompanhei a disputa de dois grandes médicos pelo direito ou não de estudar a maconha medicinal. Para um deles, grande bobagem; para o outro, proibição inquisitorial que impedia o avanço científico. Um médico, hoje, que queria estudá-la no país será preso e possivelmente terá a reputação abalada; isso, mesmo que esteja examinado uma forma de livrar as pessoas da terrível dependência do crack – como é o caso de um renomado especialista brasileiro que teve suas pesquisas impedidas.

Em Los Angeles, pude registrar uma paciente que conseguiu reduzir, de oito compridos para um, a dose de um potente e perigoso remédio para dor ao combiná-lo com maconha medicinal. Outro, com câncer, recuperou o sono e sentenciou: “Não quero que o governo decida como vou aliviar minha dor”. Mas o que era apenas uma solução para dar acesso à maconha medicinal acabou se tornando mais.

O sistema funciona assim: um médico precisa receitá-la. De posse da receita, é emitida uma carteirinha que permite portar o produto. Com a carteirinha, o paciente vai até um dispensary e pode comprar sua maconha em paz, escolhendo inclusive a variedade mais adequada a sua necessidade. O tipo “sativa” dá disposição e energia. O “indica”, sono e preguiça. E todos dão fome.

Não é necessário ser brasileiro para imaginar o que aconteceu. Uma legião de médicos charlatões apareceu, um mar de carteirinhas foi emitido e muita gente que desejava apenas “fazer a cabeça” sem ser incomodado pela polícia encontrou ali seu refúgio. A sociedade americana, óbvio, sabe disso. Hipocrisia ou pragmatismo? Será que a maconha medicinal se tornou a medida socialmente aceitável para contornar o moralismo e dar um primeiro passo rumo ao fim da guerra às drogas? Não sei, mas já começo a pensar que talvez nem toda a hipocrisia seja necessariamente hipócrita.

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Moeda de troca

por Alessandra Modiano

1965, Manhattan, New York, New York, USA — Andy Warhol looking at Campbell’s soup cans in Gristede’s supermarket near his 47th street studio called The Factory in New York. — Image by © Bob Adelman/Corbis

“No futuro, todos serão famosos por quinze minutos” – declarou Andy Warhol em 1968. A então audaciosa profecia se tornou realidade nas décadas seguintes e o fenômeno da fama efêmera passou a ser referência da cultura pop, enquanto Warhol – o artista, o cineasta, o gerente de banda e o socialite – transformou-se num dos Papas do movimento artístico de mesmo nome. Dez anos depois, o próprio autor, entediado, passaria a alterar seu presságio e a dizer que “em quinze minutos, todos serão famosos” ou – sob mais uma manipulação de mídia – “no futuro, quinze pessoas serão famosas”.

Tão interessante e importante quanto a declaração acima, porém menos difundida, é a afirmação de que “bons negócios são a melhor arte”. De fato, a forma eficaz e explícita como o artista representa e comenta a cultura de massa, a máquina publicitária e o mercado em sua produção reflete essa estratégia de busca deliberada pelo sucesso. A obsessão por dinheiro e notoriedade tornou-se um fator saliente não apenas no personagem Andy, criado por Warhol, mas em toda a sociedade contemporânea.

Da mesma maneira que reinventou seus quinze minutos, seu passado era constantemente reinventado: “Eu o crio de maneira diferente a cada vez. Não é apenas parte da minha imagem não contar tudo. É porque eu esqueço o que falei no dia anterior e tenho que inventar tudo de novo”.

Andrew Warhol nasceu na Pensilvânia, nos Estados Unidos, em 1928, quarto filho de uma família ucraniana emigrante. Sua infância foi conturbada devido a uma doença no sistema nervoso que o levou diversas vezes ao hospital e o fez passar grandes períodos na cama, onde começou a desenhar. No verão de 1949, então formado em desenho gráfico pela escola de belas artes do Instituto de Tecnologia de Carnegie, partiu para Nova York em busca de emprego como ilustrador. Após duas semanas de ronda nas maiores agências de publicidade e em publicações de moda da cidade, foi chamado pela conhecida revista Glamour para um importante trabalho. Rapidamente se tornou um dos maiores ilustradores comerciais dos anos 1950. Seu portfólio incluía produtos comissionados por importantes revistas e marcas de moda como Vogue, Harpers Baazar, Bergdoff Goodman e Tiffany’s & Co.

Seu sucesso é atribuído à técnica que ele mesmo criou, denominada blotted line. O artista utiliza um desenho a lápis, delineia-o com tinta e, enquanto ainda fresco, pressiona-o contra outro papel. O produto derivado desse processo encantou os diretores de arte da época, pois mantinha o aspecto espontâneo e original, como se feito à mão, agregando-lhe um ar elegante e suave.

Não obstante seu reconhecimento como ilustrador, Warhol tinha a ambição secreta de apresentar seu trabalho no cenário das artes plásticas. Queria tirá-lo das janelas das lojas de departamento e das revistas de moda para colocá-lo em museus e galerias. Assim, começou a pintar, a produzir e, nos anos 1960, a expor. Seus temas, os mitos da vida cotidiana. Sua técnica, a de reprodução em massa, em silkscreen, e em série. Sua obra anunciava o otimismo do progresso americano no pós-guerra e seu posterior declínio, trágico e sensacionalista.

1968 — by Andy Warhol — Image by Image © The Andy Warhol Foundation/Corbis

Foi entre 1961 e 62 que deu o pulo do gato e concebeu sua primeira grande obra de arte, a notória série dedicada às sopas Campbell, um dos ícones do pop e sua marca registrada. Warhol tinha uma notável aptidão para captar e compreender os mitos de um tempo, aqueles que definem uma geração, e passou a incorporá-los de modo literal e reducionista em sua arte, como fez com a garrafa de Coca-Cola, a caixa de Brillo e o retrato de Marylin, apenas para citar alguns.

Mas os mitos não existiam por si só. Eram decorrências da máquina capitalista, que, sob a estabilidade dos EUA do pós-guerra, funcionava a alta velocidade. De fato, o próprio artista declarou: “Os Estados Unidos têm o hábito de criar heróis a partir de qualquer coisa ou pessoa, o que é ótimo!” O progresso científico das pesquisas de marketing, somado ao aperfeiçoamento das técnicas de design, foi essencial para esse novo contexto, em que se geraram os artifícios psicológicos capazes de alienar as características específicas e óbvias de um produto. Com isso, lotados de aspirações criativas, os publicitários da época – como os da avenida Madison, agora glorificados pela série televisiva MadMan – aplicavam técnicas subliminares e produziam sugestões subconscientes no consumidor, a fim de lhe instigar o desejo e o induzir ao consumo, driblando sua liberdade de escolha e fomentando o sistema capitalista.

Se o consumo em massa transformou-se num símbolo dos anos 1960 nos EUA, a obsessão pelo dinheiro também. O dólar passou a representar poder econômico, superioridade e liberdade. O emblema do sistema capitalista.

Warhol compartilhava esse fascínio pela moeda e se pôs a reproduzi-la já no início dos anos 1960. Numa noite, pediu sugestões – sobre o que poderia trabalhar – e uma amiga lhe fez a pergunta decisiva: o que você mais ama? Foi assim que começou a pintar dinheiro. Surgia a primeira série dedicada ao dólar. Eram notas de um ou dois dólares, reproduzidas da mesma forma que as embalagens de sopa. Mais tarde viriam os dólares não acabados, dólares irreconhecíveis, desenhos abstratos do dólar e até impressionistas.

Quase vinte anos depois, em 1981, Warhol revisitaria seu objeto de fetiche. Foi quando fez um de seus melhores trabalhos do período: a série de símbolos de dólar $. Ao longo dos vinte anos desde a primeira reprodução, entretanto, a obsessão por dinheiro e fama foi alimentada não só pela moeda de troca, mas principalmente, pelas atitudes do artista.

Em 1963, Warhol se mudou para um novo estúdio, chamado Silver Factory, onde seu trabalho o seguiu a passo acelerado. Dizia produzir a mesma coisa; porém, um pouquinho diferente a cada vez. A fábrica se tornou o place to be em Nova York no meio dos anos 1960, atraindo um mix interessante e diverso. O personagem exótico de Warhol foi concebido nessa época, no seu estúdio, entre as pinturas, os filmes e as festas que produzia. Em 1964, criou a famosa série de flores em homenagem à morte, por suicídio, de um colega assíduo da fábrica. O gênio de Warhol o levou também a gerenciar a banda Velvet Underground, que ficaria famosa apenas nos anos 1980.

O Silver Factory fecharia em 1968 devido a um incidente. Durante as décadas de 1970 e 1980, e até sua morte, em 1987, Warhol dedicou-se às famosas obras de retrato, pelas quais seria reconhecido como um dos maiores retratistas dos EUA. Ele buscava seus clientes em clubes noturnos, festas e jantares da cena underground e social de Nova York. Uma máquina de fazer dinheiro.

Com uma energia criativa vibrante e um raro gênio para entender o zeitgeist de seu tempo, Warhol não apenas quebrou a barreira existente no meio artístico dos anos 1960, dominado por uma arte elitista, altamente expressiva e emocional, como também delineou as bases do pós-modernismo. O legado de Warhol é evidente na obra de diversos artistas contemporâneos, como no personagem de Jeff Koons e na sua forma de utilização da mídia, em Takashi Murakami, com seu design para a loja Louis Vuitton e, mais recentemente, no leilão de obras de Damien Hirst.

Desde o inicio, para Warhol, fazer dinheiro era arte assim como o era trabalhar; então, naturalmente, bons negócios seriam a melhor forma de arte.

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Em defesa das calçadas

por Eduardo Andrade de Carvalho

Não existe alternativa de transporte ambientalmente mais correta do que andar a pé. O pedestre é totalmente inofensivo para o ar da cidade e consome pouquíssima energia. É estranho, portanto, que – num momento em que tudo precisa ser sustentável, ecológico, orgânico – esse hábito não seja mais estimulado. Em São Paulo, por exemplo, andar a pé ainda é considerado um hábito excêntrico ou impossível.

Mas não é. Na verdade, caminhar é a modalidade de transporte mais popular em São Paulo. Ainda assim, não deixa de ser também uma aventura. A situação das calçadas – talvez o espaço público mais importante de uma cidade – é provavelmente nossa mais absurda calamidade urbana.

Não é à toa que Jane Jacobs – no clássico maravilhosamente bem escrito Morte e vida das grandes cidades – dedica os três primeiros capítulos a calçadas e a questões da vida urbana que dependem diretamente delas: segurança, contatos e, curiosamente, assimilating children. Segundo a autora, o movimento de pessoas numa calçada não é importante apenas para a segurança da rua ou para estreitar a relação entre os habitantes do mesmo bairro: a calçada – que é também um ambiente para crianças se divertirem sob o olhar de adultos – tem ainda uma função pedagógica, civilizadora.

É muito triste ler Jane Jacobs e andar por São Paulo. Só o fato de a obrigação em conservar a calçada ser do proprietário do imóvel lindeiro já é uma aberração: porque o piso perde a regularidade, a manutenção não acontece, o custo é mais alto e a responsabilidade dilui-se entre milhões de anônimos. Uma das consequências desse modelo tropical de manutenção é que o estado de nossas calçadas consegue ser pior do que o de nossas ruas.

Os problemas variam, mas são graves em todos os bairros paulistanos. Nos mais ricos, arquitetos são incapazes de diferenciar uma área que precisa funcionar – como uma zona de pedestres, em que as pessoas precisam antes de tudo andar – de um espaço mais, digamos, contemplativo. Na Faria Lima, por exemplo, em frente a um desses prédios que se consideram sustentáveis e inteligentes, uma calçada chega ao cúmulo de ter o traçado em zigue-zague, obrigando o pedestre quase a rebolar.

Regiões em transformação estão perdendo a oportunidade de se organizar de maneira mais urbana. Quarteirões inteiros ora são fechados para abrigar condomínios-clubes. Um bairro agradável oferece padarias, mercados, lojas de roupas, lavanderias, livrarias etc. – elementos que dão vida à vizinhança. Sem esse pequeno comércio, esvazia-se. E, suburbano, fica menos divertido e mais perigoso. Na Vila Olímpia, o problema com as calçadas se repete, mas em outro sentido: multiplicou-se infinitamente a quantidade de pessoas que frequentam a região; a infraestrutura, porém, continua igual. Os pedestres então se acotovelam nas calçadas, onde disputam espaço com carrinhos de cachorro-quente, ou são obrigados a andar no meio da rua.

É verdade que existem projetos pontuais na direção oposta, em geral de iniciativa privada. O Branscan Century Plaza, no Itaim, abriu uma praça que é praticamente uma extensão do calçamento em seu entorno. O alargamento e a padronização da calçada num trecho da Oscar Freire melhoraram seu aspecto e circulação. No Centro, a família Manccini recuperou um trecho da rua Avanhandava. Na Vila Madalena, o edifício residencial Simpatia 236 afasta a grade da rua e oferece um banco ao pedestre. É de iniciativas generosas, inteligentes e baratas assim que São Paulo precisa.

Se não me engano, foi Bernard Shaw quem disse que, quanto mais altos os muros de uma cidade, menos civilizada ela é. A lógica funciona também com relação à qualidade das calçadas. Daí – independentemente do carro que guiamos, das pontes que atravessamos, da quantidade de helicópteros que sobrevoam São Paulo – é possível estimar o estágio de civilização em que nos encontramos. E, se pretendemos sair dele, portanto, precisamos aprender a andar de pé. Ops, a pé.

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Paixão e Transe

por Helena Cunha Di Ciero

Taquicardia, sudorese, alucinação, distorção da realidade, tremores, ansiedade, ideia fixa, obsessão, dependência.

Esses poderiam ser sintomas do delírio de uma pessoa atormentada pelo vício das drogas, ou acometida por algum distúrbio de ordem psiquiátrica. Mas também são frequentes na pessoa apaixonada, refém de todas essas sensações e sentimentos.

Comparando as tomografias de apaixonados às de viciados, constatou-se que as áreas cerebrais afetadas são as mesmas. Assim como a droga, a paixão cria no sujeito apaixonado a ilusão de fusão – somos eu e você uma única coisa; portanto, sem você não tenho prazer: não sou nada.

Paixão avassaladora, carrega em si a palavra vassalo, escravo, aprisionado por um sentimento, refém.

A letra da canção de Lenine, Avassalador, que invadia nossas casas à noite por causa da antiga novela das oito, é bastante rica em imagens: “Aquilo te pega de jeito/Te dá um sacode para lá de além/O mundo todo estremece/O caos acontece/Não poupa ninguém/Arrebatador/Vem de qualquer lugar” – cujo verso final também pode ser entendido como “vende”, no sentido de se vender qualquer lugar ou qualquer coisa, pois os apaixonados não medem esforços em troca de seu vício: a pessoa escolhida. Tudo fica em segundo plano, amigos, trabalho; em alguns casos, até mesmo a vaidade.

Bruno Bettelheim situa a paixão como algo do âmbito psicótico. Uma situação sem resto, sem troco. Projeto-me no outro com tal força que, quando este me falta, não posso me retomar. Estou perdido para sempre.

Durante o estado de enamoramento, há um rebaixamento narcísico. Psicanaliticamente falando, um transbordar da libido do eu para o objeto de amor. Explico: a energia que estava voltada para mim volta-se para o outro. Por isso, a sensação de vazio quando ele não está por perto.

Em Sobre o narcisismo, Freud coloca que o apaixonado é humilde, isto é, a dependência do objeto amado tem um efeito rebaixador no ego. Por este motivo, o sujeito a quem dirijo minha paixão torna-se tão vital e necessário.

A ele dirigi tudo o que tenho de mais forte, meu amor próprio. Quando não o possuo, sinto como se tivesse sido roubado de minhas qualidades.

De alguma maneira, o estado apaixonado coloca o amado numa condição de “ideal de eu”, isto é: na posição como gostaria de ser tratado. O que o apaixonado vê no outro não é exatamente o amado, mas, sim, uma parte de si mesmo projetada nele. Aquilo que gostaria de ser. Paixão é projeção, idealização. Distorção de realidade. Transe. Fantasia. Loucura.

Entretanto, não há como suportar a realidade sem fantasia. Ela é responsável pela expressão de nossos desejos; também é um meio de realização dos mesmos. É o que nos mobiliza. Sem sonhos, sem fantasia, não há onde nos refugiarmos do dia a dia, do cotidiano, das frustrações.

É preciso paixão para se levar adiante um projeto. Sem desejo, ficamos paralisados. Paixão tem a ver também com movimento dos instintos, com vida e criatividade. Sempre pensei que os artistas deveriam estar embalados por uma espécie de transe apaixonado antes de suas criações.

Segundo o escritor húngaro Sándor Márai no livro De verdade, “(…) a insanidade não tem explicação. Uma vez tudo na vida se arrebenta… e talvez seja muito pobre a vida sobre a qual não se arrasta ao menos uma vez a tempestade dessas explosões, que não tem as paredes de sustentação abaladas por essa espécie de terremoto, que não tem as telhas do teto arrancadas pelo furacão cujo uivo desloca por um instante tudo que até então a razão e o ser mantinham em ordem.”

A chama da paixão, que arde, queima tudo, dá sentido a muitas coisas e questiona outras. Mais uma vez cito Márai: “A paixão não festeja. Dá tudo e exige tudo.”

Os fazendeiros costumam queimar o pasto antes de plantar capim. Um coração queimado pela paixão pode ser um terreno fértil para outras construções, pois há nesse sentimento um lado construtivo. Embora consuma o sujeito, também o enche de vivências.

Trata-se de uma crise que abala as estruturas mentais. Porém, sem movimento não há crescimento; não há questionamento, nem amadurecimento. Talvez seja necessário que alguém, de alguma forma, surja para estremecer nosso mundo, para que este então seja novamente reconstruído, repensado.

De alguma maneira, precisamos dirigir ao outro nossa energia, pois, aprisionada, também ela nos intoxica. Em outros termos, sábias as palavras de Freud: “É preciso amar para não adoecer, estamos destinados a cair doentes, se, em consequência da frustração, formos incapazes de amar.”

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Apocalipse Now: Internet versus Jornal

por Hermés Galvão

Discute-se, e não é de hoje, a sobrevida da mídia impressa, ameaçada, cada vez mais, pela nova ordem mundial, online, do tempo real e da vida virtual. O offline cada vez mais off, atrasado, engessado, caduco. Ultrapassado. Periódicos e revistas perderam espaço para blogs e sites, jornalistas e cronistas deram lugar a novos ensaístas, sem diploma na mão – até porque já não é mais necessário – e com mil ideias na cabeça. Falam de um amargo fim deles, dos jornais, que correm atrás, e sempre chegam atrasados, das últimas notícias; os furos de reportagem de hoje são cobertos no meio do caminho e já circulam amanhã com status de notícia velha. A luta continua nas redações, embora a guerra pareça perdida. Como competir com o a mídia ‘imediática’? E não há quem se renda. Nos aquários e baias, a bandeira branca continua dobrada na gaveta, ao lado de papéis de release, bloquinhos de anotações, gravadores e canetas sem carga. A velha guarda se arma de um português indefectível para lamuriar os tempos modernos, evocar os velhos costumes de uma época em que o instante era apresentado em papel passado, jornalismo verdade, manchetes que cruzavam a cidade. Virar a página ou descer o scroll, que diferença faz? Se ainda vale o que está escrito, na tinta ou no teclado, por que não atacar de todas as frentes em defesa da informação, da boa informação, relevante e coerente, concisa, dinâmica? O futuro dos jornais está na mão de quem faz, de quem persegue a notícia na rua, de quem vê o invisível aos olhos comuns, de quem não trabalha no compasso de expediente bancário. De quem não requenta história já contada em pontocom. Qualidade, conteúdo de qualidade, no papel ou no iPad, no iPhone, ai meu Deus, tanto faz. É o que precisa ser dito agora, em tom de matéria, crônica, conto, ponto. Parágrafo. Do jornal para o virtual, sem pular linhas, sem contar caracteres. Transição e convergência; não transposição e adaptação. Conteúdo free e assinado, tabelado, porque ser bem informado tem seu valor. Não temos que pagar pelo que já foi dito; devemos gastar com o que ainda não foi visto, cobrar por uma surpresa, uma boa história, uma bela matéria, uma ótima foto. Que venha de quem chegou agora, de quem não vê a hora de pensar uma nova maneira de se fazer jornalismo; que venha também de quem já faz, lá de trás, veteranos editores, pensadores, redatores. Que prendam a nós, leitores, simples assim. Largai o osso, oh cansados! Para começarmos outra vez uma nova revolução, uma nova era da informação. Página em branco, sem rasuras e sem censuras. Precisamos esboçar uma maneira diferente de tratar o tempo presente. Em caráter urgente. Extra, extra.

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Lictzwang (de verde a vermelho)

por Daniel Steegmann Mangrané

Daniel Steegmann Mangrané nasceu em Barcelona, em 1977.
O seu trabalho procura questionar de forma sutil
a relação entre a linguagem e o mundo.
Atualmente, vive e trabalha no Rio de Janeiro.

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O talento é o transe

por Carlos Andreazza

Transe com camisinha.

Conta-se que Pelé, antes de um match importante, costumava isolar-se a um canto do vestiário. Sozinho, em silêncio, era como se dormisse. (Pelé se afastava e todos já sabiam, todos respeitavam – alguns decerto que por pura e feliz conveniência: aquele momento de ausência do rei era prenúncio de presença decisiva adiante, ao rolar da bola, e garantia de “bicho” depois)… Uma hora antes do jogo, portanto, deitado por quinze ou vinte minutos, entregava-se, “apagava-se”. Dirão alguns que entrava em transe; e não terei mesmo como contestá-los.

Transe, sim; mas, que transe? – eis o meu ponto.

Pelé alcançava, estou de acordo, um outro estado de consciência; havia nele, com efeito, uma transição de intensidade cerebral, um deslocamento-fermentação de frequência mental, mas – atenção – não no sentido (vulgar, se o leitor me permite) consagrado e massacrado pelo senso comum: em vez de acercar-se do tal subconsciente (esta palavra tão cafetinada), de um campo de transcendência espiritual quase divino (e cafona, se o leitor me permite novamente), largando-se, pois, à frouxidão egoísta do inconsciente (outro termo prostituído), aproximava-se – isto, sim – da concentração plena, da noção integral da própria existência, do domínio concreto da razão e do raciocínio, de uma espécie de consciência máxima, condicionando todo o corpo ao exclusivo controle do pensamento e apenas do pensamento. Um transe produtivo! (Produtivo e generoso).

Em vez de perseguir o além (ou a mistificação, se preferir), escapando-se, distanciando-se (fugindo-se?), Pelé agrupava-se, centrava-se, equilibrava-se, domava-se, assumia-se, bancava-se, e doravante geria-regia o próprio corpo por meio da mais consistente – profunda, maravilhosa, deslumbrante, extasiante – lucidez.

(Questão de ordem; vênia máxima: em vez de menosprezarmos os engenhos do pensamento, deslumbrados que somos-estamos pela excentricidade oriental, por que não o elevarmos também à justa condição de sublime dom)?

O transe – ao menos o que me interessa (aquele em cuja existência acredito) – é apanágio e desdobramento prático do talento. Não está fora; mas bem dentro. Sem mistérios. E, apesar de claro-claríssimo, não é fácil; tampouco para qualquer um… (Ou a rapaziada andará pensando – concentrando-se – muito por aí)? O transe, este, humano, não excede ou extrapola; mas preenche, ocupa, mobiliza, vitaliza – dispõe e explora as possibilidades todas do corpo. (Glorificada seja a matéria!; louvada, a cultura ocidental)! O transe – resultado de um poderoso esforço de concentração – é coisa do homem, de um homem vivo, acordado, desperto, educado, informado, não raro genial (não raro Pelé), mas sempre homem. O transe – este que constrói e cria coisas belas e emocionantes – é conquista do homem, de seu autoconhecimento, de seus mecanismos de abstração, de seus instrumentos intelectuais e de sua capacidade de exercitar e mobilizar o pensamento, que submete o corpo e transcende em gols, em mil gols. (Ou em música ou em poesia ou em arquitetura etc.).

O talento é o transe. O transe é o talento. Tanto faz. Ambos são humanos, e ambos – atenção – pisam firme no chão.

Veja-se, por outro exemplo, Marisa Monte. Nem lhe sou especial fã, desgosto do que compõe, registre-se, mas lhe reconheço um talento raro para cantar. O leitor faça o seguinte exercício, por favor: procure um vídeo de uma entrevista da cantora e, em seguida, o de uma apresentação. Compare-os. São indivíduos – é incrível – distintos; são vozes outras! Como não? Ouça bem… É impressionante. Não fosse pela figura coincidente – é de fato Marisa Monte quem está ali, tanto na entrevista quanto no palco – e afirmaria sempre tratar-se de pessoas diferentes, de vozes diversas; porque ela, uma vez em ação, transfigura-se: a voz se transtorna, o timbre, a respiração, a divisão rítmica, o próprio gestual se altera, a maneira como se move… É um transe, inegavelmente um transe; mas nada transcendente, nada desligado do corpo, dos sentidos, da consciência etc., antes consequência de um talento formidável governado-condicionado pelo pensamento, pela concentração rigorosa, pelo treino, pela técnica, pelo domínio da técnica. É nisso que acredito; a rigor, no homem, nos homens – é nisso que acredito.

O transe resulta… Não é onanismo sob cobertas (cujo os méritos, infinitos e atemporais, não discuto), mas sensibilidade provocada, percepção aguçada, madura, que ganha curso, atividade, coletividade, que possui existência prática, finalidades, responsabilidades, expectativas e consequências não raro públicas. O transe entra em campo, em cena, sobe ao palco… Produz. É isso (esta cadeia orgânica, cotidiana) o que me compraz ante a regência de um maestro: a dissolução de barreiras entre ele e a música, o modo fluente como o controle – racional, rígido – daquele ofício metódico deságua em leveza e enlevação; em arte. Como não ver transe ali, concentração e transe, consciência e transe, compromisso e transe, talento e transe, inspiração e transe, se o movimento da música logo é movimento do corpo e – por que não? – convulsão? (E o maestro – pasmem! – está acordado, atento, alerta; ligadíssimo)! (Oh)!

Estive uma vez – destinado a entrevistá-lo – na casa de um importante escritor brasileiro. Marcamos às 10h. Não nos conhecíamos, embora apresentados – tempos antes – por um amigo comum. Fui pontual. Toquei a campainha e ele mesmo, agitado e sem palavra, recebeu-me, sinalizando – com um gesto – para que o acompanhasse. Entramos então num escritório acanhado, apertado, sem janelas, com cheiro de charuto entalhado nas madeiras, e repleto de livros. (Uma biblioteca, ora, eventual tabacaria – e também uma possível definição de paraíso). Com novo sinal, e ainda sem palavra, indicou-me onde sentar, e lançou-se a uma outra cadeira, defronte a um computador castigado, de onde o podia ver de perfil. Estava transtornado, talvez que em meio a uma construção mental, quiçá lançado à engenharia de alguma frase-ideia; nunca saberei. Estava – isto, acima de qualquer especulação – poderosamente concentrado; em transe, como não?, batendo enfurecido nas teclas e – olhar injetado – perfeitamente ilhado a (em) si, onde e como, ignorando-me, a mim como ao mundo, permaneceu escrevendo, vidrado, por quase três horas, ao fim das quais, fitando-me, perguntou sorridente: “O senhor também é torcedor do Império Serrano, não?”

#5TranseArteCinema

Bastidores da estrada

por Charly Braun

Além da Estrada, de Charly Braun (2010)

É difícil apurar com precisão, no universo das lembranças da infância, a ordem em que se deram determinados acontecimentos. Mas, quando penso em minha primeira experiência cinematográfica marcante, lembro-me imediatamente de A História Sem Fim, de Wolfgand Petersen; um épico infanto-juvenil, até hoje o filme mais caro produzido na Alemanha, baseado no romance homônimo de Micheal Ende. (Curiosamente, o escritor detestou a obra e entrou com um processo – que perdeu – contra os produtores, conseguindo, porém, ter seu nome retirado dos créditos).

Nunca mais revi o filme, talvez receoso de que perdesse o encanto da época (eu devia ter quatro ou cinco anos). Lembro-me apenas de algumas imagens e sensações; não mais do que isso. Uma delas é de que chorei compulsivamente. A outra é do enorme cachorro voador que levava o garoto protagonista aos mais fantásticos lugares.

A História Sem Fim provavelmente não se encaixaria no gênero road movie, ou filme de estrada. Nas locadoras, provavelmente o encontraremos na seção infantil, de aventura ou de fantasia (até porque, salvo raras exceções, não existe um espaço dedicado aos road movies). Mas, para mim, ficou a nítida impressão de uma longa viagem. O automóvel seria o cachorro e a estrada, o céu. E grande parte de meu fascínio pela obra reside na memória de um garoto que desbravava, mais que países ou lugares, verdadeiros universos. Talvez venha daí este encantamento com filmes de estrada, de tal modo que meu primeiro longa-metragem, Além da Estrada, ajusta-se perfeitamente ao gênero.

Entre meus filmes prediletos, vários são de estrada. O Passageiro – Profissão Repórter, de Antonioni; La Strada, de Fellini; Paris, Texas, de Wim Wenders; Y tu mamá también, de Cuarón; e Bye-Bye Brasil, de Cacá Diegues, são algumas das obras seminais de minha (ainda) limitada vivência cinéfila. E então me pego pensando numa explicação para este especial interesse por filmes em que as pessoas se lançam rumo ao desconhecido, embarcando em viagens que as transformarão para sempre.

Existe uma grande discussão sobre se road movies são ou não um gênero cinematográfico. Os teóricos que acreditam que filmes de estrada constituem um gênero defendem que as características fundamentais que os definiriam como tal são o automóvel, a estrada e um indivíduo – normalmente um homem em crise, que busca sobretudo o autoconhecimento (mesmo que de maneira inconsciente). Este debate é bastante emblemático, pois deixa evidente que se tratam de filmes difíceis de catalogar. Veja bem, leitor: nada tenho contra filmes de gênero. Mas a verdade é que tento não rotular minhas experiências, e sinto que as obras que mais me interessam muitas vezes fogem às classificações mais convenientes à sociedade de consumo (e às locadoras).

Com a consolidação do cinema clássico americano (responsável pela formação da indústria cinematográfica), estabeleceu-se um modelo de narrativa predominante. Aperfeiçoado (sem que isto signifique melhores filmes hoje), este padrão rendeu escolas famosas e incontáveis cartilhas sobre como escrever um roteiro. Propondo um resumo grosseiro, predica-se que textos cinematográficos devem ser divididos em três atos, chamados de “a trajetória do herói” (um arquétipo narrativo que, em tese, usa-se desde a Odisséia de Homero). Há uma série de parâmetros a serem seguidos, que não vou explicitar (os interessados podem ler Syd Field ou Robert McKee). Mas, de um modo ou de outro, os legados dessas convenções são uma quantidade razoável de obras-primas e um número infinitamente maior de bobagens, empurradas ao grande público goela-abaixo pelos estúdios norte-americanos, sempre ávidos por um sucesso. E muitas vezes este sem-número de filmes é medíocre justamente porque um grupo de executivos tenta enquadrar histórias nem sempre medíocres num modelo de narrativa que julgam dominar, como se fosse uma receita de bolo.

Você deve estar se perguntando sobre o que tudo isso tem a ver com filmes de estrada. Acontece que road movies raramente podem se limitar a este padrão tradicional, pois os conflitos vividos por seus protagonistas tendem a ser mais internos. Isso liberta as tramas das regras do cinema clássico, da estrutura em três atos e da falsa necessidade de “viradas” que prendam a atenção do espectador. A natureza contemplativa do cinema vem à tona mais facilmente em filmes de estrada, porque as crises de identidade de seus personagens normalmente estão refletidas na crise de identidade do espaço físico que percorrem. Este é o caso de uma ampla gama de road movies, de Rastros de ódio, de John Ford, a Caro diário, de Nanni Moretti. Quase sempre esses personagens estão fugindo de alguma coisa ou em busca de algo novo, e muitas vezes esta é também a situação dos lugares por onde viajam.

O Brasil é um país com ampla tradição no gênero. Além do já citado Bye-Bye Brasil, muitos outros filmes se propuseram a registrar uma identidade nacional em transformação através de personagens em crise, que se lançam em jornadas pelo desconhecido. Walter Salles é possivelmente o cineasta brasileiro que tem se dedicado com mais afinco ao gênero. Não por acaso, foi escolhido por Francis Ford Coppola para levar às telas a versão cinematográfica do clássico beatnik On the road, de Jack Kerouac. Diários de motocicleta, que reconta a trajetória de um jovem Che Guevara pela América Latina, foi um sucesso mundial. Mas foram seus road movies brasileiros – Terra estrangeira (em parceria com Daniela Thomas) e Central do Brasil – os que mais me marcaram.

Estava no começo da faculdade de cinema e morava fora do país quando vim passar férias em São Paulo e assisti a Central do Brasil, sozinho, no Lumiére (um dos poucos cinemas de rua que ainda nos restam). Aos dezoito anos, foi uma experiência profundamente reveladora e emotiva. Chorei compulsivamente, junto com Fernanda Montenegro, enquanto a ouvia ler – com a voz em off – a carta de despedida para o pequeno Josué, embalada pela melodia certeira de Antônio Pinto. E durante dias o filme ruminou em mim, pois foi através dele que revelou-se um país que desconhecia. No caso, meu próprio país.

Terra Estrangeira, de 1996, conta a história de Paco (Fernando Alves Pinto), jovem aspirante a ator que decide abandonar o Brasil após a morte de sua mãe, decorrente do confisco à poupança levado a cabo pelo presidente Fernando Collor. Assisti ao filme no Harvard Film Archives, um ano depois de ver Central do Brasil. O tema do exílio me é muito caro, já que possuo raízes nos países do cone sul e, por sete anos, morei no exterior. Assim, como em Central, chorei ao fim, quando Fernanda Torres e Nando Alves Pinto se abraçam ao som de “Vapor Barato” (na voz de Gal Costa). É interessante que Walter Salles tenha dito que, em sua origem mais remota, a ideia do filme veio da foto de um barco encalhado, imagem que serve de pano de fundo ao abraço em questão. Uma das imagens que me perseguiu durante anos – a de uma ponte a meio construir – acabou servindo de pano de fundo para a cena final de meu primeiro longa-metragem, Além da Estrada.

Quando estive em Buenos Aires, pouco tempo antes de iniciar as filmagens de Além da estrada, marquei um encontro com um fotógrafo que me havia sido muito bem recomendado. Curiosamente, Pablo Ramos trabalhara em dois filmes com Walter Salles. Ele chegou à reunião e a primeira coisa que fez foi me dar um DVD de Iracema – Uma Transa Amazônica. “Li tudo o que você me mandou sobre seu filme. Você tem de ver este aqui” – disse. Eu ainda não vira o clássico de Jorge Bodanzky e Orlando Senna. Mas já ouvira falar, e soube ali que aquele cara tinha de integrar nossa equipe. Além da Estrada (que, em seu idioma original, chama-se Por el camino) foi um projeto delirante que deu certo. Digo delirante porque o filmamos desrespeitando todas as regras do processo de se fazer um filme. Não havia dinheiro. Não havia tempo. O roteiro era precário. Consciente do risco, fui movido não apenas pela vontade, mas pela necessidade mesmo de contar aquela história e, com ela, registrar um microcosmo que me é tão particular.

Havia dois pilares sob a construção narrativa do filme. Um deles era o de retratar uma história de amor pouco convencional, de dois personagens estrangeiros, que se encontram por acaso num país que não é o deles. Interessava-me particularmente que este casal tivesse a minha idade, pouco menos de trinta anos, e que sua crise de identidade tivesse a ver não só com o espaço físico estrangeiro mas, principalmente, com questões fundamentais que normalmente vêm à tona quando nos aproximamos dos trinta. O outro era o de fazer um registro semidocumental do Uruguai, país onde um passado de esplendor, um presente decadente e um futuro promissor convivem de maneira muito particular.

Foram 25 dias de filmagem. O roteiro e o plano de filmagem juntavam-se aos mapas de estradas do Uruguai para apontar caminhos. Mas percebi, na primeira diária, que, pela natureza do filme, teria de me abster da mania controladora com que sempre conduzi meus trabalhos. Ali, não só meus colaboradores dariam sugestões: a estrada e as pessoas que nela apareciam interfeririam a todo instante no que seria captado por nossas duas câmeras. E notei que, se havia alguma chance de fazer uma obra instigante e inovadora, esta residia nas surpresas desse caminho e não apenas naquele texto solto e quase sem diálogos. E assim fomos percorrendo confins remotos (e não tão remotos) deste pequeno país cheio de contrastes geográficos, econômicos, culturais e sociais. Os quatro integrantes da equipe, meu casal de protagonistas e eu nos dividíamos no carro de cena, num de apoio e numa velha caminhonete.

E fui me surpreendendo com o quanto a crise de identidade do casal protagonista se espelhava na crise de identidade do país. Estivemos na varanda do mais alto e idiossincrático prédio de Montevidéu, filmamos num imenso e decadente castelo no meio do nada, habitamos uma bela fazenda que viraria um empreendimento imobiliário. Conversamos com peões, franceses, eremitas, hippies, aristocratas, e com Naomi Campbell. Em Além da Estrada, Santiago (Esteban Feune de Colombi) é um argentino que decide ir ao Uruguai conhecer um terreno deixado por seus pais, mortos tragicamente alguns anos antes. Sem perspectivas, em sua chegada encontra Juliette, jovem belga em busca de um amor do passado e de uma nova vida. O que parecia uma simples carona acaba se transformando em uma breve – porém intensa – jornada. Visitando paisagens e pessoas perdidas no tempo, dividem experiências que acabam por aproximá-los, numa relação de crescente afeto e ternura. Em suma, esta é a sinopse do filme. Na prática, algo que me interessa muita nessa narrativa é a possibilidade de duas pessoas se conhecerem e desenvolverem uma relação afetiva exclusivamente por causa das circunstâncias em que se encontram. Ou seja, se estivessem em seu habitat natural, Santiago e Juliette jamais teriam relação alguma. Porque suas nacionalidades, classes sociais, carreiras, etc. se colocariam sempre entre eles. Dentro do universo da viagem, porém, abrem-se ao acaso de tal maneira que a relação floresce; espontaneamente, mas, ao mesmo tempo, dotada de força incomum. Creio que, neste contexto, os personagens se despem das máscaras que usam (todos nós as usamos) no dia a dia e revelam-se mais verdadeiramente, possibilitando o reconhecimento de pensamentos e sensações comuns, o que acaba por uni-los. No caso de Além da Estrada, esses pontos de encontro são os responsáveis por uma relação afetiva, mais do que por uma mera atração física.

Pensando novamente no gênero e nos road movies que me marcaram, vejo que poucos estão centrados na relação amorosa entre duas pessoas. Inclusive, a imensa maioria tem como protagonista sempre um homem. Algumas das raras exceções são Two for the road, de Stanley Donen, e Happy together, de Wong Kar Wai, uma história de amor entre dois homens. Acho curioso, pois a estrada abre esta possibilidade. Quiçá, numa análise a posteriori, este seja um dos triunfos de meu filme. Mas não sou eu quem o há de dizer. Além da Estrada estreia no segundo semestre e espero que o leitor desta distinta revista possa conferi-lo. Aproveito para sugerir alguns dos road movies de que mais gosto.

Estrangeiros

Thelma e Louise, de Ridley Scott
Little Miss Sunshine, de Jonathan Dayton e Valerie Faris
Wild at heart e Uma História Real, de David Lynch
Paris, Texas e Alice nas Cidades, de Wim Wenders
About Schmidt e Sideways, de Alexander Payne
Two for the road, de Stanley Donen
Aquele que sabia viver, de Dino Risi
Bonnie and Clyde, Arthur Penn
Y tu mamá tambíen, de Alfonso Cuarón
Família rodante, de Pablo Trapero
Happy Together, de Wong Kar Wai
Into the wild, de Sean Penn
Rastros de ódio e Vinhas da ira, de John Ford
Easy Rider, de Dennis Hopper
Passageiro, Profissão Repórter, de Michelangelo Antonioni
Priscilla, a Rainha do Deserto, de Stephan Elliot
My Joy, de Sergei Loitzna
Caro diário, de Nanni Moretti
Borat, de Larry Charles
La Strada, de Federico Fellini
My own private Idaho, de Gus Van Sant
O Brother, where art thou?, de Ethal e Joel Coen
It happened one night, de Frank Capra
Alice não mora mais aqui, de Martin Scorsese
Detour, de Edgard Ulmer
The doom generation, de Gregg Araki
Badlands, de Terrence Malick

Brasileiros

Bang Bang, de Andrea Tonacci
Iracema, Uma Transa Amazônica, de Orlando Senna e Jorge Bodanzky
Terra Estrangeira e Central do Brasil, de Walter Salles
Bye Bye Brasil, de Cacá Diegues
Árido Movie, de Lírio Ferreira
Cinema, aspirinas e urubus, de Marcelo Gomes
Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz
Hotel Atlântico, de Suzana Amaral

Charly Braun é um cineasta premiado, ator em decadência e brilhante cantor de chuveiro. Além da Estrada é o seu primeiro longa-metragem.

#5TranseCulturaSociedade

A Morte

por Ana Bagiani

Quando apareceu o convite para escrever na edição da Amarello dedicada ao transe, sequer hesitei. Topei na hora. Afinal, é um assunto pra lá de envolvente. Além da ousadia que o tema inspira, oferece-nos também a irrecusável oportunidade de mergulhar em camadas muito pouco conhecidas de nós mesmos.

E foi até uma dessas que fui, em busca de algo original e sincero, caro leitor.

Para alcançar este depoimento, viajei ao passado. Há cerca de dez anos, acompanhei alguns “novos amigos” a um ritual, a fim de experimentar o chá de ayuasca – o mesmo que se consome na seita do santo daime. (Em tempo: existem outros grupos que praticam cerimônias semelhantes, com a mesma bebida e as mesmas canções, mas independentes religiosa/espiritual/ritualisticamente).

Lembro-me bem da aura de mistério que pairava e de um quase medo que me agitava. Era noite de sexta-feira e a casa onde nos reunimos ficava em um bairro distante, na zona sul de São Paulo. Havia cerca de vinte pessoas, das quais conhecia apenas duas ou três. A conversa informal da chegada foi dando lugar a um clima de concentração. Cada um procurava aos poucos um lugar para se acomodar. Algumas pessoas seguravam uns instrumentos, e me lembro de ter recebido um livrinho com letras de canções. Por um instante me perguntei “o que estou fazendo aqui?”, e uma voz interior respondeu: “vivendo”. Neste misto de excitação, liberdade e pânico, tomei o chá.

A bebida tinha um gosto horroroso, e nada de divino senti ao ingeri-la. A vontade de vomitar veio logo. Interessante que, ao contrário do usual, aquela ânsia não era ruim, mas, sim, um alívio. A náusea é um detalhe, é verdade, mas um detalhe bem significativo. Depois de algum tempo, não sei quanto – uma das coisas que me acometeu foi justamente a sensação de tempo dilatado, ou ainda estagnado, mas, ao mesmo tempo, profundamente intenso e amplo –, comecei a querer sair daquele barulho, ficar longe das pessoas e das músicas. Levantei de meu lugar confortável, sempre me perguntando “o que estou fazendo aqui?” e, naquele momento específico, “será que é permitido sair?”. Paralelamente, porém, pensava: “Dane-se, farei o que quiser”. Fui andando em direção ao fundo da casa, onde encontrei um quarto e me deitei. Acho que fiquei ali um bom tempo. Algo entre a culpa, o medo, a consciência e o desconhecido me envolviam de uma forma que não conseguiria jamais expressar. Nesse instante de recolhimento e solidão, meu transe de fato começou.

UM BREVE APARTE.

Segundo Aurélio Buarque de Holanda: Transe – sm. 1. momento aflitivo. 2. ato ou efeito arriscado. 3. crise de angustia. 4. falecimento, morte.

Fiquei aflita, arrisquei-me e, angustiadamente, morri.

Vi minha amiga, morta havia três anos. Vi meu avô que morrera não muito antes. Vi uma tia recentemente falecida. Todos estavam ali, separados, olhando-me, velando-me; e, um a um, vieram a mim. Literalmente, eu os engoli. Sério. A imagem que ainda carrego é a dos três entrando separadamente por minha boca, passando por todo o processo digestivo e, sim, saindo de meu corpo como se os estivesse evacuando. Curiosamente, no dia seguinte, ao refletir sobre esta imagem, a sensação de dor causada pela perda deles parecia superada, como um machucado de infância, de que você até se lembra, mas cuja cicatriz já está quase invisível.

Depois dessa vivência aterrorizante e milagrosa, senti, com toda a força, meu útero. Homem leitor, nós não sentimos o útero. Quando temos cólica menstrual, a dor se deve à descamação das paredes do órgão, mas não o sentimos em si. Assim como podemos sentir falta de ar, mas não o pulmão – percebe?

Pois eu sentia meu útero; e, ao mesmo tempo, sentia-me dentro de um. O útero da minha mãe; e a ligação era tão intensa que rompeu um cordão imaginário. O que experimentei em seguida foi uma conexão absoluta. Não com minha mãe, mas comigo mesma.

Em algum momento entre o útero e uma outra imagem que surgia, alguém veio e interrompeu meu transe, chamando-me de volta ao círculo. Não sentiria novamente algo sequer parecido com o que vivera sozinha, deitada, no quarto dos fundos.

O saldo da experiência foi válido. Tanto que decidi repeti-la. Uma única vez. Não houve, porém, visões ou sensações como as da primeira. O mal-estar predominou. Quando o ritual acabou, meu transe teve início. E fui morrer sozinha, em casa, por dois dias.

Até hoje, quando viajo e pego a estrada, deparo-me olhando a paisagem, e então me vem a sensação arrebatadora de sentir meus poros abertos e ligados a cada capim, folha, vento, flor e animal que alcance. E minha mente dá um salto imediato ao jardim daquela casa, na zona sul de São Paulo, dez anos atrás. Imediatamente, sinto o gosto do chá.

#5TranseCrônica

Tran.se (s.m.)

por Vanessa Agricola

1. Lance difícil, momento crítico, situação angustiosa. Afff, cruz credo, que coisa horrorosa. É ruim até pra falar, eu aqui dando risada… focar em transe… sei lá. O transe é uma merda. Rá! _ Estou dizendo que eu não paro de rir. Nem vou parar. O lance é fácil, o momento é leve, a situação amorosa… estou me esbaldando. Tenho que me esbaldar. Afinal, logo mais a roda gira, vira e mexe ele acontece. O transe. Afff, cruz credo, me esquece.

2. Susto ou apreensão de um mal que se julga próximo. Uichi, essa é pior ainda… esse susto, essa apreensão… Ninguém merece ter certeza absoluta de que alguma coisa vai dar errado em algum momento, não é não? Mas a vida é assim, vamos fazer o quê? Só lamento.

3. Crise, lance, perigo. Ah, crise é comigo. Tenho todo mês, na TPM, é raro não acontecer. Entro naquele humor desgraçado, destilando ironias… também, pudera, justo nesse período o mundo decide me enfurecer. Pego aquele taxista sem a menor destreza, andando no limite mínimo da velocidade, rodando por São Paulo a 30 km por hora… bruuuuuuuuum: ai, que vontade de xingar, que vontade. Mas não, sou educada: “Moço, será que o senhor pode ir um pouquinho mais rápido, estou com um pouquinho de pressa”. Rrrr. Qualquer dia ainda mato um desses.

4. Ato ou efeito arriscado. Pensa bem, sair da cama é arriscado. Fala sério, a gente se preocupando com isso; não pode, tá errado. Olha aí o Justin Bieber, correndo o risco de pagar o maior mico da história da humanidade… qual o problema? De repente, pagar um mico é tudo o que a gente mais precisa. Cometer um pecado. Sair do esquema.

5. Combate, duelo. Me lembra um amigo passando por um processo de separação… eu acho que eles vão se matar qualquer dia, sei não. Depois de tanto tempo juntos, não conseguem se entender; não é estranho? Bom, às vezes não é fácil mesmo, vira aquele mal-entendido sem tamanho… Qual será no dicionário o significado do verbo entender? Escutar o que o outro não diz?… Deve ser.

6. Aflição, dor, angústia. Passo, passo, passo. Sinto um pouquinho de cada toda vez que acendo um cigarro. #prontofalei. Cadê meu maço?

7. Falecimento. Teve um hoje, perto de alguém que está perto… Morrer é aquela coisa, é certo. Eu mesma morri na semana passada, numa ocasião. Desde então não sou mais a mesma. É bom.

8. Ânsia mortal, agonia. Não estou sentindo nada. Alegria, alegria, alegria.

9. Inquietação, medo. Veja bem, inquietação é da natureza; agora, medo… “Você tem medo de quê?”. Autoquestionamento básico. Altura? Cobra? Barata? A gente não tendo medo de viver… isso é que mata.

10. Estado de subordinação do hipnotizado ou hipnotizador. Oi? Quer dizer que os dois estão subordinados? Alguém explica, por favor?

11. Folc. Estado em que ficam, nos candomblés, os cavalos-de-santo para receber a visita de um orixá. Meu irmão do meio jura que já viu uma coisa dessas, vou te contar: o tal cavalo era uma mulher, tomando cachaça direto da garrafa, falando com uma voz de homem… Imagina o medo? Ele diz que saiu correndo, ele e mais dois amigos. Um deles fez xixi nas calças. (Não sei qual, é segredo).

A todo o transe, custe o que o custar. Sejam quais forem as consequências.

#5TranseArteArtes Visuais

O Relógio

por Alessandra Modiano

É sábado em Londres, bem cedo, e caminho apressadamente à galeria de arte White Cube, onde assistirei à projeção da mais recente obra do artista contemporâneo Christian Marclay, chamada O Relógio. A cidade ainda não acordou. O cinza e a neblina tomam conta dos monumentos, ainda vazios, em mais um final de semana de outono.

Ao chegar na galeria, um cubo branco no meio de uma pracinha escondida no centro de Londres, sou imediatamente direcionada ao subsolo. Lá, numa sala escura, é apresentada a obra-prima do artista. Marclay demorou dois anos para finalizar o filme, que consiste em milhares de cenas fragmentadas retiradas de várias películas. O resultado é um trabalho original, com 24 horas de duração.

Christian Marclay iniciou sua trajetória artística no final dos anos 1980 com obras baseadas em outras já existentes. Foi um dos primeiros a fazer isso com música, reproduzindo composições alheias para criar a sua própria. Foi um dos pioneiros da Turntablism, denominada posteriormente, pelo crítico Nicolas Bourriaud, de Arte de Pós-produção, uma resposta à crescente troca cultural decorrente da era da informação.

São apenas cinco da manhã e a sala está lotada. Na tela, um relógio digital ecoa um alarme: é hora de acordar. A próxima cena, um relógio analógico dos anos 1960. Está tudo muito calmo. Segundo o artista, “não acontece muita coisa entre cinco e cinco e meia da manhã nos filmes”. Mas, apesar disso, eu e mais cinquenta pessoas continuamos vidrados. Cinco e meia da manhã: as cenas ainda escuras começam a ficar mais bizarras; “é a hora em que mais sonhamos” – afirma Marclay.

O Relógio é construído apenas com sequências em que a hora está evidente ou em que um personagem interage com ela. Dessa forma, seguem em tempo real. O meu percurso até a galeria de fato não fora muito diferente do clima que descobri na tela, no subsolo daquele cubo branco.

Com um compromisso marcado para as oito da manhã, eu tinha de partir logo, e o filme me informava, a cada minuto, que a hora se aproximava. Porém, como todos os demais espectadores, a experiência de ver o desenrolar da hora em uma série de narrativas diversas me fez esquecer do tempo. Naquela obra, a hora transita por diferentes períodos, cidades, ambientes e situações, e facilmente me perdi.

Umas das mais antigas invenções humanas, o relógio é um mecanismo concebido para nos informar as horas. Em sua criação, o artista explora a relação entre a métrica da hora e o que ela realmente determina em nossas vidas. Marclay nos faz refletir sobre a objetividade da hora e a questão abstrata do tempo.

Obras de arte contemporâneas são frequentemente descritas como ilusórias ou artificiais. O trabalho de Marclay certamente não se encaixa nesses perfis. O tempo mostrado ou falado é o real – aquele que controla e manipula nosso cotidiano. De fato, com as incertezas e as milhares de possibilidades da vida moderna, o correr das horas é a única constante que temos, e isso causa muita ansiedade. As cenas que o artista editou estão sempre expondo essa engrenagem.

Nesta sala de exibição, essa constante se torna variável, pois todas as cenas do filme demarcam, a cada segundo, a hora. Continuamos sem poder parar o tempo ou controlá-lo.

Teorias da filosofia e da psicologia definem três tipos básicos de tempo: o simbólico, a métrica do relógio; o imaginário, uma concepção de continuidade e de duração; e o real, o que acontece quando o tempo não segue o imaginário.

Quando estamos em um estado psicológico de transe, perdemos a consciência do tempo, da continuidade e da duração do que é apontado pelo relógio. Assim, a métrica da hora não funciona mais. E isso o artista consegue sublinhar em sua obra de forma bastante peculiar, exibindo incessantemente a hora através de cenas de ansiedade, terror e surpresa.

O transe na criação de Marclay pode ser visto como algo conceitual. Com muita técnica e sensibilidade, utiliza a arte como instrumento para induzir tal transformação em nossa consciência. Essa técnica pode ser percebida por meio do uso de sons ou do ritmo na transição de uma cena para outra. Isso é essencial para unir as narrativas e nos levar a esse transe.

As pulsões rítmicas são utilizadas pelos homens, faz muitos séculos, para transportá-los além do estado vígil e proporcionar-lhes novas experiências. Estas mesmas pulsões são adicionadas em O Relógio de modo a gerar uma alteração na percepção do espectador. As narrativas díspares integram uma obra maior, em que experimentamos a perda da consciência sobre o passar do tempo.

Em O Relógio, porém, não apenas a música é importante para se atingir esse estado. A utilização do filme como veículo é também fundamental para tanto. O cinema é capaz de construir um tempo artificial: as cenas editadas podem nos levar ao futuro e ao passado.

Já são quase oito da manhã e perdi meu compromisso; perdi a hora! Olhando ao redor, percebo que não sou a única. A grande maioria das pessoas também está hipnotizada, num transe temporal e espacial. Não há nada que possamos fazer, o tempo sempre passa. Nesse estado de transe, contudo, perdemos a noção dele.

#5TranseCulturaSociedade

Reflexão Iogue

por Sandro Bosco

de Fábio Gurjão

Transe tem a ver com a perda ou com a não perda da consciência? Parece mais algo impossível de descrever. Se estou em transe, não estou consciente. Então, como descrevê-lo? Não é assim que mais comumente define-se o transe? Ou esta não é a grande justificativa para não defini-lo?

Seja como for, é preciso observar e considerar mais de perto tanto as explicações alheias quanto as situações propriamente vividas, se é que você já viveu a experiência do transe. Uma vez nele, tem-se a impressão de estar fora da consciência, mas, a partir do olhar iogue, deve-se antes perguntar – o que é consciência para mim? Aquela que diz tão somente “eu sei que existo”. Esta noção da própria existência é dada a todos os seres humanos que nascem com o mínimo de saúde. Não é necessário repetir a máxima do filósofo francês, “penso, logo existo”; basta “eu existo”, pois, pensando ou não, a todo homem esta percepção é clara. Se não fosse assim, o principal medo, o da morte, não existiria.

Em sânscrito – língua em cuja fonte se encontram as centenas e centenas de escrituras do ioga –, a palavra que retrata a existência é sat e desta deriva-se satya: a verdade.

Em transe, não se tem consciência da própria existência. É algo que extrapola a normalidade, a vida cotidiana. Isto ocorre porque vivemos identificados com o que nos parece ser essa normalidade. Por exemplo, se pergunto: “Quem é você?” Você me responderá com seu nome, com o que faz, com sua profissão ou com sua relação de parentesco com alguém. Os sábios iogues nos falam que esta é a ilusão da própria noção de existência, pois esses são papéis assumidos ou escolhidos artificialmente, por força das circunstâncias.

Quando digo que sou um professor, e que me chamo João ou Maria, estou apenas dando nomes para fugir ou me distanciar de quem realmente sou. Estou simplesmente mantendo bem firme a grade da prisão de minha existência. Por que os iogues afirmam que essas funções, as quais nomeio por conveniência, são meramente casuais e, portanto, muito distantes de minha verdadeira essência? Porque temporárias, impermanentes e, pois, transitórias.

Ao longo de toda a vida o ser humano prioriza o efêmero, esquecendo-se do que é perene. Exemplifico melhor: a grande maioria dos valores do homem convencional está ligada ao corpo e à matéria, tais quais fama e dinheiro, bens passageiros, ou talvez, se preferir, permanentes enquanto durar esta vida.

Como diz o ditado, “desta vida não se leva nada que se tem ou que se possui”. No ioga, contudo, podemos assegurar: desta vida leva-se o que se é. Leva-se o quanto se pôde perceber da própria natureza. Somente em transe temos notícia da existência além do corpo físico. Será que ele serve para isso?

O transe é uma percepção temporária do quanto se consegue e se suporta sentir e experimentar a existência para além de nomes, profissões e elementos de identificação com o corpo. É algo misterioso porque excede os limites da mente. Muitos o temem pelo apego à própria existência mental.

Quanto mais identificados ao ego formos, mais estranho nos será o sentido e a experiência do transe. O ioga, porém, começa a existir no momento em que se extrapola a mente. Faz-se presente quando o sujeito faz-se presente no momento presente. É, ao mesmo tempo, o mapa e as ferramentas necessárias para se viver em um estado repleto de satisfação e deslumbramento.

Enquanto ainda não tenho pés e coração preparados o suficiente para suportar, aceitar e viver este estado maior que a vida, terei apenas instantes de êxtase – degustações de algo que excede o próprio transe.

#5TranseCulturaSociedade

Transes coletivos e a briga do pessoal

por Bruno Pesca

de Fábio Gurjão

Certo dia olhava as capas de jornais pelo smartphone e me deparei com uma notícia curiosa. Era sobre um hipnotizador britânico que prometia bater o recorde mundial de transe coletivo. Pela internet, hipnotizaria ao mesmo tempo milhares de pessoas, usando como ferramentas as redes sociais Twitter e Facebook. Nunca ouvira falar sobre recordes de hipnose em massa até ler aquilo, e nunca mais ouvi. Mas a notícia jamais saiu de minha cabeça. Não sei qual foi o resultado da experiência, nem qual é a definição das patologias que configuram cientificamente uma hipnose. Mas, numa análise estritamente social, me arriscaria a dizer que o sujeito não chegou sequer perto do recorde: transes coletivos são a coisa mais velha das sociedades, e nessa disputa sobre quem manipula mais mentes estariam hoje, mesmo que por vezes involuntariamente, governos e órgãos de imprensa de diferentes países.

Comecemos por um diagnóstico mais fácil e menos polêmico: Coreia do Norte. Em Pyongyang, por alguns momentos tive a sensação de estar em um filme de ficção científica, daqueles em que toda a população tem olhos coloridos e reluzentes, com expressões não-humanas – consequência de alguma hipnose geral. Acontecia nos museus, nas bibliotecas e em qualquer lugar onde a história do país – e até a da humanidade – era contada em versões, digamos, suspeitas, mas sem manifestação alguma de desconfiança pelos cidadãos presentes. O mais chocante eram as versões sobre como grandes inventos (materiais ou teóricos) da humanidade teriam nascido, supostamente criados pelo Great Leader comunista, e sido roubados pelo “ocidente”. Convicções percebidas como falsas acabam inevitavelmente descredibilizando seus defensores, mesmo quando mudamos de assunto para algo do qual nada sabemos. É assim entre duas pessoas e entre dois países. Compreendo então o possível ceticismo de alguns ao ouvir dos norte-coreanos sobre suas experiências com o Japão ou mesmo com os EUA, embora muito do que tenha escutado lá seja fato comprovado. A verdade, porém, é que a população da Coreia do Norte analisa o mundo de forma bem diferente de nós porque recebe dados bem diferentes (de seu governo apenas). Desconsideram fatos reais? Sim. É um comportamento coletivo? Sim. Mas se tratará de um caso isolado? Serão muito diferentes de nós por isso? Acredito que não.

Vamos para seus inimigos. Digo, inimigos dos norte-coreanos; não seus, leitor (espero). No ano de 2003, quando começou a guerra no Iraque, 75% da população dos EUA apoiavam a invasão, e 25% diziam que seria um erro. A mesma pesquisa foi feita recentemente e o resultado, bem diferente: 60% dos estadunidenses disseram que a invasão sempre fora um erro, desde seu início. Como explicar essa mudança de percepção coletiva sobre uma coisa tão séria? A resposta óbvia é que hoje dispõem de mais notícias sobre as implicações da invasão, viram o que aconteceu, e puderam reavaliá-la. Assim sendo, reconhecer isso não seria admitir que, em 2003, não compreendiam a realidade, ou melhor, que as informações que então detinham não eram o bastante para uma análise sóbria da situação? Talvez não fossem suficientes, mas foram eficazes, vide o apoio de 75% da população à iniciativa militar. Sim, poderíamos dizer que foi apenas uma aposta errada. Mas, por que razões? Não seria isso um transe coletivo? Entretanto, antes de acusarmos a imprensa de hipnotizar propositalmente as massas, vale lembrar que transes coletivos também acontecem por acaso, e que os próprios jornalistas integram a massa.

O famoso escritor inglês George Orwell, num ensaio intitulado In front of your nose, lembra que todos somos capazes de acreditar em ideias já provadas e comprovadas como falsas, e que é especialmente em nossas reflexões e decisões políticas que esse vício aflora. Orwell cita vários exemplos notórios da história britânica, cuja repetição seria desnecessária, e alerta para que, cedo ou tarde, convicções coletivas falsas chocam-se contra a sólida realidade, “geralmente num campo de batalha”. Seu texto, escrito em 1946, parece perfeito para explicar a invasão ao Iraque em 2003. Eventos geopolíticos, porém, não são o ponto aqui. A questão é que o autor chegou a usar o termo “esquizofrenia” para explicar a capacidade que o homem tem de, em graus variados, acreditar e defender ideias que se anulam porque contraditórias.

Explicar a psique humana em suas múltiplas facetas exigiria credenciais e interesses que não tenho. Mas identificar situações de transe coletivo parece tarefa mais fácil a um visitante – como em meu caso na Coreia do Norte – do que a alguém que participa do grupo em questão.

E convém lembrar que o simples instinto pelo exagero, que dá humor e fascínio à história contada, conferindo portanto graça à vida, contribui também para a criação desses transes. Talvez daí possa-se compreender a imprensa ou, quem sabe, perdoá-la pelas supostas manipulações em massa de que os mais exaltados a acusam, muitas vezes com razão. Outro escritor, dessa vez brasileiro – Stanislaw Ponte Preta –, disse uma frase sensacional quando questionado sobre o boato de que seria homossexual: “O pessoal exagera um pouco”.

Talvez então a própria proposição do hipnotizador britânico – com a qual inicio esse texto – fosse um exagero. Afinal, como disse Stanislaw, “o pessoal” gosta de exagerar. Ou talvez tenha sido o jornalista – já que estamos suspeitando da imprensa – a tentar dar graça à história. Conseguiu, pois lembro até hoje da reportagem. Fato é que transes coletivos estão por aí aos mil, sejam seus responsáveis autoridades, imprensa, ídolos ou meros boateiros.

O curioso é que, apesar da pretensa lucidez nesse discurso, também perco horas a esmo no Twitter e no Facebook, as ferramentas que o britânico utilizaria. E enquanto cumpro essas rotinas, na maior parte do tempo inúteis, não acho que ainda precise de outra pessoa no papel do hipnotizador. Já me sinto parte de um transe coletivo.