Arte de Alvaro Seixas, capa da Amarello Erótica.

Na milésima segunda noite,
Sherazade degolou o sultão.

— Antônio Carlos Secchin


Você me vira a cabeça
Me tira do sério

— Alcione

1.
A bíblia era meu livro preferido. Na verdade, era um dos poucos livros que tinha em casa quando criança. Folheando aquelas páginas finas, caí de amores por Judite, a mulher que me ensinou a cortar cabeças sem portar espada.

Judite decapitando Holofernes, Artemisia Gentileschi. 1614-1620. Óleo sobre tela.

2.
A ideia me veio durante uma aula sobre corpos impossíveis à luz da Acéphale, revista capitaneada por Georges Bataille, que circulou na França pré-guerra; o periódico reunia outros importantes intelectuais franceses da época, como Pierre Klossowski e André Masson.

O objeto da análise, naquela classe, era uma ilustração de Marx Ernst, que estampou os cinco volumes que circularam entre 1936 e 1939. Em formato de cruz, o desenho trazia um torso masculino com duas estrelas no lugar dos mamilos e uma caveira no lugar do pênis. Abertos os braços, a mão direita segurava um coração flamejante; a esquerda, um pequeno punhal. Os pés grandes estavam bem fincados no chão.

Embora chamasse atenção, eu não queria cuidar da ilustração, do movimento histórico ou da discussão existencial sobre o corpo deformado. No centro do meu interesse estava menos o objeto e mais o agente: quem teria decepado aquela cabeça?

Ao lembrar de outros acéfalos, busquei ver nas histórias também a figura feminina. Há o caso célebre da cabeça de São João Batista que Salomé exige em uma bandeja de prata. Há Medusa, que, por oposição, não era um corpo sem a cabeça, mas uma cabeça sem o corpo. E havia a Judite da minha infância, da minha primeira pátria.

3.
No episódio bíblico, o mundo estava em guerra — como sempre esteve. Um homem em particular, Holofernes, encarnava a figura do terror a mando de Nabucodonosor. Sob seu comando estavam cerca de 200 mil homens.

O desespero de reinos e províncias precede a aproximação desse corpo militar. Se não há adjetivos que os possam definir, os verbos do texto bíblico dão contorno às suas ações: tomar de assalto, saquear, penetrar, rapinar, arrasar, apossar-se, levar, passar a fio, queimar, cortar.

Ao contrário de cidades anteriores — que tentaram pegar em armas ou abrandar a fúria de Holofernes entregando tudo o que possuíam de mão beijada –, a Judeia se vale de certo privilégio geográfico para arriscar uma resistência passiva que consistia em estocar água e comida. A resposta do general segue linha parecida: com paciência, ele se organiza para matar o povo de sede e de fome. Matar sem golpe de espada, apenas cortando o acesso aos reservatórios.

Em desespero, um conselho formado por representantes políticos, administrativos e religiosos (bem definidos na imagem de homens e anciãos) se reúne no templo e vaticina: estarão mortos em cinco dias. Com a cidade sitiada, chegaram ao fim todos os recursos.

4.
Judite, jovem e viúva, tinha um plano que soava como um sacrifício. Sem laços familiares, marido ou filhos, ninguém choraria em cima de seu corpo se falhasse o planejado.

A ideia não era mirabolante.

Ela se comportaria como esperavam que uma mulher se comportasse: corpo cheiroso e enfeitado para festa, cabelo no lugar, pulseiras e anéis nos braços, brincos pendurados nas orelhas. Carregaria nada além de um pedaço da cozinha: bons vinhos, pães, queijos, grãos e figos. Consigo, seguiria outra mulher, não nomeada, sua criada.

Passos firmes, elas andam em direção à grande ameaça. Cruzam o cheiro, o barulho, as cantadas de 200 mil homens. Pulam por cima dos animais que os serviam. Atravessam o acampamento até a tenda do comandante — o cabeça do exército.

Diz a bíblia que, ao ver Judite, Holofernes fica preso no laço de seus olhos e nas doces palavras de seus lábios: ela lhe promete contar os segredos para conquistar a cidade ao fim de três dias.

Animado — excitado — não só com a notícia, mas com a presença daquela mulher, o general abaixa a guarda e lhe dá tenda, comida e passe livre para andar pelo acampamento com ordens explícitas de não a incomodarem.

Judite avança em seu plano. Eis a vanguarda doméstica.

5.
A partir deste ponto, testemunhamos a reversão não só da conquista, como da hierarquia.

Se, no início da história, a bíblia diz que nada era capaz de “abrandar a ferocidade do coração” de Holofernes, depois de conhecer Judite, já no fim do terceiro dia, este mesmo coração arde de paixão por ela. O general nem de longe percebe que obedece ao que está previsto na etimologia da própria palavra sedução: se + ducere, o que pode ser compreendido como “desviar alguém do caminho”.

Até agora, a palavra “conquista” estava confinada a um contexto bélico: o poder de Holofernes dizia respeito a um domínio geopolítico, que se manifestava por meio do discurso de ameaça e da prática violenta. Para Judite, o campo de batalha é outro, é o corpo; é por meio de Eros que ela atrai amorosamente o inimigo, conquista sua cabeça e, logo, a vitória real na guerra.

Anoitece. Há festa. As taças ficam mais leves quanto mais cheias de vinho. O general come do que Judite lhe dá. A sedução desativa os dispositivos de poder. São deixados a sós.

6.
A tela pode ser dividida em três diagonais.

Na diagonal inferior, vê-se o colchão duplo, de aparência macia, forrado com lençol branco, invadido por linhas de sangue (não foi na cama que tantas virgens sangraram?). O amassado do lençol se intensifica com o peso da cabeça do general em agonia e o movimento dos outros dois corpos.

As rugas da cama se duplicam no tecido azul do vestido de Judite, já na segunda diagonal. Os braços dela formam paralelas que delimitam a cena e colocam em destaque duas cabeças: a de Holofernes, embaixo, e a sua, em cima.

Os olhos do general parecem fitar o nada; a boca permanece aberta na intenção de um grito, como um bocejo eterno. O corpo tenta se defender em vão. Sobre o colchão, observamos um homem que morre pela própria espada – sua arma. Ele morre pela latência em seu falo — uma grossa lâmina.

Enquanto Judite porta um distinto tecido azul com detalhes dourados, o homem, embaixo dela, está nu, coberto apenas com lençóis a partir do peito.

O cabelo dela está preso em um coque alto, meio bagunçado. Uma mecha escapa pelo pescoço e cai sobre os ombros nus. O ombro esquerdo, mais à mostra, e a sombra que acompanha seu torso, atrás, indicam uma folga — talvez o vestido esteja semiaberto?

De mangas arregaçadas, Judite empunha com destreza a pesada arma. Não se pode ler em seu rosto resquícios de hesitação. É a representação do clímax que ela planejara dias antes. O seu gozo é vermelho cor de sangue e dá certo: o grande guerreiro já não é mais guerreiro, nem grande. A acefalia se aproxima dentro de um minuto ou dois.

Na terceira diagonal, o vestido vermelho da criada (cúmplice, companheira, amiga) funciona como uma continuação vertical do sangue. É no pescoço desta mulher que está a mão já fraca do general. A parte esquerda do rosto dessa personagem faz par com a face esquerda de Judite: metades sombrias.

Toda a cena se desenrola em um fundo escuro. É o suposto silêncio da alta madrugada.

Quando os soldados souberam que Holofernes tinha sido decapitado, ficaram desorientados. A cabeça é o domínio da razão e, ao perder o cabeça, perdem a guerra. Como recompensa, à jovem é oferecido o espólio de Holofernes: ouro, prata, tecidos, pedras caras. Judite, agora duas vezes viúva, acumula a herança de dois homens.

7.
É curioso perceber como as esferas que apontam a tradição do feminino estão presentes tanto na antiga história de Judite quanto nas pintoras que retrataram o episódio.

A tela aqui comentada é de 1620, e nela podem ser identificados elementos do barroco italiano. De autoria de Artemisia Gentileschi (1593-1653), filha de um pintor italiano tradicional, ela foi a primeira mulher aceita na Academia de Belas Artes de Florença, e dedicaria ao episódio outras duas versões.

Contemporânea a Artemisia, Lavínia Fontana (1552-1614) foi outra pintora de destaque que deu a Judite algumas versões. Lavinia, que pode ser situada entre o Maneirismo e o Barroco italiano, seria eleita, de forma inédita, para a Accademia di San Luca, de Roma. Reza a lenda que o marido é quem cuidava dos onze filhos para que ela seguisse carreira e sustentasse a casa. Elisabetta Sirani (1638-1665), que morreu subitamente aos 33 anos, escolhe pintar não apenas o momento da decapitação de Holofernes, dentro do quarto, mas a volta gloriosa de Judite com a cabeça em mãos, recebida por uma gente pálida e curiosa na praça da cidade.

Fazendo uma ponte entre os anos, Julia Kristeva (1941), no livro O gênio feminino, afirma que “o próximo século será feminino”. Mas talvez os séculos passados também tenham testemunhado essa genialidade a partir de elementos banais e, muitas vezes, domésticos: o corpo, a comida, a festa, a futilidade, uma amiga ao lado.

Esse conjunto, tido quase como uma “condição natural” da mulher, é a receita para cortar cabeças de forma intelectual e política, baseada no desejo, no segredo e na sedução.

É precisamente aí que cabeça e mãos se unem com finalidades levemente semelhantes: mãos para cortar cabeças, no caso de Judite; mãos para pintar o corte de cabeças, no caso de Gentileschi, Fontana e Sirani; mãos para escrever sobre pinturas que retratam cortes de cabeças, no meu caso, aqui e agora.

— Este texto é dedicado a Marília Rothier que me ensinou a ler, escrever e pesquisar.

Alguns momentos privilegiados na arquitetura podem ser considerados eróticos. A fresta, que corrompe a continuidade do plano e anuncia uma intimidade que explode de dentro para fora, te convidando a penetrá-la com o olhar. Ou o grande salão vazio, sobre o qual se imagina todo tipo de atividade lúdica e libidinosa, tal qual o corpo deitado aguardando que o corpo ereto o fecunde, ação fálica por excelência. Ou então a mesa de pedra da cozinha, superfície lustrada desenhada pelos veios da terra, sobre a qual se estica a massa e debruçam-se os corpos quando vitimados pelo desejo que surge incontrolável no meio do tempo da cocção. A verdade é que todo e qualquer objeto e espaço podem abrigar o erótico.

Cruising Pavilion explora como o sexo está sempre latente ou silenciado na arquitetura. Foto de Louis De Belle na Bienal de Veneza.

Se duvidam, vamos fazer a prova pelo inverso. Vamos imaginar como seria uma arquitetura não erótica: uma caixa de concreto de piso a teto, com uma grande janela de vidro. Não há um sofá de couro, um tapete para aquecer os pés, um jogo de luzes para criar claros e escuros ou um quadro nas paredes para aludir à fantasia. Esse espaço anticorpóreo, indigesto, áspero, frio e tedioso não seria o compartimento ideal para o sadomasoquismo? Não seria o desconforto, agora televisionado através da janela que vira pano de vidro, um espetáculo ao acesso dos voyeurs que assistem o corpo agonizante? Não seria a janela, antes fonte de luz e vida, uma película frágil de separação que eviscera o corpo privado e o transforma em objeto de divertimento?

Daí conclui-se que o erótico, na arquitetura, não permite correlação direta entre forma e conteúdo. Um quarto recoberto de pelúcia rosa com buracos e dildos distribuídos pela parede não é, necessariamente, mais erótico que uma monótona sala de espera de dentista. Da mesma maneira, o excesso, tão associado àquilo que é voluptuoso e sexual, não caracteriza imediatamente uma arquitetura LGBTQIAP+, e muito menos o rigor plástico define um espaço másculo e racional. Essas correlações não são mais que processos históricos de fixação de valores sobre determinadas formas espaciais. O quarto de decoração estoica —cama, armário, poltrona — não é masculinista porque prescinde do excesso, mas porque a cultura definiu que o racional pertence ao âmbito do masculino e o irracional (excesso, ornamento, acumulação, emoção etc.), do feminino. E é nessa binariedade de qualidades do espaço que a arquitetura participa como dispositivo sexual. A tipificação do espaço é resultado de um processo histórico dado através da arquitetura.

Assim, poderíamos dizer que todo espaço arquitetônico é erótico. Recuperando a qualidade tátil da arquitetura da qual fala Walter Benjamin, é no ato desatento de circular pelo ambiente construído que nosso corpo o absorve. A arquitetura traz consigo sempre a dimensão corpórea do espaço. Seja o corpo abstrato, idealização clássica que constrói o lugar a partir do corpo perfeito, ou o corpo exterioridade, pura zona de contato, sistema de pele-sobre-pele, atrito por vezes violento, de existência do ser no mundo. Mas, em sendo sempre erótico, poderíamos realmente dizer que o arquiteto ou a arquiteta produz a dimensão erótica do espaço, ou esta estaria presente nas camadas profundas de seu ofício, inacessíveis a ele ou a ela mesmos?

Talvez seja na dimensão cotidiana do fazer arquitetônico, labor repetitivo, corriqueiro, estafante, que surja o mistério, a pulsão libidinal da vida. Como qualquer fazer humano, a arquitetura, nos maus dias, me é ingrata, relação tóxica. Mas, nos bons dias, eu e a arquitetura temos uma imensa tarde de lascívia, sob um eterno sol das cinco. O erótico no projetar diz respeito a dois momentos-chave que antecedem a edificação em si: a encomenda, interlocução inicial da arquitetura com o mundo, condição prévia de sua feitura, e, ato contínuo, a necessária reconexão da mente com a mão, ignição do ato criativo. A figura do gênio intempestivo do filme Vontade indômita (1949), a arrogância antissocial do designer em O homem ao lado (2009) ou mesmo o infinito vigor criativo de Ariadne no filme A origem (2010) não passam de ficções que não encontram reverberação no real. Todo gênio, por maior que seja, sempre trabalha com um universo de pessoas, equipes, indústrias, cronogramas, expectativas, etc. É impossível produzir arquitetura sozinho.

Projetar é sempre projetar para e com alguém. Ação coletiva, diplomática, entre cliente, empreiteira, loja de materiais, condomínio, cidade, etc. As determinantes materiais são o vento contra o qual ou em favor do qual se projeta. Mas nunca são suficientes para explicar a arquitetura. A criação luta a contrapelo para reimaginar o drama humano. E, em verdade, quanto mais essas disposições econômicas, sociais, culturais e políticas se transformam em fundo, e não figura, mais a intuição toma conta do processo criativo. As maiores obras são imaginadas no desconhecido, um desconhecido circunstanciado. É um caminhar no escuro, mas um escuro que é este escuro, e não aquele. Emudecer a materialidade do mundo e transformá-la na carne mesma do edifício que nos lançamos a projetar. Transformar o ato racional de análise no ato criativo de síntese, passando, ou melhor, gestando essa difícil contradição no corpo do arquiteto criador. Mais do que em qualquer outra arte, a arquitetura gera essa tensão fundante a partir da qual criador e criatura se mesclam. Ela não simplesmente reproduz suas condições de produção, mas produz ela mesma as possibilidades de uma nova existência. E, nesse processo irracional de racionalidade, nos reconectamos com o erótico da vida. Como algo que transborda o desenho e se projeta sobre nós, a arquitetura transmuta-se em desejo, imaginação e, encarnado, experiência do prazer. O que fazemos interpela o interlocutor a participar de seu próprio processo de ocupação e desfrute, completude, deciframento, constituindo uma relação dialógica de afeto, um diálogo amoroso.

Quanto à conexão entre pensamento e ação, mente e mão, cabe evocar a questão fundante da reflexividade da “mão que toca a outra mão” de que fala Merleau-Ponty. Nessa cena, torna-se quase impossível dissociar a mão que toca da mão que é tocada. Não existe mais o quiasma entre sujeito e objeto, sujeito e mundo. No caso da concepção cerebral que, via memória muscular da mão, desenha-se sobre o papel, estamos falando também de reflexividade, já que o grafite na folha só existe como fato material a partir da ação do corpo integral. O ato criativo é sempre um ato de retorno ao corpo que se dobra sobre si mesmo. O delírio é dissociação, mas o deleite é estar em completude, corpo-mundo. O desenho é então expressão desse regozijo, e não mera técnica de representação. Exprimir significa tornar pulsante essa conexão que temos desde crianças, mas que a vida nervosa na cidade capitalista faz divorciar-se do ser. Nesses raros momentos de conexão cérebro-muscular é que me deito, em riste, sol manso na pele, e gosto de ser arquiteto.

A ideia de pecado permeia diferentes culturas e religiões ao longo da história humana. Apesar das variações nas definições e crenças específicas, a ideia central do pecado geralmente se refere a transgressões contra normas sociais, leis divinas ou princípios éticos. Discutir e – principalmente – questionar as origens e desdobramentos da ideia de pecado nas sociedades é fundamental para compreendermos aspectos da moralidade, do direito e das estruturas sociais.

Primeira missa no Brasil, Victor Meirelles. 1859-1861. Óleo sobre tela.

Em sociedades anteriores à era cristã, o conceito de pecado estava frequentemente ligado a tabus e crenças animistas. Ações que violassem a ordem considerada natural ou ofendessem os espíritos ancestrais eram vistas como pecaminosas e podiam trazer malefícios à comunidade. Com o advento das ditas “primeiras civilizações”, leis e códigos religiosos codificaram o comportamento moral, definindo quais ações eram consideradas pecaminosas e puníveis.

Analisando diferentes culturas de forma comparativa, podemos identificar alguns temas comuns relacionados ao pecado: a violação de regras ou normas sociais, como leis, costumes ou tabus, frequentemente vista como um ato pecaminoso; a noção de impureza, que consiste em ações que “contaminariam” a pureza física ou espiritual do indivíduo ou da comunidade; a ofensa, uma vez que o pecado também pode ser entendido como uma ofensa a uma divindade ou à ordem moral estabelecida; e a ideia de intenção, que estaria por trás da ação e também seria importante na determinação do pecado. Ações realizadas com má intenção são geralmente consideradas mais graves do que aquelas feitas por engano ou ignorância.

Porém, para além desses aspectos em comum, a ideia de pecado em diferentes sociedades encontra outro ponto de contato: a demonização de determinados corpos, grupos e comportamentos.

O ditado “não existe pecado do lado de baixo da linha do Equador” logo vem à mente quando discutimos essa noção. Ele apresenta um enigma que intriga e fascina. Alguns o interpretam como um reflexo da repressão sexual imposta pelas instituições religiosas, especialmente durante o período colonial. A Igreja Católica, com seus dogmas e costumes rígidos, teria sufocado a expressão natural da sexualidade, criando uma atmosfera de “ascetismo e moral dogmática”. Outros defendem a ideia de que ele celebra a liberdade e a naturalidade da sexualidade no Brasil. A miscigenação e a herança cultural indígena e africana teriam criado um ambiente mais permissivo, em que as diversas formas de expressão sexual são aceitas e incorporadas ao ethos nacional.

O dito popular não deve ser interpretado como uma verdade absoluta. O “pecado” é um conceito religioso subjetivo e varia de acordo com cada crença e cultura. No Brasil, como em qualquer outro lugar do mundo, existem diferentes níveis de religiosidade e moralidade, e, em nosso caso, deve-se adicionar uma camada densa, que foi basilar na construção da ideia de “pecado nos trópicos”: a colonização.

A ideia de pecado permeou a colonização e a escravidão de negros africanos — e posteriormente crioulos — e indígenas nas Américas, tecendo um manto de culpa e sofrimento que ainda hoje se faz sentir. Para os colonizadores europeus, imbuídos de uma visão etnocêntrica e religiosa, os povos nativos e africanos eram considerados “inferiores” e “pecadores”. Essa crença serviu como justificativa para a brutalidade da invasão e da exploração, legitimando a subjugação e a desumanização dos colonizados.

A crença na anarquia moral “abaixo do Equador” impulsionou aventureiros europeus do século XVI a cruzarem o mar em busca de um lugar livre das convenções do Velho Mundo. Guiados pela cobiça por poder, mas também pela fascinação pela transgressão, esses aventureiros desembarcaram nas Américas, onde seus desejos foram colocados em prática em forma de um expurgo colonial com vítimas muito bem definidas.

Desde o início da colonização, a narrativa do pecado original foi utilizada para justificar a dominação. Segundo essa visão, os povos nativos e africanos carregavam o fardo da culpa herdada de Adão e Eva, condenando-os à inferioridade e à servidão. Essa crença serviu para deslegitimar as culturas e a fé dos que foram colonizados, reforçando a ideia de que estes precisavam ser “salvos” pela fé cristã e pelos valores europeus.

A escravidão era vista como um castigo divino pelos pecados dos negros e indígenas. A brutalidade do sistema escravocrata, com seus castigos físicos, as humilhações e a subjugação psicológica e cultural, era justificada como uma forma de “purificação” e “redenção”. A desumanização dos escravizados se materializava a partir da coisificação desses indivíduos, uma vez que grande parte dos colonizadores os consideravam “coisas” sem alma, desprovidos de qualquer direito ou dignidade. Em Uma história do negro no Brasil, Wlamyra R. de Albuquerque e Walter Fraga Filho afirmam que:

Na ideia dos europeus, o tráfico era justificado como instrumento da missão evangelizadora dos infiéis africanos. O padre Antônio Vieira considerava o tráfico um “grande milagre” de Nossa Senhora do Rosário, pois, retirados da África pagã, os negros teriam chances de salvação da alma no Brasil católico.

O conhecimento sobre a organização social da colônia nos primeiros séculos é fragmentado. As principais fontes de informação são os relatos dos jesuítas e dos viajantes europeus. Essas narrativas, muitas vezes carregadas de preconceitos, retratam os indígenas como seres “ingênuos” e “selvagens”, necessitados da “salvação” e do “aculturamento” pelos colonizadores Assim, a Igreja Católica desempenhava um papel fundamental na perpetuação da ideia de pecado como justificativa para a colonização e a escravidão. Missionários atuavam como agentes de colonização, catequizando os povos nativos e africanos e impondo-lhes a fé cristã. A educação religiosa era utilizada para doutrinar os colonizados, inculcando-lhes as ideias de culpa e a submissão.

Ao contrário do que se possa imaginar, a demonização dos indígenas no período colonial não se baseava unicamente na crença de que eles eram adoradores do diabo. A visão predominante entre os jesuítas, como Cardim e Anchieta, era a de que os indígenas eram “pouco endemoniados” e, em sua maioria, praticavam uma “ingênua irreligiosidade”. Embora reconhecessem o uso da dita “feitiçaria” entre os indígenas, os jesuítas argumentavam que essa prática não era resultado de um pacto com o diabo, mas sim uma forma de lidar com doenças e outros problemas. Para eles, a falta de conhecimento sobre Deus tornava impossível a crença no diabo.

O que realmente inquietava os colonizadores era a aparente falta de leis e regras que regulassem a vida dos indígenas, especialmente no que diz respeito à sexualidade. A nudez, a poligamia e o “canibalismo” eram práticas que chocavam os valores europeus e reforçavam a visão do indígena como um ser “animalesco”, “selvagem” e “monstruoso”. A demonização dos indígenas era parte de um processo mais amplo de construção da alteridade, que visava justificar a dominação colonial. Ao negar aos indígenas a sua humanidade, os colonizadores se colocavam em uma posição de superioridade moral e religiosa, legitimando a conquista e a exploração dos seus territórios.

Primeira missa no Brasil, Victor Meirelles. 1859-1861. Óleo sobre tela.

O Brasil colonial foi palco de um intrincado jogo de poder entre a Coroa Portuguesa e a Igreja Católica. A Reforma Protestante, com seu desafio à hegemonia papal, impulsionou a Contrarreforma e a criação do Tribunal do Santo Ofício, conhecido como Inquisição. Essa instituição, com seus tentáculos espalhados por Portugal e seus domínios, buscava reprimir qualquer forma de heresia e dissidência religiosa.

Os primeiros cronistas europeus que chegaram ao Brasil ficaram chocados com a nudez e a aparente falta de pudor dos indígenas. Para eles, essas características eram provas da “vassalagem” que os indígenas prestavam ao diabo.

Fernão Cardim, um jesuíta que inicialmente viu inocência na nudez dos indígenas, comparou o interior das ocas a um “labirinto infernal”. O fogo, aceso dia e noite, era a única “roupa” que os indígenas usavam. Cardim ficou particularmente perturbado com a dita promiscuidade em que viviam. Cem ou duzentas pessoas viviam em uma única oca, “sem repartimento algum ou divisão”, cada casal em seu rancho, mas “todos à vista uns dos outros”. Para ele, era como se estivessem sempre em público, “fazendo o que lhes aprazia”. A liberdade dos povos indígenas era um insulto aos colonizadores.

Os jesuítas no Brasil colonial consideravam os costumes matrimoniais indígenas “falsos” e “pecaminosos”. A poligamia, a instabilidade das uniões e a considerada infidelidade eram práticas que contrariavam a moral católica. Para “civilizar” os indígenas, os jesuítas os pressionavam a se casar na forma e sob as regras da Igreja. O casamento era visto como um instrumento fundamental para aculturar os indígenas e integrá-los à sociedade colonial. Através do matrimônio, os jesuítas buscavam impor a monogamia e a indissolubilidade do casamento, controlar a sexualidade e a reprodução, transmitir valores e costumes cristãos e sedentarizar os indígenas e integrá-los à comunidade. Instituições como a família e o casamento são muito mais do que meras formações afetivas ou relacionais; são — ou podem ser — ferramentas de dominação de corpos e mentes.

No contexto da colonização, a família era vista como a pedra angular da sociedade e a principal responsável pela perpetuação da fé católica. A Igreja, através da Inquisição, intervinha na vida privada dos colonos e indígenas, ditando normas de conduta e punindo severamente qualquer transgressão. É curioso observar que essa linha argumentativa retornou às bocas e mentes no Brasil contemporâneo, em discursos inflamados pela extrema direita, que, mesmo que não tão profundamente vinculada ao ideário de pecado colonial, não abriu mão de perseguir determinadas existências que já eram alvo de repressões ao longo da história, como mulheres, pessoas LGBTQIA+, negros e indígenas.

Ao longo da história colonial brasileira, os africanos foram frequentemente retratados como seres lascivos e incontinentes, entregues aos “vícios da desonestidade”. Essa visão distorcida, presente em autores como José de Anchieta, Fernão Cardim e André João Antonil, servia para justificar a escravidão e reforçar a dominação colonial. Segundo esses autores, os africanos eram naturalmente inclinados à “fornicação”, excedendo em lascívia os “brutos mais libidinosos”. Essa caracterização, além de negar a diversidade cultural africana, ignorava as complexas relações de poder e as condições precárias de vida impostas pela escravidão.

Os jesuítas também acusavam os senhores de engenho de contribuir para a “licenciosidade” dos negros. Ao permitir o ócio, negar a educação religiosa e recusar-se a casá-los segundo a Igreja, os senhores criavam um ambiente propício ao pecado. Ao mesmo tempo em que condenavam a sexualidade dos negros, os jesuítas denunciavam a hipocrisia dos senhores que mantinham relações sexuais com escravizadas e geravam filhos “mestiços”. Essa crítica evidenciava uma face importantíssima para pensarmos a construção da ideia de pecado: a contradição entre a moral cristã pregada e a realidade da sociedade brasileira.

A ideia de “lascívia negra” se atualizou e perseguiu os passos das populações afro-brasileiras. O termo “cor do pecado” é largamente utilizado para se referir a pessoas negras, dentro da ideia de que estas seriam capazes de corromper os demais indivíduos e os arrastar para atos pecaminosos. Essa percepção aparece também em materiais artísticos, como filmes, telenovelas e canções. A música Da cor do pecado, com letra de Bororó, apresenta uma descrição sensualizada do corpo de uma mulher negra, associando-a à maldade e ao pecado. Essa visão, presente também na obra de Gilberto Freyre, reflete a concepção colonial que liga a mulher negra à sexualidade exacerbada. A letra da música destaca a cor da pele da mulher como algo pecaminoso e desejável. O corpo “moreno” é descrito como “cheiroso e gostoso“, “delgado” e “de fazer tão bem”. O beijo da mulher é “molhado” e “escandalizado”, e suas palavras “com graça” escondem a “maldade da raça”.

Ainda na interseção entre o pecado e o gênero, é importante observar que, ao longo da história, as mulheres foram frequentemente representadas como figuras pecaminosas e tentadoras, desde Eva, no Jardim do Éden, até as bruxas perseguidas na Idade Média. Essa construção social, baseada em estereótipos e misoginia, serviu para justificar a subordinação das mulheres e a violência contra elas.

A crença no pecado feminino se traduziu em diversas formas de perseguição e controle ao longo dos séculos. As mulheres foram silenciadas, excluídas da vida pública e privadas de direitos básicos. A sexualidade feminina era vista como algo perigoso e que precisava ser controlado, resultando em práticas como a castidade imposta, o casamento forçado e a punição de mulheres consideradas “adúlteras” ou “sem moral”.

Também perseguidos pela invenção da noção de pecado foram aqueles que apresentaram dissidências com relação à cisgeneridade e à heteronormatividade em suas relações e existências. Por mais que os dogmas cristãos façam parecer que práticas homoafetivas, por exemplo, são recentes, é importante reconhecer que elas não são um fenômeno novo ou singular. Registros históricos demonstram a existência de práticas e relações homossexuais em diversas sociedades antigas, como no Egito, na Grécia e em Roma. A diversidade de expressões sexuais e de gênero era vista como parte da natureza humana, e não necessariamente como algo pecaminoso ou anormal.

Com o advento do Cristianismo, a partir do século I d.C., a homossexualidade passou a ser considerada um pecado grave. Passagens bíblicas foram interpretadas como condenações à prática homossexual, dando início a um período de perseguição e repressão que se estenderia por séculos. Durante a Idade Média, a Igreja Católica Romana desempenhou um papel fundamental na demonização da homossexualidade. A Inquisição, tribunal religioso criado para punir hereges e pecadores, perseguiu e condenou milhares de pessoas por práticas homossexuais. As punições variavam de chibatadas e humilhação pública até a pena de morte. No período moderno, a partir do século XVIII, a homossexualidade passou a ser objeto de estudo científico. No entanto, a medicalização da homossexualidade a classificou como uma doença mental, reforçando o estigma e a marginalização.

Nas últimas décadas, diversos países avançaram na legislação e no reconhecimento de direitos para a comunidade LGBTQIA+ — a homossexualidade foi descriminalizada e o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi legalizado em vários países. No entanto, ainda há muitos desafios a serem superados. A homofobia, a transfobia e o preconceito ainda são realidades presentes em muitas sociedades sob a égide do pecado e da moral.

Assim, ao longo do tempo, a ideia de pecado foi utilizada como um instrumento poderoso para justificar a dominação, a opressão e a violência contra diversos grupos sociais. A análise crítica dessa construção social revela como o pecado foi inventado para servir aos interesses de elites e grupos hegemônicos. É fundamental, portanto, desconstruir a ideia de pecado como algo inerente a determinados grupos ou determinadas práticas. O pecado é uma construção social, utilizada para controlar e oprimir. Respondendo à pergunta que intitula este texto, podemos ousar pensar que o pecado foi inventado para manter uma estrutura sólida e rígida de poder e desigualdade.

Arte de Alvaro Seixas, capa da Amarello Erótica.

Pensar em erotismo é pensar em como as diferentes sociedades se relacionam com o corpo.

A estrutura social patriarcal cristã se estabelece a partir da criação de tabus, do distanciamento da humanidade de si própria e de uma relação de pertencimento à natureza. O objetivo é tornar-se santo, superior e distante das coisas terrenas.

Nesse contexto, às mulheres, sobretudo, foi atribuído o lugar de cuidado e servidão à figura masculina. Afinal, Deus é homem.

O processo de colonização que estabeleceu a hegemonia eurocristã foi bem-sucedido, porque conseguiu colonizar, além de territórios, mentes e corpos, e paulatinamente apagar outros formatos de organização social.

Minha conversa com Mãe Flávia Pinto se dá a partir de uma troca em que nos interessa pensar o erotismo sobre a perspectiva do matriarcado, do axé, das iabás.

Como as mulheres têm se relacionado com a sua própria sexualidade? O que os orixás nos ensinam sobre energia sexual? Como o patriarcado e o capitalismo nos castram?

Vamos descobrir juntas a seguir.

Conta pra gente quem é Mãe Flávia Pinto.

Mãe Flávia Pinto — Sou uma mulher preta de 48 anos, mãe de três filhos, favelada, nascida na Vila Vintém, Padre Miguel. Sou socióloga, escritora, autora de quatro livros. Sou ganhadora do Prêmio Nacional dos Direitos Humanos por ter idealizado e coordenado a primeira pesquisa de mapeamento dos terreiros, que identificou casos de intolerância religiosa no país. Sou ex-coordenadora de diversidade religiosa da Prefeitura do Rio de Janeiro, sou gestora pública, mestranda em sociologia política, especialista em políticas de gênero. E também atuo dentro do sistema prisional, sendo a única mãe de santo em todo o Brasil a oferecer assistência afrorreligiosa. Atendo duas unidades prisionais, e nem preciso dizer que a maioria das mulheres que estão no sistema carcerário são pretas. Então, estou falando pra mulheres que têm a mesma origem que eu, e levo pra elas o resgate da ancestralidade.

Em algum momento da diáspora, forçaram o desencontro com a nossa cultura, e é através de mulheres, e homens também, que a gente faz o retorno dessa consciência cívica. Eu digo “cívica” porque, pra mim, hoje, a iniciação nas religiões afrorreligiosas é um ato político. Eu fazia parte de um povo e fui trazida pra outro lugar. Por mais que a gente esteja aqui desde 1500, este não é o meu território de origem, mesmo que eu tenha ancestrais aqui. Não tem como eu voltar ao continente africano agora e pedir repatriação, porque eu não vou saber nem de que nação eu era e de que país eu sou. A única forma de voltar pra África é através do estudo dos valores civilizatórios africanos.

Considerando essas suas facetas, onde se encaixa o erotismo?

MFP — Em todas. Eu sou uma mulher livre. Em nossa cosmologia, as mulheres não eram castradas: Oyá, Oxum, Iemanjá, Nanã, Obá e outras divindades femininas não foram castradas. Depois que eu fui estudar a cosmologia africana iorubá, entendi o porquê de eu nunca me enquadrar nesse modelo da mulher recatada e do lar. Desde cedo, fui rotulada como “piranha”, e carrego esse título orgulhosamente, pois ser piranha é ser uma mulher livre. Tenho mais de 30 anos de vida sexual ativa, o que me coloca em posição de quem vivencia. E não abro mão da minha sexualidade, do meu erotismo, isso é inegociável. A cosmologia dos orixás, o Itan, não menciona a abstinência sexual. Eu acho legal você estar numa relação com afinamento energético e corporal, mas a gente precisa entender que são oito bilhões de pessoas no mundo, e nem todas se conhecem fisicamente, principalmente as mulheres que na infância foram abusadas, ou foram ameaçadas de ser, e tiveram que conviver com aquela tortura, botando a sexualidade num outro lugar. Desconstruir esses tabus é parte do meu trabalho atendendo mulheres.

Quando a gente fala de orixás femininas, principalmente na umbanda, a gente percebe uma reprodução das categorias da santa cristã, como se elas não tivessem malícia, sensualidade. Mas quando a gente vai estudar a fundo, principalmente na perspectiva iorubá, tudo isso está ali na base. Como você vê a essência das iabás?

MFP — Oxum foi a primeira iabá a ir pra guerra. Ela, filha Orunmilá, pediu pra ir. Quando chegou, viu a violência e se perguntou o que estava fazendo ali, mas aí o que Oxum fez? Começou a fazer comida, porque comida é nutrição e fortalecimento. Começou a botar feitiços na comida, e o exército dela foi ficando mais forte, desenvolvendo mais imunidade, ficando mais descansado e saudável. Depois, ela pediu pra ir embora, mas não deixaram, e ela ficou observando a guerra. Foi então que teve uma ideia. Fez uma comida cheia de feitiço e mandou que levassem na tribo rival, do outro lado do rio. Aí ela foi para o rio com seu espelho, chamado de abebé, se banhou toda de mel e começou a dançar e cantar. Enquanto fazia isso, os homens da tribo rival foram se aproximando. Ficou todo mundo embasbacado olhando Oxum. Aí sentiram o cheiro da comida, comeram e ficaram sonolentos. Nisso, se orientando pelo espelho, ela foi dando sinal pro exército dela ir avançando. A tropa dela foi e pegou os rivais sem condições de batalhar. Com esse ataque, ganharam a guerra. Isso quer dizer que o abebé, e todo o erotismo de uma mulher, não são instrumentos só de vaidade, são de poder. Sem disparar uma arma, usando o erotismo, Oxum ganhou uma guerra.

Na umbanda, as pombagiras transgridem o modelo da castração, com a sabedoria de dominar as emoções e o prazer. Das suas experiências como mulher e sacerdotisa, qual é a importância de nos aproximarmos do que elas nos ensinam sobre empoderarmos nosso gozo?

MFP — Primeiro, é importante entender que a pombagira não é um orixá. Ela não é Exu, ela vem dentro de uma energia derivada de Exu. Os espíritos que se manifestam como pombagira viveram. Foram seres humanos como eu e você. E, normalmente, eram mulheres transgressoras, mais pra frente, que não queriam casar sem amor nem ser castradas. E aí essas mulheres eram expulsas de casa e, como não tinham trabalho, só podiam viver no prostíbulo. Ao desencarnar, algumas delas, por terem acumulado conhecimento, vão ser preparadas para atuarem como entidades. Mas acho que tem muita gente mal resolvida sexualmente manifestando pombagira. Nunca precisei das pombagiras pra ser mulher. Sou mulher pra caralho sem elas.

Às vezes, a pessoa vai com a intenção de buscar, por exemplo, um parceiro ou uma parceira enquanto, para trazer um caminho de autoconhecimento e prosperidade, existem muitas outras coisas que precisam ser trabalhadas por uma pombagira.

MFP — Esse negócio de pombagira fazendo amarração, sendo que ela sofreu na mão de homem, é contraditório. Você não precisa da pombagira pra trabalhar a sexualidade, é equivocado trabalhar isso. Acho que ela vai curar pessoas com problemas e dores de violência, de violações que aconteceram a partir desse uso equivocado de como o sexo se estabelece na cultura patriarcal. Acho que ela está nesse lugar. A gente acaba subestimando e despotencializando a pombagira ao colocar ela num lugar de só ser a pessoa que vai resolver o problema sexual dos outros.

Há mulheres que vêm escrevendo sobre nossa sexualidade, sobre gozo, sobre os nossos corpos. A gente tem a Carol Rocha, a Carmen Faustino, que têm se proposto a escrever contos eróticos, como um registro escrito. O que você acha disso?

MFP — A escrita é uma ferramenta que nós usamos há muitos anos. Escrever com as palavras do colonizador é doloroso, porque inúmeras vezes a gente sente dificuldade de expressar o que está pensando, e hoje eu entendo que isso tem a ver com a linguística. A minha língua nativa não é o português, é o iorubá. Então, a minha psique ainda pensa iorubá, mas eu tenho que expressar o português. Eu falo de maneira que as mulheres faveladas me entendam, que as mulheres presas me entendam. Não abro mão da gíria, não abro mão do palavrão. Pode não ser bonito, mas foda-se, as minhas manas, que vêm do mesmo lugar que eu, vão me entender. Tanto o que eu falo quanto o que eu escrevo. Quando elas leem e dizem pra mim que entenderam e que transformou elas, pronto, pra mim fez todo sentido.

A mulher é criminalizada antes mesmo de se tornar criminosa pelo sistema patriarcal capitalista. Para compreender a sexualidade, é essencial compreender esse sistema que nos silencia. A primeira vez que eu entrei na cadeia pra falar com mulheres, eu cheguei às nove da manhã. Nesse presídio, tinha um salão, então muitas delas faziam curso de unha e cabelo. E aí as mulheres foram passando por mim com cabelo arrumado, pintadas, perfumadas, tudo feito com truque, já que lá não pode entrar nada disso. Chegaram montadas e falavam: “Oi, Mãe Flávia, prazer, bênção”. Aí eu entendi que quem estava passando por mim era Oxum, Iemanjá, Iansã, Obá, Iyami Oxorongá. Ou seja, nada reprime mais uma mulher do que não poder se arrumar. E, como a gente se arruma pra alguém ver, ali eu era o evento. Morreu uma Flávia naquele dia e nasceu uma outra mulher, porque entendi o quanto o patriarcado assassina os nossos homens e nossas mulheres. O homem se torna um monstro patriarcal e assassina a mãe do filho, e quando não assassina de tiro ou facada, assassina psicologicamente, emocionalmente. E quantas mulheres não vão parar presas se defendendo desse agressor? Então, observar que a gente tem a terceira maior população carcerária do mundo em números gerais, e a quarta população feminina, é algo que a gente tem que entender quando está falando sobre sexualidade. Quantos vieses estão atravessando a sexualidade dos corpos dessas mulheres até levar elas ao encarceramento?

Não dá para tratar o erotismo de forma isolada. Tem capitalismo, patriarcado, cárcere… Chama atenção nessa história o quanto essas mulheres privadas de liberdade buscam, da forma que podem, não abrir mão de sua vaidade, porque o sistema prisional quer descaracterizá-las.

MFP — Nossos homens reproduzem misoginia, ódio, violência. E quantas mulheres ficaram caladas porque o homem faz ela entender que ele só dá atenção sexual a ela se ela for bonita? Ela fica ali quieta pra receber o quê? Uma migalha, que é o momento do ato sexual, quando ela é tocada. Esse erotismo não é o reproduzido pela cosmologia iorubá. Não é. Então, se a mulher se coloca nesse lugar, ela não vai se encontrar com essas iabás.

Como trabalhar isso?

MFP — É se desconstruir e se reconstruir o tempo todo! E, claro, escolher referências. Vou trabalhar minha questão erótica olhando pra Madonna? Não, gata, não é olhando pra Madonna, é olhando pra mulheres felizes. No meu livro, Salve o matriarcado, eu falo: se você não sabe fazer com você, você não vai saber fazer com outra pessoa.

Estamos em pleno 2024 e, para a surpresa de alguns e incredulidade de outros, os ventos parecem soprar a favor do barco das relações não-monogâmicas. Esqueça o clichê do amor livre hippie que costumava vir à mente quando se pensava em conceitos que gravitavam em torno de um relacionamento afetivo mais abrangente. Esteja você a bordo ou não, o não-monogamismo consensual está aqui e, ao que tudo indica, não vai recuar tão cedo.

Na verdade, esse tipo de relação é um fenômeno bastante presente em todo o mundo há algum tempo, inserido inclusive em acordos matrimoniais. Paulatinamente, o processo de mudança comportamental vem acontecendo. É como diz a escritora e psicanalista Regina Navarro Lins: “Não foi de uma hora para outra que a separação foi considerada normal. Veio vindo. Quando você olha agora, não sabe dizer o momento exato em que se separar deixou de ser uma tragédia. É a mesma coisa com as relações múltiplas.”

Ou seja, o casamento, outrora uma instituição selada em parte pelo moralismo e em parte pelas convicções, agora se vê desafiado, e talvez até encorajado, pela crescente aceitação desse novo modo de se relacionar.

Antes de qualquer coisa, é importante colocar os pingos nos is. A não-monogamia não é exclusivamente focada na diversidade de relações, mas sim no rompimento com as normas monogâmicas, o que quer dizer que há variações de relacionamentos que se encaixam nessa ideia. “Poliamor” é a possibilidade de se envolver sexualmente com mais de uma pessoa, mas é também poder ter um envolvimento afetivo com alguém de fora da relação central. Já “relacionamento aberto” trata da possibilidade de relações sexuais casuais que não envolvem amor, sendo os episódios extra-relação mais pontuais e sem envolvimento emocional. E se de um lado do espectro está a monogamia, em que há exclusividade total com o parceiro ou a parceira, no outro extremo, há a “relação livre”, em que não existem regras e nem centralidade entre as relações. 

Nomenclaturas como essas ganharam destaque sobretudo a partir de 1972, quando George e Nena O’Neill lançaram o livro Casamento Aberto, um best-seller estadunidense que contribuiu para promover uma espécie de revolução sexual naquela década. A bem da verdade, os O’Neills tinham para eles que um “casamento aberto” não passava de um relacionamento em que cada parceiro teria espaço para crescimento pessoal e desenvolvimento de amizades fora do matrimônio. A maioria dos capítulos apresenta abordagens práticas pouco controversas para revitalizar o casamento em áreas como confiança, flexibilidade de papéis, comunicação, identidade e igualdade. A intenção dos autores, curiosamente, era somente livrar o casamento de seus danosos ideais antiquados e falsamente românticos, encontrando maneiras de torná-lo mais contemporâneo e leve. Não fazia parte dos planos fomentar um grande movimento em prol do poliamor. Mas, uma vez que chega ao mundo, as repercussões de uma obra podem fugir do controle daqueles que a conceberam — e disso os O’Neills sabem bem. 

No meio de suas tentativas apaziguadoras de revisar ideias ultrapassadas, foram mais “radicais” em um capítulo — obviamente, o capítulo que mais deu o que falar. Ele propunha a ideia de que um casamento aberto poderia, sim, incluir algumas formas de sexualidade com outros parceiros. Essa sugestão, mais do que quaisquer outras presentes no livro, entraram na consciência cultural e o termo “aberto” tornou-se sinônimo de casamento sexualmente não-monogâmico. Até então, o que quer que acontecesse em casamentos e relacionamentos que driblavam a monogamia não tinha uma denominação específica. Assim, ainda que não fosse sua proposta inicial, os autores não só foram bastiões da possibilidade de casais explorarem novas formas de intimidade e conexão emocional, mas também criaram a linguagem que faltava para dar mais palpabilidade àquilo que, ainda que numa escala pequena, já existia. A partir daí, o céu virou o limite. O livro teve um impacto significativo na cultura e contribuiu demais para a discussão sobre relacionamentos que fogem da convenção.

O debate, portanto, talvez não seja novidade. O que acontece hoje é um resgate que viria a se dar mais cedo ou mais tarde. Mas a questão é que ele vem ganhando um espaço que talvez nunca antes tenha tido. Com as redes sociais e a discussão mais franca sobre muitos temas que antes eram tabus, a monogamia passa por um período de questionamentos. “Nós temos que nos sintonizar com as mudanças das mentalidades porque o amor e o sexo são construções sociais”, reflete Regina. “Alguém vai dizer assim: ‘Ué, mas sexo e amor sempre existiram’, mas a forma de você amar tem que ser aprendida. Em cada período da história o amor se apresenta de uma forma. Essas expectativas e esses ideais que regem esse amor é o amor romântico. O amor romântico é péssimo, causa sérios prejuízos, porque traz expectativas de que os dois tem que se transformar em um só, o que é um horror.”

Sons de alarme ressoam: é verdade que a monogamia já não representa o que entendemos como amor nos tempos presentes? Seria essa uma crise? 

Se tomarmos produções culturais como reflexos de um zeitgeist, sim — e isso inclui o Brasil. A não-monogamia não é mais “coisa de seriado gringo”, uma vez que o fenômeno não está mais restrito a enredos estrangeiros que soam distantes e improváveis. Cada vez mais, a ideia está se infiltrando nas produções culturais brasileiras. Lembra de A Porta ao Lado, filme de Julia Rezende com Bárbara Paz e Letícia Colin? A história, lançada em 2021, se debruça sobre a dualidade entre o amor monogâmico e o poligâmico por meio do convívio de dois casais de vizinhos muito diferentes entre si. E de Lov3, série brasileira do Amazon Prime? Na produção de Felipe Braga, três irmãos simplesmente se recusam a vivenciar o amor da maneira “quadrada” dos pais. E o poliamor ganhou espaço em séries aclamadas, como no notório Succession, em que Siobhan Roy e Tom Wambsgans, casal que vive às turras, explora possibilidades que se esquivam da monogamia — embora, claro, não seja esse um exemplo de relacionamento não-monogâmico saudável.

Se antes a monogamia tradicional era o padrão a ser representado, sendo a traição sempre uma fonte interminável de conflitos e discussões que ditavam os altos e baixos de uma narrativa, roteiristas e produtores estão agora explorando relações abertas para criar novos tipos de dramas envolventes. Isso não aconteceria se a mentalidade dos relacionamentos não estivesse, de fato, se transformando na vida real também. Ainda que se crie tendências comportamentais a partir de obras culturais, abordar tal assunto sem que isso fosse pauta na vida diária das pessoas, como algo com o qual elas podem se relacionar em algum nível, soaria como irreal e até antiquado, já que muita gente automaticamente ainda liga relações não-monogâmicas a décadas passadas. 

Ao examinarmos o quadro, não podemos ignorar a influência da realidade na arte. De acordo com pesquisas norte-americanas — uma sociedade que, em geral, é conservadora —, em 2023, 51% dos adultos com menos de trinta anos consideram o casamento aberto “aceitável”. Cerca de 20% dos americanos relatam ter experimentado alguma forma de não-monogamia. Seria inviável pensar em números assim há poucos anos. Não por um acaso, o caso Will e Jada Pinkett Smith se alojou no ideário popular, porque, além da popularidade gigantesca dos dois, também contribuiu para uma discussão que estava acontecendo, fazendo com que todas as polêmicas do casal gerassem uma multiplicidade de respostas por parte do público.

Mas por que isso? Adê Monteiro, psicóloga e sexóloga, acredita que cada um tem que “escolher o seu difícil” e que, na teoria, a não-monogamia oferece uma leveza que a monogamia muitas vezes falha em proporcionar, o que não quer dizer que seja fácil. “É difícil viver a não-monogamia também”, explica ela, “porque nós temos ainda uma estrutura de monogamia bastante forte. Essa estrutura tem, inclusive, base genética. A gente tem uma estrutura de romantismo, de patriarcado, é muita estrutura monogâmica para você, de uma hora pra outra, desconstruir isso.” O aspecto de aprisionamento conceitual é bastante relevante, já que leva em conta a hipótese de o panorama psicossocial ser, no final das contas, a maior das barreiras. E Regina Navarro Lins entra para o coro de maneira categórica: “Enquanto não se mudar aspectos como controle, possessividade, ciúme, desrespeito à individualidade do outro, o casamento não vai funcionar.”

Aqui no Brasil, vale citar a empreitada que aprovou na Câmara, em dezembro do ano passado, o projeto de lei que proíbe o poliamor. A Comissão de Previdência, Assistência Social e Família da Câmara dos Deputados aprovou o projeto que proíbe o reconhecimento de uniões poliafetivas com nove votos a favor da aprovação e três contra. A comissão é a mesma que, em outubro de 2023, aprovou um projeto que proíbe o casamento civil homoafetivo. Sempre haverá aqueles que apontam o dedo para qualquer formato que não seja o binarismo heteronormativo, condenando-o como “subversivo”. Mas, de subversivo, o amor não tem nada. Sob uma perspectiva poética, talvez sim; mas, sob uma perspectiva legal, definitivamente não.

Então, depois de muito pelejar e enfrentar todo tipo de preconceito, os relacionamentos não-monogâmicos naturalmente recuperaram seu lugar ao sol. Não fizeram esforço para que isso acontecesse, somente esperaram nas sombras a sua hora chegar — e, mais do que nunca, estão entre nós. Em meio a muitas novas visões de mundo que estão surgindo, essas formas de amar voltaram com tudo. Entre muitos obstáculos superados, os não-monos estão desafiando, de uma maneira muito particular (e, por isso, forte), a ideia convencional de casamento. Mas veja bem: isso não quer dizer necessariamente que estão desafiando o casamento em si. Não significa que estejam batendo de frente com a ideia do matrimônio como a conhecemos. 

Ao invés de se postarem como verdadeiras ameaças à instituição matrimonial, têm um arcabouço argumentativo para fazer com que os relacionamentos não-monogâmicos emerjam, na realidade, como uma possível salvação de uma instituição que vem perdendo popularidade há décadas. Não é mais apenas sobre “trocar” de parceiros, sobre não deixar de explorar caminhos sexuais, sobre aproveitar os “bons anos” antes da decadência física. Talvez ela até se apoie nesses pontos em alguns casos, mas a não-monogamia presente é sobre incentivar relações mais profundas e duradouras, reinventando as leis antes impostas e oferecendo uma perspectiva mais flexível e, acima de tudo, emocionalmente mais sustentável.

Sob essa ótica, é curioso pensar como, ao chegarem a um consenso de que a monogamia não será o caminho de um relacionamento, pessoas possam chegar a um compromisso ainda mais forte entre si. Uma coisa não exclui a outra e o que quer que permita que pessoas se amem mais e melhor deve ser reconhecido e validado. Isso porque, no fim, o casamento em si não é o maior problema. O que dá uma má fama à instituição é, principalmente, todos aqueles preceitos que tomamos como naturais e incontornáveis. Regina Navarro Lins resume bem: “Eu só acredito que uma relação funcione bem quando houver respeito ao jeito do outro ser, se comportar, pensar. Quando houver liberdade de ir e vir, ter amigos em separado, programas independentes e não houver controle algum da vida do outro. A maioria dos casamentos nunca foi assim. As mulheres não podiam se separar, não trabalhavam, não tinham como se sustentar. Havia aquela ideia de casamento ‘até que a morte nos separe’. Também a morte chegava muito antes, agora a morte chega depois.” 

Difícil pensar na monogamia perdendo todo o seu viço. Isso talvez nunca ocorra, ainda que seja possível que ela se veja na defensiva em seu corner, porque suas ideias ainda correm nas veias dos corpos sociais. Mas os tempos pedem que ela se adapte o quanto antes, pelo bem de todos os envolvidos. E, ufa, quem sai ganhando é o amor. As pessoas podem optar por um relacionamento não-monogâmico por várias razões, da atração por múltiplos gêneros até um rechaço à limitação imposta pela norma cultural da monogamia. Mas, seja qual for a motivação, é uma possibilidade, e quanto mais possibilidades de amor tivermos, melhor. O que a sociedade parece nos dizer é: vamos lá, finalmente estamos preparados para o poliamor. Resta saber se estamos igualmente prontos para exercitar a sinceridade, a conversa franca, a transparência em nossos desejos e a ética nos nossos afetos.

Claro, um relacionamento aberto é feito de humanos e, sendo assim, não está isento de desafios — mas o preconceito não pode ser um deles.

O ano era 2012. Só agora percebo que já se passaram mais de 10 anos do momento em que conheci o professor Flávio dos Santos Gomes no Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Talvez soe estranho começar uma resenha assim em primeira pessoa, mas o livro que será comentado nas próximas linhas me atravessou dessa forma. Na primeira pessoa mesmo. Enquanto jovem estudante de licenciatura e bacharelado em História, a publicação, bem como a posterior orientação do professor Flávio Gomes, abriram um novo horizonte para mim: era possível reler minha própria cidade e meu próprio país a partir de uma lente que visibilizasse trajetórias negras. E é com essa lente que escrevo a resenha que segue.

Diferentemente das plantations estadunidenses, caracterizadas por grandes plantéis, agroexportação e feitores, grande parte do processo de escravidão no Brasil se deu em contexto urbano ou semiurbano. Milhares de escravos, tanto africanos quanto crioulos, entrelaçaram-se com marinheiros, caixeiros, comerciantes, viajantes e outros segmentos sociais do mundo transatlântico.

De 1570 até meados do século XIX, o Brasil recebeu entre 38% e 43% de todos os africanos traficados para as Américas, estimando-se esse total em aproximadamente dez milhões. Esses indivíduos desempenharam papéis cruciais nas zonas rurais, contribuindo para atividades como o cultivo de café, açúcar, algodão, tabaco, além da pecuária e da extração de ouro e diamantes. Paralelamente, moldaram diversas instituições relacionadas a tradições, família, culinária, música e cultura material em geral. Também formaram quilombos e nos contextos urbanos deram origem às irmandades.

O livro Cidades Negras, de Juliana Barreto Farias, Flávio dos Santos Gomes, Carlos Eugênio Líbano e Carlos Eduardo Moreira de Araújo, destaca algumas das instituições forjadas pelas populações negras nos contextos urbanos. Africanos e seus descendentes emergiram como figuras importantes nos universos do trabalho e da cultura urbana durante o século XIX, inventando territórios urbanos e diásporas, redefinindo identidades e sentidos de existência.

A publicação foi escrita a quatro mãos. Juliana Barreto Farias atua como editora-assistente na revista Nossa História e obteve o título de mestre em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Flávio dos Santos Gomes é professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Carlos Eugênio Líbano Soares desempenha a função de professor na Universidade Federal da Bahia. Carlos Eduardo Moreira de Araújo é mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutor em História Social do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas.

Os autores destacam que antes mesmo de vários países se constituírem enquanto Estados nacionais, em suas terras já havia territórios negros. Na primeira metade do século XIX, O Rio de Janeiro se destaca nesse sentido, sendo a maior cidade escravista das Américas. Em 1821 escravizados representavam 45.6% da população das freguesias urbanas do Rio. Observando a freguesia da Sé na cidade de São Paulo, 20% da população era composta por escravizados. Em freguesia homônima no Pará, a população cativa somava 51,8%. 

Ainda em período próximo, em 1872 em Curitiba, 33% da população livre era formada por pardos, pretos e caboclos (termo usado à época para se referir à população indígena). Já na província do Ceará, escravizados eram 35%. No Espírito Santo, pretos e pardos (livres, libertos ou escravizados) formavam um contingente de 74% da população. Assim, podemos elencar algumas importantes cidades negras no contexto de escravidão brasileira: Rio de Janeiro, Salvador, Recife, São Luís e Porto Alegre.

Com relação à origem, na região do Rio de Janeiro destacam-se os negros de origem angola, cabinda, cassange, benguela e congo, chegando a cerca de 80%. Em São Luís há destaque para os cabinda, moçambique, angola e mina. Já em Salvador destaca-se o perfil ocidental, com origem nagô, jeje e hauçá. 

Porém, a virada de chave de Cidades Negras se dá justamente em apresentar de início ao leitor uma série de dados e análises demográficas — que sem dúvida corroboram com a tese de que vivemos em um território negro enquanto país — e finalmente discutir que o conceito que dá nome ao livro vai muito além de dados. As cidades apontadas são negras não só por historicamente ter uma população de maioria africana ou afro-brasileira. Falamos de cidades negras porque estas populações inventaram e reinventaram identidades. 

As identidades se tornam questão importante no debate. O conceito de identidade é complexo. Segundo o sociólogo Stuart Hall, em A identidade cultural na pós-modernidade:

A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu” (veja Hall, 1990). A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar — ao menos temporariamente.

O caráter mutável e até mesmo contraditório das identidades apresentado por Hall dialoga com o que lemos em Cidades Negras:

Africanos e crioulos não eram necessariamente uma multidão ou massa escrava nos centros urbanos. Os recém-chegados produziam identidades diversas, articulando as denominações do tráfico, aquelas senhoriais e a sua própria reinvenção em determinados cenários. Ser um africano mina em Salvador não era o mesmo que no Rio de Janeiro. Os próprios minas do século XVIII no Rio de Janeiro eram outros daqueles do século XIX.

Assim, os tempos, espaços, redes de contato e de sociabilidade, bem como objetivos e articulações, foram essenciais para forjar diferentes identidades entre negros escravizados, livres e libertos que formavam as cidades negras no contexto escravocrata.

Os autores discutem também aspectos que interferiram diretamente nos fluxos de vida e de morte dessas populações. Os portos foram considerados “laboratórios de enfermidades” e de práticas de cura, a partir do intenso vai e vem de embarcações abarrotadas de pessoas em condições sub-humanas. A principal doença que acometia os trabalhadores escravizados era a tuberculose, seguida de disenteria, varíola, tétano e malária. Até metade do século XIX as forças do escravizado eram levadas ao seu limite, uma vez que era razoavelmente fácil realizar a substituição desta mão de obra em caso de morte. A partir de 1850, com a proibição do comércio negreiro o trabalhador escravizado fica mais caro, culminando em alguns cuidados maiores por parte dos senhores. Não por humanidade. Mas pela diminuição da oferta. Este quadro era semelhante em diferentes “cidades negras”.

As fugas também são analisadas, não como movimentação heroica de poucos, mas sim como atos políticos e organizados:

Nas cidades, as ações de fuga estavam inseridas na experiência cotidiana dos cativos. Revelavam tanto mecanismos de protesto como a constituição de comunidades e culturas na diáspora. Nesse processo, desvendam-se lógicas dos cativos e universos sociais das cidades negras (cotidiano, relações de trabalho, controle social, etc.).

No contexto de organização social e política, nos documentos de fuga e busca de escravizados, são encontrados relatos de africanos e crioulos com certo grau de profissionalização. Carpinteiros, barqueiros, sapateiros, alfaiates… Estas ocupações contribuíam para que esses indivíduos conseguissem reconstruir suas vidas após a fuga. Os fugitivos encontravam nos quilombos — rurais ou nas periferias urbanas — um destino frequente, de diferentes tamanhos e formas, especialmente nas proximidades das principais capitais coloniais. Exemplos são o Quilombo de Laranjeiras, localizado próximo à Corte, e o Quilombo do Urubu, situado na freguesia do Cabula, nos arredores da Cidade da Bahia (atual cidade de Salvador).

Ainda no sentido de reconhecer a agência dos negros, cabe destacar o papel dos marinheiros nos processos de fuga e ressignificação. Sua posição, podemos dizer “privilegiada” ao estarem em navios, facilitava a comunicação e percepção de políticas. Era nos portos, conveses e navios que as informações de África, Américas e Europa se encontravam e de certa forma ajudavam a alimentar redes de solidariedade entre negros.

Para concluir, cabe destacar a capoeira como fenômeno de resistência e agência, podendo ser interpretada como um dos maiores exemplos da reinvenção cultural urbana na diáspora brasileira. A participação dos capoeiras na Guerra do Paraguai contribuiu com o reconhecimento desse grupo social como grandes “lutadores de rua”. Em Cidades Negras percebemos que a capoeira passou por transformações, transitando da expressão africana para a crioula durante o século XIX, à medida que o número de africanos desembarcados diminuía. Podemos perceber um movimento de crioulização — ou, nas palavras de hoje, brasileirização — da capoeira, articulada em maltas, algumas de grande notoriedade nas cidades negras.

Assim, o livro Cidades Negras: africanos, crioulos e espaços urbanos no Brasil escravista do século XIX defende brilhantemente a tese de que as principais capitais do Brasil colonial podem ser consideradas territórios negros. E não há como não concordar. Uma análise crítica e sensibilizada pelas políticas públicas do Brasil contemporâneo reforça a percepção de que escravizados criaram diversos mecanismos cotidianos para resistir e mitigar os impactos da escravidão, bem como para criar e recriar identidades e subjetividades nas cidades negras por todo o Brasil.

A MPB, sigla para Música Popular Brasileira, sempre foi um lugar de disputas, discussões e teorizações, talvez sem nunca ter se chegado a uma unanimidade sobre uma definição final referente a sua forma e conteúdo. Seria um movimento, uma categorização musical ou uma época de produção cultural? Seria uma fase pós-bossa nova que abrangeria uma miríade de gêneros e estilos? Estaria ligada a uma suposta “modernização” da música brasileira e, assim, mais próxima do que se consideraria como “sofisticado”, “criativo”, “inteligente”? Ou uma representante, digamos, mais emblemática do que seria uma “brasilidade”, frente ao medo dos estrangeirismos dos mais nacionalistas? Poderia nos levar também a uma época de canções de protesto à Ditadura? 

Se você respondeu “sim” para algumas dessas perguntas, saiba que todas essas possibilidades já foram levantadas e discutidas por diverso(a)s autore(a)s, sendo algumas delas mais constantes que outras. E o objetivo desta reflexão não será responder a essas questões, mas pensar onde estaria o denominador “negro” dentro deste termo guarda-chuva que se tornou a MPB. Afinal, isso se torna uma questão urgente diante da afirmação do maestro Letieres Leite sobre toda a música das Américas, de caráter popular, advir de uma base africana (afirmação concedida ao jornalista GG Albuquerque, para o site Volume Morto) e de influenciar em toda uma produção transnacional de música pop e/ou popular no mundo, mesmo que não seja feita por negros. 

Porém aqui ainda vigora o racismo de ora inferiorizar o contributo negro à formação da cultura brasileira, ora de tentar apagá-lo. Que, por mais violentos que sejam esses movimentos e todas as consequências drásticas que recaem sobre a população negra, não passam de uma atitude desesperada da branquitude de querer se enxergar enquanto europeia e subtrair o nosso inegável prefixo afro. 

Da ideia colonialista da superioridade europeia, passando pela eugenia, à democracia racial dada pela mestiçagem e ao encontro das três raças, temos mitos fundadores ainda arraigados no imaginário social brasileiro, implicando diretamente no apagamento das contribuições afro-indígenas, pois servem, até hoje, para a manutenção dos privilégios da branquitude. De forma sempre perspicaz, nossa ancestral Lélia Gonzalez, assim como outro(a)s antes dela, abriram nossos olhos para o que estava em jogo: não deveríamos reivindicar o nome América para nós deste lado do Atlântico, mas sim Améfrica. A amefricanidade que nos constitui teria sido dada pelo movimento maciço de chegada de africanos às bandas de cá, que nos formaram através de seus valores civilizatórios e costuraram nossas espiritualidades e culinária; nosso jeito de andar, dançar e gingar, o uso do corpo; as línguas que subverteram a do colonizador e criaram o pretuguês; as formas de existência e resistência através dos quilombos; nada, porém, inventado, mas nos ensinado pelos povos Congo-Angola, iorubá e ewe-fon. 

Em sua teorização, Gonzalez nota mais semelhanças do que diferenças nos países em que visitou em todas as Améfricas, seja a do Norte, a Central ou a do Sul, reforçando sua tese de interligação entre as afrodiásporas a partir do inegável legado africano. Tendo lançado esse texto em 1988, é interessante notar como a mesma continua a confirmar suas hipóteses em momentos posteriores, como fica evidente em seus dois textos sobre a viagem à Martinica em 1991. Mas, voltando à categoria político-cultural da amefricanidade, Lélia atesta: 

Similaridades ainda mais evidentes são constatáveis se o nosso olhar se volta para as músicas, as danças, os sistemas de crenças etc. Desnecessário dizer o quanto tudo isso é encoberto pelo véu ideológico do branqueamento, é recalcado por classificações eurocêntricas do tipo “cultura popular”, “folclore nacional” etc. que minimizam a importância da contribuição negra.

Estamos chegando a um ponto crucial do argumento, que é articulado por Lélia quando destaca que muitos dos nossos saberes e tecnologias são enquadrados enquanto cultura popular e folclore. Percebemos, então, que as criações afro-indígenas são destituídas desses prefixos, sendo estas liquidificadas em termos genéricos para serem deglutidas com mais facilidade pelas classes brancas hegemônicas. O movimento é de apagamento para sua aceitação, desde que reconheçam seu devido lugar, numa posição de subalternidade em relação às referências eurocentradas. 

Talvez, desde que se começou a discutir o que seria de fato uma cultura brasileira, a partir de sua independência, e voltando para a discussão sobre a música popular, de caráter urbano, provavelmente o lundu e o maxixe, ancestrais do que hoje chamamos samba, tenham sido os primeiros gêneros musicais a pautarem esse debate. No brilhante livro Do Samba ao Funk do Jorjão, nosso mais velho, Spirito Santo, mostra com detalhes a origem indubitavelmente africana de nosso gênero mais popular e definidor e, mais especificamente, oriunda diretamente dos povos do arco linguístico bantu, genericamente identificados como Congo-Angola. A própria palavra samba já era utilizada e, através de escritos da época e mais contemporâneos, semelhanças entre lundu, coco, jongo, calango, entre outros, são mapeadas e comprovam a origem africana, em regiões diferentes do país, da “nossa” música popular. 

Daí voltamos para a questão inicial, a Música Popular Brasileira. Apesar das eternas disputas em relação ao termo, e sua consequente indefinição para os moldes acadêmicos, sabemos que o mesmo carrega, no imaginário popular, uma identificação de cultura local, reivindicando a ideia de uma certa brasilidade; assim como generalizações em torno de uma qualificação positiva de sofisticação e “bom gosto”, não tão generalistas assim, quando observamos como a mesma foi defendida pelas instâncias legitimadoras das classes mais abastadas e sua crítica cultural. E não poderíamos deixar de mencionar a bossa nova como ponto nevrálgico desses caminhos que levarão à MPB. 

Mas antes lembremos que o samba, aqui enquanto amalgamador de variadas expressões sonoras africanas em território local, apesar de sempre vilipendiado, perseguido e negado, mostrou-se como força imparável, mesmo diante do racismo brasileiro. Sendo inegável e irresistível, foi roubado e descaracterizado pelos cantores brancos famosos da Era do Rádio, mas, mesmo assim, prosperou. Assim sendo, foi até escolhido como fator de ligação nacional, na Era Vargas, que tentou unificar um país de tamanho continental e extremamente diverso, através desta sonoridade irrefutavelmente africana. Sem dúvidas, o samba teve que fazer concessões, e perdas significativas devem ter ocorrido nesse processo, além do embranquecimento, de aceitação e transformação em sinônimo de representação nacional. 

Observemos como a bossa nova, apesar de discursivamente defender o samba em falas publicadas pelas mídias nacionais, sempre teve uma visão extremamente racista sobre o samba e toda a música preta feita no Brasil. Além da já propagada definição de ser uma música branca de apartamento do Leblon, que muito lhe convém, diga-se de passagem, seu “maior maestro” afirmou isso de forma inquestionável numa entrevista resgata por, novamente, Spirito Santo. Tom Jobim fala para Gene Lees na Hifi/Stereo Review de 1963: 

O samba autêntico negro do Brasil é muito primitivo. Eles usam talvez dez instrumentos de percussão e quatro ou cinco cantores. Eles gritam e a música é efusiva e exuberante demais. Mas a Bossa Nova é leve e contida. Conta uma história, tentando ser simples, grave e lírica. […] Você pode chamar bossa nova de um samba limpo, lavado, sem perda do clima. (Do Samba ao Funk do Jorjão, Spirito Santo, 2016, p. 249).

Primeiramente nos salta aos olhos a fala extremamente racista, aos moldes de relatos de colonizadores ao se deparar com a música em solo africano ou até mesmo a “música de negros” aqui feita, mesmo estando em pleno século XX. Para Jobim, o samba é primitivo, gritado, exagerado, pesado, grotesco, sujo: visto por brancos que usaram dois gêneros negros para “criar” algo novo. As aspas estão muito bem colocadas, já que, como se falou, o samba sempre apresentou fusões com as mais variadas sonoridades da Améfrica e, de forma muito pontual, essa revolução de juntar jazz e samba já estava presente, pelo menos, desde a década de 1920, através dos Oito Batutas, grupo seminal para a música brasileira, que fora formado por, entre outros, Pixinguinha e Donga, esses sim, Maestros maiúsculos da música brasileira. 

O recalque da branquitude, em seu racismo por denegação (Gonzalez, 1988) produz “pérolas” que seriam quase inexplicáveis, quando em 1960, outro branco canonizado da MPB, autodenominou-se “capitão do mato” e o “branco mais preto do Brasil” na mesma canção: estamos falando de Samba da Bênção, de Vinicius de Moraes. Ele usa o execrável labor do capitão do mato, que perseguia escravizados fugitivos, para se definir, ao mesmo tempo que reivindica o título de branco de alma negra, aqueles que querem o bônus da nossa cultura, mas não o ônus de ser negro no Brasil. Como disse nossa outra ancestral, Beatriz Nascimento, em Por uma história do homem negro (1974), não podemos aceitar essa frase se queremos superar complexos, frustrações e escrever nossa própria história. Então, como disse um dos nossos maiores compositores de todos os tempos, Mano Brown, é “Muita treta pra Vinicius de Moraes”.

Outro frequentemente esquecido na lista dos maiores, mas tão grandioso quanto os anteriores, foi Moacir Santos, que, na mesma época do mito de origem do gênero, já unia jazz e samba com orquestrações da mais alta complexidade. Quem também foi pioneiro, e também preto, e também quase esquecido, foi o pianista Johnny Alf, que já criava algo do que viria depois a ser chamado de bossa, e que não era tão nova assim. Onde estava Alaíde Costa, mulher preta que ajudou a alavancar o gênero com sua voz profunda e marcante? Quem ainda fala da belíssima voz de Jair Rodrigues e da “bossa negra” de Elza Soares? Há inúmeros outros exemplos de experimentações afrossônicas nas bandas de cá, assim como de diferentes estilos de samba, nos lembra Spirito Santo, como os de Ataulfo Alves, Cartola, Heitor dos Prazeres, Ciro Monteiro e Geraldo Pereira, mostrando complexidade, assim como lirismo e “tranquilidade”.

A bossa nova é canônica na música popular brasileira, e a ela é atribuída a “modernização” desta linguagem, assim como sua sofisticação, a internacionalização e respeito à nossa música no estrangeiro, entre outras coisas. E também se lhe concede o título de geradora de outras musicalidades de igual prestígio, como o que veio a ser chamada de MPB. A partir da bossa e somente a partir dela, pôde-se gerar outros artistas que dividiriam os louros de estarem no topo desse lugar de prestígio, importância e legitimação. Poderíamos até discutir muitos nomes e sem dúvidas encontraríamos pretos e pretas nesse rol de importância, mas os primeiros que estão na boca da maioria, seriam Chico Buarque e Caetano Veloso. Gilberto Gil, Jorge Ben, Milton Nascimento, Luiz Melodia, Itamar Assumpção, Jards Macalé, Marku Ribas: uma lista heterogênea, de estilos e épocas diferentes, porém de grande importância. Uns mais populares que outros, alguns com mais aceitação de público e crítica, mas, reflitamos: algum desses nomes realmente foi tratado e alçado ao patamar dos artistas brancos já citados de forma equânime e com a devida profundidade de análise que mereciam? 

A MPB, como toda música brasileira, vai partir de uma base africana para se desenvolver, mesmo com todo o embranquecimento aplicado por parte de alguns artistas, e vai seguir o rumo de uma sociedade racista para sua aceitação e legitimação. O popular aqui é elevado a outro nível, para além de “cultura popular” — que estaria mais ligado ao “folclore” —, e propõe antes uma diferenciação com a referência do erudito, e reconhece em parte suas origens, mas de forma totalmente genérica e não afroreferenciada. Denominação que também, para existir enquanto “brasileira”, repete o mesmo processo, pois vai investir muito mais numa ideia capenga de nacionalidade, sustentada pelo mito do encontro das três raças e da consequente democracia racial. Precisaríamos então de toda uma revisão de nossa historiografia a partir de África, já em curso, mas ainda insuficiente, para projetarmos futuros possíveis através da nossa ancestralidade preta e assim pormos no altar aqueles que devidamente o merecem, assim como tantos que foram esquecidos. Pois o futuro é ancestral.

A educação, não raramente, é definida como a base de tudo. Nos últimos pleitos eleitorais, por exemplo, ela apareceu nos discursos políticos com força total. Os candidatos faziam um alerta sobre sua importância na formação das nossas crianças. Falar sobre educação, portanto, um assunto tão valioso, é uma tarefa muito gratificante, mas que impõe uma busca contínua pela prudência e humildade. É neste espírito que tento iniciar o presente texto, expondo que estou mais próximo de ser um pensador que um educador. Entretanto, como peixe no mar sempre estive cercado por um oceano de excepcionais educadores, desde minha mãe aos três anos de idade até os mestres e doutores que me orientaram e me orientam hoje no mundo acadêmico.

Cada educador que fez parte da minha história de vida foi mais que um professor, eles foram, são e sempre serão parte viva do meu caráter, por isso penso que educar é, sobretudo, subjetivar. Tornei-me quem sou aprendendo a me adequar ou rejeitar certos discursos sobre mim, aprendi a me adaptar ou não a certos ambientes e grupos de pessoas, tudo que sei sobre mim foi aprendido, fui educado para ser quem sou. Apesar de sermos sujeitos no discurso do outro muito antes de nascer, quando nascemos não carregamos nenhuma verdade ou pensamento sobre quem somos ou seremos, vamos aprendendo pelo caminho a construir nossa identidade. O que quero dizer é que não nascemos sujeitos, aprendemos a ser, e é nesse ponto que reside a importância e a emergência da educação.

Educar, podemos dizer, é estabelecer uma relação entre ser e verdade, o sujeito e o conhecimento. Michel Foucault, inclusive, em um curso ministrado no Collège de France entre 1980 e 1981, descreve como ocorre essa conexão intrínseca entre subjetividade (ser) e verdade (conhecimento). Segundo o filósofo francês, a partir do pensamento moderno: não há verdade sem sujeito, ou seja, toda verdade necessita da enunciação de um sujeito, porém, como o sujeito singular poderia ser capaz de chegar à verdade (um descritor universal da realidade)? Evidentemente, o hercúleo trabalho dos pensadores modernos foi estabelecer um método para a aquisição da verdade. Deste ponto, o sujeito deve deixar sua singularidade, suas sensações, suas percepções, suas ideias etc. e assumir um método de obtenção da verdade que impõe ao sujeito uma condição universal.

Nesse curso ministrado no Collège de France, Michel Foucault aponta que a verdade é concebida e transmitida como um sistema de regras. Educar pode tornar-se, portanto, um lugar de representação e reprodução de verdades preestabelecidas sobre os sujeitos e o mundo em que eles estão, sem que haja espaço para qualquer transgressão do pensamento. Com bell hooks, entretanto, em sua obra Ensinando a transgredir, aprendemos que a educação pode ser uma prática de liberdade. Educar deve ser um ato contínuo de transgressão e libertação desses sistemas de regras que contam a história do ponto de vista daqueles que impuseram à alteridade os grilhões, aos outros, ferrolhos e ao diferente, o decesso.

A doutrinação primeira em nossas escolas é antiga e colonizadora, pois ensina uma realidade espaço-temporal quebradiça, desconectada entre si e separada do senso de responsabilidade bioética que a vida nos exige. Tratamos o passado como se ele fosse inativo, uma história a ser contada sem implicações e responsabilização. Ensinam-nos a ver o passado como algo que se foi e só é acessível a nossa existência pela via da memória, como se não possuísse influência e efeito sobre o hoje. O futuro, por sua vez, é levado como se não fosse responsabilidade nossa, no presente tempo — como lembra Krenak, vivemos como se o amanhã fosse negociável pelo agora. Essa concepção temporal, ensina Cida Bento, em O pacto da branquitude, é transmitida de geração em geração através de estruturas institucionais diversas que regimentam e uniformizam processos, instrumentos, valores e perfis sociais, que limitam a mudança e a transgressão dos pactos sociais já estabelecidos e que buscam sempre a manutenção, majoritariamente, do poder branco masculino heteronormativo. A isso ela chama de “branquitude”, um fenômeno capaz de subjetivar (educar) consciente e inconscientemente.

A subjetividade como efeito educacional precisa ser produzida e localizada fora dessa temporalidade colonial, e, nesse sentido, uma experiência de entrelaçamento com a ancestralidade é fundamental. A ancestralidade não está conectada num espaço-tempo vazio de vida e cheio de informações e decodificações, isto é, em um cogito com suas regras lógicas ao que a educação tende a se limitar algumas vezes, mas ela também não é atemporal, antes está fixada na biotemporalidade, no tempo da vida, da relação com o semelhante e o diferente.

Para bell hooks, o trabalho do educador não é simplesmente passar uma informação, mas “participar ativamente no crescimento intelectual e espiritual dos alunos”. O que quero dizer é que a educação pode acontecer em dois tempos-espaços diferentes: ou no fundo de uma caverna a ver sombras para se supor algo; ou na vila inteira que se mobiliza para educar uma única criança a fim de garantir que ela floresça em suas potencialidades, caráter e cognição. A libertação que bell hooks parece propor é a de uma educação que sai da caverna (uma boa representação da sala de aula) e mobiliza uma vila (boa representação da vida) para educar. Educação não é uma responsabilidade restrita aos profissionais da educação, mas sua função, me parece, é tornar todos nós educadores.

Em seu livro A terra dá, a terra quer, Antônio Bispo ensina que precisamos aprender a semear palavras como forma de produzir novas denominações a certos fenômenos, como forma contracolonial. Essas denominações são o que a academia gosta de chamar de “conceitos”, afirma o autor, e atualmente vivemos uma guerra de denominações ao educar na espaço-temporalidade diaspórica do Brasil. As mentiras dispensadas, particularmente, à educação e à cultura do país nos últimos anos, remontam ao regime de tempos estranhos em que censura e perseguição eram o modus operandi na república. A educação, por exemplo, segue sob a acusação de alienar alunos e doutrinar sujeitos, porém, nessa guerra de denominações sobre a educação, a palavra que devemos valorizar é a confluência (no lugar de coincidência). Educar é confluir! Proposta por Antônio Bispo, essa palavra sinaliza a partilha, o estado de trocas vivas que funciona como uma energia que nos move. A educação é o que nos leva ao encontro do outro e não à submissão do outro. É se permitir ser atravessado pela diferença e se encruzilhar com a alteridade, isso é fundamental para a construção de um modelo comunitário, ou na denominação ocidental, um modelo civilizatório.

Encontramos na ancestralidade a biotemporalidade, que nos conecta à vida em sua continuidade, nela o passado, o presente e o futuro são entidades viventes e não uma realidade partida e diagramática. Estão em nós as vidas passadas e as vidas futuras, quer em latência, quer em manifestação. Somos a extensão das vidas passadas, a perpetuação genética e epistêmica dos ancestrais que fizeram dos seus corpos saberes e dos saberes sopro de vida. Somos ainda o elo de vida para os recém-nascidos, os nascituros e não nascidos, atalaias do amanhã que se faz hoje! Na biotemporalidade: os rios, as matas, as plantas, a terra, os animais, os mitos, as músicas etc. constituem a ancestralidade.

Para não parecer algo abstrato, penso que um bom exemplo de manifestação da ancestralidade é o samba. No seu livro Samba, o dono do corpo, Muniz Sodré afirma que “todo som que o indivíduo humano emite reafirma a sua condição de ser singular, todo ritmo a que ele adere leva-o a reviver um saber coletivo sobre o tempo (…)”. O samba, premência dos pretos e pretas nos séculos passados, é um resgate da singularidade, da coletividade e do tempo. Quando digo que o samba foi uma urgência, refiro-me a uma urgência educacional frente à repressão cultural e religiosa afro-brasileira. Não é por coincidência, mas por confluência que as escolas pretas no Brasil surgiram como “Escolas de Samba”. Há no samba e sua história todos os componentes que temos pensado até aqui. A educação contracolonizadora, portanto, que faz do futuro um fenômeno ancestral encontra no samba sua maior inspiração.

O samba é esse dispositivo para diálogos futuros entre educação e ancestralidade. Ao ouvir um samba é preciso se permitir sentir a ancestralidade. A ancestralidade não está na temporalidade metafísica. Ancestralidade é aqui, é agora, mas foi ontem e será amanhã. Assim também é o samba. Samba é o ontem, é o amanhã e é o agora. No ritmo do partido-alto, nas críticas sociais do samba-enredo, nos afetos do samba-canção ou na coletividade do samba de roda é possível ouvir ao fundo a voz ancestral nos guiando à sabedoria do bem viver. No samba, a ancestralidade ensina a aprender.

No samba Produto do morro, Bezerra da Silva já falava “Sou produto do morro/ Por isso do morro não fujo e nem corro/ No morro eu aprendi a ser gente/ Nunca fui valente e sim conceituado”, mais à frente ele diz: “Embarquei no asfalto da cruel sociedade/ Que esconde mil valores que no morro tem/ Tenho pouco estudo, não fiz faculdade/ E atestado de burro não assino também”. Nossos ancestrais, muitos deles não fizeram faculdade, por isso habita neles um saber que escapa aos redutos acadêmicos e é bem traduzido por bell hooks, que denuncia uma formação educacional bancária que prepara o aluno para consumir a informação do professor, memorizá-la e armazená-la. Uma educação que prepara para o mercado de trabalho (ou econômico) está fadada não a educar, mas a produzir uma sociedade que é um produto valorizado economicamente e não humanamente.

Os que estão fora dessa educação bancária ficam à margem da sociedade, são reservados para os subempregos, a criminalização, a violência estatal, lidos como um perigo para o sistema de regras. Foi assim com Bezerra da Silva, que chegou a viver em condição de rua pela cidade do Rio, mas como ele mesmo cantou e canta até hoje: “E se não fosse o samba/ Quem sabe hoje em dia eu seria do bicho?/ Não deixou a elite me fazer marginal/ E também em seguida me jogar no lixo.”. Se reservaram a Bezerra o lugar do bicho (da clandestinidade e da própria desumanização), ele encontrou no samba o conhecimento transgressor que muda vidas e transforma pessoas e está localizado na biotemporalidade (tempo da vida). É, da rua à história viva e à ancestralidade eterna, Bezerra da Silva é um filósofo que deveria ser ensinado nas escolas, ouvido nas praças e incorporado com sua malandragem na vida.

Ancestralidade é assim, ela fala de forma popular. Diz uma linguagem que todos entendem, mas somente alguns podem ouvir e aprender. Sua sabedoria é para os que sentem antes de saber. A sabedoria do samba e o samba da ancestralidade são o remédio da alma. O mundo é duro, mas a vida é bela, parafraseando o samba: “Nós somos verso e somos reverso/ Somos partículas do universo/ Somos prazer, também somos dor/ Somos causa, somos efeito/ Somos torto e somos direito/ Enfim nós somos, o que somos ou aprendemos ser”.

 

A leitura dos trabalhos de Antônio Bispo dos Santos e Ailton Krenak nos convoca a refletir sobre a nossa relação com o meio ambiente, o espaço que a cultura ocidental nos ensinou a nomear como natureza. Esses pensadores nos mostram que apesar da diversidade de criaturas vivas no planeta e as possibilidades de outras interações com o espaço, somos direcionados a acreditar (no sistema de pensamento ocidental) que estamos apartados da natureza devido a uma crença de que somos superiores aos outros seres da terra por sermos humanos. Os povos pertencentes às comunidades tradicionais e que não se coadunam com esta lógica, como argumenta o intelectual indígena, Ailton Krenak, são vistos como sub-humanos.

Em seu livro, Ideias para adiar o fim do mundo, publicado em 2019 pela editora Companhia das Letras, o autor comenta que o processo de empreitada colonial tem nos colocado como princípio um único e equivocado projeto de sociedade no qual a humanidade vai sendo afastada da terra, das interações, e, sobretudo, da confluência com o ambiente. Para Krenak “a humanidade vai sendo deslocada de uma maneira tão absoluta desse organismo que é a terra. Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, Ásia ou na América Latina. São caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes — a sub-humanidade […] Parece que eles querem comer a terra, mamar na terra, dormir deitados sobre a terra, envoltos na terra. A organicidade dessa gente é uma coisa que incomoda, tanto que as corporações têm criado cada vez mais mecanismos para separar esses filhotes da terra de sua mãe.

Esse projeto político e econômico destacado por Krenak também é apontado pelo pensador negro e quilombola, Antônio Bispo dos Santos. Em seu livro Colonização, Quilombos: modos e significados, lançado pela editora UNB/INCTI em 2015, o autor aborda a ferocidade do Estado brasileiro em promover, ao longo da história, ataques às comunidades tradicionais. Nêgo Bispo (outra forma em que é conhecido), chama atenção para as inúmeras práticas de etnocídio cometidas pelo Estado brasileiro contra os Quilombos, os Retiros, os Mucambos entre outras terminologias usadas para caracterizar as comunidades contracolonizadoras. 

O autor explica que as comunidades contracolonizadoras podem ser descritas como as tentativas de organização de sociedade que resultaram da rebelião e processos de fuga dos africanos escravizados no período colonial e que por muitas vezes aconteciam em parceria com os povos originários (indígenas); bem como as iniciativas de organizações sociais negras e indígenas que ocorreram no período de pós-abolição. Como exemplo dessas comunidades com princípios e práticas contracoloniais, Nêgo Bispo menciona o povoado de Caldeirões, na cidade de Crato, interior do Ceará, em 1889. O povoado de Canudos, cidade de Canudos, na Bahia, no ano de 1874. O povoado de Pau de Colher, no município de Casa Nova, na Bahia, em 1930 e o Quilombo dos Palmares, em Alagoas por volta de 1695. 

Para Nêgo Bispo, os ataques do Estado brasileiro a essas organizações comunitárias revelam o incômodo da instituição com as populações que têm uma ligação com a terra e que carregam uma perspectiva de que “a terra era (e continua sendo) de uso comum e o que nela se produzia era utilizado em benefício de todas as pessoas, de acordo com as necessidades de cada um, só sendo permitida a acumulação em prol da coletividade, para abastecer os períodos de escassez, guerras ou festividades”. 

Além disso, podemos considerar a partir das reflexões de Ailton Krenak e de Nêgo Bispo que tais práticas de etnocídio cometidas pelo Brasil em relação às comunidades quilombolas, indígenas e tradicionais se relacionam às tentativas de extirpação de outros projetos de sociedades, de trajetórias de vidas, de racionalidades e de epistemologias que têm em comum a valorização do coletivo e não do indivíduo. Ou seja, é um combate a toda e qualquer narrativa que não prioriza o discurso homogêneo, o ego e, principalmente, a noção de propriedade privada. Pois se a terra é de todos e dela devemos retirar o suficiente para vivermos, sem desperdiçar e acumular para o lucro individual e para a exploração do trabalho o projeto econômico e político do capitalismo torna-se ineficaz. É preciso alimentar a sede pelo consumo, o estabelecimento de relações competitivas e a desvalorização e o não reconhecimento das epistemologias em que o sujeito só existe plenamente mediante a sua interação com a natureza e com o grupo étnico-cultural a que pertence. 

Por esse motivo, como pondera Ailton Krenak, as sociedades ocidentais vêm tentando, de todas as formas, acabar com a pluriversidade de narrativas oriundas das populações julgadas como sub-humanas. De acordo com Krenak, as diversas narrativas encontradas nestes grupos (geralmente racializados) não coadunam com a razão ocidental. O autor enfatiza a seguinte questão ao tratar das cosmovisões dos povos indígenas do Equador e da Colômbia: “Por que essas narrativas não nos entusiasmam? Por que elas vão sendo esquecidas e apagadas em favor de uma narrativa globalizante, superficial, que quer contar a mesma história para a gente?” (p. 19). 

A estratégia de combate do projeto colonial às formas de pensamento quilombola e indígena também aparece na obra de Antônio Bispo dos Santos. O pensador menciona o processo de transmissão de pensamentos genuinamente ecológicos das comunidades quilombolas. Em diversas passagens do seu trabalho, Nêgo Bispo nos presenteia com valores comunitários que aprendeu com seus mais velhos. Um desses momentos é o relato em torno da prática da pesca em sua comunidade, como ela é aprendida de maneira coletiva e de forma que não agrida o ecossistema. Nêgo Bispo expõe: 

Ainda garoto, comecei a participar das pescarias. Um grupo acampava na margem do rio e escolhia o poço onde todos pescariam. Alguns remendavam tarrafas, outros cortavam palhas para tapagens, outros retiravam balseiros de dentro d’água, outros distribuíam cachaça, bolos e tira-gosto ou faziam café. Tudo isso coordenado pelos mais velhos […] Independentemente da atividade desempenhada por cada um, no final todas as pessoas levavam peixes para casa. A medida era o que desse para cada família comer até a próxima pescaria. Seguindo a orientação das mestras e dos mestres, ninguém podia pescar para acumular, pois o melhor lugar de guardar os peixes são os rios, onde eles continuam crescendo e se reproduzindo.”

Uma breve análise do relato de Nêgo Bispo apresenta práticas ecológicas em relação aos recursos naturais, integração de todos os membros da comunidade na atividade da pesca e ênfase em um tipo de pensamento matemático no qual a quantidade para cada família é medida de acordo com sua necessidade e não pela adoção de métricas e regras de acúmulos capitalistas absurdas. Um tipo de socialização que desafia a razão do capital e que, por esse motivo, segue sendo pressionada, perseguida e combatida pelo Estado brasileiro.

Inevitavelmente, ao ler as obras desses autores, sou levada a recordações da minha trajetória de vida, instigada a pensar nos valores comunitários e nos aprendizados sobre a ocupação do território que aprendi com minha família e que atravessaram todo o meu processo de socialização infantil, juvenil e da fase adulta. Eu, uma mulher negra, de terreiro e moradora da periferia do Rio de Janeiro, aprendi desde muito cedo com minha mãe e avó materna a conceber a terra como lugar de morada, de plantio e de forças sagradas. 

Cresci em um quintal onde moravam minha avó materna, dona Maria das Neves, e seus cincos filhos com suas famílias. Uma ocupação do espaço onde a casa da minha avó ficava ao centro do quintal, e as dos outros familiares, inclusive a minha, ao redor. Foi neste espaço que aprendi a cultivar hortas, colher frutas em pés de goiabeira, jaca, cajá, manga, acerola, araçá, jamelão, graviola e amora, evitar cortar árvores sem necessidade, e respeitar a temporalidade do solo diversificando o cultivo dos alimentos em espaços diferentes para não “cansar a terra”.

Testemunhei por diversas vezes a vida se fazer presente no nascimento de porcos, frangos, gambás, ratos, pássaros, cães e gatos. Nos meses de julho e de dezembro, participava como espectadora do processo de imolação dos porcos que tínhamos criado. Nesse processo participavam alguns homens da minha família e profissionais de açougues do bairro. Esse momento era muito cobiçado no local e muitos moradores iam até nosso quintal assistir e buscar o seu prometido pedaço de carne do porco, afinal eles haviam contribuido no processo de alimentação dos suínos juntando lavagem (resto de cascas e sementes de legumes) ao longo do ano. Vi e aprendi com minha avó materna, mãe e tias como se imolavam galinhas para fazer o famoso frango à molho pardo. Andei descalça, tomei banho com água de poço, brinquei com lama e senti meu corpo voar no balanço improvisado na mangueira em frente a minha casa.

Em diversas ocasiões, vi minha avó materna cercar o quintal com elementos da natureza considerados sagrados para as religiões de matrizes africanas. Todo esse contexto de devoção e aproximação a modos de lidar com a terra me permitem dizer, evidentemente apoiada nas literaturas tratadas acima, que nada é mais avassalador do que o processo de alienação e distanciamento da natureza a que estamos sendo levados. Ficamos aterrorizados com a sinuosidade e força das águas e com o tempo da terra. Compramos nossos alimentos em mercados, esquecemos que as carnes expostas ali um dia eram criaturas vivas e julgamos a imolação das religiões de matrizes africanas. Alimentamo-nos de comidas e bebidas que podem nos adoecer devido às substâncias que lhes são adicionadas. Desaprendemos a ouvir o barulho dos pássaros, do galo e do vento nas árvores. Queixamo-nos do calor, mas não suportamos o solo sem asfalto, sem estar sobrecarregado de cimento e dos projetos urbanos.

Assim, não percebemos a eliminação de tecnologias ancestrais. De repente, temos a substituição das erveiras pelas terapeutas de florais. Não sabemos mais reconhecer um pé de goiabeira e um pé de araçá. Acreditamos piamente que nossas casas de cimento são melhores que casas de barro e de palha das comunidades tradicionais. Nunca questionamos qual casa é mais fresca, qual casa cheira e tem a energia de nossas mãos. Acostumamo-nos com o cenário de terror e de fim de mundo proposto pela razão ocidental. Por esses motivos, é tão pertinente nos cercamos de reflexões de autores quilombolas, indígenas, de religiões de matrizes africanas para que possamos perceber o que temos perdido e como não sabemos mais identificar o cheiro do tempo quando vai chover, raiar um profundo sol ou quando haverá um dia equilibrado de frescor.

O tema da 35ª Bienal de São Paulo, Coreografias do Impossível, cintila entre a provocação e a esperança. Provocativo porque evoca o que não pode ser, como uma lembrança das realidades que não têm o espaço para de fato se fazerem reais e acolhidas; esperançoso porque, ao evocar e reconhecer essas realidades, estuda com cuidado os passos de seu bailado invisível, tornando-as palpáveis — ou, ao menos, imagináveis. O evento é uma celebração da diversidade e da representatividade, ampliando o diálogo sobre questões fundamentais que vêm ganhando atenção, embora remontem a épocas passadas, que ainda estão longe de, efetivamente, passar.

Nas entranhas desse cenário, a mineira Luana Vitra desponta como uma voz capaz de tecer uma narrativa que domina o seu espaço geográfico e conceitual. Oriunda das tradições mineiras, seu trabalho é testemunha das histórias orais que ecoam os traumas indeléveis do passado escravista de onde sua família enraíza memórias.

Mas, antes de começar a me estender sobre Luana e sua instalação, Pulmão da mina, é importante citar o projeto espacial e expográfico desta 35ª edição, desenvolvido pelo escritório de arquitetura Vão. Para alcançar um fluxo de movimento na relação entre obras e pessoas, o grupo fez com que o vão central fosse inteiramente fechado pela primeira vez na história. A proposta nasce do desejo de não impor uma nova coreografia àquele espaço que já sediou tanto. Se pensarmos que nada é mais real do que o impossível, a ideia de jogar com o que ali já existia é bastante apropriada. É a inovação por meio da continuação. Mover-se com fluidez por entre as narrativas que desafiam as inviabilidades do nosso e de todos os tempos propicia uma imersão real — e tudo isso, em especial o diálogo com o espaço e o acúmulo de épocas, é importante demais para que Pulmão da mina fique ainda mais gravado na retina de quem o vê e na massa cinzenta de quem o pensa.

A instalação nos transporta aos séculos de economias extrativistas, marcadas por degradação ambiental e opressão. Nascida em Contagem, Minas Gerais, Luana leva à Bienal uma obra que dialoga com a sua terra e a sua história particular. A população escravizada que trabalhava nas minas do Brasil entre os séculos XVII e XIX enfrentava condições desafiadoras e degradantes: as jornadas não só eram exaustivas como se davam nos ambientes mais perigosos e as condições precárias iam da falta de higiene à falta de acesso adequado a alimentos. Como se não bastasse, havia ainda os riscos de desabamentos, doenças e exposição a elementos tóxicos.

Essa exposição era tanta que era comum que os mineiros levassem para dentro das minas um canário. O pássaro, frequentemente associado a cenários idílicos (a antípoda do que as pessoas escravizadas viviam dentro das minas), tornava-se uma espécie de sentinela, captando os indícios mais sutis de gases tóxicos. Quando sucumbiam ou agitavam-se excessivamente, ficava explícito que entrar ali era sinônimo de morte. Na falta de assistência humana, esse era um jeito eficiente de se detectar os perigos tóxicos. A prática, trazida por escravizados africanos traficados pelos bandeirantes paulistas, iniciou-se na região de Minas Gerais e se estendeu pelo Brasil.

A brutalidade do sistema escravista nas minas contribuiu para a formação de uma sociedade profundamente desigual no Brasil colonial, deixando um legado de exploração que perdura na memória do país. A instalação, com suas flechas-patuás de ferro e os canários, invoca caminhos que de algum jeito agora se encontram desbloqueados, nos guiando para as possibilidades que persistem nos lugares onde o eco do passado ecoa. As origens de Luana se amalgamam com a história da extração do minério no Brasil, e tudo se torna mais íntimo quando sabemos da tragédia de seu bisavô, vítima de silicose, doença pulmonar causada pela inalação constante da sílica cristalina. Ao adentrar o pulmão, ela enrijece as estruturas da caixa torácica, causando dificuldades na respiração. O bisavô de Luana não foi o único a ceder diante de tais circunstâncias, asfixiado por um sistema escravocrata que ainda hoje se faz sentir. Os traumas de uma família viram os traumas de um povo, que, por sua vez, viram os traumas de um país.

Para Luana, entender a subversão da ideia de dureza atribuída ao ferro, ou a qualquer outro mineral, é fundamental. Qual é a voz da prata? Do ferro? A partir do encontro com essas vozes, há muito a ser dito. A escolha dos metais é uma busca pelos timbres únicos de cada um. A instalação é uma espécie de reza entoada em harmonia com as matérias que a cercam. A artista torna-se uma sacerdotisa que conduz os olhares e as sensações por uma experiência espiritual, na qual a voz dos metais se une à sua própria essência. É raro ver uma instalação dessas dimensões (300 metros quadrados) sendo capaz de nos guiar por cada veio de suas narrativas, ainda que essas sejam recortes de um contexto histórico que nunca esteve no centro de debates. Reside aí a habilidade de fazer com que uma vivência específica seja do tamanho de quem quiser ver.

O metal não é o inimigo. No fim, não foi ele que deixou o ar cada vez mais rarefeito para um grupo de humanos (e alguns canários). Como a representação de um segmento natural que se defende quando vítima de uma extração desenfreada, se pudesse o metal se revoltaria contra os verdadeiros culpados. Entre séculos XVII e XIX, isso estava longe de ser possível. Agora, em pleno 2023, há uma chance maior de revolta e empoderamento a partir da comunhão com a terra e os capítulos que formaram a espinha dorsal brasileira. A história não apagará os senhores de escravo de seus autos, nem muito menos os muitos que sofreram em suas mãos e nunca tiveram direito a um nome, mas, com essas mesmas mãos calejadas e todo esse sangue despejado, a arte há de fazer pintar novas páginas.

O título Pulmão da mina evoca uma imagem poderosa. Como escolheu esse título e como ele encapsula tanto a história específica de Ouro Preto quanto questões mais amplas relacionadas à extração mineral?

Luana Vitra: Quando penso na mineração, acabo pensando no pulmão. Sempre que ouço a história do meu bisavô Domingos Zacarias, que morreu de silicose, eu penso no pulmão. No processo de fazer esse trabalho para a Bienal, me deparei com dois pontos que aparecem muito nos relatos das pessoas que trabalharam nas minas: a impossibilidade de respirar e o enxergar na ausência de luz. Ou seja, a falta de contato com o sol e o excesso do contato do pulmão com substâncias que podem ser danosas. A obra, então, trata exatamente da dor da possibilidade de não poder respirar, e do aviso que vem a partir do ar. Senti que o título precisava ter a presença do pulmão, porque tudo se comunica dentro da dinâmica de símbolos criada a partir da presença do ar. É pelo ar que se morre, e é também pelo ar que é conduzida a informação que afirma a possibilidade de continuar vivo.

De que maneira você percebe que sua obra dialoga com o tema Coreografias do Impossível, e como ela contribui para uma conversa mais ampla sobre narrativas por tanto tempo silenciadas e que, agora, ao menos um pouco, ganham as luzes da ribalta?

LV: Para mim, o impossível é a possibilidade de criação de outras ficções de mundo. O mundo, da maneira que está, foi uma ficção montada por um determinado grupo de pessoas. E, quando você conta uma mentira continuamente, ela passa a ser uma verdade. É aí que a criatividade aparece para desenhar outras outras possibilidades. Tudo que faço é a partir de uma não-aceitação do impossível. E, quando me relaciono com a minha própria vida, eu preciso sempre saber que a ficção em que vou habitar é realmente minha e não de um terceiro. Essa Bienal, ao convocar artistas que compartilham desse gesto criativo, responde a isso.

Eu sou também uma pessoa que coreografa sobre o impossível. A ideia de coreografia está muito presente no meu trabalho, principalmente pelo fato de eu ter iniciado minha carreira dentro da arte na dança. Frequentemente, vejo as composições que crio como coreografias. Muitas vezes, penso: como conduzir esse olhar para um determinado ponto da instalação? A ideia de coreografia me situa dentro da minha maneira de compor. E, quando eu penso em narrativas silenciadas, penso mais nas vozes minerais do que nas humanas. Penso na voz dos metais que puderam ter condutividade a partir dos corpos que trabalharam dentro das minas. Esses corpos podiam comunicar sobre eles, mas foram silenciados. Sinto que, em alguma medida, sou uma tradutora dessas vozes minerais. E os corpos que trabalhavam na mina também eram tradutores. Então, eu estou olhando para esses tradutores, mas principalmente para a voz do que se traduz.

Uma instalação dessas proporções chama muita atenção. E sabemos que, em se tratando de Bienal, não é pouca gente. Chega a ser emocionante ver uma história como essa ganhar tanto destaque e aceitação. Como você se sente com relação a isso?

LV: Tem sido muito especial perceber o alcance que essa obra tem tido, principalmente com crianças. Recebo muitas mensagens de professoras, o que me alegra muito. Sou filha de uma e ver a maneira com que a obra tem acessado o campo cognitivo sensorial das crianças realmente é um presente para mim, porque sinto que, crescer já ciente dessas histórias, cria uma nova coreografia sobre o mundo. Eu sempre quis fazer com que o olhar externo se virasse um pouco para as violências que são movidas sobre a terra de Minas Gerais. Na verdade, essa visibilidade se vira para Minas Gerais, mas não só para ela, e sim, para toda a terra que vivencia esse contexto da mineração.

Pulmão da mina nasce do pessoal e se torna universal? Ou o caminho é inverso?

LV: Acredito que todas as criações, por mais que nasçam de histórias universais, habitam antes uma dimensão pessoal, e esse trabalho não é diferente disso. Acho que o que fazemos no mundo tem esse vai e vem, que vai do pessoal para o universal, e do universal para o pessoal. É uma comunicação de tempos, pois mistura o presente, o passado, o futuro, como se tudo coabitasse o mesmo instante. Pulmão da Mina é o momento em que tudo se aglomera numa conversa entre temporalidades, e nessa dança o interno e externo se amalgamam.

Os metais, especialmente o ferro, desempenham um papel fundamental em sua obra. Na sua visão, como esses metais, tanto fisicamente quanto simbolicamente, podem ser agentes de transformação na compreensão das narrativas históricas e contemporâneas?

LV: Nós nos relacionamos com a história de uma maneira às vezes muito limitada. Eu situo minha história dentro da história dos metais, e sinto que isso complexifica os motivos da minha existência. Para acessar meu trabalho, é mais importante saber como o ferro nasceu do que saber sobre as vanguardas do modernismo. Para digerir um trabalho artístico será sempre mais necessário se relacionar com a história das matérias do que se relacionar com a história da arte, e quando digo isso não excluo minha relação com a história da arte, mas assinalo que os motivos que movimentam um trabalho são orientados por organismos mais complexos. Somos demasiadamente orientados pelo que foi consagrado oficial, mas a história das coisas sistematicamente esquecidas tem muito mais a dizer. As vozes minerais foram silenciadas e escutá-las hoje remonta à complexidade de um espaço narrativo que foi esvaziado. Então, os metais são importantes para mim e Pulmão da Mina é uma obra que se constrói a partir da narrativa deles. Entendo o ferro como a pele negra, porque essa matéria foi capturada pela indústria assim como o corpo negro foi capturado pela colonialidade, e sinto que a movimentação que ambos fazem para se desviar são semelhantes, e é a capacidade de transformação e complexificação que torna esses dois corpos incapturáveis.

Em Pulmão da Mina utilizei a prata e o cobre no corpo dos pássaros pelo fato deles serem os dois metais mais condutivos. Para mim o ar é um veículo de condução de informação. A partir desses metais condutores, o ar se faz presente na obra, e ao mesmo tempo, a presença do ar é um aspecto importante dentro da movimentação de liberdade de um corpo negro. A fuga que vem dos elementos é uma possibilidade de entender a química dos acontecimentos, e esse movimento de entender como a história pode ser contada a partir de movimentações químicas me interessa.

Sua instalação aborda tanto o passado quanto questões contemporâneas. Como você equilibra essas reflexões?

LV: Acho que sempre entendi o tempo como uma movimentação que se mistura. Como três rios distintos que amalgamam suas temperaturas, suas dinâmicas, suas cores. É como quando a gente observa o encontro entre o rio Negro e o rio Solimões, mas ainda adicionaria um terceiro rio a essa alquimia. Quando penso no que quero compreender ou enunciar, esse equilíbrio entre o que já foi, está sendo e ainda será, é algo muito natural para mim. Talvez seja a minha maneira de compreender as coisas. Meus trabalhos traduzem essa dinâmica dançando todos os tempos.

As ervas, as cuias e o azul anil parecem adicionar uma dimensão sensorial à sua instalação. Qual foi a proposta para o uso desses elementos e de que maneira eles contribuem para a experiência de Pulmão da mina?

LV: A comunicação do meu trabalho é elementar, é como uma tabela periódica. Vou para esse lugar mais puro da matéria, porque talvez seja nesse lugar em que está a comunicação de uma voz inaugural. Quando escolho essas matérias, tudo está muito ligado à comunicação do elemento. Esse é um trabalho que traz uma história muito densa, mas é possível sentir a criação de uma outra rota para essa densidade. As ervas vêm nesse sentido, de conduzir para um outro lugar; o anil aparece no sentido de limpeza; e as flechas são vetores, ações dos movimentos do trabalho. Nada de se dá por acaso.

A padronagem gráfica que o trabalho vai criando é um modo de comunicar. E pensar o trabalho como uma movimentação gráfica está presente em muitas culturas. Atualmente, estou vivendo na África do Sul, numa cidade chamada Durban, que é onde fica o reino Zulu. O povo Zulu possui um sistema complexo de comunicação a partir de padrões geométricos feitos a partir de miçangas. É a atribuição de significado a um símbolo, o que faz com que ele crie uma comunicação. Aqui aprendi esse modo com o qual a matéria pode comunicar afetividade. Pulmão da Mina é um movimento similar. É uma grafia, uma criação simbólica de um campo de elementos.

Há uma certa ideia de “cura” para o reino mineral que permeia o espaço geográfico da instalação. E isso pode valer para o meio ambiente, como um todo. Qual é, ou pode ser, o papel da arte nesse processo tão fundamental ao nosso viver contemporâneo?

LV: Há muitos anos, fiz uma oficina de dança com um coreógrafo chamado Benoit Lachambre. Me lembro que ele me disse que a função do bailarino era curar o mundo com a energia do nosso corpo. Ouvir isso fez com que eu voltasse minha percepção para minha própria prática artística e percebesse quais gestos de cura já estavam sendo movidos ali, tornando as minhas escolhas mais conscientes. Perguntei a mim mesma o que eu desejava curar e o reino mineral foi meu lugar de conexão, pelo fato de conviver diariamente com as serras de Minas Gerais destruídas pela mineração.

Nas artes visuais, é a relação com a energia da matéria que pode movimentar uma relação de cura. Não é à toa que a gente ergue uma imagem no mundo. As imagens têm forças e histórias profundas, sendo guardadas e transmitidas por muitos povos, por muitos anos. A imagem e a matéria têm um forte poder — e é esse campo que sinto ser meu lugar de atuação, é a força da matéria que eu sei manejar. Talvez esteja aí a minha contribuição para movimentar qualquer desestrutura para a última queda desse mundo que aos poucos decai.

#47Futuro AncestralCulturaSociedade

Uma experiência coronária da filosofia africana: amor, futuro e ancestralidade

A filósofa Katiúscia Ribeiro é a editora convidada da edição Futuro Ancestral.

“A espiritualidade, a vida espiritual nos dá força para amar”
— bell hooks

Amar sempre permeou o sentido primeiro da nossa existência. Em uma sociedade alicerçada pelo desamor, amar passou a ser o antídoto primordial para a manutenção da vida e para a promoção de um futuro vivo. Em Vivendo de amor, a escritora ancestral bell hooks sinaliza que as violências coloniais impactaram diretamente os povos africanos na diáspora, fazendo uma contenção do amor, construindo um modelo de humanidade moldado no não amor, para que se violentas sem e assim pudessem ser dominados. A epígrafe acima da autora é contundente e diz muito sobre as questões apresentadas ao longo desta conversa escrita. Ao afirmar que a espiritualidade “dá força para amar”, me atrevo a dizer que a extensão dessa força nos ajuda a seguir, a viver, a recriar e a modelar o futuro.

Amar é um sentido vivo nas filosofias africanas, pois está ligado à maneira como essas filosofias estão vivas em nossas vidas, correndo em nosso sangue, seguindo os ritmos compassados do coração. Para entender essas duas dimensões, do amor e das filosofias africanas, que são inerentes uma à outra, é preciso sentir. Sentir o soar do som que vem do coração, esse elemento sensorial que nos conecta com nossa maneira de perceber a realidade presente. É preciso sentir as águas que banham nossos espíritos, a terra que fertiliza nossas histórias, é preciso mergulhar no todo e sentir-se parte dele. Nesse sentido, a filosofia se conecta simbioticamente com a ancestralidade, sendo um exercício que começa na alma e se expande. Assim, para essa filosofia, é preciso abandonar a ideia restritiva da cosmovisão e assumir integralmente a agência[1] africana e a “cosmossensação”, um fazer filosófico que a partir dos sentidos traz à tona a necessidade de resgatar e valorizar o conhecimento ancestral africano como uma fonte de sabedoria e inspiração para a construção de um futuro sustentável e humano.

A filosofia africana possui elementos para uma “reontologização”[2] a partir do paradigma centrado no poder das narrativas cosmológicas e em suas complementaridades. Compreender esse paradigma passa pelo reconhecimento de que a relação harmônica entre os elementos são da ordem de “uma relação científica, uma ciência inteira de integração e harmonização da existência material da Terra com a existência humana, garantindo a saúde a longo prazo de ambas” (NEUSI, 2019, p. 4).

Nessa orientação cosmológica, o Ser se relaciona no interior do universo de uma forma íntima, tendo uma concepção de ser humano em sua totalidade física, espiritual e metafísica. A compreensão de qualquer fenômeno deve passar pela totalidade, por um todo organizado de acordo com “os ciclos da vida e os ritmos circulares da natureza” (MONTEIRO-FERREIRA, 2014, p. 177), o universo em perfeita harmonia e cuja manutenção é o próprio sentido da existência. Além disso, a totalidade implicada na cosmogonia africana é uma totalidade espiritual, e isso significa que existir é viver como um ser espiritual. Há, portanto, uma relação intrínseca de espelhamento entre a ordenação cósmica e o ser humano em suas relações sociais, de modo que a realidade material é entendida como uma manifestação espiritual, uma relação ancestral.

A ancestralidade aparece, nas realidades africanas, como um agente de reconhecimento e construção da realidade a partir do seu caráter de conexão. Uma base que sedimenta os modos culturais, que forma indispensavelmente os sistemas de valores e é a espinha dorsal de todos os elementos: culturais, sociais, educacionais etc. Essa noção ancestral, compreendida filosoficamente desta forma, corporifica e configura quem somos enquanto unidade, por isso pensar o futuro a partir das filosofias africanas desde os tempos imemoriais pode ser um caminho possível para repensar as relações da humanidade.

Esta edição apresenta um percurso alicerçado nas filosofias africanas e em cada texto exibido será possível perceber isso. Esta curadoria se responsabilizou por apresentar outras e novas noções de realidade e propostas de mundo que rompem com os muros do absolutismo ocidental. O absoluto é essa verdade inquestionável, esse saber imposto e incontestável, uma razão irrefreável à qual se supõe que devemos nos submeter. Entretanto, cabe a nós, estudiosos, pensadores e sociedade como um todo desenvolver a capacidade de questionar esses sistemas de verdade e estruturas sólidas e intransigentes de saberes na busca por novos horizontes.

Assim, as filosofias africanas, a partir da herança ancestral, são fundamentadas na ideia de que a vida humana está intrinsecamente ligada à vida dos antepassados e nela há respostas, exemplos, modelos, estruturas, epistemologias e caminhos para pensar e construir o futuro. Os ancestrais são seres espirituais que continuam a influenciar e guiar a vida dos vivos, transmitindo conhecimentos, valores e princípios que são essenciais para a sobrevivência e o bem-estar da comunidade, eles são filósofos além do espaço-tempo. Essa percepção de mundo valoriza a conexão entre passado, presente e futuro, reconhecendo a importância de honrar e preservar a memória dos antepassados como forma de fortalecer a identidade cultural e promover a coesão social.

Na incerteza do futuro, temos uma base sólida e muito bem estruturada no passado das filosofias africanas, ressaltando a importância de reconhecer e valorizar a diversidade cultural africana, entendendo que elas possuem um vasto repertório de saberes e práticas que podem contribuir para a resolução dos desafios contemporâneos.

Uma das principais contribuições para a construção de um futuro mais justo e igualitário está na valorização da comunidade e do coletivo. Ao contrário da visão individualista predominante na sociedade ocidental, que visa a noção de TER, temos nesse saber a noção do SER, enfatizando a importância do cuidado mútuo, da solidariedade e da cooperação como princípios fundamentais para nos conectar de volta à natureza e não mais tratá-la como o diferente. Mais do que a convivência harmoniosa entre os seres humanos e a natureza, é preciso reconectar a humanidade à natureza, nos colocar como parte dela.

No Brasil podemos tomar como exemplo a Filosofia Quilombista, apresentada por Abdias Nascimento, ou o pensamento contracolonial baseado nos saberes quilombolas do Mestre Nêgo Bispo, ambos presentes nesta edição. Essa perspectiva coletiva é essencial para enfrentar os desafios globais, como as desigualdades sociais, a degradação ambiental e a violência estrutural. Temos nos quilombos brasileiros um exemplo vivo, como reforça a Dra. em Filosofias Africanas Lorena Silva Oliveira: “O conceito quilombismo tornou-se uma ideia-força para o povo negro brasileiro, pois esses territórios são a maior referência de agência política, manutenção e valoração à vida, à ancestralidade e à liberdade”.

Outro aspecto relevante é a valorização da espiritualidade e da conexão com a natureza. Para os povos africanos, a natureza é vista como um ser vivo e sagrado, com o qual os seres humanos, mesmo sendo parte dela, devem estabelecer uma relação de respeito, cuidado e harmonia. Essa visão holística da vida é fundamental para repensar a forma como nos relacionamos com a terra e seus múltiplos ecossistemas. A urgência da sustentabilidade, no marco temporal do ocidente, não é uma questão nova aos povos africanos e originários, por isso podemos nos espelhar nesses povos, que em suas espiritualidades entendem a natureza como fonte, origem da vida.

Um dos aspectos mais importantes das casas de Àṣẹ no Brasil é a não dicotomia entre Ser/Universo, Humano/Natureza, relações de mutualidade que interligam todos os seres vivos, recompõem e promovem uma rede de colaboração entre todos. É no todo harmônico e equilibrado que ações de mulheres e homens, que concebem a natureza como elo de sabedoria, conhecimento e vida, transformam o presente e modelam o futuro. Esse conceito vivo do cosmos, presente nos terreiros de candomblé, é uma herança ancestral que compreende o universo como algo em sua totalidade quando está integrado também pelo espiritual.

Ancestralizar o futuro implica, portanto, em reconhecer a importância do passado na construção do presente e do futuro, valorizando a diversidade cultural africana, promovendo a solidariedade e o cuidado mútuo, estabelecendo uma relação de respeito e harmonia com a natureza e questionando os padrões de pensamento eurocêntricos. Essa abordagem pode ser uma fonte de inspiração e orientação para enfrentar os desafios contemporâneos e construir uma sociedade mais justa, igualitária e sustentável. Por isso, cada texto desta linda edição é um convite de um vir a ser!

Uma das formas de colocar em prática as filosofias africanas da ancestralidade é por meio da valorização e promoção da cultura africana. Isso envolve o reconhecimento da importância das tradições, rituais, danças, músicas e línguas africanas como expressões culturais valiosas que devem ser preservadas e celebradas. Além disso, é fundamental garantir a inclusão e a participação ativa das comunidades africanas na construção das políticas públicas e na tomada de decisões que afetam suas vidas.

Outro aspecto importante é a educação, também em destaque nesta edição. É necessário incluir nos currículos escolares o estudo das filosofias africanas da ancestralidade, para que as gerações futuras possam conhecer e valorizar as riquezas dos conhecimentos ancestrais africanos. Além disso, é fundamental promover a diversidade cultural nas escolas, garantindo a representatividade e o respeito às diferentes culturas e tradições, como sinaliza o mestre João Paulo Ignacio nesta edição em um potente texto que nos convida a uma travessia de saber, educar e ancestralizar.

A promoção da justiça social também é um elemento central nas filosofias africanas da ancestralidade, encontrados em Maat[3], a figura de uma deusa negra, com um dos seus joelhos no chão, os braços abertos e uma pena de avestruz em sua cabeça, como coroa. Mas essa é apenas uma imagem alegórica que não define a complexidade de Maat[4], que, de princípio tão complexo e integrativo, não é possível traduzir em uma só palavra, mas sim em três: verdade, justiça e harmonia. Assim, na ancestralidade encontramos um modelo ético de uma justiça integrativa. Isso implica dizer que em combater as desigualdades sociais, econômicas e raciais, garantindo o acesso igualitário a recursos e oportunidades para todos os membros da sociedade. Além disso, é necessário enfrentar as estruturas de poder e os sistemas de opressão que perpetuam a marginalização e a discriminação das comunidades africanas e afrodescendentes.

Por fim, é importante ressaltar que pensar um futuro a partir das filosofias africanas da ancestralidade não significa ignorar ou rejeitar os avanços da ciência e da tecnologia ocidentais. Pelo contrário, trata-se de integrar diferentes formas de conhecimento, a partir de um paradigma pluriversal, reconhecendo a validade e a complementaridade de diferentes perspectivas. É necessário buscar um diálogo intercultural e interdisciplinar, que permita a troca de saberes e a construção conjunta de soluções para os desafios contemporâneos.

Em suma, pensar um futuro na ancestralidade é reconhecer a importância do passado na construção do presente e do futuro, valorizando a diversidade cultural africana, promovendo a solidariedade e o cuidado mútuo, estabelecendo uma relação de respeito e harmonia com a natureza e questionando os padrões de pensamento eurocêntricos. Essa abordagem pode ser uma fonte de inspiração e orientação para enfrentar os desafios contemporâneos e construir uma sociedade mais justa, igualitária e sustentável.

Ancestralidade, enquanto princípio filosófico, é de ordem coronária sair do campo da materialidade racional e pensar com o coração, sentir com o coração e analisar a vida pulsante, que possibilita se reconhecer e continuar um legado que nasce a todo tempo e se mantém vivo no pulsar de nossa existência materializada em diversas ações e oralituras. Assim, aceite o convite com que a Revista Amarello lhe presenteia neste momento para refletir nossos rumos e sentidos de viver. Porque como sinalizei em outro texto há algum tempo: “Pensar a ancestralidade não está em compreender qual o sentido da vida, a partir de texto complexo e termos difíceis, está em viver em movimento com a vida, este eterno vir a ser, é uma roda, sem fim, porque o futuro é ancestral”.

Notas:

[1] A agência é a capacidade de dispor dos recursos psicológicos e culturais necessários para o avanço da liberdade humana (…) estou fundamentalmente comprometido com a noção de que os africanos devem ser vistos como agentes em termos econômicos, culturais, políticos e sociais. O que se pode analisar

em qualquer discurso intelectual é se os africanos são agentes fortes ou fracos, mas não deve haver dúvida de que essa agência existe. Quando ela não existe, temos a condição da marginalidade — e sua pior forma é ser marginal na própria história (…) Os africanos têm sido negados no sistema

de dominação racial branco. Não se trata apenas de marginalização, mas de obliteração de sua presença, seu significado, suas atividades e sua imagem. É uma realidade negada, a destruição da personalidade espiritual e material da pessoa africana (ASANTE, 2008, p. 94). –

[2] Conceito apresentado pelo Me. e Teólogo Jayro Pereira, propondo uma reformulação no sentido de Ser a partir dos saberes ancorados nos saberes africanos.

[3] Maat é reconhecida como Ntr (Neteru), força simbólica feminina que organiza os princípios de justiça, retidão, equilíbrio, harmonia e reciprocidade; divindade suprema que governa a realidade e, para além da realidade, força motriz que organiza o universo. Suas 42 provisões são a base do Shetaut Neter, ciência espiritual da África antiga alicerçada nas leis físicas e naturais, responsável pela manutenção das ordens cósmica e social. Maat é filha de Rá, e estava ao seu lado no barco celeste quando emergiu das águas matriciais ao lado das demais neterus, sendo também conhecida como “o olho de Rá”. (Ribeiro, Katiúscia. Tese de doutorado. UFRJ 2022).

[4] A deusa Maat, usando uma alta pena de avestruz em sua cabeça como seu símbolo, era chamada de filha de Rá, ou o olho de Rá. Ela também era conhecida como dama dos céus, rainha da terra, senhora do submundo e amante de todos os deuses. Cenas rituais retratam reis egípcios apresentando uma estatueta de Maat aos deuses como um dom supremo. (OBENGA,2017, p. 24)

Bibliografia:

ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricidade: Notas sobre uma posição disciplinar. In: NASCIMENTO, Elisa Larkin. (Org.). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009a, p. 93-110.

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.

MONTEIRO, Ana Maria. Da Ontologia à Antropologia de Mata: A Dimensão Metafísica e Ética da Alma. 2014. Gaudium Sciendi, Número 6, 2014

 NEUSI, Kimani. “Humanity and the Environment in Afrika: Environmentalism before
the Environmentalists” in M. Muchie, P. Lukhele-Olorunju and O. Akpor (eds.) The African Union Ten Years After: Solving African

OBENGA, Théophile. Egypt: Ancient History of African Philosophy. In: WIREDU, Kwasi (Org.). A Companion to African Philosophy. Massachusetts: Blackwell Publishing, 2004. p. 31-49.

Le Corbusier em 1950. Imagem: Sam Lambert/Architectural Press Archive/RIBA Collections

Le Corbusier (1887-1965) foi possivelmente o mais influente arquiteto do século XX. Não só o mais influente: o mais controverso também. Com o centenário de seu clássico manifesto Por uma arquitetura (Vers Une Architecture, no francês), vale refletir sobre o que a tapeçaria teórica e a prática contida na obra representou, e representa, para a arquitetura contemporânea. Tanto a obra em questão quanto a carreira de Le Corbusier foram construídas a partir de ideias realmente inovadoras, mas ideias que, de acordo com muitos especialistas (munidos, claro, com o distanciamento temporal), não tinham em vista o mundo assim como ele

Independentemente disso, fato é que há um pré-Corbusier e pós-Corbusier. Não é sempre que vemos esse papel de divisor de águas atribuído à uma única pessoa, e isso vale para qualquer área. Ou seja: controverso, sim; irrelevante, jamais.

Nascido em 1887 na Suíça, Le Corbusier começou sua vida profissional como pintor e designer de móveis. Foi em seus tempos de aprendiz de relojoeiro, aliás, que começou a desenvolver uma consciência de estrutura e sua apurada precisão, algo fundamental em tudo que produziu posteriormente. Seu interesse por arquitetura, o levou a se matricular na Escola de Artes de La Chaux-de-Fonds, onde estudou sob a orientação de Charles L’Eplattenier (1874-1946), um mentor crucial que o introduziu ao pensamento vanguardista da época. Em 1907, se embrenhou profundamente na cena artística parisiense ao se mudar para a capital francesa. Lá, trabalhou com arquitetos proeminentes, como Auguste Perret (1874-1954) e Peter Behrens (1868-1940), adquirindo uma compreensão profunda da aplicação de materiais modernos em projetos arquitetônicos. Essas experiências o ensinaram a enxergar beleza em uma abordagem funcionalista do design, quando a forma segue a função e não ao contrário — eis a filosofia que se tornaria um pilar fundamental da arquitetura moderna.

Le Corbusier não apenas revolucionou a forma física dos edifícios, mas também introduziu novos materiais e técnicas construtivas. Ele foi pioneiro em adotar o concreto armado como material de construção principal, o que permitiu a criação de estruturas mais esbeltas, abertas e flexíveis. Essa abordagem inovadora influenciou a estética da arquitetura moderna e contribuiu para a rapidez e eficiência da prática da construção. 

Tendo em vista essa sua veia radicalmente transformadora, logo se imagina que, por trás de tudo (ou na frente de tudo), houvesse uma pessoa detentora de um arcabouço teórico amplo capaz de estruturar ideias de maneira clara e sedutora. Além de seus projetos arquitetônicos e urbanísticos, Le Corbusier era um prolífico escritor e teórico — o que nos leva ao famoso Por uma arquitetura.

Publicado como livro há cem anos, em 1923, baseado parcialmente em artigos anteriores, Por uma arquitetura é um manifesto do modernismo que defendia a aplicação tecnológica a projetos de edifícios, tomando a beleza e a lógica das máquinas e da engenharia de viadutos, transatlânticos e silos de grãos como a mais importante. O manifesto também promove — há quem diga “acima de tudo” — o próprio Le Corbusier, como um homem (quiçá, o único) habilitado a dar vida ao novo mundo proposto. É um caso clássico de um egocentrismo que, de boca cheia, diz: “O mundo precisa disso e ninguém melhor do que eu para fornecê-lo”. Em defesa de Corbusier, se havia alguém que podia fazer isso à época, era ele. E, de um jeito ou de outro, Le Corbusier o fez. 

Usando combinações de fotografias, desenhos medidos e esboços, o livro mostra imagens de carros e aviões ao lado do Partenon e da catedral de Notre Dame, considerando as cidades como receptáculos inevitáveis de toda e qualquer tecnologia. Estabelece, assim, cinco princípios-mor de design, que propõem novas formas de construir cidades, com torres de 60 andares implantadas entre vastos jardins e campos desportivos, servidas por auto-estradas de múltiplas faixas, e também blocos de “vilas-apartamentos” de vários andares onde cada casa tem o seu próprio jardim.

Os cinco princípios são:

Os pilotis — Le Corbusier propunha elevar os edifícios do chão, apoiando-os em pilotis (colunas). Essa abordagem permitia a criação de espaços abertos no térreo, liberando o solo para jardins, estacionamentos e uma maior circulação. Os pilotis também enfatizavam a separação entre o edifício e o solo, criando uma sensação de leveza e permeabilidade visual.

A planta livre — Espaços internos de um edifício deveriam ser flexíveis e livres de paredes estruturais, possibilitando uma adaptação fácil dos espaços de acordo com as necessidades dos ocupantes. Com a estrutura sustentada pelos pilotis e sem paredes de suporte, os interiores poderiam ser organizados de forma mais eficaz.

A fachada livre — A fachada de um edifício não deveria mais desempenhar um papel estrutural. Isso permitia a criação de grandes janelas e uma fachada mais leve, enfatizando a relação entre o interior e o exterior. As fachadas poderiam ser projetadas com aberturas generosas para a entrada de luz e ventilação naturais.

A janela em fita — Janelas em faixas horizontais ao longo das fachadas dos edifícios. Simples. Isso não apenas fornecia uma vista panorâmica do ambiente externo, mas também garantia uma distribuição uniforme de luz natural em todo o espaço interno. Essa abordagem transformou a qualidade dos espaços interiores.

O telhado jardim — Le Corbusier acreditava na utilização dos telhados como espaços habitáveis ou de lazer. Essa ideia promovia uma melhor utilização do espaço e incentivava a integração da natureza na arquitetura. Os telhados podiam ser transformados em jardins, áreas de recreação ou até mesmo espaços para atividades ao ar livre.

A maneira como apresentava tais preceitos era também um grande chamariz. Um dos muitos motivos para o sucesso, a abrangência e a longevidade de Por uma arquitetura, é o fato de que a obra conta com um manancial de frases marcantes, dignas de serem usadas facilmente como um ardil que se leva na bolsa ou como palavras que estampam uma camiseta. A mais conhecida delas é a que diz, em tom futurista, que “Uma casa é uma máquina de morar”. Além dela, “A paixão faz das pedras inertes um drama” e “A arquitetura é o jogo sábio, correto e magnífico dos volumes dispostos sob a luz” também entram na lista de citações memoráveis e persuasivas. Para além desse caráter progressista da maioria delas, a veia frasista mostra a importância que mensagens fortes têm, em especial na apresentação de ideias inovadoras que não necessariamente tem uma aplicação prática boa e imediata.

Mas justiça seja feita: Le Corbusier colocou, sim, suas teorias em prática. Para citar algumas obras, ele projetou a Unité d’Habitation em Marselha, um monumental bloco de apartamentos que tirava do papel suas ideias sobre habitação coletiva. Temos também as Maisons Jaoul, um par de casas em um subúrbio de Paris construídas com tijolos de barro e abóbadas robustas. Muitos, no entanto, defendem que ele criou as regras para desrespeitá-las e, portanto, muito do trabalho posterior a Por uma arquitetura se distanciou do que o próprio preconizou anos antes. Mais tarde em sua carreira, especialmente de 1945 adiante, ele rompeu com seu apego a linhas limpas e formas primitivas, explorando concreto áspero e formas curvas de forma livre. Exemplo disso é sua igreja de Notre-Dame du Haut, no topo de uma colina, em Ronchamp, no leste da França.

Unité d’Habitation em Marselha, França. Imagem: Gili Merin

Goste ou não, Le Corbusier foi uma força criativa imponente — e, talvez, egomaníaca — que transformou para sempre a sua disciplina. Seus edifícios inspiraram admiração, às vezes devoção. Como todo ícone, também foi, e é, vigorosamente atacado, como um fanático mecanicista cujas ideias inspiraram torres desumanas e selvas de concreto. Sua visão de planejamento urbano às vezes negligenciava as nuances culturais e as necessidades específicas das comunidades locais. Se, a título de exemplo, analisarmos mais atentamente a ideia de erguer edifícios sobre pilotis para permitir que o jardim se estenda por baixo da residência, logo se percebe que ela é um tanto estranha. Pode mesmo haver um jardim natural sem chuva e luz solar? Simbolicamente, você poderia ver o pilotis como um dispositivo para separar o edifício do solo e uma negação da dependência da terra, ou mesmo como uma afirmação de domínio e controle sobre a natureza. 

Villa-Savoye. Imagem: Paul Kozlowski/FLC/ADAGP

Outro fator muito criticado hoje em dia é que os planejamentos urbanos de Le Corbusier tinham o automóvel como centro. A arquitetura do movimento moderno baseava-se na presunção de combustíveis fósseis baratos e ilimitados, além de outros recursos finitos. É claro que, somente 50 anos depois da publicação de Por uma arquitetura, a consciência começou a ser formada e tal ideia passou a ser questionada. Mas isso em nada ajuda a visão em retrospecto que, para o bem ou para o mal, se dá nestes tempos em que a nossa relação com a natureza é o principal desafio da continuidade humana. Enquanto tentamos, cem anos depois, fazer as pazes com o mundo tanto em termos ambientais quanto sociais, Por uma arquitetura utilizava uma linguagem de limpeza, limpeza e eficiência, de um tipo que tende a apagar tudo o que é esteticamente diferente ou espacialmente diferente. Na argumentação corbusiana, “diferença” ganha conotações extremamente negativas e problemáticas. 

Notre-Dame du Haut. Imagem: Luke Stearns

Além disso, seu envolvimento com regimes autoritários sempre levanta questões éticas e políticas. Ele se tornou cidadão francês em 1930, aliando-se à extrema-direita. Fez parte do comitê de urbanismo da França de Vichy, liderada pelo marechal Philippe Pétain (1856-1951), que colaborou com a Alemanha nazista durante a Segunda Grande Guerra. Argumenta-se que os envolvimentos políticos de Corbusier tinham menos a ver com ideais e mais a ver com uma estratégia para conseguir produzir suas ideias, percebendo que, para tanto, tinha que ter amigos poderosos que lhe concedessem licitações. Isso justificaria a troca de correspondência não só com Adolf Hitler (1889-1945), mas também com Benito Mussolini (1883-1945) e Joseph Stalin (1878-1953). A contra-argumentação, porém, é das mais simples: seja com qual propósito, apertou mãos que não devia.

A fala de Denise Scott Brown, pioneira da arquitetura e arquiteta pós-moderna, sintetiza bem a maneira como Le Corbusier é visto sob a ótica contemporânea: “Amo as casas dele, mas ele não entendia como as cidades funcionam.” Essa é uma boa amostra, acima de tudo, porque respinga para os dois lados, o da admiração e o da rejeição, duas instâncias bem presentes quando o arquiteto é mencionado atualmente em qualquer roda de discussões. Ela continua: “Ele olhou para Nova York e disse que, quando as ruas estão retas, a mente fica clara. Adoro isso, mas quando ele diz que tudo deve ser retangular, está completamente errado. Ele não sabia relacionar nada com nada, não sabia como funcionavam os sistemas de movimento. Le Corbusier escreveu que as cidades da Europa foram construídas por burros, com as ruas moldadas em torno dos seus trilhos. Ele insulta o burro, diz que ele é preguiçoso e anda em círculos quando deveria ir direto. Mas o burro segue o caminho que faz sentido, contornando uma elevação no terreno em vez de passar por cima dela, e é assim que se obtêm os lindos padrões das cidades antigas. O burro não é preguiçoso, é um funcionalista.”

Embora muitas de suas visões tenham enfrentado críticas e desafios práticos — não só no presente, mas desde que foram apresentadas —, elas deixaram uma marca duradoura no pensamento urbanístico e inspiraram discussões sobre como projetar cidades para atender às necessidades das pessoas e ao mesmo tempo preservar o meio ambiente. Diante do centenário de Por uma Arquitetura, é essencial reconhecer que Le Corbusier não apenas moldou a arquitetura moderna, mas também contribuiu significativamente para a maneira como pensamos sobre o espaço e o ambiente construído. Seu legado perdura como um testemunho de como a visão e a inovação podem transformar radicalmente nossa relação com o mundo construído, ainda que com problemáticas vindo de todos os lados. 

Onde quer que ele esteja — possivelmente em um projeto urbanístico que aplica à outra dimensão os 5 princípios-chave da arquitetura — deve estar pensando: “Qu’on parle de moi en bien ou en mal, peu importe.” Ou: “Falem bem ou falem mal, mas falem de mim.”

Le Corbusier em 1953. Imagem: Willy Rizzo.

Era uma vez uma menina curiosa chamada Alice, que meteu o nariz onde não devia e encontrou-se perdida no país das maravilhas, que – diga-se de passagem – era também um país perigoso, com chapeleiros malucos, gatos risonhos e rainhas assassinas. 

Em dado momento, Alice se encontra encolhida a meros sete centímetros de altura. Uma lagarta fumando um cachimbo lhe diz, “um lado fará você crescer, o outro fará você diminuir”. Um lado de quê, Alice indaga. Do cogumelo, responde a lagarta. Alice mordisca o cogumelo, cautelosa. Ela diminui rapidamente, mas antes de desaparecer por completo, consegue mordiscar o outro lado. Ela cresce vertiginosamente, ficando com um pescoço enorme. Um pássaro lhe confunde com uma serpente e ataca seu rosto. Ela morde um pouco de lá e um pouco de cá do cogumelo, e assim volta ao seu tamanho normal.

Que cogumelo mágico seria esse, que dá à Alice o poder de crescer e diminuir? Que, em doses alternadas, lhe permite calibrar seu crescimento e lhe faz sentir-se normal em um mundo todo virado do avesso? É impossível saber o que Lewis Carroll, o autor do clássico da literatura infantil, teria a dizer sobre a recente onda de interesse nos cogumelos psicodélicos. Mas ao que tudo indica, podemos seguir a moral da história da Alice e seu cogumelo – o importante é acertar a dose.

Há milhares de anos, povos indígenas dos quatro cantos do mundo fazem uso de substâncias psicodélicas encontradas na natureza, em cogumelos, cactos, sementes, folhas e árvores, para fins cerimoniais e medicinais. No século XX, estas substâncias começaram a ser reproduzidas sinteticamente em laboratórios. Imagine o susto do suíço Albert Hoffmann, que “descobriu” o efeito alucinógeno do LSD após ingerir, sem querer, uma quantidade desconhecida do químico, quando trabalhava como pesquisador para uma empresa farmacêutica. Sua descoberta logo disseminou-se pelo mundo, despertando o interesse do campo da psiquiatria, ainda em seu início.

Os psicodélicos, cujo nome vem do grego psico (mente) e delo (visível), logo caíram nas graças da contracultura hippie. Consequentemente, muitos governos passaram a classificá-los como substâncias controladas, na busca de controlar o movimento paz e amor. Os anos 70 viram uma onda de proibição, e os estudos médicos com substâncias alucinógenas cessaram.

Agora, estão voltando com atenção ao tema. A mais recente onda de interesse espalhou-se a partir do Vale do Silício, onde profissionais criativos começaram a praticar a microdosagem, ingerindo uma dose tão pequena que os efeitos psicodélicos não são ativados, mas que supostamente traz benefícios como o aumento da produtividade, criatividade e energia, e afasta males como a ansiedade e a depressão. A prática foi ganhando adeptos, que buscam aumentar a performance no trabalho, mas principalmente por aqueles que visam melhorar a saúde mental.

Vivenciamos um momento em que a depressão e ansiedade estão saindo das sombras e sendo abertamente discutidas. A pauta da saúde mental está em alta. O uso de antidepressivos a partir da década de 1950 revolucionou o tratamento dos transtornos de humor, mas sabemos hoje que esses medicamentos podem causar efeitos colaterais adversos. A psiquiatria busca novas avenidas para tratar as milhões de pessoas sofrendo mundo afora, e um possível caminho é o uso de psicodélicos. Tanto os presentes na natureza, como a mescalina encontrada em algumas espécies de cactos e a psilocibina derivada dos cogumelos da Alice, quanto os fabricados em laboratório, como o MDMA, vulgo ecstasy, e dietilamida do acido lisérgico, o famoso LSD.

Mas o que diz a ciência sobre os supostos benefícios dessas substâncias? Infelizmente, não muito. Por enquanto, existem poucos estudos abrangentes, e aqueles realizados contam com uma amostragem pequena. Por serem substâncias altamente regulamentadas pela lei, estudos em que possam ser administradas em um ambiente controlado, como em um hospital, por exemplo, são poucos. A grande maioria dos testes, portanto, depende do autorrelato de pacientes. Estes, por sua vez, não são sempre de confiança, nem podem ser controlados para descontar o efeito placebo.

Sem estudos controlados, em que se possa padronizar o ambiente, a dosagem e eliminar outros fatores que possam influir o resultado, não há um consenso médico sobre os benefícios de tal tratamento. No Brasil a terapia com a microdosagem de psicodélicos não é regulamentada pelos órgãos de saúde, e, portanto, a sua prescrição médica é proibida. Além do mais, muitas das substâncias continuam ilegais por aqui.

É difícil dizer, portanto, qual o futuro do tratamento psiquiátrico com o uso de psicodélicos. Qualquer que seja, devemos lembrar que perder-se no país das maravilhas pode ser perigoso se não soubermos nos dosar. 

Era 13 de janeiro de 1854 em Santo Amaro. Nascia Hilária Batista de Almeida. Desde muito jovem, Hilária já se destacava por seus feitos. Com apenas 16 anos teve  papel fundamental na criação da Irmandade da Boa Morte, em Cachoeira, no Recôncavo baiano. As irmandades eram organizações que agregavam indivíduos de diversas origens sociais, estabelecendo laços de solidariedade que se organizavam com o propósito de promover a devoção a um santo padroeiro e também para fins beneficentes para os membros que se comprometeram a participar das atividades da irmandade. Os benefícios oferecidos – como assistência em caso de doença, invalidez ou morte – variavam de acordo com os recursos disponíveis na irmandade, sendo proporcionais às posses financeiras de seus membros. Num período de total ausência de direitos e políticas voltadas para as populações negras, as irmandades foram essenciais na garantia da dignidade destes indivíduos. Essa irmandade, que é fundamental nas historicidades negras até os dias de hoje, faz parte do seu legado. Como filha de Oxum, foi iniciada nas tradições religiosas da nação Ketu na casa de Bambochê.


Aos  22 anos, mudou-se  para o Rio de Janeiro, onde construiu uma nova família ao casar-se com João Baptista da Silva, um funcionário público. Segundo relatos históricos, tiveram quatorze filhos. Ela continuou a seguir as práticas e os ensinamentos religiosos na casa de João Alabá,  onde foi Mãe Pequena. Hilária passa a ser conhecida por outro nome. E, assim, firma-se o legado cultural e religioso de Tia Ciata.


Ciata finca raízes na região que hoje conhecemos como centro do Rio de Janeiro. Morando primeiramente na Pedra do Sal, passando pelo Beco João Inácio, posteriormente residindo no número 304 da Rua da Alfândega, com passagens pelas ruas General Pedra e Rua dos Cajueiros. Entre 1899 e 1924, residiu na Rua Visconde de Itaúna. O centro da cidade do Rio de Janeiro tem muito de Ciata. Durante esse tempo, ela desempenhou um papel crucial na solidificação do samba carioca e tornou-se uma figura de destaque nas comunidades negras da Pequena África e do Rio de Janeiro como um todo.

Ciata desempenhou um papel crucial como uma das tias baianas pioneiras na introdução da tradição das baianas quituteiras no Rio de Janeiro. Essas mulheres, as tias baianas, foram responsáveis ​​por estabelecer esta tradição e por uma estética própria e africanizada, com suas roupas coloridas, colares, contas e pulseiras enquanto mantinham uma base sólida religiosa e política que permeava suas atividades. Foi nos quintais de baianas como Tia Ciata que nasceu o samba, e nesses mesmos espaços eclodiram movimentações culturais e simbólicas que forjaram identidades negras na diáspora brasileira. Considerado o primeiro samba, “Pelo telefone” foi composto numa roda de samba no  quintal-terreiro de candomblé de Tia Ciata.

O século XX teve seu início marcado por uma grave crise habitacional. A população aumentou, e a quantidade de habitações não. Nessa equação, os mais fragilizados faziam parte da população de baixa renda. Isso resultou no aumento constante da superlotação e na interferência das casas alugadas. A ausência de habitações populares a preços acessíveis forçou uma grande parcela de trabalhadores com baixo poder aquisitivo a viver em condições insalubres e precárias, amontoados em casas e cortiços no antigo centro da cidade. Essas eram habitações coletivas que tinham deixado uma marca profunda na paisagem urbana da cidade ao longo do século XIX, sendo alvos da chamada “ação modernizadora” da República. A localização central desses cortiços despertou grande interesse entre os setores envolvidos na especulação imobiliária, que viram ali uma oportunidade de negócios lucrativos. Além disso, as teorias higienistas viam nos cortiços a grande causa para epidemias de doenças respiratórias, contagiosas e toda sorte de má saúde que assolava a cidade. Era um caso evidente de racismo e preconceito de classe mascarado de política pública de saúde e urbanização.

Segundo essa perspectiva, dos cortiços emanavam não apenas doenças e epidemias, mas também indivíduos desocupados, dependentes químicos, praticantes de jogos de azar, delinquentes, pessoas embriagadas e “marginais”. Consequentemente, esses locais eram vistos como territórios perigosos, habitados por indivíduos com potencial para representar ameaças. Assim, era necessário traçar estratégias para conter essa população e os efeitos por ela causados na cidade. Começa o processo de erradicação das habitações populares por meio de sua remoção física e deslocamento de seus moradores da área central da cidade. O primeiro alvo da ação de demolição da modernização republicana foi o famoso cortiço conhecido como “Cabeça de Porco”. Situado na Rua Barão de São Félix, era o maior cortiço da cidade. Os cortiços e seus moradores deveriam abrir espaço para a construção de amplas avenidas destinadas ao trânsito comercial e para a edificação de novos edifícios de escritórios, armazéns, cafés, teatros e cinemas. Porém, não houve preocupação com os novos locais de moradia desta população e nem foram propostas políticas de longo prazo para resolver as questões de habitação no Rio de Janeiro.

Assim, famílias inteiras que precisavam manter-se próximas da região central para trabalhar, começaram a subir os morros. Como os moradores tinham as mesmas origens dos que habitavam os antigos cortiços – é importante notar a carga de preconceito embutida em toda essa “História” – os estigmas subiram o morro também. Então, para as elites, era imperativo exigir a luta que havia começado contra os antigos cortiços, uma vez que o “adversário” – ou seja, as “classes perigosas” – permanecia o mesmo, apenas se manifestando em maneira e localidade diferentes. Começa assim uma série de movimentos, às vezes incisivos e diretos e por vezes ambíguos, para “resolver o problema das favelas”. Um que merece destaque foi promovido pelo prefeito à época: Pedro Ernesto. Ele foi um dos pioneiros em adotar uma política de aproximação com as favelas e seus moradores, registrando as dificuldades enfrentadas e, ao mesmo tempo, buscando capitalizar politicamente a partir dessas mesmas adversidades. Um exemplo disso: Pedro Ernesto tinha pelo menos 100 afilhados em várias favelas da cidade e se colocava como uma espécie de intermediário entre os interesses dos moradores de favelas e o governo. Esse mesmo Pedro Ernesto foi figura emblemática e importante para pensarmos a história das baianas no Brasil.

A partir de 1929, o poder público começa a organizar o carnaval popular, que acontecia em periferias da cidade e também era visto como manifestação cultural das ditas “classes perigosas”. Cortiço, favela, carnaval e baiana têm muito em comum. Nesse processo são definidas as rotas dos desfiles, o apoio financeiro às associações, bem como a criação de estatutos e regulamentos para a distribuição desses fundos, e é nesse contexto que se firmam no âmbito carnavalesco figuras como a baiana e o malandro. Em 1933, o prefeito Pedro Ernesto criou a ala das baianas nas escolas de samba, através de decreto de lei. Assim, ela passa a ser oficialmente incorporada aos desfiles das escolas de samba. Desde então, o grupo de baianas passa a ser elemento significativo que dialoga entre a tradição e as inovações dos carnavais das escolas de samba. Essa ala carrega não somente uma tradição carnavalesca. Ela simboliza também um pedaço da história do Brasil e apresenta um repertório estético específico.

O uso do termo “baiana” para se referir às mulheres negras trabalhadoras da Bahia começou a surgir no final do século XIX e foi associado mais ao estilo de vestimenta de origem africana e às tradições culturais que essas mulheres mantinham, como suas crenças em religiões afro-brasileiras e habilidades culinárias, do que à sua procedência geográfica. As baianas extrapolaram as fronteiras de cidades, estados e países. A representação da baiana é formada por elementos visuais que se relacionam com a variabilidade  de contextos sociais e históricos.

O traje tradicional da baiana, tal como conhecemos atualmente, é composto por diversos acessórios e elementos visuais diversos, incluindo uma saia longa e redonda, que por vezes esconde uma anágua ou armação. Saia essa enriquecida com rendas, turbante ou torço na cabeça, pano da costa, batas rendadas e balangandãs. Essa vestimenta é uma evocação às roupas usadas pelas “tias baianas”, mulheres que migraram da Bahia para o Rio de Janeiro com suas famílias, muitas das quais eram vendedoras de acarajé e iguarias, e que estabeleceram comunidades com sua própria expressão cultural nesse novo ambiente e fizeram brotar, em seus quintais, ervas, incidência política e muito samba.

Assim como o primeiro samba, “Pelo Telefone”, o Império Serrano nasce na casa de uma mulher negra, liderança local, Dona Eulália do Nascimento. Fundou-se em 23 de março de 1947, durante uma reunião na Rua Balaiada, número 142, no Morro da Serrinha.

A agremiação surge de uma dissidência da escola de samba Prazer da Serrinha. Entre os seus fundadores há nomes essenciais no cenário do samba carioca como Sebastião Molequinho, Elói Antero Dias, Mano Décio da Viola, Silas de Oliveira, Aniceto Menezes, Antônio dos Santos (Mestre Fuleiro) e Eulália do Nascimento. O nome “Império Serrano” foi sugerido por Sebastião Molequinho e faz alusão ao Morro da Serrinha. As cores da escola, verde e branco, foram escolhidas por Antenor Rodrigues de Oliveira. O símbolo do Império é a Coroa Imperial Brasileira. São Jorge é reverenciado como o santo padroeiro da agremiação.

E é essa miscelânea que nos leva à Avenida Edgard Romero, 114, em Madureira, no Rio de Janeiro. Lá, Geni Lopes, presidente da ala das baianas, recebe-nos com sorriso e braços abertos. Chegar ao Reizinho de Madureira – forma carinhosa de chamar o Império Serrano – e ser recebida pelas baianas é como mergulhar num mar verde e branco. Cheio de histórias, movimentos, cheiros e sorrisos. As baianas são o coração de qualquer Escola de Samba, e no Império Serrano não é diferente. São senhoras, idosas, mães, avós, tias que carregam a ancestralidade e o axé do samba. A ala teve muitas personagens emblemáticas como Jovelina Pérola Negra, Tia Maria do Jongo e Dona Ivone Lara. Segundo Marta D’Oyá, baiana do Império:

“A baiana é a mãe do samba e o Império sempre foi uma escola democrática, cantando a democracia. Nós tivemos mulheres importantíssimas na ala das baianas. Se estamos aqui é porque essas mulheres botaram o pé. Elas foram pastoras da escola, foram baianas. O samba só era aprovado quando passava pelas pastoras. Pastoras e baianas sempre andaram lado a lado. A religiosidade que existe aqui é muito forte. Isso tem que ser falado.

”Assim, agradecemos as Yabás Dalva Reis (59 anos), Sônia Conceição (68 anos), Lucia Iara (65 anos), Márcia Helena (60 anos), Marta D’Oyá (56 anos),  Lucimar da Silva (61 anos), Maria de Lourdes (67 anos), Maria Elisabeth (75 anos), Maria Lúcia (74 anos), Sandra Maria (69 anos), Regina Antunes (79 anos), Vera Lúcia dos Reis (68 anos), Vera Lúcia Cunha (61 anos), Geni Lopes (57 anos) e Vera Lúcia do Nascimento (76 anos). São essas algumas das guardiãs do samba imperiano e, mais do que isso, guardiãs da história, do tempo e da memória daquelas que plantaram a semente da cultura brasileira. 

07:15 
Acordo.
Olho-me no espelho. 
Tenho 44 anos.
Sorrio. Um leve franzir de testa. 
Apesar do breve contentamento, sei bem que a toxina botulínica não irá cessar a passagem do tempo em minha face. Os tratamentos estéticos podem ser eficientes para prevenir temporariamente o surgimento das rugas de expressão, mas o tempo urge em minhas células, que não param de se movimentar em seu ciclo de vida — nascem, crescem, reproduzem-se e morrem.

O processo de envelhecer nos lembra que somos finitos e nos faz confrontar, cedo ou tarde, a nossa transitoriedade. 

Em Sobre a transitoriedade (1915), Freud descreve o diálogo com um jovem e famoso poeta enquanto os dois caminhavam em um ensolarado dia de verão. O poeta admirava a beleza da paisagem, mas, porque era efêmera e logo desapareceria, com a chegada do inverno, não conseguia extrair dela qualquer alegria. O psicanalista argumentava que a beleza, justamente por ser transitória, deveria ser apreciada.

Esse pensamento me fez lembrar do meu tempo vivido — e o espelho que me encara, parece me perguntar:
— Como se sente?
— Às vezes eu sinto que o tempo da vida flui mais rapidamente do que as batidas do meu coração. 

Preciso me arrumar. O tempo foge. É hora de ir para ir para o trabalho. 

Ao caminhar para o consultório, me ocorre uma cena do filme A grande beleza, de Paolo Sorrentino. Aparece uma sorridente mulher, de jaleco. Ela segura um grande espelho. Em uma sala suntuosa, pessoas de diferentes idades esperam ansiosas pelo médico e o restante de sua equipe — ovacionados avidamente quando chegam. Inteligente e ácida, a cena nos presenteia com a fala do médico a uma de suas pacientes, uma senhora idosa. Em sua onipotência, confundindo-se com alguma grandiosa divindade, o médico, durante a aplicação de botox nos lábios da senhora, questiona:
 — Quer voltar trinta anos, quando chovia no fim de agosto? Eu levo você lá.

O cenário imaginado pelo cineasta italiano, embora fantasioso, não me parece muito distante do que observo em meu dia a dia, nas redes sociais. Deparar-se com as perdas que o envelhecimento traz é difícil, por isso, muitas vezes consciente e outras tantas inconscientemente, mascaramos, burlamos ou mesmo negamos essa condição.

Acredito que precisamos cotidianamente cultivar o sentimento de aceitação do envelhecer, que é um processo contínuo inerente à vida. Será que nos tornaríamos mais cuidadosos com a nossa saúde e com as nossas relações afetivas? Ficaríamos menos assombrados com as mudanças que nos são impostas pelo tempo? Reconheceríamos com mais facilidade o potencial criativo ainda existente nessa fase?
Viveríamos melhor?

***

Abro a porta do meu consultório. O sol avança pela janela e, ao fundo, vejo o divã. São nove horas da manhã.

***

14:40 
Laura estaciona o carro próximo ao parque Ibirapuera e, apressada, caminha em direção ao consultório do seu analista. Não sabe bem o motivo, mas observa que está quase correndo. Do que estaria correndo? Finalmente, chega e aguarda pela sessão, conferindo o relógio a cada minuto. 

— Laura!

Cumprimentam-se à distância. Ela deita no divã, encanta-se ao notar a bela orquídea que traz cor à sala austera. 

— Hoje faço 45 anos.
Silêncio.

Ela fecha os olhos e se vê transportada para o momento em que se deu conta de que se tornara uma mulher adulta. Ocasião de profunda alegria. 

Agora, ao completar mais um ano de vida, esse sentimento vem acompanhado de algo novo: pensa nos cabelos brancos que começaram a aparecer quando ela tinha 42 anos, pensa na dor do joelho que sentiu na última viagem que fez com seu marido, pensa amorosamente nos filhos crescidos e em seus pais. 

Um poema que fez aos 20 anos lhe vem à mente. Resolve declamá-lo.

Não se mova!
O céu está estrelado, lindo!
Mamãe caminha na quadra…Não se mova!
Papai, deitado na rede, ao som do silêncio da noite escura, dorme.
Sonha?
Não se mova?
Sinto medo do amanhã.

Depois, com a voz embargada, complementa:

— Sabe, Zé Francisco, tenho a impressão de que sempre vivi em descompasso com o tempo. É assustador perceber a finitude em tudo o que amo e em mim mesma, assim como é estranho perceber que meu corpo, por exemplo, que me é tão familiar, está se modificando. Movimento invisível que me escapa e desorienta. O que me espera?

 — E não estamos sempre em misteriosa travessia? — ele responde, de forma terna.
Laura se deixa transbordar.
O analista se comove ao pensar que ele, um homem de 75 anos de idade, e ela, uma mulher trinta anos mais jovem, compartilhavam, naquele instante, a percepção de sua frágil condição humana. 
Cada qual em sua impermanência.Uma emoção rara ocupou o clima da sessão, que estava próxima do fim. 

*** 

16:20 

Combinei de encontrar um amigo na frente do Auditório Ibirapuera. Preciso achar uma vaga de estacionamento. Vejo uma mulher entrar em seu carro. Eu não a conheço — é Laura. Ela parte e estaciono o meu veículo onde antes estava o seu. Aproveito que tenho alguns minutos de sobra e sigo pelo parque, deixando o sol tocar a minha pele. 

Avisto o Renato.

Durante o tempo que passamos juntos ele desabafa questões pessoais relacionadas à sua experiência de paternidade. A força com que entoa suas palavras sinceras e ásperas me faz perceber o quanto sofre. Diz sentir que a pessoa que um dia foi havia morrido com o nascimento do filho.

O menino, que tem cinco anos de idade, é uma criança amorosa e cheia de energia. O pai o ama profundamente e se dedica a ele com todo afinco, mas também se ressente, segundo ele. A chegada do filho levou sua liberdade e independência. Em paralelo, vive com pesar as mudanças físicas e emocionais de um homem de quase cinquenta anos. 

A vitalidade exuberante do menino coexistia com a vivência dolorida da perda da sua. Esse pai — em luto e nostálgico de um tempo passado — frustrava-se com o tempo presente, distinto daquele que desejava. Vivia uma profunda sensação de estranhamento em relação a si mesmo e a sua vida atual. 

Despeço-me do meu amigo e passo a refletir sobre o teor de nossa conversa.

Estaria se dando conta da passagem do seu tempo ao se defrontar com o alvorecer de seu filho? Poderá renascer? 

Torço para que ele elabore seu luto — talvez possa lembrar-se de viver a beleza do seu momento presente.

***

20:30

À noite, recebo a ligação de uma grande amiga, Manoela, que admiro tanto por sua capacidade de lidar com as agruras da vida quanto por seu humor irreverente. Pergunta se eu seria uma das testemunhas do seu testamento. 
Inusitado lembrete?
Despojada e livre de julgamentos, ela me falou: 

— Na manhã do meu aniversário, acordei mexida ao perceber que já era mais velha do que minha mãe jamais foi. Espero viver por muitos anos, mas, se o câncer voltar, quero deixar tudo organizado.

 Depois, me pergunta: 
—  Você acha esse convite fúnebre? A gente precisa quebrar o tabu que é falar sobre a morte… 
Minha amiga sabe bem que não é eterna. Ela fez 48 anos, e aos 35 teve câncer de mama. Recuperada há anos, segue saudável. Perdeu sua mãe, Ana, para essa doença. Recordo-me bem desse dia: eu tinha 12 anos e estava estudando matemática quando o telefone tocou. Eu gostava muito da Ana.
 
***

23:00 

Hoje, 18 de agosto, minha querida avó, Iracema, faria aniversário. Dizem que herdei as suas feições e seu corpo longilíneo. Vovó Cema morreu dois anos depois do meu nascimento — pouco a conheci. Como eu gostaria de, agora adulta, poder conviver com ela!

Sinto esse tipo estranho de saudade
É bom saber que sou parte dela e que a sua existência, de certa maneira, continua através da minha. 
Alcanço um dos livros à cabeceira da cama e me emociono com um poema de Walt Whitman.

Pleno de vida agora, consistente, visível, 
Eu, quarenta anos vividos, no oitenta e três dos Estados, 
Ao homem que viva daqui a um século, ou dentro de quantos séculos for,
A ti, que ainda não nasceste, dirijo este canto.
Quando leias isto, eu, que agora sou visível, terei me tornado invisível,
Enquanto tu serás consistente e visível, e dará realidade a meus poemas, voltando-te para mim,
Imaginando como seria bom se eu pudesse estar contigo e ser teu amigo:
Faz de conta que estou contigo (e não duvides muito, porque eu estou aí nesse momento).

***

Encontros transitórios que nos marcam — no infinito movimento do tempo.

Não existe senhora preta sem história triste pra contar
(…)
Quantas vezes já parei pra refletir
que os seus passos são pesados
quase sempre esparramados
os dedos na sandália sempre gastas de unhas grossas e esmalte por tirar.
Por onde passaram esses pés?
Quanta sola já foi gasta,
quanto a pé já não andou,
quanto aperto não passaram esses pés
para que o luxo dos sapatos novos
fosse dado somente aos tantos filhos.
E quanto aos seus filhos,
qual deles ainda lhe faz a gentileza
de cortar suas unhas?
Quanto pescoço e pé de galinha comeu
fingindo que gosta
para deixar as outras partes do ensopado
a quem mais ama?
Ninguém gosta de pescoço de galinha, senhora.
Enquanto caminha no sol
por ser calor sua pele sua
e a toalha de mão arrasta naquela testa
O que pensa aquela testa?
Quanto de pensamento não esquentou aquela testa além do sol?
Esse suor que toca salgado a raiz do cabelo na testa.
Quem ainda te alisa o cabelo?
Quem ainda te obriga a fazer isso?
Quanta ordem esse cabelo já recebeu?
Quanto tempo de sua vida ali em frente ao espelho infeliz com ele
Onde deita essa cabeça, senhora?
E quando deita, qual teto enxerga até adormecer?
O que sonhou essa cabeça?
Quanta inteligência nessa cabeça
A do cozinhar, a do costurar, a do resolver tudo por conta própria
foi substituída pela vergonha do não saber como ensinam nas escolas
Do não saber falar.
Quanta timidez senhora, por não saber falar.
Quanta vergonha sob essa testa que a toalha de mão arrasta foi obrigada a passar.
Eu vejo uma dor que é suada e seca,
Como se mesmo chorando, essa senhora preta nunca tivesse sentido pena de si do jeito que a gente chora.
Quanta pena de mim eu já senti
por perder um ônibus na minha pressa,
Quanta pena de si ela deixou de ter
por não ter podido mesmo se dar esse luxo.
Quanto choro silencioso e seco já chorou nesses seus setenta,
Sessenta, sessenta e oito anos.
Quanta simplicidade contemplou como se ouro fosse
Quanta alegria te deu a laje pronta,
a festa que a filha foi de sandália nova,
porque a sua já tão gasta ainda aguenta esse passo firme.
Em direção a quem caminham esses pés?
Qual o seu desejo pra hoje, senhora?
É que seus filhos sejam felizes?
É que tenha lugar na condução?
Qual seu lugar, senhora, explica.
Porque me entristece a injustiça dos que não te enxergam aqui passando majestosa.
Onde puseram seu trono, senhora?
E de repente, já terminei aquela rua e aquela senhora já caminhou
pra não sei onde
E aquela energia pendente como rastro no caminho
me faz indagar coisas como:
Quem cortará minhas unhas quando eu for senhora?
Quanto ainda caminharei até encontrar meu trono?

— Luciene Nascimento, em Tudo nela é de se amar.

Na primeira vez que li esse poema, ele me rasgou. Me partiu ao meio. Na segunda também. E na terceira. E na quarta, na quinta, em todas. Porque ele tem cheiro, tem gosto e tem rosto. O da minha avó. O da minha mãe. O de tantas nós.

Eu sou neta de duas mulheres negras. Maria Teixeira de Carvalho e Maria Aparecida Leite Nunes. A primeira nasceu em Campos dos Goytacazes, município do interior do estado do Rio de Janeiro. A segunda, nasceu na Comunidade Quilombola Sítio dos Crioulos, situado na zona rural da cidade de Jerônimo Monteiro, região sul do Espírito Santo. Ambas migraram para a cidade do Rio de Janeiro em busca de melhores condições de vida. As similaridades entre elas não param por aí. As duas começaram a trabalhar muito cedo em “casas de família”, tomando conta de outras crianças enquanto eram crianças também, limpando a sujeira que os mais abastados não queriam limpar. Essas duas mulheres negras se encontraram no Morro do Juramento, zona norte do Rio de Janeiro, onde meus pais se conheceram e constituíram a família que me origina.

No poema Vozes-mulheres, Conceição Evaristo escreve:

A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.

A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.

A linha narrativa desenhada pela autora retrata o caminho percorrido por muitas famílias negras. Em meio a violações, processos de escravidão e racismo contemporâneo, tentamos construir possibilidades outras de existir. Quando leio Conceição e Luciene, me recordo de uma conversa que tive com Dona Miguelina, minha parente do coração. Ela nasceu em Maceió, capital do estado de Alagoas. Veio para o Rio, como minhas duas avós. Ainda muito jovem, foi empregada doméstica. Alguns dos trabalhos desempenhados não eram remunerados financeiramente. A casa, a alimentação e por vezes um sapato ou vestidinho novos eram “a paga” pelos serviços prestados. Essa conversa mudou algo dentro de mim. Dona Miguelina não tinha dimensão da exploração que tinha vivido. Também não tinha o ódio que me surgiu ali, naquele momento, ao ouvir que a família era “até carinhosa”. Eu não conheci essa família, mas, de longe, eu a odiei, devo confessar. Não me senti digna de falar para uma senhora de mais de 70 anos que algo que ela guarda como memória afetiva era exploração. Não houve militância, leitura ou acúmulo acadêmico que desse conta do que aconteceu ali naquele quarto-sala na favela Nova Holanda. Mas desde então me pus a pensar nisso.

De tempos em tempos, emergem nos veículos de comunicação e redes sociais casos de situações de trabalho análogo à escravidão, nas quais geralmente senhoras negras foram as vítimas. Isso falando dos casos que ganham visibilidade. Sabemos que há milhares de histórias como essas soterradas. Um desses casos veio à tona em abril de 2022 e aconteceu em Lauro de Freitas, na região metropolitana de Salvador. Madalena Santiago da Silva tinha oito anos quando começou a trabalhar como empregada doméstica na casa de uma família de classe média alta baiana. Durante todo esse tempo, Madalena não recebeu salário. Em muitos momentos, sofreu violências e maus tratos, sem contar o racismo. Além disso, a filha dos patrões fez empréstimos no nome dela e ficou com R$ 20 mil da aposentadoria da empregada doméstica. Esse caso evidencia a falta de fiscalização eficaz por parte das autoridades, bem como a exploração impiedosa e o desrespeito aos direitos humanos mais básicos. Após ser resgatada, Madalena foi entrevistada por Adriana Oliveira, repórter da TV Bahia. Durante a conversa, a jornalista pegou na mão de Madalena, que disse: “Fico com receio de pegar na sua mão branca”. Adriana insistiu no toque, afirmando que não havia diferença entre as duas.

Quando tinha 61 anos, Leda Lúcia dos Santos foi resgatada de uma casa onde trabalhava desde os nove anos, no bairro Patamares, também em Salvador, sem receber pagamento. A idosa, que já havia tentado fugir diversas vezes — sendo ameaçada em todas — não sabia que tinha o direito de ganhar dinheiro pelos serviços prestados. Após o resgate, Leda passou a receber um salário mínimo e vive em um abrigo municipal.

Na cidade de Fortaleza, em maio de 2023, uma senhora de 78 anos, de nome não divulgada, foi encontrada em situação de trabalho análogo à escravidão. Ela prestava serviços há mais de 40 anos para a mesma família. A “remuneração” era casa e comida. Ela não recebia salário. Além disso, a senhora não tinha folgas ou férias. O trabalho era de domingo a domingo, por 40 anos a fio.

De forma geral, a “terceira idade” ou velhice costuma ser o momento em que nós, mais novos, vislumbramos o tão sonhado descanso após anos de trabalho. É quando esperamos ter o reconhecimento por nossas contribuições para a sociedade e sonhamos com o gozo pleno de direitos, um pouco menos amarrados pelas cordas da produção capitalista. Mas, falando de pessoas negras, muitas vezes o tão sonhado descanso não chega em vida.

Os três casos citados expõem uma ferida aberta nas sociedades ocidentais: a falta de cuidado com os mais velhos, especialmente os negros, indígenas e empobrecidos. As condições de trabalho enfrentadas por essas senhoras, bem como as encontradas pelas minhas avós e por Dona Miguelina são herança de uma mentalidade colonial que vê em mulheres negras de mais idade o lugar da abdicação, do cuidado e, por que não, da exploração. Os quartos de empregada são senzalas pintadas de modernidade.

Assim, é importante nos questionarmos: quem tem direito a envelhecer? Conforme pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizada em 2019, em Santa Catarina, um dos estados brasileiros com uma das maiores rendas médias per capita, a expectativa de vida média era de 79,9 anos. Já no Maranhão, o estado com a menor renda média do país, a expectativa de vida média naquele ano foi de 71,4 anos. É relevante ainda a informação levantada no Relatório Anual das Desigualdades Raciais do Núcleo de Estudos de População, elaborado pela Universidade Estadual de Campinas (Nepo/Unicamp), de que os brancos vivem seis anos a mais que os negros, em média.

A maior parte da população brasileira é composta por pessoas negras (pretas e pardas). Porém, esses grupos enfrentam maiores desafios em relação ao acesso à educação, à saúde e ao saneamento básico e estão mais expostos a condições de trabalho degradantes, o que resulta em limitações no acesso a direitos básicos, como salário-mínimo e aposentadoria. Além disso, pessoas negras sofrem com níveis mais elevados de violência e são as principais vítimas de processos de genocídio, especialmente os homens negros.

Quando li o poema de Luciene Nascimento, além de sentir o cheiro da minha avó, me lembrei de uma pergunta que me perturbava a cabeça quando era criança e assistia ao Sítio do Picapau Amarelo na TV: porque a marca da farinha de trigo se chama Dona Benta, se quem faz as receitas é a Tia Anastácia? Eu mesma espantava a pergunta de minha mente, pois achava que era bobagem. Não é.

É histórico o processo de roubo de histórias de nossas mais velhas, negras. É histórico o roubo de suas vidas. Tia Nastácia é frequentemente retratada como cozinheira da família, caracterizada por sua pele escura e por seu corpo gordo, sendo muitas vezes rotulada como a “negra de estimação”. Sua posição, marcada pela subordinação e pelo serviço à família da fazenda, ilustra o estereótipo da mulher negra que dedica sua vida a uma família branca, conhecida como “mãe preta”. Esse estereótipo é recorrente em produções cinematográficas, novelas e séries. Ele contribui para um imaginário que faz parecer natural explorar a mão de obra de mulheres negras por anos e não lhes pagar um único centavo.

Há um provérbio africano que diz que, quando um velho morre, é uma biblioteca que queima. Isso porque são os mais velhos e as mais velhas que, por seu tempo acumulado e vivido nesta terra, guardam uma maior quantidade de vivências e saberes. Afinal, percorreram muitos caminhos que podem ajudar quem está chegando agora na estrada da vida. Porém, para que essas bibliotecas possam compartilhar seus conhecimentos e desfrutar da leveza do ser ainda precisamos avançar enquanto sociedade e quebrar o paradigma de vivermos num tempo em que muitos querem envelhecer, mas poucos respeitam aqueles que já chegaram lá.

A cantora Patti Smith por Krijn van Noordwijk. Reprodução

Numa tarde em Capri, diante do espetáculo de moças jovens bronzeadas atravessando a piazzetta na qual bebíamos nossos Camparis, lancei-lhe a pergunta: “A juventude te seduz?”
— Annie Ernaux, em “O Jovem”.

Arte da alagoana Roxinha.

Envelhecimento é palavrão no universo da beleza. Geralmente acompanhando de cifras bilionárias que movimentam uma indústria irrefreável em busca de tecnologia para atenuar sinais do tempo e também de um vocabulário excessivamente bélico. Você já deve ter cruzado com embalagens, campanhas publicitárias e rótulos com promessas de combater o tempo, enfrentar a guerra contra as rugas, ou vencer a batalha contra o relógio. 

Se não anda acompanhado de armas de guerra, esse território ganha ares metafísicos de quem pode voltar no tempo, frear o passar dos anos, operar milagres e conservar a juventude eterna. Juventude vende, e muito. Sonho mágico, já que a única certeza que temos é que vamos envelhecer – e, na melhor das hipóteses, vivendo mais e melhor do que as gerações que nos antecedem.

Nos últimos anos, há um esforço de quem pensa o tema em olhar para o léxico em torno do envelhecimento nessa seara da estética. Mas não só, este é um movimento global, que vai além da beleza e ganhou termos específicos, como ageshaming, ageísmo, idadismo ou velhofobia, como a antropóloga brasileira Mirian Goldenberg gosta de dizer. E mobiliza mais do que especificamente essa indústria – um relatório recente da Organização Mundial de Saúde, somente sobre o tema, coloca luz à importância de discutirmos o preconceito contra idade em instituições, leis e políticas do mundo todo porque nega às pessoas direitos de viverem de acordo com o seu pleno potencial em uma sociedade que, no mundo ideal, não deveria deixar ninguém para trás.

Perla Servan Schreiber, intelectual francesa de 78 anos e cofundadora da revista Psychologies, é uma das autoras que fala sobre a passagem do tempo de forma realista, lembrando que vivemos uma fase global de revisão e rompimento com conceitos sociais e políticos que atravessam a nossa concepção de idade. “Ainda temos uma noção imaginária de idade que não corresponde mais à realidade de envelhecer nos dias de hoje. Por isso, quero dizer, em alto e bom som: sim, ainda somos sedutoras, ativas, populares, cheias de desejos e sexualidade”.

Há essa ideia, especialmente no universo de beleza, que envelhecer merece desculpas ou disfarce. Faz, sobretudo as mulheres, em busca da juventude eterna, sentirem vergonha ou lamentarem quando as rugas aparecem, a menopausa dá as caras, o corpo e a libido se transformam em comparação aos 20 e poucos anos. Sophie Fontanel, jornalista francesa de moda, despontou nas redes sociais com mais de 50 anos quando resolveu não disfarçar que queria assumir o cabelo grisalho (história que virou até livro best-seller). Em uma conversa, ela me contou que decidiu passar pela transição dos fios tingidos de castanho para o branco total assumindo a “fase zebra”, como nomeou, porque queria que, nas ruas, as pessoas vissem que atravessava a mudança sem precisar disfarçar que envelhecia. “Muitas vezes, pela manhã, olho no espelho e penso ‘parece que tenho 80’. Acho importante aceitar a verdade, você não é a mesma pessoa todos os dias do ano. Alguns dias me sinto muito jovem, meu corpo está diferente, a pele está melhor. Em outros está pior. E o modo como você se olha muda tudo”, me disse.

Numa outra ocasião, enquanto acompanhava uma série de retratos da Cecília Dean, de 54 anos, que construiu uma carreira como modelo antes de fundar a Visionaire, uma das publicações mais inovadoras quando o assunto é moda, arte e design, ela me disse que sempre ficava em dúvida se sorria, ou não, nas fotos. Porque sorrir deixava a pele dos olhos mais enrugada, mas a expressão séria e controlada de modelo não tinha mais tanta relação como ela se sentia. “Quando não sorrio e vejo as imagens penso ‘pareço tão séria, mais velha’. É isso: sorrir te faz parecer automaticamente mais alegre e mais bonita. Acredito que a idade só incomoda quando você não está feliz com o lugar que ocupa no mundo. Eu, ao menos, nunca gostaria de voltar aos meus 20 anos. Tive momentos maravilhosos e memoráveis, mas não desejo fazer o caminho de volta. Me sinto tão mais esperta hoje, tão mais experiente. Tenho conhecimento sobre coisas que eu não tinha, consigo enxergar detalhes que não poderia antes, tomar decisões mais rapidamente. Tenho uma clareza genuína que só melhora com o passar do tempo, mesmo que você sinta as mudanças físicas.”

Há mais de uma década, quando vi Patti Smith no palco pela primeira vez, fiquei encantada com a forma como ela se movimentava. Hoje, ela continua sexy, graciosa, à vontade, confiante enquanto canta. Com o cabelo branco cheio de textura, a calça jeans, camisa e tênis característicos. Descrições que não comumente fazem associação direta aos seus 76 anos. 

A atitude de todas elas me faz pensar que não há uma trilha única ou maniqueísta. A memória de um rosto mais jovem é sedutora, mas tão cara quanto as lembranças do que vivemos. Só não deveria figurar como a única métrica de valor ou objetivo central de aceitação e autoestima femininas. Essa consciência também não torna o processo de envelhecimento estritamente positivo. Não há a ilusão da ”melhor idade” quando a decadência e transformação física ficam mais evidentes. Mas a combinação de saberes, desejo por longevidade e aspectos emocionais intrínsecos a envelhecer pode ser tão valiosa quanto ao corpo que enxergamos no espelho. 

No atribulado cenário da sociedade contemporânea, um preconceito às vezes sutil, às vezes explícito se manifesta, sempre de maneira indigesta, em um dos espaços mais cruciais para a significação e a realização humana: o ambiente de trabalho. O etarismo — nome dado à discriminação baseada na idade — revela-se como um desafio persistente que permeia diversas esferas, com particular intensidade em setores profissionais altamente mutáveis, como os da comunicação e o da tecnologia, que se transformam a cada dia, com as inovações que não param de chegar e que clamam por implementação urgente. Enfrentar esse preconceito exige não apenas compreensão profunda dos problemas subjacentes, mas também uma mudança de paradigma que valorize a diversidade etária e reconheça as contribuições únicas trazidas por aqueles com mais de 50, 60, 70 anos.

O mercado de trabalho atual demonstra uma inclinação notável ao etarismo — um pendor que não é de hoje, mas foi acentuado nos últimos anos. A muitos setores, jovialidade e inovação parecem ser qualidades inerentes, tidos quase como sinônimos de qualidade e retorno (em um caso ou outro, até de economia), levando à marginalização dos trabalhadores mais experientes. Não é necessário recorrer a exemplos extremos: o jornalismo, agora sem contar muito com a mídia impressa, precisa se adaptar a cada instante para sobreviver; a publicidade, diante de um mar de possibilidades, tem que estar por dentro de todos os novos formatos e linguagens para ser efetiva; os programadores, já frutos tecnológicos, têm que aprender códigos e mais códigos para responder a demandas que há seis meses simplesmente não existiam; e por aí a banda toca, com as notas de um ciclo sem fim. Nesse processo, o preconceito subestima talentos, ao gerar uma atitude generalizada que não só perpetua estereótipos negativos sobre a capacidade de aprendizado e adaptação dos profissionais mais velhos, como também desperdiça os reservatórios de sabedoria — que podem, sim, ser aplicados às novidades de qualquer mercado.

A experiência é uma fonte inestimável de insights e discernimento. Uma pessoa com mais de 50 anos pode contribuir para um ambiente de trabalho de maneiras profundas e transformadoras, como, por exemplo, com sua capacidade de discernir padrões, resolver problemas complexos e orientar equipes, qualidades que se baseiam em um conhecimento que foi adquirido (veja só!) ao longo dos anos, o que a torna dificilmente substituível por alguém mais jovem. Os muitos anos de labuta não necessariamente vão ancorar um profissional a um determinado jeito de fazer as coisas, a um know-how antiquado, pois o acúmulo de vivências profissionais pode, na verdade, se juntar aos novos tempos e resultar até em metodologias aperfeiçoadas. 

O preconceito baseado na idade constitui um paradoxo enorme, se lembrarmos que estamos vivendo cada vez mais. É o encurtamento da vida profissional em meio ao alargamento da expectativa de vida. Tomando como parâmetro os avanços da medicina e as mudanças de atitude que privilegiam a nossa saúde mental e física, estima-se que, a cada ano, aumentamos essa expectativa. Ray Kurzweil, renomado pesquisador futurista dos EUA, acredita que, em breve, a mortalidade será apenas uma questão de acesso à tecnologia certa. Verdade ou não, na medida em que as pessoas vivem mais e mais, a ideia de alguém atinge o auge de sua carreira aos 30 ou 40 anos é cada vez mais absurda — e é uma pena que o bom senso de Kurzweil não seja disseminado. 

Como abraçar uma fatia tão pequena e presumir que só nela alguém tem algo a oferecer profissionalmente, esquecendo todo o resto? A ampla acessibilidade de informação da vida moderna permite que as pessoas continuem a aprender, crescer e contribuir além das fronteiras tradicionais da idade de aposentadoria. A crueldade — aqui e em todos os preconceitos, que têm o vil costume de operar de maneira similar — é incutir na pessoa-alvo a ideia de que ela não tem o necessário para se especializar em quaisquer que sejam os novos ditames do momento, tornando-a uma pária de si mesma. Isso para não falar da questão mais prática: essa pessoa precisa de dinheiro para sobreviver, e tirar seu ganha-pão, paulatina ou repentinamente, constitui uma atrocidade aviltante. Diante de uma aposentadoria possivelmente comprometida, o que fazer?

No contexto de descartabilidade insensata e contumaz, entra a difícil função social dos profissionais de recursos humanos. Eles, em tese, têm a capacidade de moldar a cultura organizacional de uma empresa, promovendo uma mentalidade inclusiva e diversificada. É claro que a dificuldade é maior quando são as pessoas do alto escalão que mais estão a bordo da barca do etarismo (mesmo quando não são assim tão jovens). É necessário, muitas vezes, que a mudança ocorra passo a passo, com profissionais de RH transformando, aos poucos, as práticas tanto de contratação quanto de promoção e fomentando a aprendizagem contínua e o desenvolvimento ao longo da vida. 

Para além das razões óbvias, que vão do social ao moral, motivos negociais estratégicos também dizem que as oportunidades de desenvolver uma carreira significativa não deveria ser negada a ninguém com base em preconceitos etários. Empresas que valorizam a diversidade etária não apenas promovem a justiça social, mas também abocanham uma fonte inexplorada de vantagem competitiva. A diversidade é boa para os negócios, certo? E isso inclui a diversidade de idade. Além do que nenhum mercado se restringe completamente a produtos e serviços destinados a pessoas dos 20 aos 40 anos, certo? Eis, então, mais um motivo: chegar a mais pessoas a partir desses possíveis funcionários.

O etarismo no ambiente de trabalho, infelizmente, é uma questão de relevância global. O Brasil, assim como muitas partes do mundo, tem a discriminação etária como uma barreira significativa para profissionais com mais de 50 anos. Dados revelam que a indústria de tecnologia, aclamada por sua vanguarda inovadora, é uma das mais propensas à discriminação etária. De acordo com uma pesquisa realizada pelo The Center for Digital Future, nos Estados Unidos, mais de 50% dos profissionais de tecnologia nessa faixa etária relatam ter enfrentado algum tipo de discriminação ou preconceito relacionado à idade. No Brasil, uma pesquisa da Fundação Instituto de Administração (FIA) apontou que 73% dos profissionais com mais de 45 anos sentem que a idade é um obstáculo na busca por emprego.

Não é necessário fazer grandes contas para concluir que não há bons motivos para a idade ser fator excludente. De onde, então, vem essa ideia? O etarismo no ambiente de trabalho é um fenômeno complexo que está enraizado em uma série de fatores interconectados que têm impacto tanto no nível individual quanto no organizacional. O etarismo é uma ideia que não pediu licença para entrar, mas que também não abusou de sua estadia: adentrou o recinto calmamente, pelas sombras, e se acomodou sem fazer barulho. Ele está impregnado em nossas visões, favorecendo, consequentemente, os mais jovens quando processos seletivos acontecem. Isso perpetua, a partir das vias pessoais, um ciclo de discriminação, como se não bastasse o culto à juventude visto na mídia e nas indústrias de entretenimento, criando uma narrativa de que, em contraponto à velhice, a juventude tem mais a oferecer. 

Essa não é uma questão isolada, mas sim reflexo de narrativas culturais mais amplas. Muitas vezes, não é apenas a idade que importa. A interseccionalidade com gênero, raça ou outras características também pode desempenhar papel fundamental. Uma pesquisa publicada no jornal Ageing & Society, da Universidade de Cambridge, feita em nove países europeus, constatou que o acesso a oportunidades de treinamento foi afetado pela interação de idade e gênero, sendo as trabalhadoras mais velhas as mais desfavorecidas. Além disso, as taxas de mobilidade descendente de cargos gerenciais e profissionais eram maiores entre os trabalhadores mais velhos negros em relação aos brancos. Ou seja, o acúmulo de preconceitos tende a desfavorecer ainda mais as parcelas que já são desfavorecidas sem o fator idade.

A presença de estereótipos negativos relacionados à idade, porém, não resulta apenas em discriminação: ela também produz baixo desempenho, que pode ocorrer por dois mecanismos, o externo e o interno. O externo se manifesta quando um trabalhador mais velho fica tão preocupado em desacreditar um estereótipo negativo que isso impede sua capacidade de concentração, prejudicando, assim, o seu desempenho. O mecanismo interno se dá quando o trabalhador internaliza um estereótipo por meio da exposição repetida a ele — se você cresce ouvindo como verdade absoluta que, na medida em que ficam mais velhas, as pessoas deixam de ser produtivas e se tornam inválidas para o mercado de trabalho, quando é sua vez de envelhecer, você pode acreditar que é menos competente.

De uma perspectiva pessoal, há inúmeras respostas a isso: desafiar o preconceito no ambiente de trabalho e estar pronto para os conflitos que nascerão daí; redefinir a posição profissional; se resignar e acreditar que seus melhores dias de carreira já passaram. Em qualquer uma delas, há um peso. Cruel, não?

Cada empresa terá necessidades diferentes, não haverá uma solução única. Qualquer que seja a abordagem adotada, será importante medir sua eficácia ao longo do tempo, e não apenas presumir que a introdução de uma ou mais mudanças significa que o problema foi resolvido. Programas de conscientização e treinamento para identificar e combater o viés inconsciente sempre são válidos. Promover a colaboração entre profissionais de diferentes faixas etárias pode resultar em uma troca mais rica de conhecimentos e perspectivas. Projetos colaborativos, mentorias cruzadas, workshops intergeracionais — vale tudo. As possibilidades são muitas, basta que as empresas queiram fazer isso acontecer.

Desafiar o etarismo no local de trabalho é construir uma cultura mais rica, inclusiva e capaz de aproveitar ao máximo a experiência humana em todas as suas fases, rejeitando o papel de virarmos párias de nós mesmos.

Para pessoas que nasceram antes dos anos dois mil, o controle remoto da televisão era um grande agente de interação com os avós. A dificuldade com o dispositivo às vezes era tanta — seja por inabilidade ou por problemas de visão que impediam que os avós enxergassem os números do controle — que a solução mais simples para os netos era pegar o controle e, aos sons da clássica reclamação de que aquela “porcaria” não estava funcionando, mudar para o canal desejado. Bem ou mal, o problema se resolvia, mas ele voltava a aparecer, muito possivelmente já nas próximas horas; na melhor das hipóteses, no dia seguinte. A impaciência, é verdade, vinha dos dois lados. Ensinar e aprender eram incumbências árduas. Para as pessoas que nasceram nos anos dois mil, há uma profusão de inovações que, tais quais aqueles controles remotos (que ainda existem e vão muito bem, obrigado), parecem indispensáveis e podem causar confusão a quem não está acostumado a aprender a mexer em um novo aparelho com tanta frequência. Direta ou indiretamente, com mais ou menos drama e belicosidade, todos já vivemos cenas similares a essa.

Por um lado, negligencia-se a tarefa atávica de auxiliar pessoas idosas a compreender e utilizar dispositivos, de promover algum tipo de engajamento com inovações digitais. Por outro, pessoas idosas resistem em aprender e se adaptar a essas novidades. Surge, então, a grande questão: onde começa e onde termina isso tudo? Essa é uma dinâmica tão intrigante quanto problemática. É como se houvesse certa irresponsabilidade compartilhada entre as gerações, cada uma considerando apenas o contexto próprio, fechando os olhos para um cenário maior de integração sadia. A pressa pelo futuro digital bate mais rápido e mais forte do que a vontade de incluir; a acomodação, que se faz de rogada, inviabiliza qualquer mergulho no vasto oceano de gadgets e inovações.

A falta de colaboração e compreensão vista amiúde em lares que abrigam gerações distintas provoca uma crescente exclusão digital sistêmica, algo que vai muito além de alguém não conseguir usar um smartphone ou navegar na internet. Ela também se traduz em um descompasso cultural enorme, uma desconexão entre faixas etárias que extrapola o que seria tido como normal e que pode afetar seriamente — se é que já não está afetando — a coesão social, comprometendo a transmissão de conhecimento e experiência de uma geração para a próxima. Um fator que aumenta esse descompasso para além da conta e faz com que esse seja um problema maior hoje em dia do que sempre foi é o rápido ritmo de mudança na tecnologia e, consequentemente, na sociedade. Nunca estivemos em marcha tão alta. Nunca antes levantamos tanta poeira com os pneus da modernidade. Novos dispositivos, aplicativos e corpos de ideias vêm se multiplicando — e isso é um desafio constante para pessoas de todas as idades, não só para os idosos. Nem sempre a adaptação acontece de maneira natural, e quanto mais distante você se sentir de um momento da história, mais improvável é que isso ocorra organicamente. Muitas vezes, porém, os que cresceram imersos nesse ambiente digital e que conseguem processar novidades com mais facilidade presumem que os mais velhos devem acompanhá-los na absorção das coisas. Essa presunção ignora o fato de que os idosos podem não ter tido a mesma exposição ou oportunidade de aprender a lidar com essas ferramentas.

Existem muitos motivos para a possível rejeição de novas tecnologias por parte dos idosos. Entre eles, destacam-se: o medo do desconhecido (porque, sim, o mundo digital pode assustar qualquer um que não o conhece); o receio de serem deixados para trás (por mais paradoxal que possa parecer, é um receio circular que também causa aquilo que se teme); as dificuldades cognitivas relacionadas à idade (que, por mais que tentemos evitar, vêm e geram complicações); ou, simplesmente, a sensação de que suas formas tradicionais de interação e comunicação são mais autênticas. Essa resistência pode, inclusive, ser amplificada pela sensação de que a sociedade está se afastando de valores e práticas mais antigas. Antes, os valores que tocavam a sociedade pareciam mais intransponíveis, blindados contra novas opções. Agora, para o bem de todos nós, a conjuntura é outra: as mudanças socioculturais estão em ritmo tresloucado e, hoje em dia, estão muito ligadas a novas plataformas, que promovem um diálogo mais aberto e inquisitivo. Quem considerar que não faz parte dessa mudança de mentalidade geral, inconscientemente, também se fecha para muitas das novidades que poderiam ser interessantes a ela em diferentes esferas.

Evidentemente, não dá para dizer que é culpa de um ou de outro. A responsabilidade — supondo que essa seja a palavra certa — recai sobre ambas as partes. Os mais jovens podem se beneficiar ao reconhecer a importância de ensinar e apoiar os mais velhos nessa jornada digital; os mais velhos podem tirar muita coisa boa de tudo que está acontecendo, explorando ferramentas que podem auxiliar sua saúde, seu bem-estar e sua vida tanto pessoal quanto profissional. Essa atitude não apenas capacitaria as pessoas idosas, mas também poderia levar a uma maior conexão intergeracional e ao compartilhamento de experiências valiosas. A população idosa pode considerar a aprendizagem contínua como uma maneira de se manter envolvida na sociedade em constante evolução. Para que isso aconteça, é necessário desatar alguns nós, a começar com um dos maiores: a negação.

A negação dessa realidade é uma camada densa do complexo tecido social que envolve a relação entre as gerações. Os mais jovens muitas vezes estão imersos em suas próprias vidas, aprofundados em uma existência que tem a tecnologia como uma extensão natural de si mesmos. Para eles, é difícil entender por que os mais velhos não conseguem, ou não querem, acompanhar o ritmo. Essa falta de empatia pode levar à frustração e até mesmo à impaciência, levando-os a abandonar quaisquer tentativas de ensinar — é a conveniência danosa de pegar o controle remoto, mudar de canal e, pronto, missão cumprida. Em contrapartida, muitos idosos resistem a admitir que precisam aprender algo novo, especialmente quando isso implica reconhecer que estão envelhecendo — constituindo a mesma conveniência prejudicial, agora no formato de chamar, esperar entrar no canal e encerrar por aí. A negação, que é uma defesa psicológica comum, pode se manifestar como uma recusa obstinada em abraçar a tecnologia moderna. Isso muitas vezes é alimentado pela sensação de que suas experiências de vida são menos valorizadas em uma sociedade obcecada pelo novo.

A negação mútua só serve para agravar a exclusão. Enquanto os mais jovens negam sua responsabilidade de guiar os mais velhos através do labirinto digital, as pessoas idosas negam a si mesmas a oportunidade de se conectar mais profundamente com realidades diferentes. Essa polarização cria um fosso cada vez mais amplo entre as gerações, corroendo a coesão social e minando a compreensão mútua. A contradição chega a ser quase palpável quando percebemos que essa retroalimentação entre as gerações não só dá perenidade à exclusão digital, mas também pode limitar a evolução da sociedade como um todo. Se não houver um esforço conjunto para envolver as populações idosas nessa jornada, perdemos perspectivas e sabedoria que poderiam enriquecer decisões e até inovações. Somos todos passageiros em uma mesma jornada temporal, e este agora, por mais que soe como má poesia, é o que nos liga. Será que podemos mesmo nos dar ao luxo de deixar para trás aqueles que nos precederam? Será que nossa obsessão pelo futuro está obscurecendo a importância de preservar o passado?

É importante lembrar que a negação é uma resposta natural a mudanças significativas. Portanto, reconhecer essa resistência e abordá-la com compaixão e paciência é fundamental para romper ciclos que acabam funcionando como verdadeiros tiros no pé. Neste caso, a negação nada mais é do que um reflexo do medo do desconhecido e do desejo humano universal de pertencer e ser valorizado. Ao enfrentar essa negação com compreensão e solidariedade, inicia-se a construção de largas travessias, transformando o fosso geracional em um ponto de partida para a troca de ideias e a construção de um futuro minimamente mais inclusivo.

Toda a questão da irresponsabilidade compartilhada nos leva a refletir sobre como a nossa sociedade valoriza e integra as diferentes gerações. É natural pensar que, ainda que já mais versadas no mundo tecnológico, com a velocidade com que tudo vem mudando, mesmo as gerações que hoje caminham com naturalidade pelas mudanças também sofram exclusão na medida em que forem envelhecendo. É natural que se pense nisso, mas não deveria ser. Encontrar maneiras de garantir que ninguém seja deixado para trás é vital. A inclusão digital não é apenas uma questão de acessar a tecnologia, mas também de cultivar entendimento, respeito e colaboração entre as gerações. No final das contas, a verdadeira evolução não está apenas no domínio de novas tecnologias, mas também na capacidade de nos conectar através das eras, tecendo a história de nossa humanidade com fios de compreensão e respeito. Um controle remoto por vez.

Num dia você é jovem, produtivo, tem sonhos e projetos de vida na pauta de sua agenda semanal. No outro, descobre, da maneira mais estranha possível, que seus assuntos versam sobre a morte de familiares queridos e pessoas públicas; adoecimentos e tratamentos de saúde; medicações de última tecnologia para tratamentos de saúde e suplementação para a manutenção de um corpo saudável — em um esforço constante na tentativa de mantê-lo afastado dos adoecimentos e das dores do viver neste corpo.

O tempo tem passado de maneira veloz, e não estamos conseguindo elaborar as mudanças integradas que acontecem no corpo, na mente e no espírito. As dimensões do tempo vivido têm sido borradas por um passado que se tenta resgatar de modo compulsivo, com a função de cumprir um prescritivo de vida jovem e produtiva, desconsiderando as passagens do tempo, inevitáveis a todo corpo humano. Por mais que a biotecnologia se esforce e as condições econômicas favoreçam ao ser humano avançar no envelhecimento ativo e saudável, uma verdade é nua: se viver e viver de fato é muito bom, o preço a se viver é o envelhe-ser deste templo chamado corpo e cuja humanidade parece ter caído no esquecimento moderno. O fato é que a conta não fecha; estamos desumanizando nossa condição mais humana: a vulnerabilidade, aquilo que não estamos contando, o inesperado. 

Vivemos no mundo da modernidade líquida, como apontou Zygmunt Bauman, sociólogo idealizador da obra Amor líquido e de tantas outras que versam sobre o efeito do capitalismo no corpo e no tempo. Corpo e tempo que, segundo a sua interpretação, são transformados em esferas do ser humano voltadas ao consumo — especialmente o consumo que nos entrega a satisfação do bem-estar imediato, alcançado por meio do acesso fácil a serviços, pessoas e bens de consumo. Na busca por maximizar nossa satisfação instantânea, a dopamina gerada a cada like de aprovação externa nas redes sociais se tornou o maior reforçador da existência humana e de sua visibilidade social. 

Em tempos idos, em que a racionalidade predominava como o paradigma de um plano diretor da existência, a máxima ideológica era “penso, logo existo”. Essa premissa migrou um pouco para “posto, logo existo” e gerou uma compulsão pela criação de perfis nas redes sociais como validação de uma existência ativa e interessante, reconhecida por meio de produção de conteúdos e imagens que emocionam e conectam pessoas por meio do afeto gerado pela identificação. Nasce, então, uma rede social virtual que predomina em todas as classes sociais, com uma diversidade humana conectada por nichos de interesse, configurando-se uma rede de apoio e criando-se vínculos baseados em laços profissionais, de amizade e de relacionamentos íntimos.

Não seria problema existir nas redes sociais; seria até uma solução para os viventes apressados, já que estaríamos encurtando fronteiras entre nossos interesses, singularizando aquilo que nos diz respeito e trazendo para perto nossos vínculos distantes (inclusive de forma geográfica), eliminando as distâncias a serem percorridas e facilitando as conexões humanas. A questão que precisamos tratar é outra, tão importante quanto silenciada em nossa sociedade: o quanto estamos mais solitários, individualistas e fechados para relacionamentos que convocam a força do encontro presencial. Isso foi naturalizado e potencializado com a pandemia de covid-19, que fez com que se aprimorassem inúmeros aplicativos de relacionamento como uma maneira de resolver o problema do isolamento social imposto pela crise sanitária. 

Até aqui, a questão do envelhe-ser não seria tão inflamada, pois é possível maquiar selfies, criar perfis hedonistas e até personagens de vida interessante, que pareçam uma ótima companhia. Porém, o desencontro humano e a falta de permanência dos vínculos também se anunciam como um gerador de angústia cada vez mais recorrente nos consultórios médicos e psicológicos. Estamos vivendo uma era do hiperespetáculo, conceito descrito pelos filósofos Gilles Lipovetsky e Jean Serroy em A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista, em que os autores afirmam que o novo regime de produção traz críticas ao mau gosto e à feiura da produção industrial. Nesse âmbito, aparecem ainda diversas correntes ambicionando a melhoria da qualidade estética dos objetos fabricados em série, reconciliando a criação com padronização, beleza e indústria, com arte e técnica modernas.

Embelezar, seduzir, inovar e distrair são as novas ideias do bronze do capitalismo artista. Cria-se uma nova geração treinada no consumo para a arte, para o belo, para o prazer, para o entretenimento full time, para a cultura e para uma existência baseada no melhor aproveitamento do tempo. E o que esse cenário tem a ver com a nossa passagem do tempo vivido? Tem a ver que a vida sonhada com base num sucesso padronizado e na realização humana não comporta uma vida de fato humana, que contém diversas tonalidades afetivas: frustrações, dores, lutos, perdas — de saúde, financeiras, afetivas, sociais. Uma vida que abriga todas as mazelas humanas de descobrir-se vivo em um tempo em que não se pode ser frágil, que abriga inclusive a parte mais vulnerável do tempo: a velhice. Invisível, ela se instala, mostrando a face cinza da vida: aquela que não produz, não seduz e ainda causa dor, afinal, é doloroso pensar na passagem do tempo e em suas possíveis facticidades já presumidas e primas da dependência, como ter que contar com quem nos dê suporte e tome decisões por nós em caso de incapacidade; com a possibilidade de ter que ser tutelado — mesmo que essa tutela se baseie em vínculos afetivos. Mas cadê as pessoas que ficam disponíveis ao cuidado daqueles que não são mais moeda de troca?

 A questão maior é que nós que vivemos a crise da meia-idade — e digo “nós” porque me encontro nela —, geralmente com idade entre 40 e 55 anos, estamos no auge da potência produtiva na realização de vínculos familiares, fraternos, filiais e conjugais e construímos uma boa rede de relacionamentos, compatíveis com nossos interesses, que se tornaram vínculos sólidos e que nos transmitem a segurança de que seremos cuidados. Esse cuidado geralmente se dá no grupo familiar sem maiores problemas, sendo pré-estabelecido organicamente pela sucessão familiar, afinal, os membros desse núcleo já preveem que a família seja responsável pelos cuidados com os mais velhos até a morte.

A questão que precisamos tratar, dentro do contexto do tempo hipermoderno, com todas as mudanças nos valores, nos modos de existir e na forma como se dão as relações sociais, é que os relacionamentos passaram do estado sólido para o pastoso, líquido ou gasoso. Adquirir o status de relacionamento já é algo em falta, quando a pauta é a formação de vínculos, inclusive entre gerações mais jovens, entre 20 e 40 anos — precursores da meia-idade, em que os valores são pautados pela experiência de vida e por uma maior intensidade e diversidade possível no que se refere aos momentos vividos. É uma lógica que torna o projeto de vida algo planejado quase arquitetonicamente para não se perder tempo, pois este é um recurso escasso e que não se renova.

Crises da meia-idade nos despertam para a finitude, nos fazem atentar para o fato de que não se volta no tempo. Algumas pessoas começam, nesse momento, com os cuidados estéticos e o controle da saúde, de forma a se ter um corpo que drible as marcas do envelhecer. Isso resulta, sim, em algum ganho estético, fazendo parecer que ser mais jovem mantém portas abertas, afinal, ser jovem é a marca de nosso tempo. Alguns vão cuidar de um novo projeto, abandonam as carteiras assinadas e se lançam em novos desafios profissionais. Para a síndrome do ninho vazio (quando os filhos crescem ou quando se constata que não os teve), há uma oferta de atividades que o mercado do entretenimento oferece ao tédio sentido por quem se aproxima dessa fase. Para o grupo de divorciados, há uma gama de pessoas no mercado da repescagem, com suas notórias histórias, com uma bagagem de experiências e traumas sendo curados na esperança de se voltar ao equilíbrio mínimo. 

Mas até agora temos toda a ocupação vinda de fora, do material, do mundo do consumo. E o que farei com as minhas faltas de dentro? Quem vai preencher minha fome de presença, de escuta, de sentir junto comigo a vida? Quem vai estar comigo até o fim da vida adulta? Sim, precisamos falar sobre como um dia vamos morrer e nossa notória identidade cairá em esquecimento em até dois anos — isso se lembrarem de registrar que morremos, pois envelhecer traz consigo a invisibilidade de nossa passagem na terra. Triste, cru, indigesto e mal temperado, esse é o tom do desespero, da solidão que envolve essa época da vida. O etarismo é a marca hermenêutica que escancara a dor do envelhecer, fazendo cair num vazio toda a experiência viva que porta a passagem do tempo e que é negada em nossa contemporaneidade eternamente desejosa por fazer morada na adolescência. Porque, afinal, fazer família, ampliar custos e diminuir tempo ao ter filhos, nossos dependentes, em tempos de singularidade máxima, é para loucos.

Essa nudez humana e demasiada que apresento não se cura pelo material visível ofertado, pelas viagens que podemos eventualmente realizar e pela coleção de memórias. A grande memória da vida são os encontros humanos, inclusive aqueles malsucedidos, porque assim não romantizamos os desencontros e os colocamos como parte da totalidade do existir. Encontro é linguagem afetiva, presença e memória. Mas estes, tão preciosos, precisam ser construídos, em nossa época, com a urgência de quem trata o desmatamento dos vínculos pela modernidade e a escassez de tempo dedicado ao outro. Só assim podemos nos confrontar com a grande questão humana: quem sou eu a partir do encontro com o outro? Afinal, somente na construção bem cimentada do afeto é que será possível mantermos uma rede de apoio fraterna de adultos órfãos de vínculos sanguíneos, para sermos adotados “ombro a ombro” pelos amigos, companheiros de jornada que cativamos ao longo da vida. Estão inclusos aqui os amigos de infância, para quem tem a sorte de tê-los, pois eles são portadores de nosso maior bem: a identidade e a essência de uma época não corrompida pelas ideologias modernas do viver. Eles portam nossas risadas e vergonhas mais genuínas, e estas não estão em negociação para quem guardou a sete chaves os segredos da juventude.

Se é inevitável que o resultado, no grand finale, seja que tudo passa, sobrevive a isso a nossa capacidade inesgotável de amar. Se soubermos a chave para mantê-la na maturidade, teremos amor de sobra para historiar junto aos nossos companheiros de envelhe-ser. Teremos um celeiro de memórias sempre prontas para serem recordadas: do tempo que passamos juntos, dos choros, dos erros, das perdas. O mais incrível de minha rede de apoio é a diversidade: colegas de trabalho, amigos, amores e filhos. O importante, parafraseando Roberto Carlos, é que emoções eu vivi, e sem todos essas pessoas eu não teria o que contar. Vale muito a pena se vincular!