#11SilêncioCulturaSociedade

Trilha sonora cósmica

por Leticia Lima

As batalhas travadas no espaço sideral, na trilogia original de Guerra nas Estrelas, formaram a trilha sonora de minha infância. Quando fecho os olhos, nitidamente vejo – e ouço – a nave Millennium Falcon entrando em hyperdrive, com um apito de chaleira escaldante, transformando as estrelas num borrão distante. Perturba-me, então, acreditar que o espaço é um silêncio absoluto, pois o som é produzido pela vibração de átomos no ar e – essa é a chave fundamental da coisa – não há ar no espaço.

Ok, ok, você pode estar pensando. Não há ar, mas o espaço não é vazio; está cheio de coisas, gases, líquidos e sólidos. Por que as ondas sonoras não podem passar por esses materiais e vibrar seus átomos, produzindo som no espaço?

A verdade é que até poderiam, mas nós, meros humanos, jamais iríamos escutá-los, pois as nuvens de gás no espaço são bem menos densas que a atmosfera do planeta Terra. Ou seja, têm menos átomos por metro cúbico – e mais espaço entre os átomos. Imagine-se no espaço, tentando ouvir uma onda sonora que se aproxima. A onda afetaria poucos átomos a cada segundo, e nossos ouvidos não teriam a sensibilidade para captar algo tão disperso.

Se o gás está fora de cogitação, o que dizer dos sólidos? Há muitos sólidos no espaço: luas, asteroides, meteoroides, e assim por diante. Mas, veja bem, o som até poderia se propagar por dentro destes sólidos, mas não entre um sólido e outro, porque não há matéria suficiente entre eles. Existe, em outras palavras, apenas um vácuo, e, infelizmente, as ondas sonoras não podem se propagar no vácuo. Por isso, nós, meros humanos, não conseguimos ouvir nada no espaço. Aos nossos ouvidos, o espaço representa o silêncio absoluto. Um pensamento que me deixa levemente inquieta. Afinal, o som é a nossa ferramenta primária de comunicação. Se não posso expressar meus pensamentos através de sons para os outros, perco o sentido da minha existência como animal social. Eu anseio – preciso – ser ouvida para saber quem sou. Como disse Jean-Jacques Rousseau, “O silêncio absoluto conduz à tristeza. É a imagem da morte.”

Mas não nos desesperemos. Se olharmos mais atentos para o espaço sideral, veremos que existem fenômenos que oferecem densidade de matéria suficiente para comportar ondas sonoras. Um bom exemplo: uma nebulosa – uma imensa nuvem composta de poeira, hidrogênio, hélio e outros gases. Esse conjunto oferece, frequentemente, condições ideais para formação de massas pesadas capazes de atrair mais massa. Eventualmente, essas serão pesadas o suficiente para formar estrelas. Como o processo de formação estrelar é muito violento, os restos de materiais lançados ao espaço por sua ocasião formarão planetas e outros sistemas planetários.

Mas mesmo com tanta atividade dentro de uma nebulosa, suas partículas de gás ou poeira ainda se encontram no vácuo do espaço. Nossos ouvidos ainda não detectariam ondas sonoras. Porém, cientistas intrépidos descobriram que, mesmo que ondas sonoras não possam se propagar no espaço, as eletromagnéticas podem, e nós podemos “ouvi-las”.

Os telescópios mais poderosos do planeta contêm aparelhos chamados espectrógrafos, que registram as ondas eletromagnéticas. O astrônomo Paul Francis, da Universidade Nacional da Austrália, converteu alguns destes registros em som, reduzindo sua frequência em 1,75 trilhões de vezes, e assim os tornando audíveis aos humanos. Deste modo, o Dr. Francis gravou uma sinfonia de nebulosas, cometas, quasares, e até o nosso sol. Suas gravações estão disponíveis no site da universidade.

Em nada se parecem com os efeitos especiais de Guerra nas Estrelas. Parecem mais uma cruza de meditação tibetana com um carro viajando a toda velocidade, com suas janelas entreabertas. Mas pouco me importa o tipo de som que produzem. Fico radiante com o fato de conseguirmos “ouvir” um som qualquer. Somos gerados no útero, onde, durante nove meses, ouvimos a batida do coração materno, a pulsação do sangue no cordão umbilical.

Nosso primeiro contato, ainda no útero, com o mundo externo é através do som.

Para a humanidade não pode haver silêncio absoluto. Pode haver apenas diferentes maneiras de “ouvir” o som.

#12LiberdadeArteFotografia

Watching Humans Watching

O duo de artistas sueco Inka & Niclas trabalha a fotografia explorando os elementos da paisagem natural e as possibilidade do seu gradiente de cor, a partir de fotos de longa exposição.

#11SilêncioCulturaLiteratura

O único silêncio

por Eduardo Andrade de Carvalho

31 de dezembro de 2011, Rio de Janeiro. Acordei com um SMS de um amigo em que não acreditei: “O Daniel Piza morreu”. Do celular, entrei no site do Estadão. Era verdade. Aos 41 anos, aparentemente muito saudável, desde os 26 anos Piza publicava semanalmente sua coluna Sinopse (primeiro na Gazeta Mercantil, depois no Estadão), e era assunto constante de nossas conversas. Mais novos, com quinze, dezesseis anos, começamos a ler sua coluna e descobrimos nela um mundo novo de livros, filmes, músicas e ideias, que iam de Henry Adams aos debates mais atuais sobre evolucionismo, de Flaubert a Pelé, de Hopper a Hitchcock. E – especialmente – havia em seu texto, na sua postura com relação ao mundo, uma curiosidade infinita, um interesse sincero por tudo que fosse bom, bonito, inteligente.

Uma postura muito parecida com a de Paulo Francis e de Cyril Connolly, aliás. Daniel Piza escreveu uma pequena biografia de Francis, de quem foi amigo e que foi provavelmente sua principal influência. E sobre The Unquiet Grave, de Cyril Connelly, publicou em 2007, no seu blog: “Li nesses dias um livro que, de tanto ouvir falar a respeito, soava algo lendário. E de fato é”. Seus exemplares de O afeto que se encerra – uma espécie de autobiografia de Paulo Francis – e de The Unquiet Grave estão grifados e anotados em quase todas as páginas. Fotografamos algumas passagens de suas anotações, que apresentamos nas páginas a seguir. São maravilhosas.

Sobre a morte, uma vez Daniel Piza escreveu: “Priva-nos da companhia dos outros; sempre, para nós, só se representa na morte alheia. Por isso choramos, entramos em parafuso, perdemos a referência quando noticiamos de sua ocorrência. Mas ela não existe para nós – porque não podemos concebê-la, muito menos qualificá-la. Ela não tem predicado. É o único silêncio”. Que as próximas páginas – de Francis e Connolly, anotadas nos livros do Daniel – sirvam então, senão para quebrar esse silêncio, pelo menos para nos consolar dele.

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A morte espreita Don Draper

por Thiago Blumenthal

Don se comporta como uma ferida aberta que não cicatriza, pois é parte de um processo de luto atípico e brutal demais para ser resolvido sozinho”

Em seu célebre texto Luto e melancolia, Sigmund Freud enfatiza uma falha primária na constituição do narcisismo que se configura essencial para distinguir o enlutado do melancólico. É quando a libido se desliga de seu objeto de prazer. “No luto é o mundo que se tornou pobre e vazio, enquanto na melancolia é o próprio ego”, descreve o pai da psicanálise na introdução do ensaio.

Há espaço suficiente para a melancolia em Mad Men, série exibida pela AMC e atualmente em sua sexta temporada. Não que seus personagens sejam dignos de pena ou apareçam constantemente aflitos, desgostosos com a sua vida, com o seu cotidiano. Mas apresentam sérias questões de autoestima em um contexto de maior e mais cruel competitividade. O profundo desagrado moral a que são submetidos em suas agendas, dentro ou fora do ambiente publicitário em que trabalham, torna-se um objeto de auto-avaliação. Como um alarme que soa todo dia e na mesma hora em que volta para a casa, senta no sofá, liga a TV e adentra em um vazio ruidoso, de falso reconforto.

A década de 1960 se demarca desde os primeiros episódios, lá no longínquo ano de 2007, com a estética que guia os padrões da então Sterling Cooper, agência de publicidade localizada na Madison Avenue. É esta mesma plástica do escritório, no coração de Manhattan, que revela o espírito do seu tempo, com seus corredores anexos que ora facilitam o fluxo das especulações sobre quem estaria saindo com quem, ora funcionam de rota de escape para um funcionário que, humilhado na frente de todos, precise conter suas lágrimas ou suas frustrações. Reflexo de uma nação que, finda a Segunda Guerra, comporta-se como exigia o protocolo: expondo-se.

Tempos de John F. Kennedy no poder, um presidente jovem, com histórico militar nas costas, mas que também carregava a trágica mística do sobrenome. Abortos, lobotomias, acidentes aéreos, assassinatos, it runs in the family. A exposição da família Kennedy na mídia se refletia no comportamento de Jack (como era conhecido): infiel, protagonizou tórridas histórias nas primeiras páginas com Marilyn Monroe, Marlene Dietrich e a menos conhecida Mimi Alford, a estagiária da Casa Branca que anos depois publicaria o escandaloso Once Upon a Secret. Seu assassinato em público, registrado para milhares de americanos em choque, enlutou uma nação que ainda tateava no escuro o caminho para liderar o mundo.

O fantasma de JFK ainda habita a série, passadas seis temporadas e mesmo em um momento de transição sociocultural norte-americano. A morte espreita progressivamente os personagens de Mad Men e, no entanto, como lhe é habitual, o anjo da escuridão elege apenas um para desafiá-lo neste tabuleiro. Claro, o protagonista Don Draper. Um dos sócios da agência, ele se apresenta aos espectadores tanto como o sintoma quanto como o diagnóstico da lógica publicitária: a figura enigmática e insegura (na projeção de seu passado) que manipula discursos e faz vender um cigarro que, apesar de ser tão prejudicial à saúde quanto o da outra marca, é toasted.

A identidade de Don Draper foi estraçalhada antes de Mad Men, na Guerra da Coreia, em um momento crucial da Guerra Fria. Dick Whitman assumiu o nome do tenente que matou acidentalmente em batalha. Teve de mudar sua vida, teve de reconstruir seu passado, suas origens, seu pensamento, seus ideias. Teve até mesmo de convencer a viúva do real Donald Draper. Conseguiu. Vendeu carros, conheceu Roger Sterling, que viria a tornar-se seu sócio, e o resto é história. Mas o sobrenome falso ainda o assombra. E a morte o ronda onde quer que vá, como se fosse um Kennedy.

Don se comporta como uma ferida aberta que não cicatriza, pois é parte de um processo de luto atípico e brutal demais para ser resolvido sozinho: ao mesmo tempo que está enlutado pelo sujeito que matou na guerra, Don fragmentou Dick Whitman, nome que assumia antes desse cataclisma identitário, repentino demais para ser processado conscientemente. Em outras palavras: Don matou Donald Draper e matou Dick Whitman (suicídio), os únicos vértices possíveis para que a terceira ponta deste triângulo prevalecesse, que é quem ele assume ser desde então. Este sujeito híbrido, com enorme dificuldade para equilibrar as memórias e os traumas de Whitman com as honrarias e os tapinhas nas costas de Draper.

O tiro na cabeça de JFK deixa toda uma nação consternada e em dúvida quanto ao seu próprio destino, mas é Don que parece se ver pessoalmente alvejado e perseguido por um atirador à distância que conhece o seu passado, suas mentiras, suas infidelidades, seus medos.

Não é mais somente o seu próprio ego que está vazio, mas nada a seu redor parece lhe preencher ou satisfazer mais. Esse luto duplo, que o faz mentir – e reproduzir, em sua profissão, a sobrevivência, custe o que custar, da mentira – multiplica-se em pequenas outras perdas afetivas ao longo dos anos, na antiga família e casa, nos filhos, na nova esposa. Nas amantes que o deixam. São pequenos, e forçados, lutos que se acumularam nessas seis temporadas até o momento e que atingiram o seu auge máximo no último ano. A carga imagética de cada uma dessas perdas é enorme em cada cena onde o protagonista revê parte de seu passado recente ruir, e a morte, em contrapartida, escurecer cada vez mais sua visão.

Don encara essa morte das maneiras mais diversas nesta sexta temporada. É o marido de sua última amante, a vizinha do prédio onde mora, que é médico e luta para salvar vidas; a imagem do crucifixo sempre presente quando ele invade o quarto da amante; o porteiro do prédio que, em um episódio de profundo mergulho em seu inconsciente, passa por algo entre a vida e a morte; o funeral da mãe de Roger (no qual Don vomita); a figura por vezes cadavérica de Megan, que faz referência implícita a alguns símbolos do acaso em diversos pontos da história.

Da primeira à sexta temporada, de JFK, passando pelo trágico suicídio de Lane Pryce, até as paranoias de Don, houve um significativo crescendo neste que é o tema que mais acompanha o protagonista.

Maníaco pela ideia de morte, Don cria ou revê mortos em seus transtornos que, graças às precisas cores psicanalíticas que o criador da série, Matthew Weiner, dá às cenas, fornecem um novo elemento estético a Mad Men, o do inconsciente, pouco explorado nas temporadas anteriores. Para um personagem de quem tínhamos pouco ou quase nenhum acesso às recônditas camadas do aparelho psíquico, trata-se de um enorme ganho narrativo.

O que antes conhecíamos de Don se limitava a suas lembranças, quando o discurso fílmico se apodera de um momento que pede flashback para informar algo ao espectador. Já registrar um momento de pura subjetividade (seja originado ou não do consumo de drogas ou álcool) do personagem requer um truque narrativo mais complexo e mais arriscado, porque tem que dar o privilégio da dúvida a quem assiste. Ou a típica pergunta que fazemos a quem está conosco no sofá da sala: “Será que Don estava sonhando ou tudo isso aconteceu?”; ou “Don matou a amante de fato ou ele só estava pensando sobre isso?”.

Se o luto faz com que o ego renuncie ao objeto, declarando-o morto e oferecendo-lhe como prêmio permanecer vivo, este parece ser o drama de Don Draper, que encerra sua existência e move todos os motivos de Mad Men. Após a morte do verdadeiro Don, em batalha, só restava uma maneira de premiá-lo: sobrevivendo, essencialmente, como tal – quase como uma negação da negação da negação do luto e da morte. Como a queda do homem, representada na abertura do seriado, em uma imagem que pode ser tanto um suicídio como a celebração do rito da defenestração, em que se remove alguém de cena para sobreviver.

#11SilêncioArteArtes Visuais

White noise

por Silas Martí

O silêncio é branco. Do inglês white noise, é quando a imagem da televisão desaparece, e o que sobra é chuvisco indecifrável. O silêncio está atrás do barulho, filtrada a sujeira dos pontos negros que afogam a transmissão. Lá atrás está a febre, uma piscina de leite tão cega e densa quanto os lampejos brancos que chegam à superfície no meio da tempestade. Uma vez eu sonhei com soldados albinos se digladiando ali, elétricos e quietos, como se o silêncio fosse um estado constante de tensão entre pontos opostos que vez ou outra se fundem, feitos da mesma coisa. Se branco é todas as cores, o silêncio é todos os sons reduzidos ao ponto de partida primordial, um nada sacrossanto. Véu ou white noise.

Não existe som na busca pela baleia de Ahab. É uma mancha fúnebre que desliza sem abalos no fundo do mar. Ela oprime pelo destino que carrega e pelo contraste de seu corpo alvo contra a escuridão da água. Que sons, aliás, fazem as orcas assassinas? Quantas testemunhas sobraram, com um só pulmão e meio coração, para contar a história? O mar amortece todo ruído, mas o branco se adensa na forma de obsessão, nos cortes secos, na distância entre realidade e ficção. É a cor de Moby Dick e dos lençóis da cama, que mais lembra um caixão.

John Cage queria isso quando encheu seus quatro minutos e 33 segundos de silêncio com o ruído aleatório de uma plateia diante de um piano mudo. Desde que li sobre isso, penso no incômodo suspenso na sala de música como a enorme baleia de Herman Melville. É como se um aquário tomasse o lugar dos ouvintes e, dentro dele, uma baleia branca gigantesca dançasse em silêncio. Sem graça, porque a ausência de som é sepulcral.

Esse silêncio branco e maciço opera como espelho. Escrevo esse texto no avião, sobrevoando o coração da África. Tenho uma febre que não consigo medir a 36 mil pés de altitude, e fecho os olhos desconsolado. Não há escuridão. Dentro das pálpebras parece estar gravada – ou queimada – a intensidade do sol árabe que resplandece nos pátios de pedra e areia, uma cegueira só, de um branco só, onde não cabe o som. Nunca.

Esse espelho é como a paz de ver pela primeira vez um Maliévitch, mas, mais ainda, um Robert Morris. Estou falando dessas telas brancas, só brancas, que ele afixava na parede com prendedores metálicos. Eram a chave, o elo com a realidade. Morris rebate a sala vazia numa composição sem composição, num ato extremo de economia, contenção e silêncio. É como olhar nos próprios olhos vermelhos, fundo no espelho, depois de uma crise de choro. Eu disse paz? Talvez, mas não sem certa angústia. É o medo do vazio que devolve o olhar ali, uma afronta às expectativas. Não, não há nada para ver, talvez só a beleza crua dos prendedores metálicos, pecinhas que devolvem o chão.

Mas o silêncio prescinde de chão, terra firme ou coisa parecida. Walt Whitman, lá pelas tantas em suas Folhas de relva, fala dos homens nadando no lago. Tudo para no verso em que fala das barrigas dos homens, barrigas brancas estufadas sob o sol. É a pausa que mergulha as palavras de Whitman no mesmo silêncio surdo de James Joyce e os meninos, “uma miscelânea de nudez molhada”, que se atacam com toalhas – brancas – e “inchadas de água”, saindo de um banho de mar em Retrato do artista quando jovem.

Juventude carrega certa brancura. Dentes de leite, pele virgem. Eu penso na toalha encharcada, um estado em potencial, tal qual uma nuvem carregada. Sem trovão, não há tempestade. É a nudez muda do silêncio. Outro artista quando jovem também fez de suas obras uma reflexão imaculada e muda. Ascânio Maria Martins Monteiro, como lembra o crítico Paulo Herkenhoff, foi buscar nos becos da pequena Fão, onde passou a infância em Portugal, as formas de suas primeiras esculturas, todas brancas. Mais tarde, sua obra se tornaria um embate entre o construtivismo mais rígido e a fluidez das formas no espaço, um esqueleto ou espinha dorsal que não perde dinamismo no espaço. É como se a orca fosse fisgada, morta e desnudada em silêncio, exibindo entranhas só brancas, ou pérolas insuspeitadas.

#12LiberdadeArtigo

Quando deixei de te amar

por Helena Cunha Di Ciero

Quando finalmente deixei de te amar, podia sair à vontade na rua, sem o medo de te encontrar. Caminhava tranquila, sem temer ser pega de surpresa. Os carros não eram mais iguais ao seu.

Eu já não era mais prisioneira de tudo que me lembrava você. As músicas não eram mais marcas da nossa história, ou me davam recados malucos do destino. Simplesmente tocavam, enchendo meu dia com uma nova melodia. Já não me atingiam como flechas em forma de notas musicais. Tocavam – sem me tocar – como era boa essa sensação de ter finalmente mudado de estação.

Meu telefone voltou a ser só um aparelho e não mais o portador das notícias do dia. Antes, se você ligasse até o sol me aquecia diferente. E se não ligava, nem a beleza das flores me afetava. Nada que não fosse você me interessava.

Agora, já não tinha medo do meu coração paralisar quando te visse – ele já estava em um ritmo mais delicado, menos frenético, menos assustado. Ele era meu novamente e apenas era um órgão dentro de mim, para ajudar meu sangue a circular. Um órgão do qual já nem me lembrava tanto. Dizem que só nos lembramos de alguma parte do corpo se temos dor (por exemplo, o ouvido: só lembramos de sua existência quando incomoda.) Então, meu músculo cardíaco já não doía, estava forte, pronto para uma nova caminhada. O oxigênio era meu, não mais era nosso. Já não vivia para você, naquele sufoco.

As horas também já não eram mais suas. E confesso que, agora, pouco importava se o relógio marcava horário igual. Já não me preocupava se eu estava em seus pensamentos. Você não morava mais em mim, e isso me trazia uma leveza absurda. Eu era grata por tudo que vivemos, sem dor. Sem desejo de revanche ou autopiedade.

No meu peito já não havia mais espaço para vingança. No espelho eu já não treinava conversas imaginárias. Você pôde enfim partir. Eu aceitei, depois de muita luta.

A vencedora no caso era eu. Já podia vislumbrar um futuro, contemplar o presente. Meus olhos não visitavam mais as lembranças. Simples assim. Eu parti.

Com o mesmo coração que entrei. Agora mais rica com tudo que vivemos. E o fato de você ter mudado minha vida me deu a chance de estar pronta para amar outra vez. Deixar de te amar foi azul.

Foi um novo horizonte que surgiu. Agora só meu.

Que alívio.

#11SilêncioCulturaLiteratura

Notícias do fulano

por Vanessa Agricola

– E o Fulano, hein?
– Quê?
– O Fulano, você não estava falando nele?
– Eu?
– Já mandei uns cinquenta e-mails, deixei uns trocentos recados.
– Putz…
– O filho da puta desapareceu.
– … será que aconteceu alguma coisa?
– Que coisa??
– Sei lá, alguma coisa…
– Eu sei que coisa, o Fulano deve estar de trololó com o tal do Batata.
– Você acha que o Fulano tá com o Batata?
– Quer apostar? Pau que nasce torto nunca se endireita.

– Ela perguntou do Fulano?
– Perguntou.
– Merda. O que foi que ela disse?
– Tá puta, falou que ele sumiu, que tá com o Batata…
– Com o Batata??
– Aquele cara das antigas.
– Nossa, como ela é chata.
– Nem me fala. Se ela souber onde o Fulano está…
– Nossa, vai ser uma fofoca…
– Fora o julgamento, né.
– Ela é muito escrota.

– Ai, ainda bem que você chegou.
– Você tá gelada!
– Eu tô muito nervosa. Senta. Quer uma água?
– Não, obrigada.
– Me conta, como é que ele tá?
– O Fulano ainda não pode receber visita, mas eu conversei muito com a psicóloga.
– Ai, eu detesto psicóloga.
– Mas essa psicóloga é boa, ela trabalha com isso há 20 anos.
– E o que ela acha? Ele vai ficar bem?
– Ela disse que o Fulano está muito bem, que é um cara totalmente dedicado ao tratamento, que é para a gente ter muita confiança que vai dar tudo certo.
– Ai, menina, graças a Deus, eu rezei tanto.

– Então ele não é adicto??
– Pelo que a psicóloga disse, existe uma grande chance disso tudo ter sido uma reação temporária causada por um estado de depressão profunda.
– Então não foi o vício que levou à depressão?
– Não existe nenhuma certeza ainda. Ela disse que “pode ser” que não.
– Pode ser que ele não tenha a doença?
– É.
– Só tristeza?
– Isso.
– Mas a depressão também não é uma doença?
– No caso do Fulano parece que não, era só uma tristeza que virou depressão.

– Igual o Chorão…
– Será que o Fulano soube do Chorão?
– Com certeza, ele deve ter lido no jornal.
– Lá na clínica pode ler o jornal?
– Por que não poderia?
– Sei lá, vai que as notícias deixam os pacientes inquietos, com vontade de sair.
– É, pode ser…
– Deve ser foda ficar lá dentro.
– Mas você sabe que o Fulano me pareceu sossegado. Nem comentou nada de sair mais cedo.
– Sério?
– Sério. O Fulano está zen.
– Puxa, que bom saber que ele tá bem…
– Te juro, ele tá tão bem que até eu pensei em me internar.
– Na clínica?
– Tô pensando seriamente.
– Como assim doida? Você também tá viciada?
– Todo mundo tem um vício.
(Silêncio)

#12LiberdadeCulturaSociedade

Culpa, essa cretina

por Valentina Castello Branco

A culpa é uma cretina. Poderia dizer que não poupa ninguém, mas seria injúria. De tão torpe, libera apenas os de mau-caráter, psicopatas e deputados. Sobra para as boas almas, como nós. Se a humanidade fosse de fato organizada, aproveitaria a onda das manifestações para se revoltar contra a culpa. Alguém precisa acabar com a ditadura do remorso.

Ardiloso que é, esse sentimento, com múltiplas áreas de atuação, chega quando menos se espera. E ninguém consegue vencê-lo. Você pode tentar a terapia, como recomenda a maioria. Mas sabemos de antemão que, depois de incontáveis sessões, o analista vai simplesmente culpar seus pais.

Uma amiga, por exemplo, trabalhava como um camelo e finalmente se libertou do capataz, que, claro, era ela mesma. Sua alforria foi festejada com entusiasmo. Mal sabia, porém, que o preço da liberdade costuma ser uma dose, maior ou menor, de culpa. Recentemente, admitiu envergonhada que não se sentia à vontade para fazer nada prazeroso durante o horário comercial. Primeiro, tratou de substituir a aula de ioga do meio-dia pela das 9h, mesmo preferindo a primeira professora. Era difícil se concentrar na postura enquanto pensava em cada pessoa que batia o cartão para almoçar no refeitório onde ela deixara 10% de sua alma.

Seus dias passaram a ser preenchidos com idas ao banco, conversas sobre imposto de renda, discussões sobre encanamento e o que mais de tedioso pudesse encontrar. Livros? Só se fossem bem chatos. Filmes? Só os iranianos. Um caso patológico, diriam os pessimistas. Infelizmente, é comum.

Se as escolhas andam de mãos dadas com as renúncias, libertar-se de uma situação, ou de alguém, costuma funcionar da mesma forma para todos. Por melhor e inevitável que seja a troca que fazemos, o que deixamos para trás continua nos afetando.

No seu restaurante preferido, por exemplo. O burburinho não deixa dúvidas. Gordos e magros sofrem pelos exageros cometidos nas refeições. Os comensais mergulham em cestinhas de pães, se lambuzam de massa e terminam entregues à mousse de chocolate. Em seguida, choramingam arrependidos, como se uma entidade esganada os tivesse possuído sem possibilidade de reação.

A culpa também tem o hábito de se aprochegar depois de mentiras inocentes. Você evita o amigo chato. Ele então o persegue: telefone, e-mail e facebook. Sem ter para onde correr, você inventa uma desculpa. Explica que está com escarlatina, ou qualquer doença erradicada, e que não poderá encontrá-lo naquela noite. A lei das probabilidades diz que ele estará no mesmo show que você. Derrubado por sua consciência, será impossível aproveitar a banda e, na hora de escovar os dentes, você evitará o espelho, arrependido. Imensa injustiça. Sua atitude foi um ato de misericórdia. Somente o chato que passa por tamanha rejeição tem a chance de entender sua situação e finalmente parar de amolar a sociedade. Concluímos, portanto, que você agiu como um herói.

Se as amizades são um campo fértil para a culpa, no amor a perspectiva é ainda mais delicada. Depois da estação da paixão, a intimidade traz consigo hábitos hediondos. O pijama se torna o uniforme, as declarações românticas desaparecem e transar de lado se torna a regra. É compreensível, portanto, que eventualmente homens e mulheres se deixem seduzir pela pessoa interessante mais próxima. Meia hora de flerte no café, porém, é suficiente para que alguém com valores rigorosos se sinta a pior pessoa a caminhar pelo planeta. Claro que a traição é uma opção cafona, mas esse arrebatamento inicial por terceiros pode salvar um casamento. Basta chegar em casa, fingir que um é o outro, jogar seu marido no tapete de vaca e materializar suas fantasias. Para arrematar, ateie fogo nos pijamas destruidores de libido e evite um segundo encontro com o galanteador.

A solução talvez seja esta, apenas ficar trocando de culpas enquanto a paz não chega. Ou uma manifestação nas ruas. Ou um abaixo-assinado, sei lá.

#11SilêncioArteCinema

Silêncio: ação

por Jair Lanes

Em 2012, dois filmes homenagearam a sétima arte e foram sucesso de público e crítica, angariando prêmios ao redor do mundo. O diretor norte-americano Martin Scorsese fez um ousado tributo em 3D a Georges Méliès em A invenção de Hugo Cabret; já o francês Michel Hazanavicius, diretor de O artista, optou por reviver nas telas do mundo inteiro um formato considerado extinto há várias décadas: o cinema mudo. Inesperadamente, O artista conquistou a crítica mundial; não somente por homenagear o cinema mudo norte-americano, mas também por resgatar o cinema de uma época onde letreiros de diálogos dividiam espaço com mímicas, com explícita influência expressionista. Ao conseguir destacar-se no cenário cinematográfico mundial, onde produções com explosões em ritmo acelerado e franquias bilionárias monopolizam os mercados, o longa trouxe de volta a inocência de assistir a uma trama em que o silêncio é tão presente.

O silêncio, tão explorado por filmes de arte, foi durante muito tempo a essência do cinema mudo. O diálogo era transmitido através de gestos, mímica e letreiros explicativos, e por meio de poucos cenários, quando não um apenas. Era praticamente um “teatro filmado”. Os atores do cinema mudo foram os pioneiros das técnicas de linguagem corporal, ainda o único modo de comunicação experimentado.

Durante os primeiros anos do cinema, boa parte dos filmes era documental. Em 1896, os irmãos Louis e Auguste Lumière enviaram a vários lugares do mundo fotógrafos com câmeras. O propósito dos “caçadores de imagens” era o de registrar imagens de vários países e assim difundir diversas culturas mundiais na França. Experimentações com diferentes narrativas pipocavam pelo mundo. A percepção geral era a de que o cinema não tinha limites e era uma invenção muito pouco explorada. Porém, a cada produção suas ferramentas evoluíam exponencialmente. O advento da edição permitiu que histórias com construção narrativa pudessem ser contadas, atraindo espectadores para tramas, personagens e outros elementos inexistentes nas primeiras experiências cinematográficas. Assim o cinema flertava com a arte, com contextos claramente literários e teatrais.

Na década de 1910, o diretor norte americano D.W. Griffith conseguiu ampliar as fronteiras da linguagem do cinema. Parece ter sido o primeiro a entender como as técnicas poderiam ser usadas para criar uma linguagem expressiva. Dois de seus filmes mais importantes conseguiram dar ao cinema um contexto de espetáculo épico impressionante. O nascimento de uma nação (The Birth of a Nation, 1915) e Intolerância (Intolerance, 1916) são pilares da gramática cinematográfica, influenciando gerações de cineastas.

As primeiras comédias foram feitas na França, onde se combinavam personagens divertidos com perseguições. O ator mais popular da época, Max Linder, foi o criador de um tipo refinado, elegante e melancólico de muito sucesso na primeira geração de comediantes. Mas o verdadeiro gênio da comédia silenciosa foi o inglês Charles Chaplin, que, com seu personagem Carlitos, mesclava humor, poesia e crítica social. Um dos sucessores da comedia de Max Linder, Chaplin foi ator, roteirista, diretor e produtor de seus filmes. Mestre da pantomima e autor de clássicos desta era, foi defensor enérgico do cinema mudo até depois da consolidação do cinema sonoro.

A comédia norte-americana conseguiu dominar o mercado interno e, no final da década de 1910, também o externo. Os filmes passaram a ter duração cada vez maior, e as produções, cada vez mais complexas, pressionavam os realizadores da época a repensar seus filmes baratos, de onde não obtinham muito lucro, e a tratar de recriar o cinema como uma indústria, e seus filmes, como produtos a serem vendidos. Era o fim da inocência.

Um antigo subúrbio de Los Angeles evoluiu de aglomerado de produtoras à força motriz do cinema mundial. Depois da Primeira Guerra mundial (1914-1918), Hollywood superou a concorrência europeia, consolidando sua indústria cinematográfica. Descobrindo e inventando astros que perpetuavam o sucesso de produções, tornando conhecidos em todo o mundo comediantes como Charles Chaplin e Buster Keaton; atores como Rodolfo Valentino e Wallace Reid; e as atrizes Gloria Swanson e Mary Pickford, que, em 1919, juntamente com Chaplin, Douglas Fairbanks e D.W.Griffith, fundaram a produtora United Artists.

Gradativamente, diferentes olhares em vários países transformaram o cinema. Na Alemanha, surge o expressionismo e seu esteticismo delirante retratado nos filmes O autômato (Der Golem, 1914), de Paul Wegener, e O gabinete do Dr. Caligari (Das Kabinet des Dr. Caligari, 1919), de Robert Wiene. O realismo russo fez parte do projeto bolchevique de poder. Porém, mesmo com esta premissa, obras fundamentais surgiram e cineastas criaram técnicas mimetizadas mundo afora. Surgiram nomes como Serguei Eisenstein, diretor de O encouraçado Potemkin (Bronenósets Potiomkin, 1925), e Vsevolod Pudovkin, de Mãe (Mat, 1926). A vanguarda francesa, a chamada renovação do cinema francês, coincidiu e assimilou os movimentos impressionista, dadaísta e surrealista. O cão andaluz (Un Chien Andalou, 1928) e A idade dourada (L’Âge d’or, 1930), de Luis Buñuel e Salvador Dalí, são referências. Hollywood bebia nestas fontes e invariavelmente convidava expoentes destas correntes cinematográficas para trabalhar em suas lucrativas fileiras. Tecnicamente, o desejo de sincronizar filmes com sons gravados é tão antigo quanto o próprio cinema. Até o fim dos anos 1920, devido à falta de tecnologia, os filmes em sua maior parte eram mudos. Curiosamente, cinema mudo nunca foi realmente mudo, pois utilizava orquestrações e até narradores durante as exibições. O som apenas acompanhava a imagem, antecipando ou não a atmosfera dos planos seguintes. A utilização da música proporcionava reações entre o filme e o público, ajudando a criar sensações.

Como sempre ocorre no capitalismo, a inovação é uma aposta arriscada, mas às vezes pode ser um tiro certeiro. À beira da falência, os irmãos norte-americanos Warner apostaram as fichas no arriscado sistema sonoro, e a ótima bilheteria de O cantor de Jazz (The Jazz Singer, 1927) consagrou o “cinema falado”. A partir dos anos 1930, com o aperfeiçoamento do som, o diálogo cinematográfico ganhou destaque junto com a mixagem de música, ruídos e silêncios. O cinema industrial se deparou com uma de suas mais complexas revisões e desenvolveu uma dramaturgia diferente das experiências já vividas com o cinema mudo. Por isto, todos os profissionais da indústria cinematográfica precisaram de alguns anos para absorver os novos recursos, até desenvolver a maturidade narrativa que permitiria o surgimento de novas técnicas dramáticas. No Brasil, em 1930, foi produzido Limite, de Mario Peixoto, filme mudo e surrealista cujo enredo consistia numa afirmação, melancólica e um pouco agressiva, sobre a limitação e a futilidade da existência. É considerado um filme fundamental na história do cinema brasileiro.

Na contramão dos seus pares, Charles Chaplin continuou a criar obras-primas à base de pantomima, como Luzes da cidade (City Lights, 1931) e Tempos modernos (Modern Times, 1936). Para ele, a pantomima e as imagens eram as principais conexões com seu público. O som tinha o poder de tanto ampliar e trazer maior realidade ao cinema quanto de restringir sua percepção, limitando seu significado. Rendeu-se, enfim, mas sua genial vingança foi continuar produzindo obras-primas, agora sonoras.

O frenesi visto em torno do filme O artista é, na verdade, uma celebração ao silêncio cinematográfico, que diz tanto a nossa alma e que nos relembra o ato quase banal de olhar uma sequência de imagens em movimento e compreendê-la em diversas dimensões. Para a maioria das pessoas de 115 anos atrás, este raciocínio lógico que é disparado e nos ajuda a entender o que estamos assistindo simplesmente não existia. Comparado a outras formas de linguagem, o cinema ainda esta em seu limiar, apesar dos excessos e piruetas técnicas. A imagem, na sua essência, tem movimento, tem dimensão e significado. Expandir os limites do silêncio e de bons roteiros parece ser, neste sentido, a lição que O artista ensinou ao cinema de hoje.

#12LiberdadeCulturaSociedade

Diga-me por onde anda essa tal liberdade

por Carmen Maria Gameiro

“Todos os movimentos da contracultura estão na rua, absorvidos pela indústria cultural”

Não dá para falar em liberdade se não for do ser situado num tempo e espaço. Todo homem ou mulher no mundo de hoje muitas vezes é tratado, e se sente coisa. Essa é uma das dimensões de todos, é o conjunto de valores determinante que faz se sentir assim. A liberdade ou a não liberdade só o são em relação às situações, não raro adversas e opressoras, contra as quais, muitas vezes, nada se pode fazer.

Tanto se lutou por liberdade que as conquistas decorrentes podem ser vistas e vivenciadas nas casas, nas ruas de vilarejos e nas megalópoles. As camisetas de malha, por exemplo, que fazem parte da composição da roupa masculina, são peças democráticas. Dirigir é necessidade na locomoção, não importando o gênero nem a posição econômica. Pedir, gritar não é mais necessário, a urgência é ter voz singular, não pertencer às massas.

Grandes manifestações culturais que fazem parte do nosso dia a dia eram consideradas há bem pouco tempo como manifestações de negros libertos da escravidão opressora, e de brancos esnobes. É curioso olhar a cultura em momentos distintos. O samba era proibido de ser tocado e dançado, hoje, sem, o que seria do carnaval e da economia? O futebol, sonho de muitas crianças de corrutelas perdidas no mapa e de pais esperançosos numa carreira brilhante para seus filhos, movimenta milhões pelo mundo todo, e por aqui não se fala em outra coisa a não ser na Copa.


Os quadris deram dor de cabeça ao longo das décadas, Elvis só podia ser filmado da cintura pra cima. Era um escândalo. Elvis Pélvis e rock, sinônimos chocantes para as famílias norte-americanas do pós-guerra. O estardalhaço do funk hoje não seria um exemplo do que ocorreu na década de 1950? Proibir esse quadradinho de oito, pra quê? Quem consegue ficar de bananeira mexendo os quadris se não for magra e adolescente? Eu mal consigo ficar em pé. Pode liberar.

Quantos movimentos, quantas bandeiras não foram queimadas, e quanta gente não lutou ou sofreu pra conseguir um pouco de liberdade ou direito à voz e vez. E hoje tantos vivem e usufruem sem saber do preço que foi pago.

Todos os movimentos da contracultura estão na rua, absorvidos pela indústria cultural, produtos a serem consumidos por uma sociedade ávida por coisas sem conteúdo. Onde está o conteúdo? Não está na coisa, mas no que ela traz na sua história para desvencilhar a pessoa do desconforto, da tristeza, da dor ou da apatia. Desde o esmalte preto usado pelas atrizes e modelos na telinha, ou melhor, telona, pois antes era a tinta representando as unhas sujas de graxa dos operários ingleses. Uma das marcas do movimento da juventude proletária anarquista dos centros urbanos, que se rebelou contra a hipocrisia, o conformismo e o tédio com poucas chances de manifestações. Os punks das décadas de 70 e 80 do século passado compunham o vestuário com metais como adereços, jeans rasgado, cabelo estilo pica-pau, o preferido do supercraque hoje. O punk reciclou o rock, o avanço tecnológico deu possibilidades ao aprimoramento da música eletrônica, sendo tocada de forma mais primitiva, com três acordes.

O feminismo foi absorvido pelas meninas e mulheres balzaquianas de agora sem que saibam como foi difícil chegarmos aqui. O que seria destas se ficassem em casa num tanque lavando roupa na mão, fazendo seu enxoval à espera de um marido e tendo como futuro apenas crianças, ou, no máximo, como profissão, as ditas femininas, com direito a reuniões vespertinas com as amigas. O movimento pelos direitos civis, tanto nos Estados Unidos da década de 60 como aqui na década de 80 do século XX, nem é lembrado pela garotada, que acha um saco ter que votar…

Quantas conquistas pela liberdade de falar, andar sem sentir medo, poder vestir e cantar, ser feliz. Vivemos sem angústia e sem apatia. Bem… Deveria ser assim, mas não é.

Onde está essa tal liberdade?

“Estamos vivendo uma guerra civil,
mas não se ouve”

Há um frisson no ar em busca da tão sonhada liberdade de se sentir livre, não de um “outro” ou alguém oculto, mas do que espreita, do que não se sabe, do que vai ocorrer no minuto seguinte, do incerto e insano. As causas civis, libertárias, foram conquistadas, buscou-se tanto o direito de se falar. Hoje falta quem esteja pronto a escutar. Na ânsia por ganhar tempo e locomoção, esqueceram-se da via, do caminho. Tanto das ruas, avenidas e estradas quanto da via do sentimento. Procurou-se conforto e longevidade, mas não se ensinou pra quê. A identificação com outros indivíduos e objetos está condenada à frustração. Quando o indivíduo percebe que é único, há um limite entre ele e os outros. Não havendo possibilidades de pontes, ele sente a solidão humana.

A conquista da liberdade deveria ser uma conquista para a felicidade, mas não é. Lutar pela liberdade é a escolha pelo caminho do desconforto, da dor e da insatisfação. O ser humano nunca conseguiu lutar por liberdade e ser feliz. A felicidade de ser livre está na busca, na via a ser percorrida, e não na chegada. Muitos não chegaram a ver o resultado dessa luta, ficaram pela estrada. Ser feliz tem mais sentido com alienação e ignorância, ficar sem saber o que está ocorrendo, não situado.

“Em teu seio, ó liberdade./ Desafio o nosso peito a própria morte!” São versos do Hino Nacional Brasileiro tão atuais, poucos percebem. Viver é estar livre não importa onde, é um desafio. Buscar pela voz de poder, ser ouvido, é a liberdade que se busca hoje. De poder sair de casa e não ser morto ou assaltado. Estamos vivendo uma guerra civil, mas não se ouve.

Nada é mais atual no mundo que a voz que clama nas redes sociais para ser curtida, essa é a nova maneira do movimento social existir. Tem força de bandeira e passeata nas ruas, tomando a cidade, agora toma a rede nos confins da Terra. Enfrentam ditaduras e governos. Empresas são desmascaradas, o que era velado é descoberto. Nada mais é escondido, e a hipocrisia não tem muito tempo para permanecer. Traições duram pouco. Nada continua escondido em baús a sete chaves.

O sutiã pegou fogo, a saia subiu sumindo, telefone não é mais linha, as gravadoras não têm mais força de não gravar músicas que não querem. As coisas mudaram de mão. O que era proibido proibir, hoje é proibido fazer piada. A indústria cultural continua existindo, só que agora não tem centro. O foco é ler nas entrelinhas invisíveis da cultura pra se saber e ter ideia do que está ocorrendo. A melhor maneira é ficar aberto ao inusitado, não ter medo de sentir medo. Não é tempo de se apaixonar por causas. É tempo de existir com consciência do momento presente. Não ficar no conforto da não mudança. É um tempo de desconforto do inusitado. A sensação de não se pertencer.

É tempo de ser livre situado, de autocriar-se, de viver a responsabilidade da própria existência de modo simples e humano. Pois o essencial das relações entre as consciências é o conflito. Segundo Sartre (1943), se o outro existe, a existência do homem está ligada ao pensamento do outro, ao julgamento que o outro faz de si. E os homens e mulheres desfrutam do difícil e angustiante privilégio de assumir suas responsabilidades e escolhas livremente.

Qual a moral dessa história? Autenticidade.

Ser livre é ser autêntico, não importa o que os outros pensam ou julgam. Afinal o inferno são os outros. Não é mesmo, Sartre?

#11SilêncioCulturaLiteratura

Indiana Jones + James Bond + Grahan Greene = Patrick Leigh Fermor

por Eduardo Andrade de Carvalho

Quando Patrick Leigh Fermor foi condecorado como cavaleiro da Coroa Britânica, em 2004, um jornalista da BBC o definiu como uma mistura de Indiana Jones, James Bond e Graham Greene. Faz sentido. Paddy – como era chamado pelos amigos – foi um viajante erudito, agente secreto (por dois anos, escondido nas montanhas em Creta, organizou a resistência grega contra os alemães, na Segunda Guerra) e um excelente escritor.

Seus dois livros sobre uma viagem que fez a pé, aos dezenove anos, de Roterdã a Constantinopla, A time of Gifts e Between the Woods and the Water, são muitas vezes considerados os melhores livros de viagem do século XX. Além de bonito,

o historiador Max Hastings disse que Fermor tinha “a maior lábia de toda sua geração”, o que provavelmente o ajudou a conquistar a fotógrafa Joan Elisabeth Rayner, musa de Cyril Connolly.

É curioso, portanto, que um homem de personalidade assim tão expansiva – um herói de guerra bon-vivant, extremamente culto e cheio de amigos – tenha escrito também um ensaio sobre a vida monástica. A Time to Keep Silence – um pequeno volume de menos de cem páginas – é basicamente a descrição de Fermor de duas experiências suas em monastérios: nas abadias de St. Wandrille de Fontenelle e de La Grande Trappes, na França. Quando procurava hospedagem barata e um lugar silencioso, tranquilo para escrever um livro, procurou os monges St. Wandrille de Fontenelle – e, inesperadamente, foi muito bem recebido pelo abade. Para quem esperava um lugar simplesmente calmo, já nas primeiras horas, lendo sozinho no quarto as regras para os visitantes, Fermor se assustou com o rigor da rotina monástica: os dias começavam às quatro da manhã e as refeições transcorriam em silêncio total, intercaladas por missas, leituras e meditação. “O lugar tomou ares de um grande túmulo, uma necrópolis da qual eu era o único habitante vivo.”, escreveu.

Depois do choque inicial, porém, sentiu que as vontades de falar e de se movimentar não encontravam resposta na abadia, e desapareciam no vácuo. E percebeu então que a vida livre dessas pequenas ansiedades urbanas, que trazia de Paris, era uma “lliberade divina e absoluta”. E – ao mesmo tempo em que descobriu o quanto a rotina silenciosa pode fazer bem ao espírito – Fermor também encontrou nos monges, nos poucos momentos liberados para conversa, companhias tão agradáveis quanto a de um francês bem educado, “com todo o equilíbrio, erudição e espirituosidade que se possa esperar”: e sem nenhum sinal da melancolia medieval que o ambiente poderia inspirar. O próprio abade que o hospedou, Dom Walser, aliás, é um exemplo dessa civilidade: exilado da Alemanha assim que Hitler chegou ao poder, o responsável pela organização – da econômica à espiritual – da comunidade é capaz de conversar sobre assuntos variados como teologia, arquitetura, artes plásticas, misticismo, arqueologia e história.

Talvez seja a descrição de Fermor sobre como era acordar no mosteiro, num dos últimos parágrafos sobre a abadia de St. Wandrille de Fontenelle, um dos momentos mais bonitos do livro, e um excelente exemplo do seu estilo: “Não havia cortinas nas janelas, e nada para esconder a beleza da luz batendo contra a parede ou as silhuetas curvas do batente. É um quarto maravilhoso no qual acordar. Noites iam e vinham sem sonhos, interrompidas de manhã como a leveza do toque de um barco raspando o casco na areia ao chegar à praia”.

Não à toa, se foi difícil se adaptar à disciplina do monastério, Fermor achou a adaptação ao ambiente de fora pelo menos dez vezes mais difícil. No trem de volta a Paris, um cartaz da Cinzano, na época símbolo de liberdade, lhe pareceu um insulto pessoal. Se a abadia parecia, no primeiro momento, um cemitério, escreveu, o mundo de fora seria um inferno de barulho e vulgaridade cheio de gente maliciosa, vulgar e pilantra.

Depois de passar rapidamente pela abadia de Solesmes, na segunda parte de A Time to Keep Silence descreve suas duas semanas de experiência numa ordem muito mais, digamos, severa: a dos monges trapistas, que acordam às duas da manhã, comem praticamente só raízes, trabalham pesado no campo, passam sete horas por dia rezando, usam a mesma roupa durante toda uma estação do ano, dormem em cubículos sem aquecimento e praticamente não têm nenhum tempo de lazer ou para estudar. De novo, Fermor encontra nos monges homens caridosos e felizes, sem ranço e sem, como poderia esperar um psicólogo, sinais de repressão sexual. E fica impressionado com a disciplina mental dos trapistas: “tudo é silêncio e paz, e a privacidade do silêncio individual é ligada por um autêntico e fraterno amor”.

A Time to Keep Silence, apesar de descrever alguns rituais católicos, não é em nenhum aspecto religioso e, apesar de descrever lugares diferentes, não é exatamente um livro de viagens. Na introdução, Fermor diz que a experiência mais importante que descreve é a sua descoberta da capacidade para ficar sozinho e se recolher, e a claridade espiritual que acompanha a vida monástica. “Pois, no isolamento de uma cela – uma existência ininterrupta exceto pelas refeições silenciosas, a solenidade do ritual e as longas caminhadas na mata -, as águas turvas e agitadas da mente se acalmam, e muito do que está escondido ou é obscuro sobe à superfície, onde pode ser escumado; após um certo tempo, chegamos a um estado de paz que é impossível de imaginar no mundo lá fora”.

A Time to Keep Silence é um elogio ao momento a que o título nos convida: o momento para ficar em silêncio.

#12LiberdadeCulturaLiteratura

Dura lex?

por Léo Coutinho

A aula de direito mais remota que me ocorre tomei de André Franco Montoro, meu tio-avô. Criança privilegiada, pude aprender descontraidamente com o professor que formou tantos juristas e que, através de seus livros, continua formando.

Ele dizia que o conceito básico do direito é a maleabilidade. Por ser matéria humana, de obra humana, deve servir sempre ao ser humano – e se adaptar a ele. Com as ciências exatas não há escapatória, são duras, fatais. A matemática já existia, um mais um sempre foi e sempre será dois, o Homem simplesmente organizou. Com o direito é diferente, sempre cabe interpretação e adequação da regra.

O exemplo do tio André é ótimo: num espaço público há uma placa proibindo a entrada de cães. Então, chega um cego com seu cão guia e o guarda na porta o impede de entrar. Logo em seguida, outra pessoa chega com um urso e entra sem encontrar resistência. Dura lex?

Aí está o ponto. A lei não pode ser dura, tem de ser maleável, se adaptar à sociedade. Aqui no Brasil temos a piada antiga segundo a qual há leis que “não pegam”. Ora, aqui, ali e em qualquer lugar onde houver gente uma lei que for contra os costumes só vai pegar à força – o que não é bom. O ideal da lei é que reflita a sociedade, e sociedade deve ser um lugar tranquilo, leve, agradável para se viver.

Se, ao contrário, emerge na sociedade o clamor pelo embrutecimento da regra, a ponto de inclusive gente boa e tida como esclarecida defender que o Estado endureça as leis e suas aplicações, reduzindo a maioridade penal, instituindo a pena de morte e até recriando presídios medievais, isto é, defendendo que, justamente como fazem os criminosos, prenda, arrebente e mate, como se assim se resolvessem os problemas, fica claro que, antes de qualquer lei, o que precisa de atenção é a sociedade.

Não é razoável que a política de segurança ignore justamente o seu princípio, que é a liberdade individual. Reagir na mesma moeda só vai dar impulso ao pêndulo eterno, que, se hoje está em nível de calamidade, é porque, na outra ponta, também foi longe demais. Ou alguém pode negar o descaso social histórico no Brasil?

A gente colhe o que planta, recebe o que dá, é o que come. Se a ideia é ter uma sociedade melhor, mais justa e honesta, precisamos de uma rede de proteção social, que eduque, cuide, atenda, conforte, proteja. Mais grades, mais chumbo, mais mortes definitivamente não vão nos ajudar. яндекс

#11SilêncioCulturaLiteratura

O pior mudo é o que não quer falar

por Léo Coutinho

Não há virtude no silêncio. Os que pregam o calar no lugar do falar o fazem porque se envergonham do que teriam ou não a dizer. Quem teme a palavra teme a verdade. Quem teme o debate teme a presença e a luz. O silêncio é o vácuo, é a treva, atraente e perfeito como valhacouto da ignorância, da antiética, da covardia.

O silêncio é a burca da alma. E a palavra, sua nudez. A beleza dos corpos e das opiniões está na diferença: quanto mais ampla e diversa, melhor. Quão variadas são as formas da beleza física, e quão parecidas com o espírito das pessoas? Quanto mais inocente e despido, mais bonito e verdadeiro é o ser humano. A nudez das crianças, dos povos primitivos, dos miseráveis é sempre bela e comovente. Ridículo e abjeto só pode ser o general sem farda, o acadêmico sem fardão, o padre sem batina, o senador sem casaca e, sobretudo, o rei sem manto.

Qualquer opinião é melhor do que o silêncio. Tinha toda razão Martin Luther King quando falou que “o que preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”. O verbo está no tempo certo, porque, ao contrário do homem, a palavra é viva. O silêncio, não. Pode até ser lembrado, mas sempre como um morto.

As razões para a boca calada são muitas. Há quem cale por medo, há quem cale por dinheiro, há quem cale por interesse, conveniência, inconsciência. E há quem cale por amizade, solidariedade, compaixão; por amor há quem se cale – é mais raro, porém. Por virtude, de modo geral, só se cala sob tortura.

O Homem afirma a própria existência quando rompe em um berro, pondo fim à paz uterina. Feito isso, é orientado a calar novamente, ser um bom menino para a própria tranquilidade e para o conforto dos que o cercam. Assim, atravessamos a vida, associando o silêncio à paz, sem perceber que esta só será verdadeira quando todos puderem dizer o que bem entenderem. O pior mudo é o que não quer falar.

#12LiberdadeCulturaLiteratura

A vez do peru

por Juliana Cunha

Muito se falou sobre uma hipotética perua chateadíssima com a PEC das empregadas. Pouco ou nada se falou a respeito do peru, seu marido. Em casa onde a mulher se sente ultrajada em ter de esquentar o próprio jantar, o homem não deve limpar sequer a própria bunda.

A PEC das empregadas revelou duas obviedades. A primeira é que nosso espírito escravocrata permanece intacto a ponto de uma lei que simplesmente iguala o trabalhador doméstico aos demais gerar comoção. A segunda é que, na falta de um escravo externo, o trabalho doméstico tende a cair no colo da perua, nunca de seu querido e bem assado peru.

Nenhuma surpresa. Remunerado ou não, o trabalho de casa sempre foi coisa de mulher, basta ver que o emprego doméstico só deixou de ser a principal profissão das brasileiras em 2011. Antes disso, éramos mais domésticas que médicas, advogadas, professoras. Hoje somos mais vendedoras.

Dos 6,65 milhões de trabalhadores domésticos do Brasil, só 31% têm carteira assinada. A precarização do trabalho não é coisa só dos tais grotões do Nordeste. É maioria em todas as regiões do Brasil.

Tenho dificuldade em imaginar uma casa de classe média sem filhos que exija mais do que duas visitas semanais da diarista para se manter apresentável e, quem sabe, até com um feijãozinho congelado na geladeira. Chamar uma diarista duas vezes por semana não configura vínculo empregatício e custa cerca de R$ 640 mensais. Achou caro? Chama uma vez só.

Para quem tem filhos a coisa é mais complicada: a pequena dose de independência e de vida externa que nossas mulheres de classe média conquistaram nas últimas décadas devem-se em parte às mulheres mais pobres que ficaram em casa, cuidando dos filhos delas.

Uma empregada que ganha salário mínimo (em São Paulo, R$ 755), que não faz hora extra nem adicional noturno e que recebe R$ 180 mensais de vale transporte (ida e volta de ônibus em São Paulo), R$ 200 de plano de saúde e R$ 250 de auxílio-creche vai custar R$ 1.777 pela nova lei. Três mil é o salário base de um repórter nas melhores redações do país. Para boa parte da classe média, é notável que essa conta não fecha, mas a pergunta é: como fazê-la fechar?

Para uns, a resposta é “contratar” uma empregada mensalista pagando os mesmos R$ 640 que citei aqui como valor de duas diárias semanais de uma faxineira. Os outros – os que me interessam – vão procurar alternativas. E se a gente criasse esquemas de compartilhamento de babás nos condomínios? Melhor ainda: creches comunitárias em que os pais se revezassem no cuidado com as crianças? Que tal se dessa vez nossos perus fossem convocados a resolver o problema?

#11SilêncioCulturaLiteratura

O país dos muitos hinos

por Juliana Cunha

Na cozinha, um radinho inofensivo é a voz do Estado dentro de sua própria casa. Ele toca notícias sobre o novo satélite lançado ao espaço e músicas que enaltecem a cumplicidade familiar e a amizade entre colegas de trabalho. O volume pode ser reduzido, mas não dá para desligar o aparelho. E você só queria fritar um ovo.

“Minha esposa é aquela que me ajuda a transmitir o espírito revolucionário para nossos filhos” – diz a canção, que se pretende de amor, mas cuja grandiosidade esmaga esses pequenos sentimentos que um sujeito possa ter por sua mulher, como uma vontade súbita de abraçá-la enquanto ela lava a louça.

Estamos em Pyongyang, na Coreia do Norte, lar do Grande e do Querido Líder. A única dinastia comunista da história. O país mais fechado do mundo. Um povo que baniu o silêncio de seu território a machadadas. Ficar na sua é difícil. Em algum lugar sempre está tocando uma música com cara de hino nacional. Todas, absolutamente todas as músicas têm cara de hino nacional. E, como todos sabem cantá-las, a impressão é de um hasteamento de bandeira que não acaba nunca. Mais e mais alto com a bandeira da DPRK, chegaremos até a lua de modo mais eficiente que nossos foguetes.

Convivo bem com a ideia de usar as mesmas roupas e o mesmo xampu que as outras pessoas. Convivo bem com a ideia de ver padronizados minha casa e o iogurte que tomo pela manhã. Nada disso é muito diferente do que vivemos no ocidente, só a embalagem. Mas ouvirmos sempre, todos, as mesmas músicas, aí já é demais. Pense no quanto as canções te ajudaram, lá no ginásio, a delimitar o que era o outro e o que era você. Pense no quão abjeto é o gosto musical das outras pessoas, do seu próprio irmão. Até seu melhor amigo – uma pessoa sensata em outros aspectos da vida – ouve Coldplay. Um rádio doméstico que não pode ser desligado. Um repertório musical uniforme e limitado, que unifica gerações e diferenças individuais numa ensurdecedora falta de opção. Essas são algumas lembranças complicadas que trago das férias que passei na Coreia do Norte.

#12LiberdadeCulturaLiteratura

Tema livre

por Hermés Galvão

Minha liberdade impropriamente dita se perdeu no meio do discurso. A caminho do real, cruzou o virtual e parou no tempo. Eu, perdido no espaço, já não dava a mínima para ela, que já não era aquela. Assim, deixei que ficasse para trás a boa ideia que tinha sobre o assunto. Cansado de procurá-la, sufocado por sua aparência forjada, me dei por vencido e dormi o sono dos presos – reticente e perturbado.

Tiraram de mim o que era nato e inexorável, ou talvez tenha sido eu que abri mão de ser livre por medo do acaso. Sei ao certo que já estive solto uma vez e era alto o que via lá de cima, maior que o próprio mundo em si. Me restam dúvidas se fiz a escolha certa, ao mesmo tempo não sei se tive outra opção.

O que tenho agora, ou o que sobrou por ora, é uma liberdade genérica – talvez placebo. É de efeito moral o que nos permitiram viver, não é sensação por assim dizer, por bem sentir. Tão pouco tudo isso, quase nada, é um ir e vir cheio de amarras sob os olhos atentos de quem eu sequer dei liberdade para vigiar.

Estamos acobertados por nuvens que pairam baixas sobre as cabeças, que, se não seguem a mesma sentença, hão de rolar ladeira abaixo, pedra sobre pedra, de sapato em sapato. Vingo-me deles acreditando que, sim, o que tenho é o que posso ser: livre até a contracapa, até que traduzam minha biografia autorizada, afinal permito que vejam minhas fotos, que me sigam online, que saibam onde estou, a quantos metros de quem, há quantos minutos offline e, claro, com quem ando e de quem digo o que penso.

A mesma liberdade que me deram para falar e escrever como quem finge não querer nada foi estendida a todos, para alívio seu. Ou então de que outra maneira teríamos atores ruins, curadores mirins, jornalistas chinfrins, militantes e afins? Isso sim é ser livre, sempre livre. Absorvente.

Minha liberdade só pode ser aquela que larguei no passado: seria pesado demais seguir adiante com ela, dada a sua grandiosidade original, que só crianças e loucos suportam ou tem permissão de carregar. A de agora não é exatamente leve, no máximo leviana. E cheia de moral – em nome dos bons costumes. Os meus são da pior cepa, tão libertinos que tornaram-se vícios. O maior deles? Experimentar no limite do equívoco, à beira do ridículo.

Minha liberdade é tão amoral que só engorda e faz crescer os olhos de quem vê. Mas o tema é livre, não se prendam por mim.

#11SilêncioCulturaLiteratura

Je vais te dire un secret

por Hermés Galvão

Vou te falar ao pé do ouvido para prestar um pouco de atenção no que eles dizem. Olhos nos olhos e orelhas em pé, mas nada de ficar cabisbaixo ao perceber que falta sentido no que se fala – por mais que se escute bem. Logo cedo você vai entender que não há (e não cabe) compreender. Vou te pedir – e se precisar, repetir – para não desistir deles por isso, mas também não invista: apenas os mantenha à vista. Porque pode ser divertida a conversa quando vão a fundo.

Só não espere que quebrem a cara ao mergulhar no raso de suas intenções, pois todos ao redor flutuam na insuportável leveza de ser o que são por não saberem ser de outro jeito. Não vão notar. Nem anotar. Simplesmente vão esquecer, deixar passar. Ficam as imagens. A memória é visual e, aparentemente, são todos muito inteligentes aos olhos deles, que acreditam por não conseguir sentir. Mas não são pesados por isso, e boiam porque não sabem nadar. E, te digo, nem querem aprender. Para não ir longe demais, percebe? Vivem à beira, contentam-se molhando apenas os pés. A cabeça vive à seca, de onde saem histórias ao vento que eles chamam de movimento. Palavras, apenas.

Mas desejam eles, com a pureza dos estagiários, deixar com elas uma marca, para que no futuro outros voltem atrás e os reverenciem como tais, intelectuais. Seria naïf se não se fosse tão, como dizer, leitmotif. No calor da vernissage e no frio das salas de reunião, galeristas da boca pra fora e publicitários de última hora trazem à tona ideias que, como numa batalha naval de papelaria, cruzam letras e figuras em busca de uma mira certeira. Mas é água o que vem de suas direções. Canhão apontado para o nada, a disparar bombas de efeito moral para alvos fáceis que não resistem a uma prosa pomposa.

Falta assunto para preencher uma existência inteira. Monólogos monotemáticos, cada um por si falando dos outros. Por mais tediosos que possam ser, hoje fico com os monossilábicos – talvez seja puro mistério e não vazio o que pensam em silêncio. Talvez entendam que frases precisam fazer sentido como a vida, que formá-las sem eira não é como jogar conversa fora, mas papo furado. Estou com eles e não abro: sem um pio. Porque perder a chance de ficar calado é o meu novo suicídio moral.

#12LiberdadeCulturaLiteratura

Para o raio que o parta

por Vanessa Agricola

Vou te contar, em menos de dois meses a minha vagina vai dilatar dez centímetros até que a cabeça do meu filho apareça e todo o seu corpo saia por ela. Menos de dois meses. Dez centímetros.

A saga começa dez horas antes. Quando uma cólica, maldita, me dá vontade de fazer cocô na calça. Se Deus for justo, devo estar em casa, e vai dar tempo de correr pro banheiro, pra minha privada, e ficar lá, até a dor (e o que mais) passar.

Dali a pouco, a tal cólica volta. E eu, já sem nadinha a colocar pra fora, vou entender que não se trata de uma dor de barriga, que não comi nenhuma comida estragada, que finalmente chegou a hora. “Contrações regulares, com duração curta, dores lombares, vontade de evacuar”. São as descrições do início do trabalho de parto que aprendi no curso. Como lidar: tentar dormir, se for noite. Dar um passeio (se for a She-Ra). Escrever uma carta para o bebê sobre a emoção da chegada (se for completamente louca).

Se me conheço, vou chorar. Não tanto pela dor, mas pela euforia. Vou ligar pro meu marido, ele vai ligar pra doula, os dois vão chegar mas nenhum dos dois me deixa mais calma. Meu filho vai nascer, pomba. Vou ter que me controlar. Até que o tempo entre uma contração e outra não passe de dez minutos é melhor ficar em casa, quieta. Pode durar horas, não sei se vou conseguir. Talvez eu me apresse: Liga pro doutor David, liga pro doutor David! Pra ver se o doutor David libera a ida pro Einstein.

No carro, um puta trânsito. Chegando no Einstein, um puta mau-humor. Bom dia, mamãe, esse neném vai nascer hoje? Quem responde por mim é meu marido, André, que não tem mau-humor nunca. Tá nascendo. Consegue uma LDR pra ela?

LDR é a sigla de Labor Delivery Room, uma sala de parto com banheira para onde as raras grávidas que decidem tentar um parto normal vão. Só tem cinco salas dessas no Einstein (não parece muito, mas considerando a taxa de 79% de cesáreas do hospital é bastante coisa), e como um parto normal não tem data prevista, não tem como reservar uma LDR. O que se sabe, com certeza absoluta, é que as contrações passadas em água quente ficam mais fáceis de suportar. Por isso eu quero tanto a banheira. E por sorte, consigo uma.

Em poucos minutos estou numa água quentinha. Marina, a doula, massageia a minha lombar, e por uns instantes sinto que vai ser tudo bem mais fácil do que eu imaginava. Mas não. Vem uma nova contração, típica da fase ativa do parto, com “contrações mais próximas, de mais ou menos um minuto, muito mais fortes do que a fase anterior”. Como lidar: apoio. Relaxamento. Movimentar o corpo.

Sabe aquela bola de ginástica, a bola suíça? Marina me ajuda a sentar nessa bola e rebolar. Achava constrangedor fazer os movimentos no curso, mas não é que funciona? Eu rebolo na bola e a dor alivia.

André me incentiva, diz que estou tirando de letra, só que a calmaria termina logo, a bola me deixa tonta e chega uma nova fase mais intensa, terceira e última, chamada de transição. “Contrações de mais de um minuto, muita dor, náuseas, tremores, irritação”. Como lidar: mais banheira. Mais massagens. Entrega.

Xingo o doutor David que até agora nada. Uma enfermeira avisa que ele jájá chega e mede a atual dilatação da minha vagina: Sete centímetros. Jajá essa neném sai. Percebo que ela nem sabe que eu vou parir um menino, mas que se foda. Sinto um calor enorme na barriga, lembro que dos oito aos dez centímetros o bicho pega, sinto medo, pânico. Vomito.

Marina me limpa. André me faz carinho. Rejeito os dois. Começo a considerar as dicas de uma parteira badauê da Vila Madalena, que dizia que as vogais do nosso nome tem poder de cura. Ao doer muito, grite as vogais do seu nome, Vanessa, aaaaaa, eeeeeee. Tenho vontade de morrer.

Doutor David entra pela porta. Nem consigo reclamar do atraso. Me anestesia, me anestesia! Ele pergunta: Tem certeza? E eu: Absoluta, esquece a carta!

Pra você entender, eu escrevi uma carta pedindo que o anestesista não me anestesiasse em hipótese alguma. Eu não queria uma anestesia, queria ir até o fim, entrar no transe da Partolândia, quando as contrações são tão fortes, e a dor é tão aguda, que a grávida entra em um estado de demência, ou de não consciência, como se tivesse tomado uma droga.

Em um livro, Quando o corpo consente, li que a dor que uma mulher sente no parto é a mesma que todas as dores que ela sentiu na vida, considerando todas as dores da vida somadas, e que a partir daí, ela se livra de todas elas. Quiçá tenham sido palavras bonitas, que a autora usou só para enfeitar, acontece que essas palavras não saíram mais da minha cabeça. Eu queria gritar, sem anestesia, sem episiotomia, sem nada! Queria sentir todas as dores do mundo, todas as dores que já senti na vida. Queria me livrar delas! Mas quer saber? (Coisa que eu só soube agora). Tanto faz o jeito que meu filho vai nascer. Eu posso ter uma cesárea, posso ter um parto normal, nada é certo. Só que o meu filho vai nascer de qualquer jeito. Com ou sem anestesia eu vou sentir ele sair do meu corpo, vou sentir ele no meu colo, e ele vai olhar pra mim, parecido comigo, ou com o pai que eu amo tanto… e aí, gente, aí ferrou. Eu vou sentir aquele amor, como se fosse um raio. Pum! E é o raio que me liberta. De tudo.

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Portfólio: Theo Craveiro

por Silas Martí

O que eu tinha, de Theo Craveiro

Theo Craveiro tenta esticar a pele da arte. Sua obra usa os vocabulários e matrizes do discurso plástico como receptáculo estranho da vida real. São molduras exatas, rígidas, que se adaptam com certo atrito ao descontrole orgânico, uma colônia de formigas enjaulada em formas construtivas, um gêiser artificial contido num cubo de vidro ou mesmo uma planta de maconha que cresce em plena galeria, dentro de uma estrutura metálica.

Artista que se lançou no circuito levando carrinhos cheios de obras às portas dos museus de São Paulo, Craveiro desde sempre parece delimitar um território e se posicionar à margem dele. No vão livre do Masp e na entrada da Pinacoteca do Estado, armou exposições móveis, tal qual um caixeiro viajante. Eram veículos carregados de sentido, peças de museu vistas do lado de fora, como mercadoria exposta e ainda não digerida pelo sistema oficial. Era como se instaurasse uma arte paralela, um ponto de contato entre a esterilidade dos cubos brancos e a vida que pulsa lá fora, nas ruas da cidade.

Quando decide encerrar uma colônia de formigas numa reprodução das linhas concretas de Waldemar Cordeiro, ou ceder aos bichos as linhas semi-orgânicas de um Metaesquema de Hélio Oiticica, Craveiro parece desafiar o determinismo cerebral do construtivismo brasileiro com uma dimensão orgânica, seres vivos que não se comportam de acordo com cálculos, regras e modelos. Ele aplica a raiz da arte contemporânea no Brasil, espécie de gênese da modernidade tropical, à vida dos insetos, como se ironizasse a falência da utopia modernista, ou aludisse a humanos como baratas tontas dentro de ousadas e austeras construções que não levaram em conta a escala da vida real.

Esse raciocínio se estende, mais afiado, à vitrine de laranjas que construiu tempos depois. Um espelho à primeira vista se revela, na verdade, uma estante de vidro que esconde uma fileira de frutas em decomposição. Começam maduras e vistosas e definham diante do olhar de quem se contempla no espelho. Quem passa diante do vidro tem alguns segundos para ver a própria imagem até que as luzes lá dentro se acendem e revelam as laranjas em putrefação. Numa primeira leitura, seria um manifesto contra a vaidade, mas a forma escolhida para o trabalho não nega o embate constante que preocupa o artista, o contraponto entre uma estética calculada, quase sempre de teor construtivista, e a imprevisibilidade da existência – Craveiro parece então teatralizar a realidade.

Mais explícita, sua planta de maconha floresce dentro de uma estrutura metálica, de linhas ortogonais pretas. Ilegal, o arbusto só pode existir num contexto de exceção, enquanto obra de arte. Craveiro emoldura as folhas com o mais neutro dos suportes, traços negros no espaço que, ao mesmo tempo em que destacam sua natureza distinta do contexto, parecem mergulhar a planta na lógica das obras de arte, objetos sem finalidade, excluídos da narrativa rasteira e mundana da vida. Sua planta, real e em plena exuberância, acaba se tornando então um ser híbrido, desdobrado entre sua presença real e inegável enquanto planta de maconha e também uma simulação removida daquela mesma planta.

Craveiro ataca aqui a ideia de representação central na história da arte. Sua obra é ao mesmo tempo aquilo que aparenta e representa e aquilo que se destaca do espaço da realidade por sua presença no cubo branco e por sua obediência ao traçado ortogonal dos contornos estabelecidos pelo artista. Mais uma vez, como fazia em seus carrinhos de obras de arte, o artista aponta para as margens de um território, exacerbando a fricção entre os espaços como tônica de uma produção instável por natureza, que faz roçar orgânico e construtivo, natural e construído.

Desse atrito, surge uma potência inesperada. Entre as faces de um cubo de vidro, Craveiro instalou um jato de água que bombeia o líquido com toda a força contra as paredes transparentes. É um equilíbrio frágil, quase a ponto de explodir, que se deixa ver através do vidro, ou melhor, aquele momento em que a arte é flagrada no limite entre forma pura e pulsão de vida irrefreável.

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Querem me envelhecer de qualquer maneira

por Hermés Galvão

Formigueiro, de Theo Craveiro

Querem me envelhecer de qualquer maneira e me convencer de que fiquei para trás, amarrado lá nos fundos da geração Y. Sei que já vieram outras depois da minha, mas eu nasci ontem e tenho planos infalíveis para continuar jovem amanhã. Sei também, não é de hoje, que já não me chamam de futuro. Logo eu, que nunca fiquei preso ao passado, agora sou visto como assunto encerrado. Talvez porque ainda tenha hábitos manuais, e não somente digitais. E porque coleciono amigos reais e não virtuais + um par de gadgets em vez de um acervo eletrônico que, no meu tempo, só japonês tinha grana para ter.

Mas, por favor, não me estacionem porque ainda posso andar. Apenas não tenho tanta pressa assim, embora tampouco seja devagar – e pra quê correr se lá na frente a gente vai se encontrar? O tempo dirá. Então, que tal me esperar? Me recuso a ser chamado de velho. Porque tenho no DNA traços das gerações Z e M (de multifacetado), que acabam de chegar. Só não me peça para interagir com quem veio ao mundo quando já frequentava o submundo – veteranos merecem escolher suas companhias, é mérito que só pode ser conquistado com os anos.

Sim, ainda guardo CDs na estante e chamo club de boite, mas exijo espaço para me encaixar onde possa me sentir à vontade. Nostálgico e obsoleto é a sua avó, antes que me esqueça. Escrevo em um MacBook de cinco anos atrás e não me identifico com quem se orgulha disso – por mim, comprava o de última geração, para me equiparar aos meninos que tocam no visor como quem beija um grande amor. Mas papai, que é baby boomer, me ensinou a comprar uma coisa de cada vez. E agora minha prioridade é tratar a cabecinha oca, como todos meus contemporâneos concebidos num Dodge 74.

Como eles, e como todos, fui definido de forma aleatória, ajustado numa linha do tempo com raciocínio bambo que, aposto, veio da cabeça de um publicitário que viu a vida passar pela janela da agência. Ou encomendado por alguma fundação que enquadra países, bancos e, claro, pessoas de acordo com o que compra, come e vive. Fui batizado de Y por uma turma que nasceu entre o pós-guerra e o ano de 1964, por gente que nomeou de X os que vieram em seguida e registrados até, sei lá, 1981. Até hoje não souberam explicar, sei lá, porque uma geração começa em 1982 e a outra entre 58 e 62, por exemplo. Talvez em ano de Copa a coisa mude, vai entender. Ou não, vamos esquecer.

Sem definições para um futuro sem restrições. Para recomeçar. E ir atrás do tempo esquecido para que não se perca. Voltar ao passado e revivê-lo agora para redirecionar o que vem pela frente. Para que o presente não se repita diariamente, para que cotidiano e rotina tornem-se ideias opostas. E os dias ganhem movimentos tão dinâmicos que a noite passa a ser uma certeza inconclusiva. Não quero ter medo das surpresas, quero estar pronto para quando o inesperado chegar. Que entre na hora que for, mas que venha para ficar. Isso de ser passageiro é das vinganças mais cruéis que se pode fazer com o outro, isso de dizer que tudo sempre será quando, na verdade, tudo vai. Aconteceu, passou, se foi. E voltamos de onde paramos. De onde mesmo? Do início e nunca do meio. Porque, para começar de novo, é preciso juntar o alfabeto inteiro, do A para frente.