#Terra: Especial 10 anosCulturaDesignSociedade

Itcoisa: Vale do Ribeira

Na coluna dedicada a objetos artesanais feitos no Brasil, o antiquarista Raphael Nasralla comenta a tradição existente no Vale do Ribeira, em São Paulo

Foto: Gleeson Paulino

O Vale do Ribeira é uma das regiões mais pobres do estado mais rico do Brasil. Nessa região, mais da metade da mata Atlântica original permanece preservada, recebendo o título da UNESCO de patrimônio natural da humanidade.

No Alto do Vale do Ribeira existe uma rica tradição mestiça, herança dos guaranis e quilombolas. No passado, essa tradição era exclusiva de mulheres; hoje, é possível encontrarmos homens dedicados a tal ofício com apuro e beleza.

Esse processo começa com a retirada da argila na lua minguante e, em seguida, a técnica conhecida como rolinhos, em que vão surgindo figuras do imaginário popular da região: potes, moringas, panelas e outros utensílios muito úteis.

Eu mesmo bebo e cozinho no barro do Ribeira não só pela beleza do objeto, mas também pelo benefício da saúde.

Este texto é dedicado às mestras Simhana de Itaoca, Trindade Texeira, de Barra do Chapéu, e Custódia de Apiai.


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Maria Beraldo e sua terra de referência: Caetano Veloso

por Maria Beraldo

Transa, de Caetano Veloso (1972)

uma vez escrevi num caderno meu: “Caetano, é difícil te amar”.

tem também alguns outros escritos dedicados a ele nos meus cadernos, como cartas e letras de música inacabadas.

o fato é que Caetano, para mim, não é uma referência; é uma paixão exagerada.

eu tenho uma coisa ouvindo sua música que parece um prazer sináptico. sensação da compreensão intelectual através da emoção, e vice-versa. numa corda tensa.

Foto: Daryan Dornelles

clarinetista desde criança, compus minha primeira canção em 2014, durante um mergulho obcecado no seu disco Joia – já tinha ouvido o disco antes na infância, mas dessa vez eu fiquei 6 meses só conseguindo ouvir ele. a sensação que a canção “Joia” me dava de antropologia em dois versos encontrou o estruturalismo inconsciente que permeou minha infância sendo filha de antropólogo. experimentei cantar todas as músicas do álbum, e “Minha Mulher” me transformou, com muita importância, nesse momento que era o da minha saída do armário. eu roubei a canção dele em troca de todas as mulheres que a heteronormatividade me havia roubado durante todos os anos anteriores. antes da elaboração e tentativa (um pouco frustrada, um pouco bem-sucedida) que hoje construímos, de desassociar o amor da posse, inclusive através da linguagem, cantar que uma mulher era minha me ensinou a sentir que, sim, uma mulher podia ser minha – eu tinha querido tanto tantas mulheres e tinha sido ensinada que nunca poderia tê-las. então coloquei na minha boca a “Minha Mulher”. uma a uma, devolvi tantas e todas as que dali tinham sido arrancadas, com a importância no fundo de me devolver a única mulher que é de fato minha: eu mesma. e Caetano um pouco me ensinou a roubar dele aquela música quando eu o ouvia roubando “Help” dos Beatles. que coisa tão linda. entrei num estado em que ouvir sua voz cantando uma coisa qualquer me emociona no profundo, e meu primeiro disco solo, Cavala (2018), com minhas composições, é pontuado por muitas referências, um pouco conversas, com a obra de Caetano. “Amor Verdade” é o nome de uma das minhas músicas mais emblemáticas (de saída do armário), e arranjei esse nome por causa de uma passagem de “Tem que ser você”, onde ele usa “amor mentira” para se referir ao amor homossexual – li uma vez que seria um termo usado por um grupo indígena norte-americano. nessa mesma música, eu digo que “gosto de tê-los (os homens) ao alcance da boca” – mais uma citação de Caetano, em “Lindeza”. depois, tem essa minha primeira canção da vida, que se chama “Da Menor Importância”, evidentemente uma citação de “Da Maior Importância” (para mim, só no título, mas tem quem enxergue na canção também). gravei uma faixa de noise (“Rainha”) totalmente inspirada em “Ela Ela” (que está no Circuladô, produzida e tocada por Arto Lindsay), e minha música “Helena” é um pouco de “Boas Vindas” com “Irene”. isso e mais.

acho que Caetano me trouxe o meu encontro com a palavra no momento em que eu buscava minha voz. ele tem uma inteligência sensível e uma sensibilidade muito inteligente. e, ao mesmo tempo, é muito terreno e humano, não parece um deus. e sei que assim como encosta em mim, encosta na geral.


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Mariana Tassinari e sua herança visual

por Mariana Tassinari

Quantas pessoas não possuem um arquivo de imagens de família?
Como fazer para ele se transformar em algo universal,
que possa trazer algum significado para os outros?


Cresci rodeada por arte. Ela estava ali, parecia estar lá desde sempre. O lugar mais marcante era a casa dos meus avós paternos. Um dia, olhei para as pinturas na parede e comecei a entender o que eram. No outro, percebi cada objeto, cada escultura, sua arquitetura.

Com o arquivo de imagens dos meus avós em mãos, pude ver como cada uma dessas obras foi, aos poucos, habitando a casa. Fui descobrindo parte da história deles com arte através da evolução dessas imagens. Mais tarde, comecei a tirar minhas próprias fotografias da casa e, anos depois, registrei-a sendo esvaziada, cada pedaço de história afetiva migrando para um novo destino, para habitar uma nova história.

Quantas pessoas não possuem um arquivo de imagens de família? Como fazer para ele se transformar em algo universal, que possa trazer algum significado para os outros?

Comecei pela catalogação desse arquivo: slides e negativos dos meus avós, slides da minha tia-avó (que também era artista), slides de viagens do meu pai e de suas aulas de História da Arte e todos os negativos da minha mãe – que, além das fotos de família, também teve momentos experimentais com autorretratos e outras pesquisas. Somando ao meu arquivo de negativos, slides e fotografias digitais, me vi diante de um atlas infinito de imagens pessoais: histórias que não me pertenceram se fundiam às minhas memórias num grande arquivo embaralhado.

Desde pequena, me fascinava desenhar plantas de arquitetura e inventar móveis. Parecia óbvio seguir para a Faculdade de Arquitetura. Precisei de dois anos e meio para entender que a arquitetura seria apenas mais uma fonte de referências, e não a matéria do meu trabalho. Decidi mudar para as Artes Plásticas e, desde o início, soube que me expressaria pela fotografia.

Foi por volta dos dezesseis anos que tive minha primeira aula de fotografia, com meu pai, assim que me entregou sua Canon K1000 manual, também usada por minha mãe em nossas viagens e eventos familiares. Comecei com registros de viagens, cenas cotidianas, fotos de amigos e família. Alguns cursos técnicos e outros experimentais depois. Aos poucos, meus registros fotográficos foram de um olhar passivo de uma turista para um olhar mais apurado, atento aos detalhes que me interessavam. (Passaram de um simples olhar de turista para um olhar interessado de artista, buscando formas para ideias futuras.)

Sempre quis ir além da fotografia, e as diversas técnicas artísticas experimentadas na faculdade me trouxeram liberdade para isso. Comecei com serigrafia, pintura e adesivos sobre foto. Em seguida, me apropriei de materiais como madeira, azulejo e acrílico para compor com a fotografia. Junto com a fotografia digital vieram as intervenções digitais: formas geométricas coloridas ocuparam parte da imagem, subtraindo detalhes, ocultando cenas. Explorando diferentes relações entre a imagem e essas matérias, percebi que, além disso, também poderia unir uma imagem a outra.

Nada mais óbvio, então, do que revisitar meu grande arquivo embaralhado. A união de duas imagens produz um estranhamento inicial para, depois, proporcionar contemplação. O contexto individual impregnado nela faz com que cada um crie sua própria história. Isso é mágico na fotografia: poder viajar mentalmente apenas com o deslocamento do olhar, passeando pela imagem para capturar mais detalhes e pistas do lugar para onde estamos indo ou podemos ir.

A apropriação de imagens familiares carregadas de marcas temporais que emergem do arquivo para chegarem no presente de outra forma. As imagens antigas e analógicas encapsulam um tempo que não existe mais: o tempo histórico e um tempo em que era possível encontrar pausas para contemplar.

O desafio é criar uma imagem que faça o olho parar, relaxar e, depois, percorrê-la para tentar absorver um detalhe, uma forma, que fique gravada em nossa memória e possa ser levada conosco em nossa jornada.


Editora de artes plásticas da edição Amarello Terra, Mariana Tassinari é artista e vem perdendo noites de sono tentando organizar seu arquivo de mais de 6 mil imagens de família | @maritassi


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Bruna Albuquerque e sua terra de referência: Mausoléu de Shah-i-Zinda em Samarcanda

por Bruna Albuquerque

Mausoléu de Shah-i-Zinda em Samarcanda
Sem título, 2019
Cerâmica, latão e granito
93 x 108,5 cm

Eu sempre fui apaixonada pela arquitetura islâmica. Acredito que há algo de mágico nos jardins perfumados com o som de fontes e canais de água, na cerâmica com cores e geometrias, na luz filtrada pelos muxarabis, nas molduras das portas e portões criando lindos enquadramentos de transição.

Já havia conhecido a magnífica Isfaham, mas visitar o Uzbequistão me impressionou profundamente.

As cidades Bucara, Khiva e Samarcanda são joias repletas de exemplos incríveis de arquitetura. Nunca vi tantas combinações de diferentes materiais com resultados harmônicos e sofisticados.

A cidade de Samarcanda foi capital do Império Timúrida. Nessa época, ela recebeu os melhores artesãos, arquitetos e artistas vindos de todo o império para trabalhar nos seus monumentos.

Meu lugar preferido foi o Mausoléu de Shah-i-Zinda. Você chega em uma região árida fora da cidade e sobe inúmeros degraus, atravessando pórticos até chegar em uma pequena avenida de túmulos, que inclui os de membros da família de Timur e de um primo do profeta Maomé. Cada edifício é elaboradamente decorado, com detalhes super refinados de cerâmica contrastando com acabamentos em pedra da região.

É muito bonito. Nele, me inspirei para realizar este trabalho, buscando expressar a riqueza desse lugar em cores e formas simples.


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Conversa Polivox: Márcio Oliveira

por Revista Amarello

Márcio, como e por que surgiu o convite para fazer o show em homenagem aos 10 anos da revista Amarello?

Semanas depois de assistir à apresentação de Tramundo, na Casa de Francisca, em São Paulo, Tomás [Biagi Carvalho, editor da Amarello] me procurou para contar que estava desenvolvendo um trabalho audiovisual sobre Os Sertões, mais precisamente sobre “A terra”, primeira parte do livro de Euclides da Cunha. Ele comentou que havia pensado em utilizá-lo como espetáculo na comemoração de sua revista. Foi nesse momento que veio o convite para realizar a curadoria e participar da direção artística desse show, chamado A primeira chuva não molha. Acredito que o convite tenha vindo porque Tramundo também fala a respeito de um Brasil profundo, sertanejo.

Como será e do que se trata o show?

Apresentei inicialmente para Tomás alguns artistas que trabalham com essa temática e por quem tenho grande admiração. Nesse processo, surgiu a ideia de criar um show envolvendo três coletivos cariocas que dialogam muito entre si: Tramundo, Selva Lírica e Pietá. Conversando com Marcos Campello, Claudia Castelo Branco e Fred Demarca [integrantes dos grupos citados] sobre como seria o espetáculo, decidimos rever o nosso repertório, selecionar algumas canções que envolvessem o tema proposto e, a partir dessa ancoragem, começamos a estruturar um roteiro que apontasse para as várias leituras de “A terra”. Ou seja, expandimos o repertório para, à nossa maneira, falarmos de diversos aspectos que envolvem não só Belo Monte e o semiárido nordestino, mas também as múltiplas visões do que é o sertão e o povo sertanejo. Nesse processo, optamos por amalgamar os três grupos e formar uma banda de onze músicos: Zé Manoel, Lívia Nestrovski, Juliana Linhares, Ilessi, Fred Demarca, Rodrigo Maré, Claudia Castelo Branco, Fred Ferreira, Marcos Campello, Thiago Thiago de Melo e Rafael Lorga. Fizemos um entrecruzamento total, tanto de repertório quanto de músicos.

Você pode falar um pouco dos artistas que participarão do show?

De início, a escolha foi bastante intuitiva. Com o tempo, porém, percebi que acabei criando um recorte da cena musical carioca – uma cena que me atrai bastante, tanto estética quanto afetivamente. Para mim, esses artistas são o que há de mais interessante e vigoroso no Rio. Claro, muitos não consegui inserir no projeto, caso de Thiago Amud, Vovô Bebê, Luisa Lacerda, Julia Vargas, Aline Gonçalves, por conta das limitações do próprio show. Durante esse processo, fiquei um pouco ressabiado por colocar tantos cariocas para falar de sertão. Afinal, dos onze, apenas Zé Manoel e Juliana Linhares nasceram no Nordeste. Mas, nesse meio-tempo, acabei lendo Sertão, sertões: repensando contradições, reconstruindo veredas (Elefante Editora , 2019), um livro com diversos artigos que expandem a obra de Euclides. Em um dos textos, é explicado que o termo favela tal qual o conhecemos hoje surgiu por conta da Guerra de Canudos: os soldados ficaram boa parte do combate alojados no Morro da Favela, que levava esse nome por conta das faveleiras (Cnidoscolus quercifolius) que havia por lá. Ao voltarem para o Rio, aguardaram do Estado a prometida terra que ganhariam em troca de terem ido à guerra. Logicamente, a promessa não foi cumprida, e os soldados foram morar no (atual) Morro da Providência, no centro do Rio de Janeiro. Lá, a região foi apelidada de Favela. Essa informação me fez perceber a enorme ligação que há entre Canudos e o Rio de Janeiro, principalmente as favelas e periferias. O sertão é periferia, é o que está à margem, o que deve ser escondido, evitado, suprimido. Isso me fez perceber que minhas escolhas faziam todo sentido.

Qual sua relação com o tema escolhido para a edição e para o show?

Como mestiço, gay e de origem periférica, o estar à margem é algo que sempre me atravessa. A luta histórica pela terra e pelo reconhecimento de uma existência são questões que me tocam profundamente. O apagamento é algo, para mim, aviltante e asqueroso. E é disso que Os Sertões fala. Mesmo a primeira parte do livro, “A terra”, gira em torno de uma concepção absolutamente positivista, impregnada de darwinismo social. Tudo isso é algo que atinge a mim e aos meus de modo muito forte.

Você falou que não havia muitos artistas nordestinos e que isso seria uma preocupação para falar do sertão. De fato, os artistas são oriundos da canção autoral de classe média, residentes no Rio. Qual a relação deles com o tema do Brasil profundo? E, mesmo, qual a sua relação, para além do sentimento de ser periférico? Você acredita que só pode falar do sertão o sertanejo? O lugar de fala é imprescindível?

Na realidade, a história dos artistas envolvidos nesse projeto é muito diversa, e nem todos moram na Zona Sul. Seria um equívoco fazer esse tipo de simplificação. Rodrigo, por exemplo, mora no Complexo da Maré. Ilessi, até bem pouco tempo, morava em Jacarepaguá e, hoje, mora no Grajaú. Além disso, muitos deles são descendentes de nordestinos e nortistas. Seria cansativo falar aqui a respeito da ligação de cada uma dessas figuras com o universo sertanejo. Na verdade, acho que é algo extremamente pessoal e subjetivo. No meu caso, minha família é toda de Itaperuna, divisa do Rio de Janeiro com Minas Gerais. Nasci em Nova Iguaçu e morei por lá até os 20 anos. Trabalho como professor há quase 30 anos na rede estadual e sempre atuei na periferia: Parque União, Vila Isabel, Méier, Pilares, Encantado, Inhaúma, Bancários, Morro do Borel etc. Já tive alunos mortos tanto pela polícia quanto pelo tráfico. Há pouco tempo, um dia após a eleição do Bolsonaro, dois alunos LGBTs, negros, foram violentamente espancados. O genocídio está aí, promovido pelo Estado. Ontem, foi em Belo Monte, hoje é na população negra e periférica do Rio. Veja, nós estamos aqui conversando basicamente por conta de uma obra que representa a perspectiva e a voz do vencedor. Mesmo que Euclides tenha ficado atordoado com a carnificina que presenciou durante o conflito, ainda assim Os Sertões é fundamentado pelo seu olhar de ex-aluno da Escola Superior de Guerra e de jornalista d’O Estado de S. Paulo. Não estamos aqui por causa das anotações de Conselheiro ou de qualquer registro de João Abade, Pajeú, Maria Bibina, Pedrão, Manuel Quadrado e Macambira (moradores de Belo Monte). Não mesmo. Por isso a importância do lugar de fala. É indispensável ler e ouvir o outro. Dar espaço para que se tenha acesso às mais diversas narrativas, às mais diversas vozes. E, principalmente, dar espaço a quem, historicamente, sempre foi calado e invisibilizado.

O que você está fazendo especificamente no show e o que o Tomás está fazendo? Como ficou a divisão de tarefas?

Tomás é o diretor geral e divide a direção de arte comigo. Eu fiquei mais voltado para os músicos, criando, em parceria com eles, o roteiro do show, acompanhando os ensaios e supervisionando o figurino. Tomás acompanhou um pouco esse processo e está mais voltado para a parte audiovisual do projeto. Na semana passada, foi para o sertão baiano fazer as filmagens para o espetáculo.

Fala um pouco sobre a ideia do Tramundo, que, como você disse, deu origem a esse espetáculo.

Tramundo é um show inspirado na obra de Guimarães Rosa, onde tento aproximar seu universo à cultura e às religiões de matriz africana. Faço a direção e sou o letrista das canções. Hoje, penso que Tramundo foi a forma que encontrei para retomar o contato com minhas raízes e minha religiosidade e, ao meu modo, honrar meus antepassados.

A Primeira Chuva não Molha, show em comemoração aos 10 anos da revista Amarello, pode ser conferido clicando aqui


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Vida Mata Dentro

por Marina Acayaba e Juan Pablo Rosenberg
fotos de federico cairole

Falar da terra é falar da gente da terra; gente de fala simples, carregada de saberes, histórias, lendas e tradições. Zé Taubinha, Burrico, Costeleta; a Viúva, o Delegado… Personagens de uma realidade quase fantástica preservada em pleno Vale do Paraíba do século XXI. A cultura da roça é legado oral, resistente, transmitido na moda de viola, no capricho das festas; imagens vivas que se moldam no ritmo da prosa. Falar da terra é também falar do tempo, de outro tempo, do presente sem pressa; do tempo-terra, que transcende a métrica do homem, pois pertence à natureza. Tempo alongado de ouvir e olhar. De deixar a vida simplesmente acontecer, de ver brotar.

À beira da estrada que leva a Ubatuba, uma pequena placa aponta à esquerda: Catuçaba. Ao dobrar rumo ao vilarejo, as sinuosas curvas da estradinha vicinal deixam o mundinho para trás, dando lugar ao mundão de entre morros que trazem os cheiros da terra em seus mil tons.

A vila surge com suas casinhas coloridas enfileiradas, as senhoras proseiam em cadeiras puxadas à calçada, o burro amarrado na sombra próximo ao Bar do Dito do Bar. É terça-feira? Domingo? Tanto faz. O tempo parece ter se esquecido de andar.

Da rua principal parte a estrada do Pinga, caminho de terra no meio da mata – cheiros da terra e da mata. Ela corta o Palmital, cruza o Francês, sobe pelo Dito e Anésio, até alcançar o Alto do Diamante, na exata divisa entre São Luiz do Paraitinga e Cunha, onde a vista avista o encontro da Bocaina com a Mantiqueira. Mundão. É ali que fomos parar, na fazenda Mato Dentro, onde hoje criamos nosso segundo lar. Nas primeiras vezes, aquilo parecia um fim de mundo. Hoje é caminho da roça.

Passada a porteira verde no alto, penetra-se fundo o vale por 2 km. A casa fica lá embaixo, no coração do vale. Casa caipira, ensina o saber popular, se constrói em fundo de vale, protegida do sol quente e do vento gelado, em solo fértil bem servido pelas águas.

E, para falar daquela pequena casa de pau-a-pique, passamos pela história de Maria Martins, mãe de Seu Agenor – ou “Seu Renô”, o mestre-cavalhada –, Afonso, e Anésio. Mulher forte que em quatro cômodos criou sozinha 20 filhos; alguns paridos, e outros que aqui resolveram ficar. Dizem que foi uma casa de festa e de boa acolhida, pouso para os romeiros rumo a Aparecida.

Na aduela de madeira, a data indica o ano de sua da construção: 1879. É necessário pedir licença para habitar esse lugar. Observar, aprender, respeitar. Dialogar com sua história. No arco do tempo, nossa presença é circunstancial.

Quando chegamos, o lugar estava desabitado há décadas. Uma chaleira de ferro resistia sobre o velho fogão a lenha vermelho em ruína. A parede de taipa com tramas à mostra deixava ver camadas de tinta recobertas ao longo das gerações. Uma foto antiga na parede nos revela um grande embasamento de pedra posteriormente aterrado, sobre o qual a casa se alicerça. A intenção era clara: recuperar, restaurar… desaterrar. Aos poucos, desde as primeiras visitas, o projeto foi nos contando o que queria/devia ser: construir em diálogo harmônico com a preexistência. Da casa original mudamos pouco; uma única parede interna, para unir um quarto à sala a fim de melhor acomodar a família. No centro, colocamos o novo fogão a lenha, coração da casa que tudo dá: o leite, o pão, a água quente do banho. Sua fumaça saindo pela chaminé indica que a casa está novamente habitada.

Havia, no entanto, e sobretudo, a necessidade de domesticar o lugar, há muito abandonado junto à abundante mata do fundo do vale. Além do restauro da sede, foram três as intervenções principais, entre as quais um longo muro em paralelepípedo antigo, comprado de uma fazenda próxima, que acomodou a topografia a montante, delimitando o espaço doméstico junto à imponderável natureza.

Paralelo à casa que abriga nossa família com seu telhado de barro em quatro águas, implantou-se, em respeitoso contraste, um volume puro e longilíneo em laje plana, para acomodar os hóspedes. Seu embasamento foi também construído em pedra, sobre o qual pousa protegida da umidade a nova construção caiada de branco, como a preexistente. Um pátio seco de tijolo aparente une e opõe as construções, cortado pelo som de um fio que conduz a água – e a vista – rumo ao vale enquadrado entre as casas. À frente, destacado da casa e debruçado sobre o vale, um segundo pátio, terreiro de tijolos, abre espaço para o fogo. Ali sentamos em volta da fogueira, ali cozinhamos.

Os tijolos dos pisos são de olarias artesanais que encontramos na região. Os oleiros Zé Taubinha e Burrico utilizam, ainda hoje, processos vernaculares de beneficiamento da terra, amparados por tração animal e fornos rudimentares. De suas ricas histórias e sabedoria, aprendemos sobre o elemento terra e sua transformação, sobre a expressão e utilidade de cada tijolo, a depender do barro, de sua mistura, dos moldes e dos processos de queima.

Na fazenda Mato Dentro, o dia a dia é de descanso e permanente aprendizado. A horta está a todo vapor. A seu tempo, o pasto está se regenerando em mata, e o pomar começa a dar seus frutos. É um privilégio podermos, na rica tradição da roça, plantar uma nova história com nossos filhos – Leon, 8, e Eva, 6 –, para que aprendam desde cedo a beleza sutil e poderosa do tempo, da prosa e da terra. Nesse caminho, a certeza que temos é a de que hoje queremos andar mais devagar, pois é preciso paz para poder sorrir, e é preciso a chuva para florir.

Marina e Juan Pablo são sócios do Acayaba Rosenberg arquitetos em São Paulo e pais de duas crianças, três cachorros, dois gatos, sete galinhas lá no Mato Dentro. @no.matodentro e @ar_arquitetos

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Explosão ou O útero do mundo ou Caverna ancestral

por Candice Japiassu

“tudo no mundo começou com um sim. uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. sempre houve. não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou.”

– Clarice Lispector

Explosão ou O útero do mundo ou Caverna ancestral é uma pesquisa sobre a origem, mas também sobre o feminino. Nesse trabalho, quero lançar luz sobre nosso problema fundamental: o começo de tudo.

Somos feitos de poeira de estrelas que um dia explodiram. Mas e as estrelas, de onde vieram? A questão metafísica sobre nossa origem é uma espiral vertiginosa e sem resposta.

Fósseis são elementos essenciais na busca de entender nossas origens primordiais. Um fóssil é a prova de que uma criatura existiu. É a natureza guardando uma reminiscência do original em pedra. Assim, o fóssil opera mais ou menos como uma fotografia, como algo que tem uma capacidade de fazer durar um resíduo deixado por uma existência.

Em minhas fotografias, utilizo a colagem e outras manipulações digitais com o intuito de devolver incertezas sobre a origem da imagem. Assim como não sabemos de fato nossa origem primordial – temos somente pistas, temos fósseis –, busco fazer imagens que contenham certezas e incertezas, realidades e invenções.

Nesta série, recorro ao meu próprio “gabinete de curiosidades”, uma coleção dos mais diversos objetos que, de alguma forma, fazem sentido para mim. Vai desde coisas coletadas na natureza até souvenires comprados em lojinhas de museus. Na foto “OVO”, por exemplo, “desenterro” do meu pequeno gabinete o que parece ser um ovo fossilizado e uma base de pedra de origem vulcânica. Essa colagem, em particular, eu fiz quando estava grávida, momento que resolvo, ainda que por um instante, a questão da origem: eu me tornava literalmente o ponto de origem de uma nova existência.

Para outras imagens, recorri a uma coleção de fotografias de estátuas femininas que produzi ao longo de visitas a museus, galerias e sítios arqueológicos. A princípio, colecionava apenas imagens de cariátides, estrutura grega que traz a forma do corpo feminino e que serve de sustentação para um templo. Acho muito simbólico o corpo da mulher como a coluna estrutural de um templo, afinal, as mulheres são templos por si só: sustentam seres humanos dentro de si. Hoje, coleciono não só imagens de cariátides, mas também das mais diversas representações escultóricas do corpo feminino. E começo a tratá-las também como fósseis.

Para além dos meus objetos e coleções, olho para a natureza buscando formas que insinuam forças gestacionais que ainda são, portanto, referências femininas. E que não deixam de ser fósseis – são resíduos de uma explosão primordial. São fósseis de um útero do mundo.


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Proust, o amor na terra: Os pilriteiros

por Thiago Blumenthal

A terra que se constrói em Proust é um espaço mental (cosa mentale), onde Marcel claramente ocupa uma posição inferior, quase de alguém pouco digno de conhecer, por exemplo, Gilberte, filha de Swann. Quem, afinal, ele pensa que é para conhecê-la? Seus jantares são com sua tia, sua avó, seus pais, não com a alta sociedade e os seus artistas preferidos. Mais do que um espaço hierarquizante, subjetivo, profundo, esse é o espaço, a terra, que prenuncia muitos dos espaços efetivos da obra.

Assim como as personagens são conhecidas a partir do que se ouve falar delas, também é a terra, as viagens empreendidas, em uma tipificação do romance que se está por escrever: os es- paços são os espaços imaginados, ainda que vivenciados, assim como os amores e as relações empreendidas em toda a obra.

Não é por acaso que, após descrever a imaginação do que seja a relação de Gilberte com Bergotte, o narrador apresenta uma lista de espaços, como “catedrais, o encanto das colinas da Ilha de França e das planícies da Normandia”, em uma composição perfeita, digna de um Proust, do que se pretende projetar de dentro para fora do romance e, mais do que isso, de dentro para fora da mente de um hábil narrador que já prenuncia tantas terras e tantos afetos que serão construídos ao longo de toda uma vida – e recuperados, rejuntados, remontados.

São ideias sensíveis; cada coisa, cada modelo, cada criatura e cada espaço como uma generalidade é tratado como uma ideia sensível, que ultrapassa a mera concepção de tempo e de espaço, como se este espaço ainda por ser criado concretamente no romance, apenas em potencialização, fosse um “espaço fora do espaço”, como o tempo proustiano é um “tempo fora do tempo”. Tratemos disso com mais cuidado.

O livro de Mauro Carbone, An Unprecedent Deformation, pode nos ajudar um pouco com esse conceito de espaço fora do es- paço, em que o visível carrega consigo (e em si) todo o elemento invisível que o ser compartilha com a linguagem que está sendo ali instrumentalizada, como em uma ideia de “espaço infinito”, ligando, assim, a uma conceituação muito cara à filosofia de Merleau-Ponty. Tempo e espaço são, portanto, horizontes, mais do que uma série de coisas

dispostas a nós, leitores, e a nós, em um plano mais geral, que compartilhamos cotidianamente desses mesmos elementos: tempo, espaço e as narrativas que estamos a criar e as que estamos a acompanhar. Uma transtemporalidade e uma “transespacialidade” que caracterizam um elemento pressuposto como “raios do passado e raios do mundo aos fins dos quais pulsam as estruturas mais sensíveis”. Não é simples o raciocínio, mas também não é simples o mecanismo espacial realizado por Proust, que cria para seu Narrador uma terra infinita, mental, onde ele encontra Gilberte jantando de maneira muito natural – uma criança, veja só – com um autor de ficção.

Carbone cita o “manifesto técnico” dos pintores futuristas, de 11 de abril de 1910, contemporâneo à escritura da Recherche, destacando que, para a persistência da imagem na retina, os objetos se multiplicam e se deformam, seguindo uns aos outros, como vibrações, no espaço que atravessam. Georges Braque, alguns anos mais tarde, resumiria esse manifesto com o célebre: “o que o sentido deforma, a mente forma”. A terra está deformada, cabe a nós lhe darmos sentido.

Para Proust, trata-se, antes, de “julgar que uma criatura participa de uma existência desconhecida em que seu amor nos faria penetrar é, de tudo o que o amor exige para nascer, aquilo a que ele mais se prende e que o faz desdenhar do resto”. Desdenhar de todo o resto é desdenhar da terra real, muitas vezes da pessoa real, ou mesmo do amor real. Não “real” no sentido de “verdadeiro”, mas no sentido de sua concretude, da retina dos olhos vistos.

São ideias muito caras a Proust, a essa cosmologia da Recherche, em que tem- po, espaço, sentido e, claro, mente estão conectados a uma poderosa equação, que se expande ainda mais quando o espaço da imaginação se presentifica, como no momento em que o Narrador encontra Gilberte pela primeira vez.

A sebe entremostrava no interior do parque uma aleia bordada de jasmins, amores perfeitos e verbenas, dentre os quais abriam uns goivos a sua bolsa fresca, de um róseo odorante e fanado de velho couro de Córdoba, enquanto pelo caminho serpenteava uma comprida manga de regar, pintada de verde e que, dos pontos onde tinha orifícios, erguia por sobre as flores cujo aroma impregnava com sua frescura o leque vertical e prismático de suas gotículas multicores. De súbito parei, não pude mais me mover, como acontece quando uma visão não se dirige apenas a nossos olhares, mas requer percepções mais profundas e dispõe de todo o nosso ser. Uma menina de um loiro-avermelhado, que parecia voltar de um passeio e que tinha na mão uma pá de jardinagem, olhava-nos, erguendo o rosto salpicado de manchinhas cor-de-rosa. Seus olhos negros fulguravam e, como eu então não sabia, nem o aprendi depois, reduzir a seus elementos objetivos uma impressão muito forte, como não tinha suficiente “espí- rito de observação”, como se diz, para poder isolar a noção de sua cor, durante muito tempo, de cada vez que pensava nela, a lembrança do fulgor de seus olhos logo se me apresentava como de vivíssimo azul, visto que ela era loira; de modo que, se acaso não tivesse uns olhos tão negros — coisa que tanto surpreendia ao vê-la pela primeira vez —, eu não teria ficado, como fiquei, mais particularmente enamorado, nela, de seus olhos azuis. (SW, p. 101)

Nós, leitores, ainda não sabemos que se trata de Gilberte. Estamos nos arredores de Combray, justamente pelo caminho de Swann (Méséglise), em Tansonville, e é por esse caminho que devemos recuar um pouco antes de chegar a Gilberte em si. Primeiramente, há uma imagem muito linda, que é a da contemplação dos pilriteiros, que persegue o leitor de maneira sutil. Diz Marcel que a paixão por esses pequenos ar- bustos de florzinhas brancas ou rosadas começou durante o “mês de Maria”, na igreja, estendidos em “pequenos tufos de botões de alvura deslumbrante”. Atribuía o jovem Marcel àquela decoração florida um elemento da própria natureza, que constituía uma diversão popular e uma solenidade mística, de silenciosa imobilidade, com um odor que era quase como um murmúrio de sua intensa vida, com que vibrava o altar, como uma sebe agreste visitada por vivas antenas, nas quais a gente pensava ao ver certos estames quase vermelhos que pareciam haver guardado a virulência primaveril, o poder irritante, de insetos agora metamorfoseados em flores. (SW, p. 85)

Insetos metamorfoseados em flores. Ora, não é da terra em constante transformação, desta vez da natureza, que está a tratar o jovem e contemplativo Marcel? Vai-se criando, assim, toda uma concepção espacial que pertence mais ao sentido do que à geografia, à cartografia, de forma concreta. Como um mapa dos sentidos onde os pilriteiros, se olhados com bastante detalhe, parecem ter anteninhas, que são insetos fora de estação. Ou como o odor, católico, puro, ainda que inebriante, da catedral de Combray, que deixa o narrador aturdido por alguns instantes.

E é sob uma sequência de altares, que forma a sebe pelo caminho de Swann, que se dá o primeiro encontro de Gilberte e Marcel. “O sol pousava na terra um quadriculado de luz, como se acabasse de passar por um vitral.” Não sabia o que fazer; com o pensamento perdido sob o odor dos pilriteiros, fazia-se bater o coração. Chamando-os de “obras-primas”, que a gente pensa ver melhor depois que deixou um momento de contemplá-las, desperta um sentimento vago e obscuro, que não sabe ainda nomear, mas totalmente preenchido pelas plantinhas.

Os pilriteiros anunciam, de algum modo – e aqui o termo “anunciação” tem algo de religioso, uma vez denotado o caráter católico da planta –, a aparição de Gilberte. Como se o espaço da imaginação, a terra, enfim, desse vazão ao espaço real tantas vezes sonhado, o do encontro concreto. A sebe que deixa entrever uma “aleia bordada de jasmins, amores perfeitos e verbenas” também deixa entrever uma menina de um loiro-avermelhado que os observa do outro lado, “erguendo o rosto salpicado de manchinhas cor-de-rosa”. Não seriam as mesmas manchinhas cor-de-rosa dos pilriteiros que momentos antes o avô de Marcel chamou atenção: “Tu, que gosta de pilriteiros, repara neste pilriteiros cor-de-rosa; como é bonito”?

Terra e afetos se fundem na Recherche de modo a criar uma relação causal, circunstancial, como se o narrador e os personagens aos quais está ligado estivessem condicionados aos lugares por onde passam. Os sentimentos, uma vez fundidos no coração através de um jogo entre mente e coração, se confirmam no estar aqui-agora, como se o mundo estivesse a nosso dispor, tudo encaixado a fazer um sentido que confirme, para o bem e para o mal, nossas expectativas, nossos sonhos, nossos amores.

Thiago Blumenthal é professor doutor do Mackenzie


Originalmente publicado na edição Terra

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#Terra: Especial 10 anosArteArtes Visuais

Dilema

por Guga Szabzon

Imagine você, um espaço vazio.
Imagine que um caminhão carregue suas coisas e coloque tudo ali no meio.
Tudo está embalado com plástico bolha.

Imagine você sozinha com todas as suas coisas embaladas.
Você fecha os olhos e pensa em tudo que poderia fazer com essas coisas.
Você desembala e arrasta os móveis de lugar.
Você olha para a janela e vê onde bate mais sol, e se imagina desenhando em uma mesa branca com todos os seus lápis na sua frente.

Na sua direita tem outra janela que dá para a cozinha do vizinho que prepara pastéis para a feira, e você imagina que vai precisar colocar uma cortina ali.

Imagine onde é o melhor lugar para guardar os tecidos.
Longe do sol. Visível aos olhos.
Imagine todos esses tecidos arrumados por cor, e quantos trabalhos ainda não foram feitos.

Imagine tudo que poderia estar pendurado nas paredes.
Elas acabaram de ser pintadas, estão brancas, lisas.
Imagine que ninguém mais possa entrar neste espaço.
Que você possa ir todos os dias.
Que você possa fazer o que quiser lá dentro. Ninguém está vendo.
Imagine arame, ilhós, tinta, livro, alicate, borracha.

Aí você vai para casa. Dorme, sonha, anota.

Imagine voltar àquele espaço.
Sentar de frente para a janela, pegar os lápis, abrir o seu caderno sobre a mesa branca.
Escrever qualquer coisa sobre seu dia, anotar qualquer coisa que esteja sentindo, qualquer imagem que tenha visto no caminho.

Imagine agora, você olhando para sua estante de tecidos arrumada por cor.

Você escolhe um tecido.
Você escolhe uma palavra.
Imagine que você possa fazer alguma coisa com isso.
Que cada escolha é um ganho e muitas perdas ao mesmo tempo.

Imagine que aquilo agora é seu.

Imagine que no dia seguinte você chegue neste espaço e recomece tudo outra vez.
Imagine que não te venha nada na cabeça.
Você pega a vassoura, limpa os vidros, afia as tesouras.
Imagine que essa tesoura tenha ficado tão afiada que dê vontade de cortar alguma coisa.
Imagine você, com um papel azul na mão e uma tesoura afiada na outra.
Devagar você vai cortando e escolhendo um caminho a percorrer.

Imagine que essa tesoura é um barco.
Imagine quantos destinos diferentes poderiam ter sido feitos. Quantos lugares deixei de conhecer.
Imagine agora que, em vez de usar a tesoura, você se sente na frente de uma máquina de costura.

Você escolhe uma cor de linha.

Você puxa a bobina por uma pequena roldana que desce, passa por um buraquinho, desce de novo e passa pela agulha.
Imagine essa linha se prendendo sozinha em uma base felpuda e quente.
Imagine caminhar sobre as fronteiras de um mapa. Imagine navegar.

Se imagine no universo.

Imagine o seguinte: Você segue em frente.
Cai em um buraco.
Levanta
Uma bifurcação
Você escolhe a esquerda, volta, e aquele caminho não existe mais.
Imagine que algo exploda bem na sua frente, você vai em outra direção, um lugar mais calmo, mais leve.
Imagine ficar parada.

Imagine que este lugar não é mais um lugar; é um símbolo.

Eu ainda não pendurei uma cortina na janela da direita. Vejo os pastéis serem feitos todos os dias, tenho fome.


Originalmente publicado na edição Terra
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A terra da terra

por Cassiana der Haroutiounian

A terra como território. A terra, dividida por questões políticas, religiosas, sociais. A terra separa. Desterra. Derrete. Une. Vira raiz. Lama. Pó. A terra expande e retrai e se torna uma fronteira porosa. Um pedaço de terra nas mãos, como sinônimo de lar. De memória, de um tempo apreendido. Aquele cheiro de uma terra molhada que desperta o ritmo do batimento cardíaco.

Essa imensidão terrosa, palco de tantas travessias migratórias, de tantas ausências pelo caminho e tantos sonhos do encontro. Essa terra que já se desfez em lama em uma das maiores catástrofes do país. Uma terra distante, que deixou uma cidade como poeira e rastros de uma história.

O que faz da terra um lugar de abrigo? O que faz da terra um lugar de fuga? Atravessamos a terra e somos atravessados por ela. Uma terra que deixa marcas. Na pele e nos mapas. Um devir terra. Para nós mesmos e para alguém. Pertencer e sentir as terras nos pés, aterrado. A terra árida pelo tempo, como cicatrizes em sua trajetória. A terra que respira.

Corpos de um lado e corpos do outro. Inimigos, que definiram que uma linha dessa terra não pertencia mais ao povo vizinho. Uma terra com territórios demarcados, que te expulsaram sem deixar a chance real do retorno. Nós criamos os territórios, as linhas divisórias, as chamadas fronteiras.

“[…] Fomos nos alienando desse organismo que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade” pontua o líder indígena Ailton Krenak em seu livro Ideias para adiar o fim do mundo. Somos uma unidade. Nós e Ela. Agimos e reagimos. É preciso estar atento à Terra. Despertos. Escutá-la. Senti-la. Enxergá-la. Krenak afirma que a humanidade, cada vez mais, é descolada desse organismo vivo e que parece que os únicos que ainda sentem necessidade de se agarrar a ela são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos…

“Nós, como humanos, de fato perdemos nossa conexão com a terra. Devemos ouvir novamente as batidas desse coração terroso”, afirma a artista holandesa Birgitta de Vos, que viaja o mundo coletando fragmentos de terras de diferentes lugares, agrupando esses mundos em seu estúdio, recriando outras conexões entre esses territórios. Ela desconecta essa terra de seu habitat natural para poder conectá-la novamente, trazendo uma diferente potência de acontecimentos e de encontros entre elas.

“A Terra simplesmente é”, afirma Birgitta. “E é isso que também somos, se não nos deixamos embaralhar com nossos pensamentos, opiniões e crenças… Somos todos matéria reciclada. Nosso corpo é. A terra é.”

Em Johanesburgo, o sul-africano Moshekwa Langa, criado durante o apartheid, usou a terra para criar/demarcar/resgatar Bakenberg, um vilarejo rural na província de Limpopo. Ele descobriu, quando criança, que sua terra não estava no mapa e que ninguém a conhecia. Decidiu percorrer seu vilarejo com tecidos molhados puxados por um carro nas estradas vermelhas de terra, deixando que cada um tivesse suas marcas e cicatrizes, sobrevivendo à topografia de seu território. São como restos quase materializados do vilarejo de sua infância, representando parte de um arquivo físico e de memórias ecoando a paisagem de Bakenberg, ou a fantasia dessas memórias.

A terra guardada em potes de vidro cria um novo mapa geográfico. A terra como pigmento em uma tela em branco resgata raízes e demarca um território. A Terra, nosso sítio geológico, abriga os tantos devaneios, respiros, guerras e catástrofes… A terra fértil, provedora, pulsante. Essa terra dentro da Terra precisa seguir ouvindo nossos batimentos cardíacos, guiados por um diálogo harmonioso, único. De ser e estar. Nós e Ela.

Cassiana der Haroutiounian é artista visual, apaixonada por montanhas armênias e editora do blog Entretempos, da Folha de S. Paulo: entretempos.blogfolha.uol.com.br | @cassianadh

Originalmente publicado na edição Terra

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#Terra: Especial 10 anosArteCinema

Werner Herzog e o delírio da imagem em movimento

por Willian Silveira

“Estou fazendo tudo isso
porque tenho um sonho:
a ópera – a grande ópera da selva”

Fitzcarraldo

“Essa é uma terra
que Deus, caso exista,
criou com raiva.”

Burden of Dreams

Monumental costuma ser aquilo que nos choca ou impressiona. Tal qual o Coliseu, a Acrópole ou Notre-Dame. Todos estes, símbolos físicos da natureza humana lutando contra seu único destino – desaparecer.

Filmado em Manaus e na Amazônica peruana, Fitzcarraldo (1982), de Werner Herzog, é uma epopeia cinematográfica visionária, como também o são Apocalipse Now e 2001 – Uma Odisseia no Espaço. Assim como as obras de Coppola e Kubrick, a do alemão surge como a epifania delirante da imagem, categoria tão rara ao cinema que, ouso dizer, sequer existe atualmente. Neste hemisfério esquecido do vocabulário audiovisual, Fitzcarraldo é o Coliseu da imaginação. Monumento distinto, sem dúvida, porque sua matéria não é o concreto e as vigas, mas produto dos fotogramas; e sua presença não é outra senão ocasional, ativada unicamente pela projeção. Através da saga de um protagonista determinado a construir uma casa de ópera em meio à selva, Herzog erigiu seu monumento particular.

O filme impressiona ainda muito antes do início. O enredo improvável, do empreendedor megalomaníaco que tem de fazer um navio atravessar a floresta para financiar a paixão pela música, é inspirado na história verídica de um irlandês. Ao escutá-la, Herzog não teve dúvidas de que deveria levá-la às telas, o que, no seu caso, significaria realizá-la por completo. A empreitada levou muitos anos de produção e colecionou inúmeros insucessos. O mais marcante foi o episódio em que, após quatro meses de filmagem, o então protagonista Jason Robards adoeceu e os médicos o proibiram de continuar. Aos poucos, Herzog percebia que o sonho que idealizara tinha um aspecto quente, úmido e se parecia cada vez mais com o inferno dantesco.

Em tela, Brian Fitzgerald é o aventureiro de sobrenome impronunciável, que os nativos optaram por chamar Fitzcarraldo. Conhecido também como “o conquistador do inútil” por, primeiro, ter fracassado no ramo das ferrovias no território andino e, agora, apostar em fazer fortuna com uma fábrica de gelo em solo tropical, o protagonista tem no excepcional Klaus Kinski uma das mais marcantes composições de personagem. Afinal, a excentricidade reverbera por cada um de seus poros, seja pelo semblante, ora atormentado, ora maravilhado, pela vasta cabeleira desgrenhada, pelo olhar esbugalhado e profundo, ou, ainda, pelo terno branco, alvura dupla a reforçar a posição de deslocado do protagonista – não apenas quando na Amazônia, mas também no mundo.

Em meio à selva e pilotando uma empreitada destinada novamente ao fracasso, Fitz é o símbolo do estupor da visão europeia diante da natureza. Ainda que o filme não dialogue com o revisionismo colonial, a essência do personagem, atrelada ao desejo irrefreável de levar seu plano adiante a qualquer custo, demonstra a evidente mio- pia diante da existência do outro. A relação entre homem e natureza intermediada pelo enredo de Fitzcarraldo é a prova de que o maravilhoso e a loucura facilmente dissimulam o autocentramento. Em uma das cenas que reforçam sua obsessão, Kinski sobe até o sino da igreja e, contrariado por não receber financiamento para sua ópera, começa a bradar que o local religioso somente reabriria quando sua casa de shows – seu sagrado secular – estivesse funcionando.

Vencedor do prêmio de Melhor Filme em Cannes no ano de lançamento, o longa sublinha a vinculação de prepotência humana diante da natureza, permitindo refletir sobre o passado cultural do protagonista. Observação essa que somente é possível quando toma- da a partir de uma sociedade que idealizou, e, portanto, desconhece, o selvagem. Afinal, séculos de Idade Média não legaram à Europa outro cenário senão o contínuo derramamento de sangue e o desmatamento completo de suas florestas. A vontade de regozijar-se em meio ao verde somente pode estar associada ao ideal romantizado e ingênuo do bucolismo europeu. Ao sonhar a natureza, Fitz despertou na Amazônia sem tempo para perceber que as feições ali eram as do seu pior pesadelo.

A ópera que Fitz tanto ama, encarnada na figura de Enrico Caruso, é estilisticamente transportada como forma para dentro do filme. Assim, Herzog não apenas molda seu monumento como imprime nele traços operísticos específicos, como o excesso, a megalomania e o histriônico, resultando em uma obra invariavelmente gótica e esteticamente assombrosa. Por vezes, despropositadamente monumental. Tão monumental que temos a impressão de que a tela – mesmo a do cinema – é pequena demais para comportar tanto sonho e beleza.

Willian Silveira tem formação em Letras, Cinema e Filosofia. É crítico de cinema, colunista de O Estado de S. Paulo, e escreve sobre arte, cultura e sociedade.
Originalmente publicado na edição Terra

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#Terra: Especial 10 anosCulturaEducaçãoSociedade

Reescrevendo “…E o Vento Levou”: A morte do Grão-Pará e o parto do Império do Brasil

por Márcio Souza

Em julho de 1936, quando a guerra já varria a velha Europa, foi lançado nos Estados Unidos o romance “…E o Vento Levou” (Gone With the Wind). Em poucos dias, o livro foi para as listas dos mais vendidos e se tornou um dos maiores êxitos editorais de todos os tempos, hoje com quase nove milhões de exemplares vendidos. Uma das publicações mais rigorosamente críticas, o “New York Times Book Review” assim registrou o aparecimento da romancista Margaret Mitchell.

“Este é, sem dúvidas, o mais marcante dos primeiros romances já escritos por um autor americano. É também um dos melhores. ‘…E o Vento Levou’ não é exatamente um grande romance. Mas já faz um longo tempo que ao público leitor americano não se oferece tamanho banquete de excelente arte de narrar.

Pelo menos quatro dentre as personagens deste livro atinge uma qualidade de criação rara de ser encontrada em páginas impressas. Muitas coisas acontecem neste livro: ele é repleto de movimento, mas os combates estão fora de cena. Assim também as grandes figuras que a guerra produziu; elas são apenas nomes que se pronunciam, e o que acontece com Scarlett O’Hara e Ashley Wilkes, sua esposa Melanie e Rhett Butler é o que acontece a muitas vidas daquele tempo e lugar.”

Nas mentes do mundo inteiro, “…E o Vento Levou” não é um fenômeno literário, mas um dos mágicos produtos de Hollywood de 1939, um ano de dezenas de filmes admiráveis. A poderosa adaptação cinematográfica do romance de Margaret Mitchell transformou um caudaloso folhetim em ícone cultural.

Consta que, ao ser procurado por David O. Selznick com a proposta de produzir “…E o Vento Levou”, Louis B. Mayer, o grande
mogul da MGM retrucou:

– Quem está interessado em ver mais um filme sobre a Guerra de Secessão?

Uma pergunta semelhante, talvez, surja nas mentes dos aqui presentes.

– Quem estará interessado em ver uma versão brasileira de “…E o Vento Levou”?

Permitam-me, no entanto, insistir na metáfora. Algumas vezes um passeio sem compromissos pelo reino da ficção ajuda a esclarecer certas obscuras e enigmáticas contingências do passado. Mas talvez tudo isso não passe de excesso de pretensão de um romancista.

De qualquer modo, “…E o Vento Levou” é o retrato de uma civilização extinta. A civilização que aqui vamos evocar também está extinta. Recriando com desavergonhada nostalgia, e de forma idealizada, a desaparecida sociedade escravagista do Sul dos Estados Unidos, o livro tem como eixo a personalidade cambiante e oportunista de Scarlet O’Hara, uma bela mulher ligada ao mundo das plantações de algodão, mas que acaba por encarnar a aceitação, pelo Sul derrotado, da nova realidade trazida pelo vitorioso capitalismo industrial ianque. “…E o Vento Levou” é o grande painel de uma época afogada em sangue e uma espécie de rito de passagem em forma de entretenimento.

A história se passa numa fazenda de algodão no Norte da Georgia, imediatamente antes da eclosão da Guerra de Secessão. Boa parte da ação acontece também em Atlanta e seus arredores, a emergente metrópole do Sul; uma espécie de ponto de convergência plantado em plena lama rubra a crescer como ponto de intersecção das ferrovias que vão para norte e sul, leste e oeste. Quando a guerra começa, Atlanta transforma-se no centro nervoso do Sul, com uma participação mais ativa que a tradicional Charleston ou outras cidades confederadas tradicionais, como Savannah ou Augusta.

É nesse cenário que Scarlett O’Hara protagoniza o drama. É uma heroína cheia de qualidades, mas sem quaisquer virtudes. Ela personaliza a nova mentalidade americana, capaz de atravessar com desenvoltura todas as suas mais íntimas relações amorosas com o mesmo cálculo gelado das relações capitalistas que a levam à ressurreição econômica. Menina mimada e volúvel, ela assiste impotente à destruição de sua civilização. Numa das primeiras cenas, recusa comida por mera vaidade, para, na metade da história, ser obrigada a arrancar tubérculos do chão crestado e mastigá-los para saciar a fome. Mas Scarlett não é uma heroína qualquer, e a fragilidade era apenas uma aparência. Na verdade, ao tomar contato com a dura realidade e ao ser tragada pelo turbilhão da guerra fratricida, Scarlett sobrevive não porque tenha bons modos, mas justamente porque não os tem. É uma personagem feita quase só de coragem, com a vitalidade de uma filha da terra que já não necessita cultivar princípios, e que vai sobreviver porque sabe usar como ninguém o novo caráter dominador, egoísta, brutal e ambicioso. Embora apaixonada pelo aristocrático Ashley, este enfatuamento não passa de uma fixação nostálgica, pois seu par verdadeiro é Rhett Butler, um sulista moderado, que percebeu por antecipação o inexorável e enfrenta a derrota e a nova ordem com doses de cinismo e realismo.

Mas o que realmente se passou nos Estados Unidos? O que foi a Guerra de Secessão?

Por volta do final do século XVIII, o velho Sul dos Estados Unidos foi alcançado pela Revolução Industrial. A máquina de descaroçar algodão de Eli Whitney acelerou de tal forma a colheita e a separação da lã do caroço que, em 1794, um grupo de escravos conduzindo uma descaroçadeira produzia 50 vezes mais que o mesmo número fazendo o serviço a mão. A milagrosa máquina jogou os preços no chão, e os lucros, no espaço, atendendo com eficiência à crescente demanda mundial por algodão. Em 1860, por exemplo, 55% dos lucros obtidos pelos Estados Unidos com exportação eram oriundos das vendas de algodão beneficiado, o que significava algo em torno de US$ 190 milhões por ano. Movidas por um mercado ávido, as gigantescas economias de escala que eram as fazendas (
plantations) acabaram por dominar a economia sulista, deprimindo a iniciativa industrial e, até mesmo, determinando o perfil demográfico da região. Durante quase todas as primeiras décadas do século XIX, o Sul profundo empalideceu as propriedades do litoral atlântico e arrastou mão de obra e investimentos. Milhares de pequenas fazendas floresciam, mas eram as grandes fazendas de algodão que comandavam o desenvolvimento econômico e social, baseadas nos músculos de mais de três e meio milhões de escravos que cuidavam da terra, plantavam, cultivavam, colhiam e despachavam o algodão para todos os quadrantes da terra. Somente a Inglaterra costumava importar anualmente um milhão de toneladas do produto.

As grandes fazendas de algodão, tal qual os imensos latifúndios brasileiros, existiam de forma autossuficiente e tendiam ao isolamento. Elas mantinham seus próprios rebanhos, a produção de laticínios e hortaliças, bem como matadouros e defumadouros. Os proprietários viviam como senhores feudais, mandando e desmandando no interior de seus imensos territórios. Festas e recepções elegantes, com muita ostentação e alguma extravagância, eram periodicamente organizadas pelos fazendeiros, que acabaram desenvolvendo um elaborado sistema de etiqueta social. O mundo do Sul profundo se circunscrevia nas fronteiras dessas grandes propriedades, entre a criação de magníficos cavalos, a prática de artes marciais da moda e o tedioso ócio que só era quebrado com a passagem dos
Show Boats, imensos barcos movidos a roda que navegavam pelo Mississipi e onde era possível perder somas vultosas e assistir a espetáculos burlescos e dramalhões moralistas.

Embora hegemônicos economicamente e politicamente, os fazendeiros eram uma pequena minoria. Na segunda metade do século XIX, a produção do algodão cresceu muito, mas os preços caíram. Era a concorrência de outras áreas produtoras e o resultado da inflexibilidade dos fazendeiros em estabelecer mudanças no sistema econômico. Alguns fazendeiros menores ainda tentaram a diversificação econômica e estimularam a imigração de mão de obra nortista, mas os grandes fazendeiros desprezaram solenemente esses esforços e se aferraram no sistema escravista como uma questão de poder. Em 1860, o Sul já não contava com uma representação expressiva no Congresso e lutava ingloriamente para manter vigente esse sistema de mão de obra, importando escravos de Cuba.

Quando a guerra eclodiu em 1861, os escravos, em sua maioria, trabalhavam nas fazendas de algodão, enquanto 75% das famílias confederadas e 90% dos homens recrutados para lutar no exército rebelde não eram donos de escravos e nada tinham a ganhar com a secessão. O radicalismo político dos fazendeiros de algodão foi de tal forma poderoso que arrastou 11 estados e o Velho Sul para o abismo. A vitória do Norte industrializado, conduzido por uma elite política senhora de um projeto nacional democrático, abolicionista e modernizador, deu nova significação aos ideais da Revolução Americana, proporcionando aos Estados Unidos um cenário político e econômico que o transformou em superpotência.

Evidentemente, na América Latina não aconteceu nada de parecido com a Guerra de Secessão americana, elemento primário do enredo de “…E o Vento Levou”. Porém, em cada um dos países latinos ocorreu, em determinado momento de sua história, um confronto entre modelos de sociedade, choques entre propostas avançadas e modernas e posições atrasadas e retrógradas. O exemplo da Guerra de Secessão, em que um povo não apelou para a conciliação e foi capaz de derramar sangue para decidir princípios, sempre causa uma impressão forte. Especialmente num país como o Brasil, onde o mito da história incruenta serviu durante muito tempo para mascarar os nossos desacertos. Agora, porém, já se sabe. Aqui, muito sangue também foi derramado, e princípios também estiveram em jogo. O que quero dizer é que cada país da América Latina teve o “…E o Vento Levou” que merece. É sobre o nosso próprio “…E o Vento Levou”, ocorrido entre 1823 e 1840, que desejo falar.

Para que se compreenda a questão, um fato deve ficar claro desde já: em 1822, a Amazônia não fazia parte do Brasil. Sequer se chamava Amazônia.

Na verdade, os portugueses construíram duas colônias na América do Sul. Pode-se mesmo acreditar que esta não foi uma decisão administrativa dos portugueses, mas uma consequência das limitações tecnológicas. Naqueles tempos de navegação a vela, a transposição do Cabo Branco era praticamente impossível e perigosa. Assim, para os que vinham do Atlântico Norte, as rotas mais propícias eram aquelas que, seguindo as correntes, levavam diretamente ao Atlântico Sul e ao litoral do Brasil, ou as que levavam ao Caribe e ao estuário do rio Amazonas. Uma viagem do Rio de Janeiro para Lisboa em 1790 durava noventa dias. Uma viagem de Belém a Lisboa na mesma época durava trinta dias. Uma viagem entre o Rio de Janeiro e Belém podia durar até cinco meses.

O certo, então, é que tínhamos duas colônias de língua portuguesa na América do Sul. Uma descoberta por Cabral em 1500, batizada com o nome de Brasil e administrada por governadores gerais e vice-reis, com capital no Rio de Janeiro e um território que, ao norte, começava nos limites do atual estado do Piauí, descendo por uma estreita faixa pelo litoral nordestino, passando por Goiás, Minas Gerais e estendendo-se até as margens do rio da Prata, hoje o Uruguai. A outra colônia, inicialmente conhecida como Grão-Pará e Maranhão e, mais tarde, como Grão-Pará e Rio Negro, foi descoberta por Vicente Iañes Pinzon em 1498, logo após terceira viagem de Colombo à América, quando batizou o rio Amazonas de Mar Dulce, mas efetivamente ocupada pelos portugueses a partir de 1630. Essa colônia tinha em seu território o equivalente à reunião dos atuais estados do Maranhão, Pará, Amapá, Amazonas, Roraima, Rondônia e parte do Acre. A capital era Santa Maria de Belém, e era administrada por governadores militares e administradores diretamente ligados a Lisboa. Essas duas administrações coloniais se desenvolveram distintamente até 1823, data em que o Império do Brasil começou a anexar a colônia nortista. Uma nota curiosa: os habitantes da colônia do Sul eram chamados de brasileiros, os do Norte, de portugueses-americanos.

A Independência do Brasil, em 1822, pouco reflexo teve no território do Grão-Pará. Alguns adeptos da ideia da independência, como Felipe Patroni e o cônego Batista Campos, desejavam cortar os laços com a metrópole, mas estavam completamente isolados do Rio de Janeiro, mantendo contatos e trocas de correspondência apenas com as lideranças do Nordeste. A notícia da proclamação do príncipe Pedro de Alcântara, herdeiro da casa de Bragança, trouxe muita desconfiança, embora o gesto tenha aguçado o desejo de repetir o feito na progressista colônia ao norte. Um jornal editado por Patroni, o primeiro a circular na Amazônia, “O Paraense”, pregou o corte dos laços com Portugal, mas apenas por alguns meses de 1822, sendo fechado, e seu proprietário, perseguido. Em março de 1823, o cônego Batista Campos conseguiu eleger, para a legislatura de Belém, uma maioria de brasileiros, mas os portugueses anularam as eleições. Em abril, um levante propondo a adesão ao Império do Brasil foi esmagado, e seus participantes deportados para Lisboa, onde foram condenados à morte. Finalmente, em agosto, aportou em Belém o brigue Maranhão, comandado por John Pascoe Greenfell, mercenário inglês sob o comando do almirante Cochrane e a soldo do Império do Brasil. Greenfell, que estava com 21 anos, inaugurou o modelo de relação que o governo central do Brasil teria com a Amazônia a partir de então: o blefe. No dia 11 de agosto, depois de espalhar o boato de que a esquadra de Cochrane estava fundeada nas proximidades, Greenfell enviou um ultimato aos governantes portugueses, para que depusessem as armas ou aderissem ao Império do Brasil. Caso recusassem, Belém sofreria um bombardeio naval.

A maioria dos portugueses e quase toda a burocracia colonial aderiram incondicionalmente, e os nacionalistas se viram alijados do poder. Da mesma forma que no recôncavo baiano e em Pernambuco, a administração de José Bonifácio preferia apostar nas lideranças conservadoras, geralmente portugueses de fortuna adquirida na colônia, do que apoiar líderes brasileiros não exatamente afinados com o espírito da casa de Bragança. De 1823 para frente, o que se viu foi o constante embate entre as correntes conservadoras e nacionalistas, os primeiros com o Partido Caramuru e os segundos com a Sociedade Filantrópica. As refregas políticas invariavelmente acabavam em choques armados.

Aqui, é pertinente uma pergunta. Por que a violência tornou-se a única via possível? Onde estava o espírito conciliador ciosamente cultivado pelas nossas elites? A melhor explicação está na profunda diferença entre as duas colônias, tão distintas que eram em estratégias, na cultura, na economia e até na visão de mundo.

A verdadeira fundação do Estado do Grão Pará e Maranhão se deu em 31 de julho de 1751, com a assinatura do decreto pelo Marquês de Pombal. Para governar o novo estado, Pombal nomeou seu irmão Xavier de Mendonça Furtado, que imediatamente pôs em prática uma série de medidas, como a criação da capitania do Rio Negro, a criação do Diretório dos Índios, a transformação das povoações e aldeias indígenas em vilas portuguesas, a liberdade legal concedida aos índios e a cassação dos poderes temporais da Igreja Católica. A economia da primeira fase colônia, que era baseada na extração de drogas do sertão – extrativismo primário –, transformou-se radicalmente, fundamentando-se na produção manufaturada e na agricultura de pequenas propriedades. A exportação e o consumo local de produtos de borracha alimentava uma indústria florescente, que produzia artigos de fama mundial, como sapatos e galochas, capas impermeáveis, molas e instrumentos cirúrgicos. Baseava-se também numa vigorosa indústria naval, que chegou a produzir mais da metade da frota portuguesa no final do século XVIII. Esta indústria localizava-se em cidades das imediações de Belém, onde ainda estão presentes os sinais da arte portuguesa de construir embarcações. Os mais belos barcos regionais, que lembram os bergantins do século XVIII, continuam a ser fabricados nas tradicionais cidades paraenses e continuam a singrar os rios do grande vale. Quanto à agricultura, a política de pequenas propriedades permitiu a introdução de culturas como as do algodão, anil, tabaco e café, além do rápido crescimento da economia do cacau no Baixo Amazonas. O programa agrícola foi reforçado pela vinda de colonos portugueses, culminando com a chegada das famílias oriundas da antiga província de Mazagão. Em 1772, com a expansão e o crescimento dos territórios do oeste, o estado passou a se chamar Grão-Pará e Rio Negro.

O Grão-Pará desfrutava de uma cultura urbana bastante desenvolvida, com uma capital de belo traçado e edifícios requintados, onde se podia encontrar exemplares pioneiros da arquitetura neoclássica, obra de Antônio José Landi, o arquiteto de Bolonha contratado por Lisboa para embelezar a cidade de Belém e fazer da miserável aldeia de Barcelos a sede da capitania do Rio Negro, uma cidade habitável. A obra de Landi, um sopro de ar inovador numa época exclusivamente barroca, ainda não foi devidamente avaliada. A vida social de Belém era bastante austera, mas as noites tropicais eram inundadas de música e canto, que vinham das casas particulares e das bandas a animar as praças repletas de transeuntes. É desse período a obra de Tenreiro Aranha, o primeiro escritor de língua portuguesa nativo da região, que também produziu uma interessante obra dramática, que ele mesmo encenou em concorridas e controvertidas produções. Aliás, o teatro era uma das paixões do povo de Belém, e foi ali, naquela cidade, que algumas das ousadas peças de Gabriel Malagrida, missionário jesuíta, naturalista e místico espanhol que teria a duvidosa honra de ser o último herege a ser queimado na fogueira pela Inquisição, foram encenadas e vistas pela primeira e única vez. A Casa de Ópera de Belém é de 1775, e foi no Grão-Pará e Rio Negro que a profissão de ator, por decreto oficial, deixou de ser considerada infame, seguindo uma ordenação de 1771, outorgada pelo rei Dom José I, de Portugal. Vale observar que a Casa de Ópera funcionou até 1812, entrando em decadência depois dos fastos de 1823.

Uma das originalidades da sociedade nortista era o papel da mulher. Num olhar superficial, a condição da mulher não parecia distinta do que sucedia em outras partes, mesmo daquelas sociedades que se consideravam mais civilizadas. No entanto, algo de particular existia ali, como a intensa participação das mulheres na política, nos anos que ensanguentaram o Grão-Pará. No dia 16 de abril de 1833, foi fundada em Belém uma organização secreta feminina como nunca houve em outras partes do Brasil. Era a
Sociedade das Novas Amazonas, que tinha como finalidade a formação de mulheres com virtudes políticas capazes de dar provas de amor à pátria e adesão à liberdade. Inspiradas nas lendárias amazonas guerreiras, as Iluminadas, com se intitulavam, chegaram a somar mais de mil seguidoras e foram muito influentes. Assim, homens como Tenreiro Aranha, Patroni e o cônego Batista Campos não surgiram do nada, sendo caudatários de uma civilização própria, em que a tradição cultural ibérica aparecia recriada não apenas pelo mundo amazônico, mas absorvia fontes inesperadas, como os ideais da Revolução Francesa e a filosofia iluminista.

Deu-se que, em 1808, em represália à invasão francesa em Portugal, os nortistas reuniram uma armada e invadiram a Guiana Francesa. Em Caiena funcionava uma delegacia da revolução, dedicada a traduzir e editar, em espanhol e português, obras de agitação e textos filosóficos que eram infiltrados nos países vizinhos. As administrações coloniais espanholas e portuguesas temiam tanto esse trabalho que, em Belém, se alguém fosse flagrado portando um desses textos, como, por exemplo, um exemplar da Declaração dos Direitos do Homem, era preso e sumariamente fuzilado. Por ironia histórica, é naquele antro de subversão, no exato covil onde se destilavam esses “mortíferos venenos”, que os nortistas iam se meter e viver durante anos de ocupação, até a assinatura do Tratado de Fontainebleau, em 1814 – anos de convívio promíscuo que deram a eles, oficiais e jovens burocratas, acesso a verdadeiras bibliotecas revolucionárias que foram sendo pouco a pouco transferidas para Belém, transportadas nos navios de guerra sob a proteção daqueles que deveriam confiscá-las.

Talvez por tudo isso, os intelectuais do Grão-Pará tivessem consciência de que não havia salvação fora da adesão ao Império do Brasil. Se continuassem portugueses, numa tentativa de fazer um Canadá Português, sofreriam um retrocesso. A administração do ultramar nunca mais seria como antes, nunca mais Portugal teria um Pombal, e os portugueses estavam ficando ressentidos e revanchistas como consequência de tantos reveses: invasão francesa e transferência da Corte para o Rio de Janeiro, recessão econômica e a Independência do Brasil. Havia o risco, também, de passarem para outras mãos, se tornarem colônia inglesa, ou francesa… Imaginem uma imensa Jamaica equatorial encravada ao norte, fazendo par com a Guiana Francesa.

Homens como o cônego Batista Campos sabiam do risco de aderir a um regime monárquico e, ainda por cima, com um Imperador português de temperamento brusco no comando, quando o ideal era que o regime fosse republicano. Além do mais, estavam se juntando a um país que tinha uma economia completamente diferente, em certos aspectos mais atrasada. A questão é que a economia do Grão-Pará tinha uma participação alta de mão de obra assalariada, de gente livre. Os escravos eram minoria, sem peso algum na produção de bens. Já a economia do Império do Brasil não podia funcionar sem escravos. No Grão-Pará, a cultura não estava marcada pela relação senhor e escravo, pela sordidez do cativeiro, de tal forma que a maioria do povo sequer tinha entrado na cadeia produtiva, trabalhando para seu próprio sustento. E nem precisavam se esforçar muito, tamanha a exuberância da natureza. Já no Brasil não havia massa de gente que não fosse escrava, e todos trabalhavam para algum fazendeiro, porque o sistema era de latifúndios, tal qual no Sul dos Estados Unidos, comandados por grandes senhores, gente poderosa que mandava mais que El Rei em seus domínios. No Brasil, a indústria era pequena, medíocre e desprezível – produção de estearina, olarias, marcenarias –, e se dizia até que não era vocação do país. No Grão-Pará, nas pequenas fazendas, todos iam juntos lavrar a terra, os proprietários e os empregados, coisa impensável no Brasil. Das colônias portuguesas, o Grão-Pará era a única a possuir uma pauta de exportações onde os produtos manufaturados suplantavam a matéria-prima.

Em compensação, a colônia chamada Brasil dependia amplamente da agricultura e da agroindústria, tendo, portanto, uma forte proporção de mão de obra escrava. Em meados do século XVIII, tanto o Grão-Pará quanto o Brasil conseguiram criar uma forte classe de comerciantes, bastante ligados à importação e exportação, senhores de grandes fortunas e bastantes autônomos em relação à metrópole. Mas, enquanto os comerciantes do Rio de Janeiro deliberadamente optaram pela agricultura de trabalho intensivo, como o café, baseando-se no regime da escravidão, os empresários do Grão-Pará intensificaram seus investimentos na indústria naval e nas primeiras fábricas de beneficiamento de produtos extrativos, especialmente o tabaco e a castanha-do-pará. O que as lideranças nortistas queriam, na falta de outra opção, era ocupar o espaço político pós-colonial, fazer com que os líderes brasileiros tivessem neles os seus interlocutores, quando chegasse a hora.

Não foi isso que aconteceu. A anexação da Amazônia acabou sendo pela força, por que exigia um projeto de nação e uma visão de política continental, coisa que nem os nortistas, nem os brasileiros tinham. E de 1823 a 1840, o que se viu foi um processo de provocação deliberada por parte do Rio de Janeiro e a fúria crescente da parte do Grão-Pará. O resultado foi uma severa convulsão social e a consequente repressão.

O mais importante historiador do período, Domingos Antonio Rayol, Barão de Guajará, resumiu as responsabilidades dos homens de seu tempo e demonstrou que os protagonistas estavam, ao “
se digladiarem em lutas fratricidas, tratando cada um de desmoralizar por sua vez o princípio de autoridade, arrastando as massas populares aos movimentos tumultuários, apagando nelas a noção dos deveres sociais, cavando o abismo em que mais tarde uns e outros se precipitaram, com irreparável dano e ruína geral da Província”.

Entre 1823 e 1840, a região norte sofreu a intervenção política e militar do Império do Brasil, perdeu suas lideranças históricas e deixou de ser uma administração colonial autônoma para se transformar numa fronteira econômica. A derrota do Grão-Pará e sua destruição pelo Império do Brasil, se me permitem a comparação um tanto audaciosa, foi de certo modo como se o Sul tivesse vencido a Guerra de Secessão nos Estados Unidos. Dezessete anos de guerra civil levaram a Amazônia a perder 40% dos seus habitantes. A anexação destruiu todos os focos de prosperidade. Entre os políticos do Império do Brasil e as lideranças nortistas, nenhum diálogo foi possível. E o vento levou o Grão-Pará.

O Brasil é fruto de paradoxos históricos como este que acabamos de resumir. Evidentemente que paradoxos não são exclusivos de nossa história, mas o problema é que a eles se colam os efeitos de uma perversa dicotomia, como se o país se configurasse por um eterno embate entre áreas endemicamente pobres e áreas historicamente ricas, entre regiões intrinsecamente modernas e outras atavicamente arcaicas. Neste falso pressuposto, o Norte e o Nordeste representam o arcaico, o atraso, um fardo que o Centro-Sul moderno precisa financiar, empurrar e suportar. Por tudo que vimos até agora, essa oposição arcaísmo/modernidade não estaria sendo vista do avesso?

Certamente, no caso da Amazônia, o rótulo de região atrasada tem sido foco de desastres. É aqui que reside o problema. Especialmente porque, se há uma região brasileira que melhor conheça a experiência da modernidade, esta é a Amazônia, como prova sua própria história. Nos 500 anos de presença da cultura europeia, experimentou os métodos mais modernos de exploração. Cada uma das fases da história regional mostra a modernidade das experiências que foram se sucedendo: agricultura capitalista de pequenos proprietários em 1760 com o Marquês de Pombal, economia extrativista exportadora em 1890 com a borracha, e estrutura industrial eletroeletrônica em 1970 com a Zona Franca de Manaus. Os habitantes da Amazônia, portanto, não se assustam facilmente com problemas de modernidade, o que vem provar que a região é bem mais surpreendente, complexa e senhora de um perfil civilizatório insuspeito pela vã ingenuidade. Não é por outro motivo que a Amazônia continua um conveniente mistério para os brasileiros. Portanto, vamos com calma ao aplicar esses rótulos.

Experiências de modernidade já foram feitas na região. Mas os tecnocratas e o governo central foram incapazes de favorecer a aceitação de experiências locais no processo de integrarão econômica, porque de uma área atrasada nada se espera.

Isso aparece claramente com o projeto agropecuário da ditadura militar. O estímulo para a criação de gado tornou-se uma catástrofe para a Amazônia porque o modelo agropecuário foi imposto a um estado, o Acre, onde não havia tradição de criação de gado, e, por causa disso, perdeu sua cobertura florestal tradicional. Enquanto os tecnocratas de Brasília mandavam boi para os sertões do Acre, os nativos se perguntavam: por que não usaram as zonas tradicionais de pasto? Sim, pastos naturais, como os existentes no Baixo Amazonas, na região de Óbidos, Alemquer e Oriximiná, ou em Roraima, cuja superfície é superior à de todos os pastos europeus reunidos. Esse é exatamente um caso em que a integrarão econômica foi feita em detrimento da história e da tradição locais. E, no entanto, a arrogância não ficou apenas com os tecnocratas do governo militar: um contingente imenso de salvadores da pobre e atrasada Amazônia estabeleceu suas agendas baseadas em conclusões apressadas.

Por exemplo, as propostas de neoextrativismo de Chico Mendes tomadas como solução universal para a questão amazônica. Para começo de conversa, elas se destinavam apenas a dois ou três municípios do Acre. Chico Mendes era de Xapuri, quase na fronteira com a Bolívia. Em Cruzeiro do Sul, alguns quilômetros para o norte, não serviam mais. Era, portanto, absurdo concentrar-se nelas e apresentá-las como soluções de uso geral, como fizeram alguns ecologistas e certos movimentos de defesa da região. Nos parâmetros políticos de 1985, quando a ideia foi gerada, a luta por tais reservas extrativistas estava perfeitamente explicada. No entanto, esse conceito foi muito alargado desde então, a ponto de se tornar uma das mais usadas medidas “de preservação” do governo Sarney e, em termos políticos amplos, uma espécie de proposta geral para a região, pois o “futuro” da Amazônia estaria em sua total regressão à economia extrativista.

O extrativismo foi o subsistema econômico engendrado pelo chamado ciclo da borracha. Seu impacto acabou por imprimir a face social da Amazônia, criando uma peculiar cultura, determinando sua estrutura de classes e, até mesmo, as formas de ocupação do espaço geográfico. Estou convencido de que Chico Mendes, como todo nativo da região, conhecia muito bem o caráter da velha sociedade extrativista, especialmente o caráter dos proprietários extrativistas, incapazes de enfrentar o modelo agropecuário e defender suas propriedades. As reservas extrativistas foram uma brilhante solução tática para preencher esse vazio político. Era uma forma de mobilizar os seringueiros para a defesa da propriedade extrativista, já que os proprietários estavam enfraquecidos, postos à margem pelo modelo econômico agropecuário e especulador.

Uma economia como esta, que sequer formou uma oligarquia firme em seus propósitos, não podia servir de modelo de restauração salvadora. Os proprietários extrativistas foram saindo de cena, consumindo o melhor de sua energia e capacidade criadora no exercício de sobreviver a qualquer custo. Durante o tempo em que estiveram parasitando a natureza da região, os extrativistas relacionaram-se com os grupos hegemônicos do país através de uma lamentável sublimação política. Fingiam que tinham o poder, encenavam seus desejos e, no final, acabavam por conciliar, seguindo a reboque com a sensação do dever cumprido.

Chico Mendes não estava fazendo nenhum tipo de apologia restauradora de uma página negra da história regional ao propor a luta pela transformação dos seringais acreanos em reservas. Ele sabia que tais reservas eram soluções muito localizadas, que não respondiam sequer ao problema do Acre, quanto mais de uma área continental e diversificada como a Amazônia brasileira. Falar, portanto, que o destino da Amazônia era a regressão ao extrativismo, mesmo a um extrativismo idílico, socializado e místico, era mais uma vez atropelar a própria Amazônia. De qualquer modo, vamos supor que fosse possível fazer da Amazônia uma imensa reserva extrativista, um enorme playground para todos os diversos pirados da Terra. Bem, este é o sonho nada pirado da poderosa indústria farmacêutica internacional, dos grupos econômicos que trabalham com a biotecnologia, com a engenharia genética e a etnobiologia. Assim, mais uma vez deseja-se que a Amazônia ofereça o que tem, mas que fique em seu lugar, como território primitivo, de gente primitiva, que não deve jamais ter acesso a essas tecnologias e ao controle econômico de seus produtos.

O certo é que, se o extrativismo na Amazônia não está morto, deve ser definitivamente erradicado por qualquer plano que respeite o processo histórico e a vontade regional. Mesmo porque a Amazônia não deve ser reserva de nada, nem celeiro, nem estoque genético ou espaço do rústico para deleite dos turistas pós-industriais.

Infelizmente, o modelo econômico brasileiro insiste em destruir riquezas que sequer foram computadas, movido por puro imediatismo econômico. Mas não se deve agravar mais a região, impondo-se soluções aparentemente ditadas pelo espírito da solidariedade. Especialmente porque, contra os abusos, é possível resistir, mas não há nada que se possa fazer contra a solidariedade.

Se o Império do Brasil não tivesse precisado se haver com o Grão-Pará, ou, como disse José Honório Rodrigues, se não tivesse passado o tempo inteiro reprimindo revoltas populares, podemos estar certos de que o processo de formação da sociedade brasileira teria chegado a outro resultado. Na realidade, o Grão-Pará foi reinventado em Amazônia pelo Império do Brasil, que propôs para a região derrotada uma nova e conveniente imagem, que ainda não se ajustou totalmente e, às vezes, causa desconforto. Os nativos da Amazônia sempre se espantam ao ver que, talvez para melhor vendê-la e explorá-la, ainda apresentam sua região como habitada essencialmente por tribos indígenas, quando existem há muito tempo cidades, uma verdadeira vida urbana, e uma população culta que teceu laços estreitos com o mundo desde o século XIX. Aliás, nisso residem as maiores possibilidades de resistência e de sobrevivência da região. Com efeito, os povos indígenas da Amazônia há muito se conscientizaram de que nada conseguirão se não se apoiarem nessa população urbana, que é única e que se expressa nas eleições e exerce pressão sobre a cena política. É pela participação política dessa Amazônia urbana, reforçando o jogo das forças políticas avançadas na construção da democracia, que o problema da própria exploração econômica poderá encontrar uma solução. Portanto, é preciso reforçar as estruturas políticas regionais. A Amazônia conta uma população de 20 milhões de pessoas e com nove milhões de eleitores, o que não é pouca coisa.

Embora o Brasil se orgulhe de ter a Amazônia em seu território, a anexação da região não conseguiu aniquilar suas peculiaridades. Continua havendo uma cozinha, uma literatura, uma música, uma cultura da Amazônia – que faz parte da diversidade da nação brasileira e é parte constitutiva da identidade nacional. A questão da exploração da Amazônia pode esclarecer com proveito o atual projeto de modernidade do Brasil, pois a tragédia da Amazônia é como a realidade das favelas, a má distribuição de renda e a desigualdade social. Tudo é decorrência menos da pobreza de certas regiões, que obriga seus moradores a emigrar, do que das opções políticas perenes dos donos do Império do Brasil. Se os resultados dessa caricatura de modernidade é o contraste quase farsesco de país do carnaval e das chacinas de crianças, das mulatas e do turismo sexual, das praias ensolaradas e dos desmatamentos, a culpa não pode recair sobre os supostamente atrasados, nem sobre os pobres e os excluídos.

Não é de se estranhar que, em mais de um século de existência, a famosa revista inglesa de humor
Punch jamais tenha se dignado a falar do Brasil. Somente o tremendo alarido em torno dos problemas ambientais na região amazônica foi capaz de atrair a atenção desse bastião do sarcasmo britânico. Nesta única citação brasileira, uma espécie de editorial deliciosamente desabusado, a revista entretia-se com o cinismo dos ambientalistas europeus e norte-americanos por finalmente terem encontrado o Brasil, bizarro país tropical em acelerado processo de autodestruição, mestiço e pobre, um perfeito substituto em termos de saco de pancadas para o Japão, o país que mais sistematicamente tem agredido o meio ambiente, mas que, por ser rico e tecnologicamente avançado, não pode ficar na alça de mira dos bem-pensantes.

O texto de
Punch é mais que um sintoma; é um claro reflexo do grande fenômeno promocional em que se transformou a Amazônia para a hipocrisia do ecologismo. Os agressivos efeitos de um modelo econômico imposto à Amazônia, com resultados desastrosos especialmente para as populações tradicionais, ganharam sons exacerbados nos últimos anos, produzindo uma multiplicidade de vozes dissonantes, de denúncias exageradas, de ameaças, de proposições absurdas, sempre envergando o escudo da solidariedade. Esse irritante alarido somente veio obscurecer ainda mais a questão, distanciando-se das verdadeiras respostas.

Na versão brasileira de “…E o Vento Levou”, já se disse que foi como se os confederados tivessem derrotado os nortistas. Os líderes do Grão-Pará foram presos, alguns perderam a vida, e outros sofreram encarceramento por muitos anos. Se os confederados tivessem vencido a Guerra de Secessão, os Estados Unidos não seriam muito diferentes do Brasil de hoje. A libertação dos escravos provavelmente teria ocorrido quase que simultaneamente ao 13 de maio, e um Martin Luther King jamais teria existido. Sua história de continuidade democrática e respeito pelo estado de direito teria sido entrecortada por golpes militares e longos governos autoritários de caudilhos providenciais. Mas é arriscado, embora fascinante, avançar nesse tipo de especulação. Sem querer abusar da paciência de ninguém, vale a pena imaginar como seria a nossa Scarlett O’Hara e o nosso Rhett Butler. Não é necessário muita criatividade, confesso. Com tanta reserva de coragem e tão poucas virtudes, Scarlett certamente seria uma forte liderança da UDR. Quanto a Rhett, bem, ele era um homem realista e, assim, estaria no PFL. Porém, seu cinismo cairia como uma luva para um economista da escola monetarista. Com PhD em Chicago, é claro.


Márcio Souza é romancista, autor de Galvez, Imperador do Acre (1976), Mad Maria (1980) e Breve História da Amazônia (1994). Atualmente, preside o Conselho Municipal de Cultura de Manaus. 


Originalmente publicado na edição Terra
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Achados e perdidos

por Vanessa Agricola

Lembram daquela historinha, do menino que acha o pinguim, quer dizer, o pinguim toca a campainha da casa do menino e vai entrando, e o menino, sem saber o que fazer com o bicho, leva ele para o Achados e Perdidos?

Esqueceram um guarda-chuva, um chapéu, mas ninguém esqueceu um pinguim, não senhor.

Então o menino construiu um barquinho para levar o pinguim para o Polo Sul. É lá que os pinguins moram, o menino descobriu. E, depois de enfrentar o mar aberto, os dois chegam, e o menino se despede do pinguim, que fica junto com todos os outros pinguins do Polo Sul, e vai embora, sozinho, de volta para casa. Só que, no meio do caminho, ele se dá conta de que o pinguim era seu único amigo. E o pinguim, lá no Polo Sul, junto dos outros pinguins, também sente falta do menino. Então o pinguim e o menino correm para reencontrar um ao outro. O menino chega no Polo Sul e não acha o pinguim. O pinguim vai para o alto mar e não acha o menino. Mas, no final feliz, felizmente, eles se reencontram e seguem juntos, de volta para casa?

Mas o que essa história tem a ver com a Terra?

Depende. Se você se identifica com o menino ou com o pinguim. Os dois não são iguais.

O menino não saiu do seu lugar, foi o pinguim que tocou a campainha. Mas ele foi generoso de ajudar o estranho, e recebê-lo. Emprestando até o seu travesseirinho.

Ele era o menino.

O pinguim era um outsider. Pinguins não são daqui, são lá do Polo Sul. Mas lá no Polo Sul, junto dos outros, ele não se sentia em casa.

Eu era o pinguim.

E você? É um achado ou um perdido?

Ele era um achado.

O menino era um anjo, que abriu a porta para o perdido, e ele tinha um radinho que o pinguim gostou tanto. É bonito quando o menino tenta esconder o radinho em cima do refrigerador – e eu só não falei geladeira porque não ia ser tão bonito quanto foi a cena; ele, finalmente, deixando o pinguim brincar com seu objeto tão querido. Só um anjo faz uma coisa dessas.

Mas eu te digo uma coisa, o pinguim merecia.

No Polo Sul, o pinguim era um coitado, que ninguém nunca viu, afinal são bilhões de pinguins no Polo Sul.

Sete bilhões e meio. Todos iguais.

Todos perdidos.

Mas parece que tem um bilhão e meio querendo ser salvos, e o pinguim certamente era um deles. Dos únicos que sabem que, além do Polo Sul, existe um menino. Um extraterrestre que nunca faria mal a um pinguim, nunca fez.

Eu te amo, pinguim, o menino falou para ele, antes de o pinguim descer do barquinho, de volta para o Polo Sul. O pinguim disse, eu também te amo muito. De fato, foi um abraço que disse tudo isso. E o menino deu para o pinguim o radinho de presente.

Já descobriu quem é você?

Quando você diz que eu sou muito difícil, virando os olhos de lamentação para um, para todos.

Quando a Josy disse que ela deu o apelido do meu filho, Antônio, de Pim.

Eu sei que não é simples.

Eu posso, sim, ser um monstro quando você não sabe respeitar o meu amor pelo meu menino.

Você também é um monstro. E um anjo. E isso é que é complicado.

Todo mundo é um achado e um perdido.


Originalmente publicado na edição Terra

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Amarello Visita: Marcus Volpe

por Mariana Tassinari

Talvez por ser um país formado por rios, lagos e mares, a relação do Brasil com a água permaneça uma incógnita. Enquanto o mundo preocupa-se com o que será feito dela nas próximas décadas, o país que detém 11% do manancial potável do planeta trata o mais valioso dos recursos naturais como uma dádiva inesgotável. Para a edição Terra, o Amarello Visita conversou com o engenheiro e fundador da DNA Dragagem, Marcus Volpe, sobre os processos envolvidos na revitalização dos espaços hídricos, como o rio Pinheiros, em São Paulo, e a Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte. Conversamos também sobre as demandas do seu ofício e tiramos a temperatura de como anda o atual estado da consciência ambiental da nossa sociedade e dos nossos governantes.

Você acabou falando de vários projetos perto do estado de São Paulo, e pelo resto do Brasil?

Estamos terminando uma dragagem pequena, junto a um parceiro nosso, em Xique-Xique, na Bahia, para captação de água, que é um problema sério lá. Em 2014 para 2015, fomos contratados pela Codevasf para fazer uma dragagem com todo esse equipamento de sucção e recalque para dragar o rio São Francisco. Eram 150 quilômetros de dragagem no rio. Nessa época, teve uma seca grande, que baixou o nível total do rio e o fez regredir completamente a um fiapo de água. Você imagina, um rio em que se transportava algodão, muitas pessoas, um rio de navegação longitudinal, que serve para travessia da região, e, de repente, por conta da baixa da água, você não consegue mais navegar. Então pararam as estradas e as cidades todas. Não se consegue mais captar água para a população. Isso foi em 2014. Agora, estamos acabando de fazer, em Xique-Xique, um canal de captação desse tipo também, que é justamente o contexto do rio baixo, assoreado, e a cidade não consegue mais ter volume de água, então você precisa abrir um caminho para levar água até o ponto de captação onde eles a bombeiam. Essa obra do São Francisco foi entre Penedo, no Alagoas, e Neópolis, no Sergipe. Penedo é uma cidade maravilhosa, vale a pena conhecer. É uma cidade antiga, a arquitetura está toda preservada, tudo rua de pedra, na beira do São Francisco. E ali você está a 60 quilômetros do mar. Você pega uma estradinha, ou pega um barco lá mesmo, e desce até o mar, passando por milhares de ilhazinhas até chegar na foz do São Francisco. É maravilhoso.

Além dessa obra, há uns seis anos, fizemos a dragagem do rio Capibaribe, no Recife. Lá, a ideia era implantar uma hidrovia de transporte. Ganhamos duas obras lá. Uma para fazer a dragagem, uma obra grande, muita coisa para tirar de material para poder deixar o rio navegável, e outra para fazer as estações hidroviárias, porque seria um sistema de transporte público mesmo, como um ônibus, com estações para o pessoal entrar no barco, etc. Mas foi na época que o Eduardo Campos despontou como adversário da Dilma. Era dinheiro federal. Aí o governo federal suspendeu o dinheiro, e o governo de Pernambuco pagou… Acho que 30% era estadual e 70% federal. Aí ele gastou o dinheiro dele achando que ia conseguir, só que não conseguiu pegar o dinheiro federal, então não conseguiu acabar a obra. Ficou tudo pela metade.

Qual é a realidade das águas brasileiras, e como vocês percebem isso como oportunidade?

Tem um trabalho grande, que estamos fazendo e ainda não conseguimos tirar do papel, que mostra bem como é a situação dos rios brasileiros. No Mato Grosso do Sul, tem um rio que se chama Taquari. Ele é o rio do Pantanal. E o que é o Pantanal? É uma região em que esse rio transborda alguns meses por ano, criando uma biodinâmica muito específica e fantástica. O que aconteceu? Com a pecuária extensiva, a cidade abriu uma área de floresta, desde o Mato Grosso, ao norte, até chegar em Coxim, sem o menor tipo de cuidado, sem fazer curva de nível, etc. Isso significa que qualquer chuva lavava as terras e levava para o rio, e esse rio foi assoreando. Hoje, o Taquari não existe mais. O Pantanal está permanentemente alagado. O Pantanal não pulsa já faz alguns anos por conta disso. O Taquari encheu tanto de areia que o rio achou outro lugar para correr, que, na verdade, não é um lugar – não é que o rio mudou de lugar, ele se espalhou. E está sempre alagado. Isso gerou um problema ecológico e social gigante, porque os fazendeiros que tinham terras lá viram o pasto morrer. Por volta de 2009, fizemos uma campanha com o nosso dinheiro. Durante 10 dias, contratamos uma empresa junto à universidade para poder mapear todo esse assoreamento, e desenvolvemos um projeto que levamos para o governo federal, na época da Dilma, através do senador que estava encabeçando isso, o Delcídio do Amaral, que depois foi preso, e o projeto parou. Em janeiro, começaram a falar em retomar o mesmo trabalho que a gente fez, só que muito mais profundo, para gerar um projeto para desassorear esse rio. Há dezenas de rios iguais ao Taquari pelo Brasil, que estão completamente assoreados por conta da intervenção humana direta ou nas margens, como a falta de mata ciliar. Uma das coisas mais importantes para um rio é manter sua mata ciliar, e no Brasil isso é destruído porque não existe uma legislação pesada contra isso. As intervenções das barragens também causam problemas semelhantes, e acabam matando o rio em determinada altura. A realidade dos nossos rios é igual a qualquer outra realidade brasileira. Ela é igual ao péssimo saneamento, igual às péssimas estradas. Os rios não fogem a esse padrão.

Esse é um caso de projeto que partiu de vocês, certo?

Sim. O problema chegou até nós, e o meu sócio, o Andrelino, foi em diversas reuniões, fez audiência pública, conversou com o pessoal. Ele se reuniu com os fazendeiros, com os ribeirinhos, com a população diretamente impactada. Ele foi responsável mais na parte social do projeto, e eu ocupei a parte técnica, de desenvolver a solução, de ir lá, pesquisar e fazer a campanha, por exemplo.

A maior parte dos projetos chegam através das empresas que são contratadas pelo governo?

Exatamente, é muito mais simples se associar com uma grande empresa que vai prestar o serviço para o governo do que arriscar envolver-se diretamente. Os últimos anos foram complicados, chegamos a ficar quase sem funcionários. Você começa a não poder pagar as pessoas e tem que mandá-las embora, porque o dinheiro vai para outro ralo, que normalmente é uma obra que está rodando e não está recebendo, aquelas coisas. Então, até para mitigar risco, para nós, é muito bom. A nossa empresa é menor, mas durante a crise fomos adquirindo máquinas, o que qualificou o nosso parque de equipamentos. Hoje, conseguimos operar essa estrutura com uma folha de pessoal reduzida, o que diminui o nosso risco. Na obra da Pampulha, por exemplo, deve-se ter umas 60 pessoas trabalhando, e nenhum dos funcionários está no meu nome, estão todos no do nosso parceiro.

Qual é o impacto ambiental e social que a DNA pode proporcionar?

A água é um bem muito valioso. A partir do momento em que você consegue fazer uma cidade captar água, obviamente acaba-se gerando um impacto social gigante. Ou, ainda, ao permitir que uma balsa atravesse um rio, fazendo com que o transporte de carga e pessoas seja possível, diminuindo o valor do frete na região, barateando a comida e melhorando a qualidade de vida das pessoas. Em alguns casos, inclusive, podemos proporcionar uma navegação longitudinal, ou seja, tiramos caminhão da estrada, pois a carga pode ir pelo rio, pela hidrovia. Tudo isso é muito importante. A Transpetro fez um projeto gigante para escoar óleo diesel para dentro do estado e tirar etanol, através do modal hidroviário. Era uma obra de uns 500 milhões de reais, mas veio a Lava Jato e foi suspensa. Era tudo superfaturado. Em São Paulo, o governo investe de forma muito pontual. No rio Tietê tem uma dragagem, só que, de repente, acaba o dinheiro e fica um ano parada, depois volta. O resultado é que poderíamos ter uma navegação fenomenal para tirar lixo da cidade, para circular material de construção, como em Paris, por exemplo. Em Paris, areia só entra através de balsa, não tem caminhão circulando no meio de uma marginal, com tijolo e materiais pesados. O lixo também é retirado por balsa. A mesma coisa em Nova York. Você leva tudo isso para um posto do lado do rio, joga dentro, e está resolvido.

E tem também uma coisa muito bacana, que é o seguinte, quando o Andrelino finalizou a obra do rio Tietê – a dragagem, o derrocamento e a calha do rio –, ele trouxe um navio para cá. Esse navio para 200 pessoas acabou sendo usado, por um tempo, para fazer espetáculos do Teatro da Vertigem. E também foi usado para difundir educação ambiental. Havia o Instituto Navega São Paulo, bancado por nós na época, e recebíamos as escolas públicas e as crianças. Só que com o dinheiro não dava para fazer tudo, então parou. Aí a Sabesp começou a alugar da gente para levar habitantes de comunidades que não estavam ligados a rede de esgoto, o que, pela nossa legislação, não é compulsório. Se você não está num esgoto, se não quiser se ligar num esgoto, você não é obrigado a pagar a taxa. Então eles levavam essas pessoas, pessoas mais pobres, mais simples, e traziam para o rio, para dar uma volta de barco, e mostravam a realidade do rio. Isso impactava porque demonstrava o resultado de não estar ligado ao esgoto, de como o esgoto prejudicava o rio. Era muito incrível, porque, na saída do barco, havia a opção de assinar para se ligar ao esgoto, e 80% das pessoas aceitavam, porque entendiam qual era a essência do rio.

Incrível, isso. Educação é tudo.

É tudo. E um dos maiores problemas que a gente tem hoje nos rios Tietê e Pinheiros é que o rio é tipo um alien da população. O mais próximo que a gente passava dele até uns anos atrás era na Marginal, a milhão por hora, nos nossos carros, ou presos no engarrafamento. Hoje pelo menos tem a ciclovia, então você até chega um pouco mais perto. Mas você muda completamente a perspectiva ao entrar dentro de um barco e navegar pelo rio. Tanto que agora estamos com um projeto que vamos levar para o governo estadual, de tirar o barco do Tietê e botar no Pinheiros e ver se começamos a navegar no Pinheiros, porque o Doria está querendo fazer o rio Pinheiros voltar a viver. Ele, através da iniciativa privada, vai investir quase um bilhão de reais em estações de tratamento de esgoto ao longo do Pinheiros, para tratar esses córregos. Porque captar todo esse esgoto, botar num duto submerso, que são túneis iguais aos do metrô, túneis de esgoto gigantes, é muito caro, demora muito tempo. Então, paliativamente, vamos tratar os córregos antes que eles caiam no rio. São duas ou três usinas de tratamento de esgoto em todos os córregos, e isso vai, pelo menos, estancar o problema do rio. Junto com isso, tem o serviço de limpeza e desassoreamento. É muito lixo flutuante, mas o que assoreia mesmo é areia, areia de construção. Você faz uma obra, chove, corre areia, e sempre acaba no rio. São milhares e milhares de metros cúbicos de areia por ano entrando na água. Vamos ver. Tomara que dê certo e possamos voltar a trabalhar com o barco.

Algum desses projetos se transformou em uma experiência marcante?

Acho que o mais marcante foi uma dragagem no Rio de Janeiro, em um canal que se chama Canal do Cunha. Na época, tinham acabado de tirar a Faixa de Gaza, que é uma favela ali atrás da Fiocruz. Depois que chegássemos na Fiocruz, passando embaixo da Avenida Brasil, entraríamos num segundo trecho da obra que era dentro da favela da Maré. Uma das coisas mais marcantes que vivenciei foi a primeira vez que eu fui lá e, para entrar na Maré, embarquei em um carro queimado, e tinha um garoto de uns 13 anos com um fuzil encostando no chão, porque era maior do que ele. O cliente teve de avisar a comunidade e os traficantes que iríamos lá. Foi um choque gigante. E depois, na sequência, fiquei convivendo com esse pessoal por seis meses. Então, de repente, o traficante falava: “Ô engenheiro, vem cá, vamos jogar bola hoje”, e aí eu montava na moto do cara e ia jogar bola numa quadra de futebol de grama sintética que fizeram lá dentro, todo mundo tomando cerveja cheio de fuzil e revólver, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Acho que essa foi a experiência mais marcante desse trabalho – não pelo trabalho em si, mas por conta das condições. Quando os caminhões chegaram, caminhões grandes para carregar os barcos, tivemos que quebrar as barreiras de concreto que foram construídas na Maré para a polícia não entrar. E em seguida, tivemos que reconstruí-las. É uma coisa de louco. Lá era uma região de curtume também. Acho que os curtumes jogavam o couro que não dava muito certo lá, e aquele material ficava apodrecendo. Às vezes, tirávamos toneladas de couro podre. Tem de tudo. Acho que isso é o que eu mais gosto desse trabalho. Uma hora você está na favela e, em seguida, está em Neópolis para fazer a dragagem de Penedo a Neópolis. Passa a morar em cima de um posto de gasolina, no único hotel da cidade, dormindo em uma cama que não tem nem colchão, sem ar-condicionado. Lembro que às 3h30 começava a clarear a ponto de às 4h da manhã não aguentar ficar no quarto. Então você muda a sua rotina, e passa a dormir às 19h, porque está acordando às 4h da manhã… Isso também é muito gostoso.

E qual a sua frequência de visitas em uma obra?

Eu vou na obra para implantar. Depois, vou para acompanhar. Tem um momento de imersão na obra, no começo, que chamamos de mobilização, quando levamos e montamos os equipamentos para fazer o projeto começar a rodar. Depois disso, eu vou uma ou duas vezes por mês, geralmente quando dá algum problema ou para fechar medição, discutir alguma coisa com quem está lá, ajustar algo, etc. Vou no começo da obra e retorno para São Paulo. Se passar três dias em cada obra e tivermos dez obras, isso dá um mês. Então eu acabo rodando por todas elas e ficando um pouco aqui no escritório em si. Tanto que meu escritório é uma salinha pequena, está entulhado de coisa.


Originalmente publicado na edição Terra

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O capital está morto

por Léo Coutinho

No princípio era a verba. A terra. A terra era a verba, o capital. E o dono da terra era o senhor. Há quem diga que uma maçã fora de hora era motivo para expulsão. Minha terra, minhas regras.

Com o tempo, as coisas mudaram. Não que os donos da terra tenham assentido. Mas das transas entre os expulsos, os preteridos, nasceram novidades. Ciência, tecnologia. Surgiu a máquina, que virou capital.

A partir daí, a velocidade e a potência de tudo aumentou muito. Inclusive o tempo passou a ser capital. E a indústria já não dependia só da máquina. O poder de transformar a cultura passou a reger o capital. Principalmente quando os homens se valiam de máquinas para brigar por terra, regia o baile quem detinha o poder transformador da cultura.

Na História, os parágrafos acima são inversamente proporcionais. O primeiro dura milênios. Os demais foram um suspiro. Literalmente um suspiro, intangível, imprevisível, inexorável.

E, do suspiro, fez-se a ofegância, que é o suspiro acelerado, potencializado em sua intangibilidade, imprevisibilidade e inexorabilidade. Ninguém está livre dela. Seduzidos pelo conforto proporcionado pela evolução, nos encontramos num limbo nem-nem: nem conseguimos religação com o passado, nem conseguimos aguardar o futuro.

Se antes faltava terra para alguns, depois máquinas para outros, hoje pode haver casa, comida, roupa lavada e informação para todos. Ar, para ninguém – o que agrava o problema histórico da repartição básica.

O capital está morto. Sublimado em forma de dados. A terra sem dados não tem valor. Assim como a máquina. Ou a cultura. E até o dinheiro que um dia foi líquido, ora é gasoso. Os dados sabem mais das pessoas do que as próprias pessoas.

Estamos na era do capital gasoso, que é energia, sem dúvida, mas também é tóxico. Quer dizer: já não podemos viver sem ele, mas precisamos de ar para sobreviver. Desesperadamente precisamos de ar para continuar na Terra.

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Editorial: Sempre do outro lado

por Tomás Biagi Carvalho

Certifique-se de estar sempre do outro lado. Não escute aqueles que insistem que você deveria tomar partido, como você sabe, um lado é só um lado. Cultive a dúvida, esse caminho para a liberdade, e seja gentil. A incerteza é dura, mas mais honesta do que acordar com a certeza de tudo. Não é fácil, mas acalma a mente e tranquiliza o coração.

Viajar pelo Brasil me faz resgatar a esperança no país. A pluralidade de sotaques, cores e cheiros. A cordialidade, gentileza e delicadeza das pessoas, inúmeros desconhecidos, que me fazem lembrar a qualidade da nossa matéria-prima humana. Nem tudo está em chamas. Nem tudo é só preto ou só branco.

Falamos muito do contemporâneo, essa palavra transitiva e relacional. Somos contemporâneos de algo ou alguém e é essa interdependência, essa necessidade de ligação, que nos permite estabelecer uma ponte com quem aqui esteve e com quem aqui está.

A natureza é humana, e a natureza humana é revolucionária. Quem está inserido nela está pronto para falar, basta que tenhamos capacidade para escutar, sem criar muros que separem o que é selvagem do que é cultivado.

Minha vida toda estive do outro lado e duvidei. E com isso aprendi que a vista do lado de lá, é muito mais bonita.


Originalmente publicado na edição Terra
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#33InfânciaArteArtes Visuais

O show narcísico de Pedro Caetano

O show narcísico, histriônico das máscaras, doces, cartoons, bonecos e smileys de Pedro Caetano remete à importância da tragédia e da comédia e, principalmente, da capacidade e possibilidade do artista branco de exercê-las, fundidas pela paleta pop-popular.

No lugar de bufões, temos Bob Esponjas. Nas obras de Caetano, a Commedia dell’arte se confunde com uma maratona de desenhos do Cartoon Network. E é nessa fronteira que reside a potência de seu fazer artístico, para demonstrar quão filosóficos ou expressivos podem ser os personagens e artefatos do quotidiano pop. Seus objetos parecem mais interessantes, sedutores e humanizados do que alguns de nós, humanos, mais produtificados que os objetos gerados pelo capitalismo. O nome Pop art teve origem em um pirulito popular nos anos 1950, doce que reaparece em pinturas do artista. uma espécie de fixação oral que nos acompanhará de crianças a adultos, de Lolitas a MILFs – eis o teatro sádico dos doces aparentemente ingênuos de Caetano. Trata-se de fetiche, e cabe ao artista transmutar a matéria e os valores, da glicose para a tinta óleo, do supermercado para as feiras de arte, de forma semelhante à loja-performance “The Store” de Claes Oldenburg.

Obras

Pinocchio Miami, 2016
Óleo sobre cerâmica fria 22x15x8cm

Boka Loka, 2015
Óleo sobre tela
220×150 cm

As Aventuras de Sísifo, 2015
Óleo sobre tela
220×150 cm

Brisa do Mar, 2014
Desinfetante, plástico, alumínio, borracha, durepox e adereços hippies
40x20x20cm

Luksnova Innovation Zeitgeist, 2014
Água raz, plástico, alumínio, borracha, durepox, silver tape e pulseiras hippie
40x20x20cm

Paleta teatro, 2016
Óleo sobre cerâmica fria 24x22x7cm


Originalmente publicado na edição Infância
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#Terra: Especial 10 anosArteArtes Visuais

Todos os lugares estão em chamas

por Mateus Acioli


Originalmente publicado na edição Terra

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#Terra: Especial 10 anosArteArtes Visuais

Marcelo Pacheco e sua terra de referência: Picasso e Robert Motherwell

por Marcelo Pacheco

Estudo para bandeira nº4 (2016)

Um dos trabalhos de referência para Estudo para Bandeira n. 4 é o Tocador de Flauta (1962), de Picasso.

Essa tela, que organiza o espaço em duas grandes áreas – uma verde e outra azul, que se encontram numa espécie de horizonte –, deu o espírito para a pintura em que eu estava trabalhando, a princípio pelas cores, mas também pela figura e estrutura compositiva.

Na mesma época, as colagens do começo da carreira do Robert Motherwell, em especial In Ashes With Collage, que combinavam pintura e colagem – com papéis de presente, kraft, tecidos e mapas –, me levaram a experimentar uma linguagem parecida como meio de dar materialidade ao trabalho, criando volumes e formas.

Colei duas mangas de camisa na tela, uma junto à outra, que depois foram encobertas pela pintura dentro da moldura zebrada que eu começava a utilizar.

As mangas de camisa podem remeter aos braços do flautista do Picasso, mas sua disposição faz mais lembrar dois braços abertos. E o uso das cores foi invertido: o azul e o verde ocupando o espaço central da tela, e o preto e branco, originalmente da figura, empregados de maneira a afirmar os limites do quadro, sua superfície e a bidimensionalidade.

A colagem, com a tinta, cria camadas, o que é importante para minha pintura. Já a figuração, que quase não aparece nos meus trabalhos, surgiu nesta tela de forma indireta, com a colagem de um pedaço de roupa. Por meio das características intrínsecas ao objeto ou da forma como ele foi disposto e pintado, esse elemento vertical que faz a passagem entre o chão verde e o céu azul estabeleceu a presença da figura humana.


Originalmente publicado na edição Terra
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Que terreiro é esse?

por Márcio Bulk

Fotos de Juliana Rocha e Bruno Machado

A primeira vez que vi Pena Branca e Xavantinho foi em um programa da TV Cultura, o Bem Brasil, no início dos anos 90. Eu devia estar com uns 23, 24 anos. Não fazia ideia de quem se tratava, mas fiquei, no mesmo instante, hipnotizado pela imagem daqueles dois negros, de branco, apresentando um repertório quase desconhecido para mim, mas que me remetia a um mundo absurdamente amoroso e acre, tomado pelos grandes sertões.

Anos se passaram e, enquanto escrevia as letras de Tramundo, espetáculo inspirado na obra de Guimarães Rosa, tive a oportunidade de entrar em contato com o álbum de estreia da dupla, Velha Morada (WEA, 1981). Um trabalho formidável, carregado de um sincretismo capaz de unir o cancioneiro caipira à religiosidade afro-brasileira. “Que terreiro é esse?”, décima faixa do álbum, composição do próprio Xavantinho, acabou se tornando uma espécie de guia afetivo para a minha pesquisa, uma toada que trazia em si “feitiço e pagode”.

Inexplicavelmente, quando me encontrei com Rogério, Juliana e Bruno para discutirmos sobre este ensaio, deixei de lado essa referência, focando mais no universo roseano e em alguns temas que o espetáculo aborda, como ancestralidade, intolerância e desculturação. Lembro também de ter levado uma fala de Rosa: “O sertão está em toda parte, o sertão está dentro da gente. Levo o sertão dentro de mim e o mundo no qual vivo é também o sertão”. Paralelamente a essas discussões, reafirmei que tanto eu quanto todos os integrantes do projeto — músicos, arranjadores etc. — aceitaríamos de bom grado sermos seus cavalos, incorporando, por inteiro, as ideias desenvolvidas pelo trio.

Apesar de estar presente em boa parte desse processo, apenas ao receber as primeiras fotos é que notei o quanto estas imagens dialogavam com o universo de Pena Branca e Xavantinho: um sertão impregnado de fé, onde se podia esbarrar com ciganos; egunguns; indianos da Linha do Oriente; Virgem Maria Deodorina da Fé e seu oratório; Antônio Conselheiro paramentado com os cornos de Iansã; Maria Bonita enlaçada à cabaça das Iá Mi Oxorongá; D. Sebastião, o Adormecido, nas mãos de Ikú, a morte; olhos de Santa Luzia estampando o vestido da Yabá. Negros, brancos e mestiços formando uma (en) cruza que, longe de qualquer coesão, assumem e revelam os conflitos e assombros de um sertão quimérico. Ou, como bem entoava a dupla de pretos velhos, um sertão onde “o céu mistura com a terra/ E o mundo se acaba em guerra/ E a viola não sai dos meus braços”.


Originalmente publicado na edição Terra

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