#Terra: Especial 10 anosCrônicaCulturaLiteratura

O capital está morto

por Léo Coutinho

No princípio era a verba. A terra. A terra era a verba, o capital. E o dono da terra era o senhor. Há quem diga que uma maçã fora de hora era motivo para expulsão. Minha terra, minhas regras.

Com o tempo, as coisas mudaram. Não que os donos da terra tenham assentido. Mas das transas entre os expulsos, os preteridos, nasceram novidades. Ciência, tecnologia. Surgiu a máquina, que virou capital.

A partir daí, a velocidade e a potência de tudo aumentou muito. Inclusive o tempo passou a ser capital. E a indústria já não dependia só da máquina. O poder de transformar a cultura passou a reger o capital. Principalmente quando os homens se valiam de máquinas para brigar por terra, regia o baile quem detinha o poder transformador da cultura.

Na História, os parágrafos acima são inversamente proporcionais. O primeiro dura milênios. Os demais foram um suspiro. Literalmente um suspiro, intangível, imprevisível, inexorável.

E, do suspiro, fez-se a ofegância, que é o suspiro acelerado, potencializado em sua intangibilidade, imprevisibilidade e inexorabilidade. Ninguém está livre dela. Seduzidos pelo conforto proporcionado pela evolução, nos encontramos num limbo nem-nem: nem conseguimos religação com o passado, nem conseguimos aguardar o futuro.

Se antes faltava terra para alguns, depois máquinas para outros, hoje pode haver casa, comida, roupa lavada e informação para todos. Ar, para ninguém – o que agrava o problema histórico da repartição básica.

O capital está morto. Sublimado em forma de dados. A terra sem dados não tem valor. Assim como a máquina. Ou a cultura. E até o dinheiro que um dia foi líquido, ora é gasoso. Os dados sabem mais das pessoas do que as próprias pessoas.

Estamos na era do capital gasoso, que é energia, sem dúvida, mas também é tóxico. Quer dizer: já não podemos viver sem ele, mas precisamos de ar para sobreviver. Desesperadamente precisamos de ar para continuar na Terra.

#Terra: Especial 10 anosCulturaEducaçãoSociedade

Reescrevendo “…E o Vento Levou”: A morte do Grão-Pará e o parto do Império do Brasil

por Márcio Souza

Em julho de 1936, quando a guerra já varria a velha Europa, foi lançado nos Estados Unidos o romance “…E o Vento Levou” (Gone With the Wind). Em poucos dias, o livro foi para as listas dos mais vendidos e se tornou um dos maiores êxitos editorais de todos os tempos, hoje com quase nove milhões de exemplares vendidos. Uma das publicações mais rigorosamente críticas, o “New York Times Book Review” assim registrou o aparecimento da romancista Margaret Mitchell.

“Este é, sem dúvidas, o mais marcante dos primeiros romances já escritos por um autor americano. É também um dos melhores. ‘…E o Vento Levou’ não é exatamente um grande romance. Mas já faz um longo tempo que ao público leitor americano não se oferece tamanho banquete de excelente arte de narrar.

Pelo menos quatro dentre as personagens deste livro atinge uma qualidade de criação rara de ser encontrada em páginas impressas. Muitas coisas acontecem neste livro: ele é repleto de movimento, mas os combates estão fora de cena. Assim também as grandes figuras que a guerra produziu; elas são apenas nomes que se pronunciam, e o que acontece com Scarlett O’Hara e Ashley Wilkes, sua esposa Melanie e Rhett Butler é o que acontece a muitas vidas daquele tempo e lugar.”

Nas mentes do mundo inteiro, “…E o Vento Levou” não é um fenômeno literário, mas um dos mágicos produtos de Hollywood de 1939, um ano de dezenas de filmes admiráveis. A poderosa adaptação cinematográfica do romance de Margaret Mitchell transformou um caudaloso folhetim em ícone cultural.

Consta que, ao ser procurado por David O. Selznick com a proposta de produzir “…E o Vento Levou”, Louis B. Mayer, o grande
mogul da MGM retrucou:

– Quem está interessado em ver mais um filme sobre a Guerra de Secessão?

Uma pergunta semelhante, talvez, surja nas mentes dos aqui presentes.

– Quem estará interessado em ver uma versão brasileira de “…E o Vento Levou”?

Permitam-me, no entanto, insistir na metáfora. Algumas vezes um passeio sem compromissos pelo reino da ficção ajuda a esclarecer certas obscuras e enigmáticas contingências do passado. Mas talvez tudo isso não passe de excesso de pretensão de um romancista.

De qualquer modo, “…E o Vento Levou” é o retrato de uma civilização extinta. A civilização que aqui vamos evocar também está extinta. Recriando com desavergonhada nostalgia, e de forma idealizada, a desaparecida sociedade escravagista do Sul dos Estados Unidos, o livro tem como eixo a personalidade cambiante e oportunista de Scarlet O’Hara, uma bela mulher ligada ao mundo das plantações de algodão, mas que acaba por encarnar a aceitação, pelo Sul derrotado, da nova realidade trazida pelo vitorioso capitalismo industrial ianque. “…E o Vento Levou” é o grande painel de uma época afogada em sangue e uma espécie de rito de passagem em forma de entretenimento.

A história se passa numa fazenda de algodão no Norte da Georgia, imediatamente antes da eclosão da Guerra de Secessão. Boa parte da ação acontece também em Atlanta e seus arredores, a emergente metrópole do Sul; uma espécie de ponto de convergência plantado em plena lama rubra a crescer como ponto de intersecção das ferrovias que vão para norte e sul, leste e oeste. Quando a guerra começa, Atlanta transforma-se no centro nervoso do Sul, com uma participação mais ativa que a tradicional Charleston ou outras cidades confederadas tradicionais, como Savannah ou Augusta.

É nesse cenário que Scarlett O’Hara protagoniza o drama. É uma heroína cheia de qualidades, mas sem quaisquer virtudes. Ela personaliza a nova mentalidade americana, capaz de atravessar com desenvoltura todas as suas mais íntimas relações amorosas com o mesmo cálculo gelado das relações capitalistas que a levam à ressurreição econômica. Menina mimada e volúvel, ela assiste impotente à destruição de sua civilização. Numa das primeiras cenas, recusa comida por mera vaidade, para, na metade da história, ser obrigada a arrancar tubérculos do chão crestado e mastigá-los para saciar a fome. Mas Scarlett não é uma heroína qualquer, e a fragilidade era apenas uma aparência. Na verdade, ao tomar contato com a dura realidade e ao ser tragada pelo turbilhão da guerra fratricida, Scarlett sobrevive não porque tenha bons modos, mas justamente porque não os tem. É uma personagem feita quase só de coragem, com a vitalidade de uma filha da terra que já não necessita cultivar princípios, e que vai sobreviver porque sabe usar como ninguém o novo caráter dominador, egoísta, brutal e ambicioso. Embora apaixonada pelo aristocrático Ashley, este enfatuamento não passa de uma fixação nostálgica, pois seu par verdadeiro é Rhett Butler, um sulista moderado, que percebeu por antecipação o inexorável e enfrenta a derrota e a nova ordem com doses de cinismo e realismo.

Mas o que realmente se passou nos Estados Unidos? O que foi a Guerra de Secessão?

Por volta do final do século XVIII, o velho Sul dos Estados Unidos foi alcançado pela Revolução Industrial. A máquina de descaroçar algodão de Eli Whitney acelerou de tal forma a colheita e a separação da lã do caroço que, em 1794, um grupo de escravos conduzindo uma descaroçadeira produzia 50 vezes mais que o mesmo número fazendo o serviço a mão. A milagrosa máquina jogou os preços no chão, e os lucros, no espaço, atendendo com eficiência à crescente demanda mundial por algodão. Em 1860, por exemplo, 55% dos lucros obtidos pelos Estados Unidos com exportação eram oriundos das vendas de algodão beneficiado, o que significava algo em torno de US$ 190 milhões por ano. Movidas por um mercado ávido, as gigantescas economias de escala que eram as fazendas (
plantations) acabaram por dominar a economia sulista, deprimindo a iniciativa industrial e, até mesmo, determinando o perfil demográfico da região. Durante quase todas as primeiras décadas do século XIX, o Sul profundo empalideceu as propriedades do litoral atlântico e arrastou mão de obra e investimentos. Milhares de pequenas fazendas floresciam, mas eram as grandes fazendas de algodão que comandavam o desenvolvimento econômico e social, baseadas nos músculos de mais de três e meio milhões de escravos que cuidavam da terra, plantavam, cultivavam, colhiam e despachavam o algodão para todos os quadrantes da terra. Somente a Inglaterra costumava importar anualmente um milhão de toneladas do produto.

As grandes fazendas de algodão, tal qual os imensos latifúndios brasileiros, existiam de forma autossuficiente e tendiam ao isolamento. Elas mantinham seus próprios rebanhos, a produção de laticínios e hortaliças, bem como matadouros e defumadouros. Os proprietários viviam como senhores feudais, mandando e desmandando no interior de seus imensos territórios. Festas e recepções elegantes, com muita ostentação e alguma extravagância, eram periodicamente organizadas pelos fazendeiros, que acabaram desenvolvendo um elaborado sistema de etiqueta social. O mundo do Sul profundo se circunscrevia nas fronteiras dessas grandes propriedades, entre a criação de magníficos cavalos, a prática de artes marciais da moda e o tedioso ócio que só era quebrado com a passagem dos
Show Boats, imensos barcos movidos a roda que navegavam pelo Mississipi e onde era possível perder somas vultosas e assistir a espetáculos burlescos e dramalhões moralistas.

Embora hegemônicos economicamente e politicamente, os fazendeiros eram uma pequena minoria. Na segunda metade do século XIX, a produção do algodão cresceu muito, mas os preços caíram. Era a concorrência de outras áreas produtoras e o resultado da inflexibilidade dos fazendeiros em estabelecer mudanças no sistema econômico. Alguns fazendeiros menores ainda tentaram a diversificação econômica e estimularam a imigração de mão de obra nortista, mas os grandes fazendeiros desprezaram solenemente esses esforços e se aferraram no sistema escravista como uma questão de poder. Em 1860, o Sul já não contava com uma representação expressiva no Congresso e lutava ingloriamente para manter vigente esse sistema de mão de obra, importando escravos de Cuba.

Quando a guerra eclodiu em 1861, os escravos, em sua maioria, trabalhavam nas fazendas de algodão, enquanto 75% das famílias confederadas e 90% dos homens recrutados para lutar no exército rebelde não eram donos de escravos e nada tinham a ganhar com a secessão. O radicalismo político dos fazendeiros de algodão foi de tal forma poderoso que arrastou 11 estados e o Velho Sul para o abismo. A vitória do Norte industrializado, conduzido por uma elite política senhora de um projeto nacional democrático, abolicionista e modernizador, deu nova significação aos ideais da Revolução Americana, proporcionando aos Estados Unidos um cenário político e econômico que o transformou em superpotência.

Evidentemente, na América Latina não aconteceu nada de parecido com a Guerra de Secessão americana, elemento primário do enredo de “…E o Vento Levou”. Porém, em cada um dos países latinos ocorreu, em determinado momento de sua história, um confronto entre modelos de sociedade, choques entre propostas avançadas e modernas e posições atrasadas e retrógradas. O exemplo da Guerra de Secessão, em que um povo não apelou para a conciliação e foi capaz de derramar sangue para decidir princípios, sempre causa uma impressão forte. Especialmente num país como o Brasil, onde o mito da história incruenta serviu durante muito tempo para mascarar os nossos desacertos. Agora, porém, já se sabe. Aqui, muito sangue também foi derramado, e princípios também estiveram em jogo. O que quero dizer é que cada país da América Latina teve o “…E o Vento Levou” que merece. É sobre o nosso próprio “…E o Vento Levou”, ocorrido entre 1823 e 1840, que desejo falar.

Para que se compreenda a questão, um fato deve ficar claro desde já: em 1822, a Amazônia não fazia parte do Brasil. Sequer se chamava Amazônia.

Na verdade, os portugueses construíram duas colônias na América do Sul. Pode-se mesmo acreditar que esta não foi uma decisão administrativa dos portugueses, mas uma consequência das limitações tecnológicas. Naqueles tempos de navegação a vela, a transposição do Cabo Branco era praticamente impossível e perigosa. Assim, para os que vinham do Atlântico Norte, as rotas mais propícias eram aquelas que, seguindo as correntes, levavam diretamente ao Atlântico Sul e ao litoral do Brasil, ou as que levavam ao Caribe e ao estuário do rio Amazonas. Uma viagem do Rio de Janeiro para Lisboa em 1790 durava noventa dias. Uma viagem de Belém a Lisboa na mesma época durava trinta dias. Uma viagem entre o Rio de Janeiro e Belém podia durar até cinco meses.

O certo, então, é que tínhamos duas colônias de língua portuguesa na América do Sul. Uma descoberta por Cabral em 1500, batizada com o nome de Brasil e administrada por governadores gerais e vice-reis, com capital no Rio de Janeiro e um território que, ao norte, começava nos limites do atual estado do Piauí, descendo por uma estreita faixa pelo litoral nordestino, passando por Goiás, Minas Gerais e estendendo-se até as margens do rio da Prata, hoje o Uruguai. A outra colônia, inicialmente conhecida como Grão-Pará e Maranhão e, mais tarde, como Grão-Pará e Rio Negro, foi descoberta por Vicente Iañes Pinzon em 1498, logo após terceira viagem de Colombo à América, quando batizou o rio Amazonas de Mar Dulce, mas efetivamente ocupada pelos portugueses a partir de 1630. Essa colônia tinha em seu território o equivalente à reunião dos atuais estados do Maranhão, Pará, Amapá, Amazonas, Roraima, Rondônia e parte do Acre. A capital era Santa Maria de Belém, e era administrada por governadores militares e administradores diretamente ligados a Lisboa. Essas duas administrações coloniais se desenvolveram distintamente até 1823, data em que o Império do Brasil começou a anexar a colônia nortista. Uma nota curiosa: os habitantes da colônia do Sul eram chamados de brasileiros, os do Norte, de portugueses-americanos.

A Independência do Brasil, em 1822, pouco reflexo teve no território do Grão-Pará. Alguns adeptos da ideia da independência, como Felipe Patroni e o cônego Batista Campos, desejavam cortar os laços com a metrópole, mas estavam completamente isolados do Rio de Janeiro, mantendo contatos e trocas de correspondência apenas com as lideranças do Nordeste. A notícia da proclamação do príncipe Pedro de Alcântara, herdeiro da casa de Bragança, trouxe muita desconfiança, embora o gesto tenha aguçado o desejo de repetir o feito na progressista colônia ao norte. Um jornal editado por Patroni, o primeiro a circular na Amazônia, “O Paraense”, pregou o corte dos laços com Portugal, mas apenas por alguns meses de 1822, sendo fechado, e seu proprietário, perseguido. Em março de 1823, o cônego Batista Campos conseguiu eleger, para a legislatura de Belém, uma maioria de brasileiros, mas os portugueses anularam as eleições. Em abril, um levante propondo a adesão ao Império do Brasil foi esmagado, e seus participantes deportados para Lisboa, onde foram condenados à morte. Finalmente, em agosto, aportou em Belém o brigue Maranhão, comandado por John Pascoe Greenfell, mercenário inglês sob o comando do almirante Cochrane e a soldo do Império do Brasil. Greenfell, que estava com 21 anos, inaugurou o modelo de relação que o governo central do Brasil teria com a Amazônia a partir de então: o blefe. No dia 11 de agosto, depois de espalhar o boato de que a esquadra de Cochrane estava fundeada nas proximidades, Greenfell enviou um ultimato aos governantes portugueses, para que depusessem as armas ou aderissem ao Império do Brasil. Caso recusassem, Belém sofreria um bombardeio naval.

A maioria dos portugueses e quase toda a burocracia colonial aderiram incondicionalmente, e os nacionalistas se viram alijados do poder. Da mesma forma que no recôncavo baiano e em Pernambuco, a administração de José Bonifácio preferia apostar nas lideranças conservadoras, geralmente portugueses de fortuna adquirida na colônia, do que apoiar líderes brasileiros não exatamente afinados com o espírito da casa de Bragança. De 1823 para frente, o que se viu foi o constante embate entre as correntes conservadoras e nacionalistas, os primeiros com o Partido Caramuru e os segundos com a Sociedade Filantrópica. As refregas políticas invariavelmente acabavam em choques armados.

Aqui, é pertinente uma pergunta. Por que a violência tornou-se a única via possível? Onde estava o espírito conciliador ciosamente cultivado pelas nossas elites? A melhor explicação está na profunda diferença entre as duas colônias, tão distintas que eram em estratégias, na cultura, na economia e até na visão de mundo.

A verdadeira fundação do Estado do Grão Pará e Maranhão se deu em 31 de julho de 1751, com a assinatura do decreto pelo Marquês de Pombal. Para governar o novo estado, Pombal nomeou seu irmão Xavier de Mendonça Furtado, que imediatamente pôs em prática uma série de medidas, como a criação da capitania do Rio Negro, a criação do Diretório dos Índios, a transformação das povoações e aldeias indígenas em vilas portuguesas, a liberdade legal concedida aos índios e a cassação dos poderes temporais da Igreja Católica. A economia da primeira fase colônia, que era baseada na extração de drogas do sertão – extrativismo primário –, transformou-se radicalmente, fundamentando-se na produção manufaturada e na agricultura de pequenas propriedades. A exportação e o consumo local de produtos de borracha alimentava uma indústria florescente, que produzia artigos de fama mundial, como sapatos e galochas, capas impermeáveis, molas e instrumentos cirúrgicos. Baseava-se também numa vigorosa indústria naval, que chegou a produzir mais da metade da frota portuguesa no final do século XVIII. Esta indústria localizava-se em cidades das imediações de Belém, onde ainda estão presentes os sinais da arte portuguesa de construir embarcações. Os mais belos barcos regionais, que lembram os bergantins do século XVIII, continuam a ser fabricados nas tradicionais cidades paraenses e continuam a singrar os rios do grande vale. Quanto à agricultura, a política de pequenas propriedades permitiu a introdução de culturas como as do algodão, anil, tabaco e café, além do rápido crescimento da economia do cacau no Baixo Amazonas. O programa agrícola foi reforçado pela vinda de colonos portugueses, culminando com a chegada das famílias oriundas da antiga província de Mazagão. Em 1772, com a expansão e o crescimento dos territórios do oeste, o estado passou a se chamar Grão-Pará e Rio Negro.

O Grão-Pará desfrutava de uma cultura urbana bastante desenvolvida, com uma capital de belo traçado e edifícios requintados, onde se podia encontrar exemplares pioneiros da arquitetura neoclássica, obra de Antônio José Landi, o arquiteto de Bolonha contratado por Lisboa para embelezar a cidade de Belém e fazer da miserável aldeia de Barcelos a sede da capitania do Rio Negro, uma cidade habitável. A obra de Landi, um sopro de ar inovador numa época exclusivamente barroca, ainda não foi devidamente avaliada. A vida social de Belém era bastante austera, mas as noites tropicais eram inundadas de música e canto, que vinham das casas particulares e das bandas a animar as praças repletas de transeuntes. É desse período a obra de Tenreiro Aranha, o primeiro escritor de língua portuguesa nativo da região, que também produziu uma interessante obra dramática, que ele mesmo encenou em concorridas e controvertidas produções. Aliás, o teatro era uma das paixões do povo de Belém, e foi ali, naquela cidade, que algumas das ousadas peças de Gabriel Malagrida, missionário jesuíta, naturalista e místico espanhol que teria a duvidosa honra de ser o último herege a ser queimado na fogueira pela Inquisição, foram encenadas e vistas pela primeira e única vez. A Casa de Ópera de Belém é de 1775, e foi no Grão-Pará e Rio Negro que a profissão de ator, por decreto oficial, deixou de ser considerada infame, seguindo uma ordenação de 1771, outorgada pelo rei Dom José I, de Portugal. Vale observar que a Casa de Ópera funcionou até 1812, entrando em decadência depois dos fastos de 1823.

Uma das originalidades da sociedade nortista era o papel da mulher. Num olhar superficial, a condição da mulher não parecia distinta do que sucedia em outras partes, mesmo daquelas sociedades que se consideravam mais civilizadas. No entanto, algo de particular existia ali, como a intensa participação das mulheres na política, nos anos que ensanguentaram o Grão-Pará. No dia 16 de abril de 1833, foi fundada em Belém uma organização secreta feminina como nunca houve em outras partes do Brasil. Era a
Sociedade das Novas Amazonas, que tinha como finalidade a formação de mulheres com virtudes políticas capazes de dar provas de amor à pátria e adesão à liberdade. Inspiradas nas lendárias amazonas guerreiras, as Iluminadas, com se intitulavam, chegaram a somar mais de mil seguidoras e foram muito influentes. Assim, homens como Tenreiro Aranha, Patroni e o cônego Batista Campos não surgiram do nada, sendo caudatários de uma civilização própria, em que a tradição cultural ibérica aparecia recriada não apenas pelo mundo amazônico, mas absorvia fontes inesperadas, como os ideais da Revolução Francesa e a filosofia iluminista.

Deu-se que, em 1808, em represália à invasão francesa em Portugal, os nortistas reuniram uma armada e invadiram a Guiana Francesa. Em Caiena funcionava uma delegacia da revolução, dedicada a traduzir e editar, em espanhol e português, obras de agitação e textos filosóficos que eram infiltrados nos países vizinhos. As administrações coloniais espanholas e portuguesas temiam tanto esse trabalho que, em Belém, se alguém fosse flagrado portando um desses textos, como, por exemplo, um exemplar da Declaração dos Direitos do Homem, era preso e sumariamente fuzilado. Por ironia histórica, é naquele antro de subversão, no exato covil onde se destilavam esses “mortíferos venenos”, que os nortistas iam se meter e viver durante anos de ocupação, até a assinatura do Tratado de Fontainebleau, em 1814 – anos de convívio promíscuo que deram a eles, oficiais e jovens burocratas, acesso a verdadeiras bibliotecas revolucionárias que foram sendo pouco a pouco transferidas para Belém, transportadas nos navios de guerra sob a proteção daqueles que deveriam confiscá-las.

Talvez por tudo isso, os intelectuais do Grão-Pará tivessem consciência de que não havia salvação fora da adesão ao Império do Brasil. Se continuassem portugueses, numa tentativa de fazer um Canadá Português, sofreriam um retrocesso. A administração do ultramar nunca mais seria como antes, nunca mais Portugal teria um Pombal, e os portugueses estavam ficando ressentidos e revanchistas como consequência de tantos reveses: invasão francesa e transferência da Corte para o Rio de Janeiro, recessão econômica e a Independência do Brasil. Havia o risco, também, de passarem para outras mãos, se tornarem colônia inglesa, ou francesa… Imaginem uma imensa Jamaica equatorial encravada ao norte, fazendo par com a Guiana Francesa.

Homens como o cônego Batista Campos sabiam do risco de aderir a um regime monárquico e, ainda por cima, com um Imperador português de temperamento brusco no comando, quando o ideal era que o regime fosse republicano. Além do mais, estavam se juntando a um país que tinha uma economia completamente diferente, em certos aspectos mais atrasada. A questão é que a economia do Grão-Pará tinha uma participação alta de mão de obra assalariada, de gente livre. Os escravos eram minoria, sem peso algum na produção de bens. Já a economia do Império do Brasil não podia funcionar sem escravos. No Grão-Pará, a cultura não estava marcada pela relação senhor e escravo, pela sordidez do cativeiro, de tal forma que a maioria do povo sequer tinha entrado na cadeia produtiva, trabalhando para seu próprio sustento. E nem precisavam se esforçar muito, tamanha a exuberância da natureza. Já no Brasil não havia massa de gente que não fosse escrava, e todos trabalhavam para algum fazendeiro, porque o sistema era de latifúndios, tal qual no Sul dos Estados Unidos, comandados por grandes senhores, gente poderosa que mandava mais que El Rei em seus domínios. No Brasil, a indústria era pequena, medíocre e desprezível – produção de estearina, olarias, marcenarias –, e se dizia até que não era vocação do país. No Grão-Pará, nas pequenas fazendas, todos iam juntos lavrar a terra, os proprietários e os empregados, coisa impensável no Brasil. Das colônias portuguesas, o Grão-Pará era a única a possuir uma pauta de exportações onde os produtos manufaturados suplantavam a matéria-prima.

Em compensação, a colônia chamada Brasil dependia amplamente da agricultura e da agroindústria, tendo, portanto, uma forte proporção de mão de obra escrava. Em meados do século XVIII, tanto o Grão-Pará quanto o Brasil conseguiram criar uma forte classe de comerciantes, bastante ligados à importação e exportação, senhores de grandes fortunas e bastantes autônomos em relação à metrópole. Mas, enquanto os comerciantes do Rio de Janeiro deliberadamente optaram pela agricultura de trabalho intensivo, como o café, baseando-se no regime da escravidão, os empresários do Grão-Pará intensificaram seus investimentos na indústria naval e nas primeiras fábricas de beneficiamento de produtos extrativos, especialmente o tabaco e a castanha-do-pará. O que as lideranças nortistas queriam, na falta de outra opção, era ocupar o espaço político pós-colonial, fazer com que os líderes brasileiros tivessem neles os seus interlocutores, quando chegasse a hora.

Não foi isso que aconteceu. A anexação da Amazônia acabou sendo pela força, por que exigia um projeto de nação e uma visão de política continental, coisa que nem os nortistas, nem os brasileiros tinham. E de 1823 a 1840, o que se viu foi um processo de provocação deliberada por parte do Rio de Janeiro e a fúria crescente da parte do Grão-Pará. O resultado foi uma severa convulsão social e a consequente repressão.

O mais importante historiador do período, Domingos Antonio Rayol, Barão de Guajará, resumiu as responsabilidades dos homens de seu tempo e demonstrou que os protagonistas estavam, ao “
se digladiarem em lutas fratricidas, tratando cada um de desmoralizar por sua vez o princípio de autoridade, arrastando as massas populares aos movimentos tumultuários, apagando nelas a noção dos deveres sociais, cavando o abismo em que mais tarde uns e outros se precipitaram, com irreparável dano e ruína geral da Província”.

Entre 1823 e 1840, a região norte sofreu a intervenção política e militar do Império do Brasil, perdeu suas lideranças históricas e deixou de ser uma administração colonial autônoma para se transformar numa fronteira econômica. A derrota do Grão-Pará e sua destruição pelo Império do Brasil, se me permitem a comparação um tanto audaciosa, foi de certo modo como se o Sul tivesse vencido a Guerra de Secessão nos Estados Unidos. Dezessete anos de guerra civil levaram a Amazônia a perder 40% dos seus habitantes. A anexação destruiu todos os focos de prosperidade. Entre os políticos do Império do Brasil e as lideranças nortistas, nenhum diálogo foi possível. E o vento levou o Grão-Pará.

O Brasil é fruto de paradoxos históricos como este que acabamos de resumir. Evidentemente que paradoxos não são exclusivos de nossa história, mas o problema é que a eles se colam os efeitos de uma perversa dicotomia, como se o país se configurasse por um eterno embate entre áreas endemicamente pobres e áreas historicamente ricas, entre regiões intrinsecamente modernas e outras atavicamente arcaicas. Neste falso pressuposto, o Norte e o Nordeste representam o arcaico, o atraso, um fardo que o Centro-Sul moderno precisa financiar, empurrar e suportar. Por tudo que vimos até agora, essa oposição arcaísmo/modernidade não estaria sendo vista do avesso?

Certamente, no caso da Amazônia, o rótulo de região atrasada tem sido foco de desastres. É aqui que reside o problema. Especialmente porque, se há uma região brasileira que melhor conheça a experiência da modernidade, esta é a Amazônia, como prova sua própria história. Nos 500 anos de presença da cultura europeia, experimentou os métodos mais modernos de exploração. Cada uma das fases da história regional mostra a modernidade das experiências que foram se sucedendo: agricultura capitalista de pequenos proprietários em 1760 com o Marquês de Pombal, economia extrativista exportadora em 1890 com a borracha, e estrutura industrial eletroeletrônica em 1970 com a Zona Franca de Manaus. Os habitantes da Amazônia, portanto, não se assustam facilmente com problemas de modernidade, o que vem provar que a região é bem mais surpreendente, complexa e senhora de um perfil civilizatório insuspeito pela vã ingenuidade. Não é por outro motivo que a Amazônia continua um conveniente mistério para os brasileiros. Portanto, vamos com calma ao aplicar esses rótulos.

Experiências de modernidade já foram feitas na região. Mas os tecnocratas e o governo central foram incapazes de favorecer a aceitação de experiências locais no processo de integrarão econômica, porque de uma área atrasada nada se espera.

Isso aparece claramente com o projeto agropecuário da ditadura militar. O estímulo para a criação de gado tornou-se uma catástrofe para a Amazônia porque o modelo agropecuário foi imposto a um estado, o Acre, onde não havia tradição de criação de gado, e, por causa disso, perdeu sua cobertura florestal tradicional. Enquanto os tecnocratas de Brasília mandavam boi para os sertões do Acre, os nativos se perguntavam: por que não usaram as zonas tradicionais de pasto? Sim, pastos naturais, como os existentes no Baixo Amazonas, na região de Óbidos, Alemquer e Oriximiná, ou em Roraima, cuja superfície é superior à de todos os pastos europeus reunidos. Esse é exatamente um caso em que a integrarão econômica foi feita em detrimento da história e da tradição locais. E, no entanto, a arrogância não ficou apenas com os tecnocratas do governo militar: um contingente imenso de salvadores da pobre e atrasada Amazônia estabeleceu suas agendas baseadas em conclusões apressadas.

Por exemplo, as propostas de neoextrativismo de Chico Mendes tomadas como solução universal para a questão amazônica. Para começo de conversa, elas se destinavam apenas a dois ou três municípios do Acre. Chico Mendes era de Xapuri, quase na fronteira com a Bolívia. Em Cruzeiro do Sul, alguns quilômetros para o norte, não serviam mais. Era, portanto, absurdo concentrar-se nelas e apresentá-las como soluções de uso geral, como fizeram alguns ecologistas e certos movimentos de defesa da região. Nos parâmetros políticos de 1985, quando a ideia foi gerada, a luta por tais reservas extrativistas estava perfeitamente explicada. No entanto, esse conceito foi muito alargado desde então, a ponto de se tornar uma das mais usadas medidas “de preservação” do governo Sarney e, em termos políticos amplos, uma espécie de proposta geral para a região, pois o “futuro” da Amazônia estaria em sua total regressão à economia extrativista.

O extrativismo foi o subsistema econômico engendrado pelo chamado ciclo da borracha. Seu impacto acabou por imprimir a face social da Amazônia, criando uma peculiar cultura, determinando sua estrutura de classes e, até mesmo, as formas de ocupação do espaço geográfico. Estou convencido de que Chico Mendes, como todo nativo da região, conhecia muito bem o caráter da velha sociedade extrativista, especialmente o caráter dos proprietários extrativistas, incapazes de enfrentar o modelo agropecuário e defender suas propriedades. As reservas extrativistas foram uma brilhante solução tática para preencher esse vazio político. Era uma forma de mobilizar os seringueiros para a defesa da propriedade extrativista, já que os proprietários estavam enfraquecidos, postos à margem pelo modelo econômico agropecuário e especulador.

Uma economia como esta, que sequer formou uma oligarquia firme em seus propósitos, não podia servir de modelo de restauração salvadora. Os proprietários extrativistas foram saindo de cena, consumindo o melhor de sua energia e capacidade criadora no exercício de sobreviver a qualquer custo. Durante o tempo em que estiveram parasitando a natureza da região, os extrativistas relacionaram-se com os grupos hegemônicos do país através de uma lamentável sublimação política. Fingiam que tinham o poder, encenavam seus desejos e, no final, acabavam por conciliar, seguindo a reboque com a sensação do dever cumprido.

Chico Mendes não estava fazendo nenhum tipo de apologia restauradora de uma página negra da história regional ao propor a luta pela transformação dos seringais acreanos em reservas. Ele sabia que tais reservas eram soluções muito localizadas, que não respondiam sequer ao problema do Acre, quanto mais de uma área continental e diversificada como a Amazônia brasileira. Falar, portanto, que o destino da Amazônia era a regressão ao extrativismo, mesmo a um extrativismo idílico, socializado e místico, era mais uma vez atropelar a própria Amazônia. De qualquer modo, vamos supor que fosse possível fazer da Amazônia uma imensa reserva extrativista, um enorme playground para todos os diversos pirados da Terra. Bem, este é o sonho nada pirado da poderosa indústria farmacêutica internacional, dos grupos econômicos que trabalham com a biotecnologia, com a engenharia genética e a etnobiologia. Assim, mais uma vez deseja-se que a Amazônia ofereça o que tem, mas que fique em seu lugar, como território primitivo, de gente primitiva, que não deve jamais ter acesso a essas tecnologias e ao controle econômico de seus produtos.

O certo é que, se o extrativismo na Amazônia não está morto, deve ser definitivamente erradicado por qualquer plano que respeite o processo histórico e a vontade regional. Mesmo porque a Amazônia não deve ser reserva de nada, nem celeiro, nem estoque genético ou espaço do rústico para deleite dos turistas pós-industriais.

Infelizmente, o modelo econômico brasileiro insiste em destruir riquezas que sequer foram computadas, movido por puro imediatismo econômico. Mas não se deve agravar mais a região, impondo-se soluções aparentemente ditadas pelo espírito da solidariedade. Especialmente porque, contra os abusos, é possível resistir, mas não há nada que se possa fazer contra a solidariedade.

Se o Império do Brasil não tivesse precisado se haver com o Grão-Pará, ou, como disse José Honório Rodrigues, se não tivesse passado o tempo inteiro reprimindo revoltas populares, podemos estar certos de que o processo de formação da sociedade brasileira teria chegado a outro resultado. Na realidade, o Grão-Pará foi reinventado em Amazônia pelo Império do Brasil, que propôs para a região derrotada uma nova e conveniente imagem, que ainda não se ajustou totalmente e, às vezes, causa desconforto. Os nativos da Amazônia sempre se espantam ao ver que, talvez para melhor vendê-la e explorá-la, ainda apresentam sua região como habitada essencialmente por tribos indígenas, quando existem há muito tempo cidades, uma verdadeira vida urbana, e uma população culta que teceu laços estreitos com o mundo desde o século XIX. Aliás, nisso residem as maiores possibilidades de resistência e de sobrevivência da região. Com efeito, os povos indígenas da Amazônia há muito se conscientizaram de que nada conseguirão se não se apoiarem nessa população urbana, que é única e que se expressa nas eleições e exerce pressão sobre a cena política. É pela participação política dessa Amazônia urbana, reforçando o jogo das forças políticas avançadas na construção da democracia, que o problema da própria exploração econômica poderá encontrar uma solução. Portanto, é preciso reforçar as estruturas políticas regionais. A Amazônia conta uma população de 20 milhões de pessoas e com nove milhões de eleitores, o que não é pouca coisa.

Embora o Brasil se orgulhe de ter a Amazônia em seu território, a anexação da região não conseguiu aniquilar suas peculiaridades. Continua havendo uma cozinha, uma literatura, uma música, uma cultura da Amazônia – que faz parte da diversidade da nação brasileira e é parte constitutiva da identidade nacional. A questão da exploração da Amazônia pode esclarecer com proveito o atual projeto de modernidade do Brasil, pois a tragédia da Amazônia é como a realidade das favelas, a má distribuição de renda e a desigualdade social. Tudo é decorrência menos da pobreza de certas regiões, que obriga seus moradores a emigrar, do que das opções políticas perenes dos donos do Império do Brasil. Se os resultados dessa caricatura de modernidade é o contraste quase farsesco de país do carnaval e das chacinas de crianças, das mulatas e do turismo sexual, das praias ensolaradas e dos desmatamentos, a culpa não pode recair sobre os supostamente atrasados, nem sobre os pobres e os excluídos.

Não é de se estranhar que, em mais de um século de existência, a famosa revista inglesa de humor
Punch jamais tenha se dignado a falar do Brasil. Somente o tremendo alarido em torno dos problemas ambientais na região amazônica foi capaz de atrair a atenção desse bastião do sarcasmo britânico. Nesta única citação brasileira, uma espécie de editorial deliciosamente desabusado, a revista entretia-se com o cinismo dos ambientalistas europeus e norte-americanos por finalmente terem encontrado o Brasil, bizarro país tropical em acelerado processo de autodestruição, mestiço e pobre, um perfeito substituto em termos de saco de pancadas para o Japão, o país que mais sistematicamente tem agredido o meio ambiente, mas que, por ser rico e tecnologicamente avançado, não pode ficar na alça de mira dos bem-pensantes.

O texto de
Punch é mais que um sintoma; é um claro reflexo do grande fenômeno promocional em que se transformou a Amazônia para a hipocrisia do ecologismo. Os agressivos efeitos de um modelo econômico imposto à Amazônia, com resultados desastrosos especialmente para as populações tradicionais, ganharam sons exacerbados nos últimos anos, produzindo uma multiplicidade de vozes dissonantes, de denúncias exageradas, de ameaças, de proposições absurdas, sempre envergando o escudo da solidariedade. Esse irritante alarido somente veio obscurecer ainda mais a questão, distanciando-se das verdadeiras respostas.

Na versão brasileira de “…E o Vento Levou”, já se disse que foi como se os confederados tivessem derrotado os nortistas. Os líderes do Grão-Pará foram presos, alguns perderam a vida, e outros sofreram encarceramento por muitos anos. Se os confederados tivessem vencido a Guerra de Secessão, os Estados Unidos não seriam muito diferentes do Brasil de hoje. A libertação dos escravos provavelmente teria ocorrido quase que simultaneamente ao 13 de maio, e um Martin Luther King jamais teria existido. Sua história de continuidade democrática e respeito pelo estado de direito teria sido entrecortada por golpes militares e longos governos autoritários de caudilhos providenciais. Mas é arriscado, embora fascinante, avançar nesse tipo de especulação. Sem querer abusar da paciência de ninguém, vale a pena imaginar como seria a nossa Scarlett O’Hara e o nosso Rhett Butler. Não é necessário muita criatividade, confesso. Com tanta reserva de coragem e tão poucas virtudes, Scarlett certamente seria uma forte liderança da UDR. Quanto a Rhett, bem, ele era um homem realista e, assim, estaria no PFL. Porém, seu cinismo cairia como uma luva para um economista da escola monetarista. Com PhD em Chicago, é claro.


Márcio Souza é romancista, autor de Galvez, Imperador do Acre (1976), Mad Maria (1980) e Breve História da Amazônia (1994). Atualmente, preside o Conselho Municipal de Cultura de Manaus. 


Originalmente publicado na edição Terra
Assine e receba a revista Amarello em casa
#Terra: Especial 10 anosArteArtes VisuaisDesignModa

Que terreiro é esse?

por Márcio Bulk

Fotos de Juliana Rocha e Bruno Machado

A primeira vez que vi Pena Branca e Xavantinho foi em um programa da TV Cultura, o Bem Brasil, no início dos anos 90. Eu devia estar com uns 23, 24 anos. Não fazia ideia de quem se tratava, mas fiquei, no mesmo instante, hipnotizado pela imagem daqueles dois negros, de branco, apresentando um repertório quase desconhecido para mim, mas que me remetia a um mundo absurdamente amoroso e acre, tomado pelos grandes sertões.

Anos se passaram e, enquanto escrevia as letras de Tramundo, espetáculo inspirado na obra de Guimarães Rosa, tive a oportunidade de entrar em contato com o álbum de estreia da dupla, Velha Morada (WEA, 1981). Um trabalho formidável, carregado de um sincretismo capaz de unir o cancioneiro caipira à religiosidade afro-brasileira. “Que terreiro é esse?”, décima faixa do álbum, composição do próprio Xavantinho, acabou se tornando uma espécie de guia afetivo para a minha pesquisa, uma toada que trazia em si “feitiço e pagode”.

Inexplicavelmente, quando me encontrei com Rogério, Juliana e Bruno para discutirmos sobre este ensaio, deixei de lado essa referência, focando mais no universo roseano e em alguns temas que o espetáculo aborda, como ancestralidade, intolerância e desculturação. Lembro também de ter levado uma fala de Rosa: “O sertão está em toda parte, o sertão está dentro da gente. Levo o sertão dentro de mim e o mundo no qual vivo é também o sertão”. Paralelamente a essas discussões, reafirmei que tanto eu quanto todos os integrantes do projeto — músicos, arranjadores etc. — aceitaríamos de bom grado sermos seus cavalos, incorporando, por inteiro, as ideias desenvolvidas pelo trio.

Apesar de estar presente em boa parte desse processo, apenas ao receber as primeiras fotos é que notei o quanto estas imagens dialogavam com o universo de Pena Branca e Xavantinho: um sertão impregnado de fé, onde se podia esbarrar com ciganos; egunguns; indianos da Linha do Oriente; Virgem Maria Deodorina da Fé e seu oratório; Antônio Conselheiro paramentado com os cornos de Iansã; Maria Bonita enlaçada à cabaça das Iá Mi Oxorongá; D. Sebastião, o Adormecido, nas mãos de Ikú, a morte; olhos de Santa Luzia estampando o vestido da Yabá. Negros, brancos e mestiços formando uma (en) cruza que, longe de qualquer coesão, assumem e revelam os conflitos e assombros de um sertão quimérico. Ou, como bem entoava a dupla de pretos velhos, um sertão onde “o céu mistura com a terra/ E o mundo se acaba em guerra/ E a viola não sai dos meus braços”.


Originalmente publicado na edição Terra

Assine e receba a revista Amarello em casa
#Terra: Especial 10 anosCulturaSociedade

Terra à vista?

por Juliana de Albuquerque

Todas as vezes em que me preparo para visitar o Recife, angustiam-me as mudanças que encontrarei por todos os lados, a começar pelas “farmácias vinte e quatro horas” que se multiplicam pelos bairros residenciais, desfigurando as fachadas das casas: na mesma estética do salvacionismo mercantil das igrejas neopentecostais.

Isso tudo faz-me lembrar de uma entrevista de Tom Jobim ao programa Roda Viva, ocasião em que o maestro Júlio Medaglia perguntou a ele se suas músicas de trinta anos atrás poderiam ter sido compostas no Rio de Janeiro da década de noventa, já com a cidade assolada pela violência e escândalos de corrupção a frustrar a população que mantinha um estilo de vida que, durante muito tempo, parecia estar acima do bem e do mal.

Sem dissimular melancolia, entre uma e outra baforada, como a convidar os circunstantes a sorver da deliciosa fragrância amadeirada do charuto, Jobim protestou: “O que acontece, por exemplo, comigo, é que o Rio que eu conheci não existe mais”.

Em seguida, em meio a uma troca de reminiscências entre os músicos, a fazerem troça da vida contemporânea – com todos encerrados em cubículos com vista para o paredão de concreto dos empreendimentos imobiliários, como se, para além dos condomínios, existisse apenas uma farmácia –, a jornalista Rosângela Petta tomou da palavra: “Tom, em relação a esse cenário, você sente saudades ou sente indignação ao ver o Rio desse jeito?”

Ele acertadamente retrucou em sotaque marcadamente carioca: “Não adianta indignação. Quer dizer, todo esse período em que nós ficarmos indignados já está mais ou menos desfeito!”

Por fim, tal um oráculo, ele recitou os misteriosos versos elegíacos do poeta Carlos Drummond de Andrade:

“(…) eis que assisto
a meu desmonte palmo a palmo e já não me aflijo
de me tornar planície em que já pisam
servos e bois e militares a serviço
da sombra, e uma criança
que o tempo novo me anuncia e nega.”

Pois bem, todos esses anos fora do Brasil ensinaram-me que viver não passa de um longo processo de despedida, no qual somos intimados a confrontar o pânico de reconhecer a lenta e inevitável ruína do mundo ao qual pertencemos. Não sei quando ou como tal sentimento instalou-se nos corações de Tom Jobim e Carlos Drummond de Andrade. Porém, desde cedo, carrego a certeza de que jamais poderemos volver o estado natural das coisas.

Há quem não suporte esta marcha, ao exemplo do escritor Stefan Zweig, que optou por retirar-se da vida ao ver-se diante da desaparição de um ideal de civilização diante da guerra. Assim, ao escrever a autobiografia O Mundo de Ontem, ele desabafa: “Fuja, refugie-se na sua interioridade mais íntima, no seu trabalho, naquilo em que você é apenas o seu eu a respirar, em que você não é cidadão, não é objeto desse jogo infernal; onde apenas o pouco de razão que lhe resta pode ser sensato em um mundo enlouquecido”.

Outros conseguem administrar as próprias perdas e seguem adiante, auxiliados por um elemento primordial capaz de amortecer o impacto dos conflitos e de lhes assegurar uma sensação de continuidade. Para a filósofa Hannah Arendt, tal elemento era a nossa primeira língua. Assim, prestes a lançar-se ao exílio, ela combate a insistência do amigo Karl Jaspers para que não se precipite em abandonar sua própria terra: “Para mim a Alemanha é a língua materna, a filosofia e a poesia. Eu posso e devo defender tudo isso”.

Compartilho dessa ideia de que a língua pátria seja a nossa primeira morada, a nos permitir refazer os nossos laços com o mundo, não importa onde estivermos. Isto posto, soa-me falso anunciar aos meus amigos na Irlanda que estou me preparando para visitar meu torrão natal.

Ora, a única terra que a mim cabe nesta vida está a mover-se sob os meus pés como areia movediça. Não é que o Recife tenha deixado de existir de uma hora para outra, como se a cidade houvesse sido suprimida pelas farmácias! Deste modo, cheguei à conclusão de que minha terra se evidencia quando eu estou em casa: na minha língua.

Exemplo disto é o que eu sinto todas as vezes em que me expresso em português, na tentativa de compartilhar com meus patrícios um pouco da minha jornada. Nesses momentos, é como se o Recife da minha juventude ressurgisse diante de mim. Por um instante, as casas da minha rua retomam suas feições. Assim, pois, comungo com Fernando Pessoa: “Não tenho sentimento nenhum político ou social.

Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa”.


Juliana de Albuquerque é doutoranda em Literatura e Filosofia alemã pela University College Cork, da Irlanda.


Originalmente publicado na edição Terra

Assine e receba a revista Amarello em casa

#Terra: Especial 10 anosArteArtes Visuais

Matheus Chiaratti e sua terra de referência: Rivane Neuenschwander

por Matheus Chiaratti

(a)casos eróticos [erotic cases] 9, 2014 | Rivane Neuenschwander

Travar a batalha com um trabalho, destrabalhá-lo, correr dele para depois chegar nele; seduzi-lo. Raspar as réstias de luz e invocar as presenças, buscar se proteger corroborando, desenrolar leve o pergaminho. Surrupiar o material para depois amá-lo, conceder e ludibriar. Estou diante da obra que me causa o estupor tremendo; vejo as luzes de cores e o fio abaulado concatenando milagres com outros fios; perduro a palavra na minha boca. Erótico. Engulo a saliva, massageio as paredes internas da bochecha com a língua, ensalivo-me. Um gozaréu imenso se adianta e caminha nas paredes do meu corpo sem força para escapar.

O que é do homem, o bicho não come (Rivane), 2017 – 2018

Travar a batalha com um trabalho. (a)casos eróticos é uma série de bordados de Rivane Neuenschwander que descobri em 2014, quando ainda era assistente de vendas da galeria que representa a artista. Não tinha maneiras de responder a esse atravessamento a não ser produzindo uma obra-licença que não deixa de ser uma homenagem, mas é também – e sobretudo – uma obsessão. Explicitei nele o erótico em falos voadores, trechos de paus e bolas e alguma coisa a mais. Demorou a acontecer; afinal, bordar é uma ação que percorre o tempo a fio, perdura, se prolonga, devaneia. Bordar é também uma penitência, só que deixando rastros.


Originalmente publicado na edição Terra
Assine e receba a revista Amarello em casa
#33InfânciaArteArtes Visuais

Instinto selvagem e simplicidade em Cristina Canale

Detalhe de Mãe e filha (2017)
foto de Uwe Walther

Cristina Canale representa famílias, a alegria de viver das férias, do descanso, do direito ao lazer. Suas padronagens remetem a nomes fundamentais da dimensão decorativista de nosso modernismo, como Athos Bulcão e Paulo Werneck. A vitalidade de Canale e seu imaginário sempre esteve impregnada do instinto selvagem e da simplicidade alegre do sintetismo de Gauguin, dos Nabis, dos fauvistas como Matisse, Derain, Dufy e do Braque tardio.

Para esta revista, selecionamos as cenas de família – que nos lembram a atmosfera burguesa de outra pintora, Mary Cassat, não tanto pela maneira da pincelada, mas pela natureza das cenas representadas, pelo imaginário hedonista mas solitário e cheio de vazios coloridos. Nunca há multidões nas imagens de Cassat e Canale; sempre famílias a brincar em sua intimidade, quase que uma pequena matilha de feras inocentes num paraíso perdido. Somos os animais de Deus. Assim o pobre Franz Marc nos pintou. Crianças flutuam em meio a formas abstratas e, por vezes, se confundem com estas. Parecem almejar voltar a um estado de barro antes do pecado original, antes de serem animadas por Deus, antes de ganharem forma figurativa, quando eram caos e abstração.

Obras:

Detalhe de Mãe e filha, 2007
Técnica mista sobre tela 140x165cm

Detalhe de Família em férias, 2007
Óleo sobre tela 170x260cm

Detalhe de Mergulhadores, 2012
Técnica mista sobre tela 190x240cm

Detalhe de Casamento, 2010
Técnica Mista sobre tela 140x165cm

Fotos: Uwe Walther



#33InfânciaArteMúsica

Conversa Polivox: Juliana Perdigão

Fotos de Ana Rovati

Poesia é canção?

Nem sempre, mas, ao ler um poema, desconfie: pode ser que seja uma canção.

O que pode fazer de um poema uma canção?

Um compositor (risos). Algo que busquei neste trabalho foi que os poemas soassem como canção e não como poemas musicados. Para isso, estabeleci alguns critérios na procura dos poemas – que o poema não fosse muito longo, que eu pudesse trabalhar com repetição, estrofe, refrão. Outra coisa que procurei evitar foram palavras muito complicadas, que não se encontram usualmente em canções. Acho que as únicas um pouco menos corriqueiras presentes no disco são “vicissitudes” (do poemas “Música de manivela”, do Oswald) e “Ígnea” (do poema “Coleção de esquecimentos”, do Arnaldo Antunes, que, como canção, foi batizado de “Torresmo”). Acho que, nesses dois exemplos, as palavras não soam estranhas nas canções. No caso de “Música de manivela”, encontrei uma solução de brincar com o som de “esses” de vicissitudes (um jeito meio Itamar [Assumpção] de cantar com a boca fechada), e rolou legal. Em “Carne ígnea” e “Torresmo” tive o cuidado de pronunciar bem a palavra ao gravar, e passou. Acho que, principalmente, o assunto, a sensação, o ambiente que o poema traz e evoca influencia também o meu desejo de transformá-lo em canção

São Paulo é massa?

Massa demais. Gosto dessa cidade pra valer. Gosto porque tem gente de tudo quanto é lugar; sempre vou a lugares que nunca fui antes, conheço pessoas que nunca vi na vida. Andar pelo centro me liga, me deixa viva, e me assusta às vezes, mas no geral é uma cidade que, se você quiser, sempre vai ter coisa para ver, para fazer. Belo Horizonte é minha cidade. Lá, é um pouco o contrário para mim. A cidade é menor, conheço tudo, é tudo muito familiar. Amo meus amigos de longa data de lá, são como irmãos, me conhecem profundamente. Essa sensação de familiaridade é boa, mas também me deixa mais acomodada. Sinto que São Paulo é uma cidade que me instiga mais a produzir. Aqui, naturalmente, tem mais demanda de trabalho, e as relações são muito pautadas pelo que você faz. Em geral, as pessoas se encontram porque estão trabalhando juntas. Em BH, pelo menos para mim, é o café com bolo na casa da avó do amigo – muita intimidade, menos produtividade.

Como está sendo a recepção do público ao “Folhuda”? O que você tem conseguido fazer para mostrá-lo às pessoas?

Aquela coisa underground de sempre. Na plateia, poucos e bons, amigos, artistas, colegas que admiro e alguns que chegam não sei como. Sinto que, para quem chega, bate. Gostaria que chegasse a mais pessoas, mas não tenho talento nem paciência para esse jogo. Estou com 40 anos e, hoje, acho que conseguir fazer (e viver de) arte nesse Brazyl já é um baita privilégio. Vou seguir fazendo até quando der. E está de bom tamanho.

Quando te liguei hoje, você estava lendo. O que é que você estava lendo e o que é que você gosta de ler?

Na hora que você ligou, era Motus Perpetuo, da Dina Moscovici, mas logo antes tinha lido o prefácio da edição revista e ampliada de A elite do atraso, de Jessé Souza. E antes, ainda, era Elena Ferrante, A Amiga Genial. Gosto de ler, mas sou caótica. Vários ao mesmo tempo. Raro acabar um antes de começar outro. Uma zona.

o ambiente que o poema traz e evoca influencia também o meu desejo de transformá-lo em canção.

Esses livros que você lê entram nas suas canções? Ou nos shows? Como?

A curadoria dos poemas que viraram canções em “Folhuda” foi feita pela minha estante. Então, sim, foram livros que li, que estavam à mão.

Qual artista da canção contemporânea você entrevistaria para a próxima edição da Amarello, caso tivesse espaço?

Adoraria entrevistar a Ana Frango Elétrico.

Artista tem gênero?

Sim, porque é pessoa – a não ser que seja não-binárie ou se identifique como pertencente a outro reino, mineral, declare ser pedra, sei lá.

O que é a autoria feminina?

É quando alguém é mulher e cria alguma coisa. Se não for isso, acho que não existe ou eu não entendo.

Por que o nome do disco “Folhuda”? Para min, vem à cabeça uma coisa gostosa de comer.

É uma brincadeira com a folha, a página de livro. Esse disco foi todo feito a partir de poemas – entre eles, “Anhangabaú”, de Oswald de Andrade, que descreve uma cena no centro de São Paulo:

“Sentados num banco da América folhuda o cowboy e a menina
mas um sujeito de meias brancas
passa depressa
no viaduto de ferro”

E eu gosto do som da palavra. Esse sufixo -uda tem um quê de pecado, uma coisa gostosa de comer.

Você compõe mais em “Folhuda”. Por quê?

Entrei nessa pira de musicar poemas. Começou como um exercício, com os livros da estante de casa. À medida que as canções foram ficando prontas, senti que já tinha um corpo, que podia vir a ser um disco.

Fala sobre seus parceiros no disco.

O Murilo Mendes era meu tio avô. Queria ter conhecido ele. O Arnaldo Antunes, aquele cara do Chacrinha de quando eu tinha 7 anos, ainda me assusto (e me encanto) quando ouço a voz dele no disco. Casei com a Angélica [Freitas], e acho ela muito maravilhosa. Bruna Beber e Fabrício Corsaletti, poetas que admiro e vieram para mim através de Angélica, hoje são amigos queridos. [Paulo] Leminski foi o primeiro desses que li, ainda adolescente – “Distraídos Venceremos”, chapei muito. Lucas Santtana, parça, transudo, cena indie de raiz, sou fã faz tempo. Renato Negrão, meu amigo há mais de vinte anos, sempre me aplicou de um tudo. [Allen] Ginsberg, Sérgio Sampaio, Alzira e [Jorge] Mautner, Chacal, veio tudo com ele. Oswald de Andrade, meu herói.

#Terra: Especial 10 anosArteArtes Visuais

Marcelo Pacheco e sua terra de referência: Picasso e Robert Motherwell

por Marcelo Pacheco

Estudo para bandeira nº4 (2016)

Um dos trabalhos de referência para Estudo para Bandeira n. 4 é o Tocador de Flauta (1962), de Picasso.

Essa tela, que organiza o espaço em duas grandes áreas – uma verde e outra azul, que se encontram numa espécie de horizonte –, deu o espírito para a pintura em que eu estava trabalhando, a princípio pelas cores, mas também pela figura e estrutura compositiva.

Na mesma época, as colagens do começo da carreira do Robert Motherwell, em especial In Ashes With Collage, que combinavam pintura e colagem – com papéis de presente, kraft, tecidos e mapas –, me levaram a experimentar uma linguagem parecida como meio de dar materialidade ao trabalho, criando volumes e formas.

Colei duas mangas de camisa na tela, uma junto à outra, que depois foram encobertas pela pintura dentro da moldura zebrada que eu começava a utilizar.

As mangas de camisa podem remeter aos braços do flautista do Picasso, mas sua disposição faz mais lembrar dois braços abertos. E o uso das cores foi invertido: o azul e o verde ocupando o espaço central da tela, e o preto e branco, originalmente da figura, empregados de maneira a afirmar os limites do quadro, sua superfície e a bidimensionalidade.

A colagem, com a tinta, cria camadas, o que é importante para minha pintura. Já a figuração, que quase não aparece nos meus trabalhos, surgiu nesta tela de forma indireta, com a colagem de um pedaço de roupa. Por meio das características intrínsecas ao objeto ou da forma como ele foi disposto e pintado, esse elemento vertical que faz a passagem entre o chão verde e o céu azul estabeleceu a presença da figura humana.


Originalmente publicado na edição Terra
Assine e receba a revista Amarello em casa
#Terra: Especial 10 anosArteArtes Visuais

Você chegou ao seu destino

por Felipe Cama

fotos de Gui Gomes

A questão do monitoramento é uma realidade que me interessa bastante e me levou a esse trabalho. Se você anda com um smartphone no bolso, diversas empresas sabem onde você está, por onde você anda. E elas analisam essas informações, Big Data, e as vendem. Ao cruzar os dados, sabem que você passa em tal rua no horário do almoço, três vezes por semana. Então você está usando o Waze, por exemplo, e de repente aparece um anúncio do McDonald’s na tela, exatamente porque tem um McDonald’s no seu trajeto e é hora do almoço. Se você dá um like em comida italiana no seu perfil, isso permite que eles cheguem para o dono de um restaurante italiano e ofereçam: “olha, eu tenho mil pessoas que passam por essa rua por dia e que gostam de comida italiana”. Essa minha série de trabalhos aborda a noção do monitoramento e privacidade ou, na verdade, a noção de que há tempos não temos mais essa privacidade.

Por trás disso está a ideia de controle. Controle, observação, surveillance, monitoramento por essas corporações gigantescas – do governo, do Estado, das grandes empresas de telecomunicação.

Para mim, isso se relaciona com a questão da terra, tema desta edição da Amarello. A terra como um espaço comercial, imobiliário, um loteamento das grandes corporações. Quando me foi dito que o tema seria “terra”, eu pensei nisso. Não pensei exatamente no campo, na natureza, mas no espaço que você usa e que já não é mais gratuito.

Além disso, abstração ou figuração surgem como questões a serem pensadas. Algumas pessoas veem figuras diferentes nesses trabalhos, como quem acha desenho em nuvem. Minha filha viu a cabeça de um cavalo em um e uma guitarra em outro. Algumas pessoas dizem que outra pintura parece o mapa da Itália. Enfim, até que ponto é abstração e até que ponto é figuração? O fato é que essas pinturas são feitas através de um processo. Eu documento meus caminhos durante um dia pelo Google Maps. O caminho exato nunca é predeterminado, e a ideia está aí, porque cada vez sai um desenho diferente. As linhas que dividem as cores são o que seria o traço azul dos caminhos no Google Maps, que, quando se cruzam, criam formas geométricas. Trabalhei assim por anos, sem saber qual seria o resultado final. Eu me interessava apenas em marcar o caminho. Depois de arquivar uma infinidade de desenhos, selecionei os que me serviam, os que mais me interessavam plasticamente.

Cada trabalho é um políptico. Neles, cada cor é uma tela diferente que se encaixa uma na outra. Eu retracei esses caminhos num programa chamado Illustrator, e desenvolvi os chassis das telas nesses formatos esquisitos junto ao teleiro. Ao pintar, quis deixar as pinceladas aparentes, marcadas na tela, para justamente contrastar com o digital, fazer um contraponto com o que estava antes só no plano dos pixels, e ter uma referência material da tinta e do gestual. Para mim, é muito importante marcar essa passagem do virtual para o físico.

Eu gosto muito do Sol LeWitt, dos minimalistas americanos. Eles tinham como prática isolar o trabalho da vida. Não chego a isso, estou falando muito da vida aqui, mas algumas práticas deles são interessantes. Essa de você ter um número para o nome das obras – alguns deles chamavam os seus trabalhos de Untitled 1, Untitled 2, Untitled 3. Nessa minha série, o título de cada trabalho também é um número, um código: a data em que eu fiz os caminhos. Ano, mês, dia: 2012 05 12, 2017 01 10.

Sol LeWitt, especificamente, predeterminava como seria cada um dos seus desenhos através de uma regra, um comando a ser obedecido. Desenhar é importante, mas eu não sento e desenho a mão livre. Eu crio rotinas e regras que vão resultar em desenhos. Nesse caso, eu saía de casa, gravava o caminho e, ao retornar, no computador, tinha um desenho. O resultado era um desenho que só no fim do dia eu descobria qual era. Se encontrasse trânsito pesado no caminho e o Waze me mandasse para cá ou para lá, o desenho mudava.

Eu acredito que o trabalho é mais rico quando permite várias leituras, várias abordagens. O nome da série, Você chegou ao seu destino, além de frase final do caminho no Waze, carrega uma dose de ironia. É esse o destino?


Originalmente publicado na edição Terra

Assine e receba a revista Amarello em casa
#Terra: Especial 10 anosCrônicaCulturaLiteratura

Achados e perdidos

por Vanessa Agricola

Lembram daquela historinha, do menino que acha o pinguim, quer dizer, o pinguim toca a campainha da casa do menino e vai entrando, e o menino, sem saber o que fazer com o bicho, leva ele para o Achados e Perdidos?

Esqueceram um guarda-chuva, um chapéu, mas ninguém esqueceu um pinguim, não senhor.

Então o menino construiu um barquinho para levar o pinguim para o Polo Sul. É lá que os pinguins moram, o menino descobriu. E, depois de enfrentar o mar aberto, os dois chegam, e o menino se despede do pinguim, que fica junto com todos os outros pinguins do Polo Sul, e vai embora, sozinho, de volta para casa. Só que, no meio do caminho, ele se dá conta de que o pinguim era seu único amigo. E o pinguim, lá no Polo Sul, junto dos outros pinguins, também sente falta do menino. Então o pinguim e o menino correm para reencontrar um ao outro. O menino chega no Polo Sul e não acha o pinguim. O pinguim vai para o alto mar e não acha o menino. Mas, no final feliz, felizmente, eles se reencontram e seguem juntos, de volta para casa?

Mas o que essa história tem a ver com a Terra?

Depende. Se você se identifica com o menino ou com o pinguim. Os dois não são iguais.

O menino não saiu do seu lugar, foi o pinguim que tocou a campainha. Mas ele foi generoso de ajudar o estranho, e recebê-lo. Emprestando até o seu travesseirinho.

Ele era o menino.

O pinguim era um outsider. Pinguins não são daqui, são lá do Polo Sul. Mas lá no Polo Sul, junto dos outros, ele não se sentia em casa.

Eu era o pinguim.

E você? É um achado ou um perdido?

Ele era um achado.

O menino era um anjo, que abriu a porta para o perdido, e ele tinha um radinho que o pinguim gostou tanto. É bonito quando o menino tenta esconder o radinho em cima do refrigerador – e eu só não falei geladeira porque não ia ser tão bonito quanto foi a cena; ele, finalmente, deixando o pinguim brincar com seu objeto tão querido. Só um anjo faz uma coisa dessas.

Mas eu te digo uma coisa, o pinguim merecia.

No Polo Sul, o pinguim era um coitado, que ninguém nunca viu, afinal são bilhões de pinguins no Polo Sul.

Sete bilhões e meio. Todos iguais.

Todos perdidos.

Mas parece que tem um bilhão e meio querendo ser salvos, e o pinguim certamente era um deles. Dos únicos que sabem que, além do Polo Sul, existe um menino. Um extraterrestre que nunca faria mal a um pinguim, nunca fez.

Eu te amo, pinguim, o menino falou para ele, antes de o pinguim descer do barquinho, de volta para o Polo Sul. O pinguim disse, eu também te amo muito. De fato, foi um abraço que disse tudo isso. E o menino deu para o pinguim o radinho de presente.

Já descobriu quem é você?

Quando você diz que eu sou muito difícil, virando os olhos de lamentação para um, para todos.

Quando a Josy disse que ela deu o apelido do meu filho, Antônio, de Pim.

Eu sei que não é simples.

Eu posso, sim, ser um monstro quando você não sabe respeitar o meu amor pelo meu menino.

Você também é um monstro. E um anjo. E isso é que é complicado.

Todo mundo é um achado e um perdido.


Originalmente publicado na edição Terra

Assine e receba a revista Amarello em casa
#Terra: Especial 10 anosArteArtes VisuaisDesignModa

Karina Olsen e sua terra de referência: Hilma af Klint

por Karina Olsen

Altarbild, #1, grupo X, 1915 | Hilma af Klint

A exposição Mundos Possíveis, da pintora Hilma af Klint, foi muito marcante para mim. Lembro do exato momento em que entrei na sala da Pinacoteca e tive a sensação de tranquilidade e plenitude proporcionadas por suas telas. Eu não conhecia bem seu trabalho, mas a Antroposofia foi um assunto que sempre despertou meu interesse.

Brinco Farol, 2019 | Karina Olsen

Durante a exposição, comecei a observar elementos da natureza, estruturas espirituais e terrenas, formas orgânicas e geométricas, cores – muitas cores –, e fui entrando em contato com meu lado mais espiritual, com que há tempo não me conectava.

Estava com minha mãe, sueca, que traduziu algumas frases dos quadros que não estavam nas legendas, como “o átomo tem a força dentro dele para romper a teimosia da matéria”, e isso deixou a exposição ainda mais especial.

Voltei para casa e tive vontade de passar adiante aquilo que senti. Assim nasceu esta peça da série inspirada na artista.

Este brinco chama-se “Farol”. Através das suas formas, cores, do poder das turmalinas, diamantes e metal, busquei tocar quem o usa da mesma maneira poderosa e delicada que a obra de Klint me tocou.


Originalmente publicado na edição Terra
Assine e receba a revista Amarello em casa
#Terra: Especial 10 anosCulturaSociedade

Editorial: Sempre do outro lado

por Tomás Biagi Carvalho

Certifique-se de estar sempre do outro lado. Não escute aqueles que insistem que você deveria tomar partido, como você sabe, um lado é só um lado. Cultive a dúvida, esse caminho para a liberdade, e seja gentil. A incerteza é dura, mas mais honesta do que acordar com a certeza de tudo. Não é fácil, mas acalma a mente e tranquiliza o coração.

Viajar pelo Brasil me faz resgatar a esperança no país. A pluralidade de sotaques, cores e cheiros. A cordialidade, gentileza e delicadeza das pessoas, inúmeros desconhecidos, que me fazem lembrar a qualidade da nossa matéria-prima humana. Nem tudo está em chamas. Nem tudo é só preto ou só branco.

Falamos muito do contemporâneo, essa palavra transitiva e relacional. Somos contemporâneos de algo ou alguém e é essa interdependência, essa necessidade de ligação, que nos permite estabelecer uma ponte com quem aqui esteve e com quem aqui está.

A natureza é humana, e a natureza humana é revolucionária. Quem está inserido nela está pronto para falar, basta que tenhamos capacidade para escutar, sem criar muros que separem o que é selvagem do que é cultivado.

Minha vida toda estive do outro lado e duvidei. E com isso aprendi que a vista do lado de lá, é muito mais bonita.


Originalmente publicado na edição Terra
Assine e receba a revista Amarello em casa
#33InfânciaArteArtes Visuais

A infância e a arte: território da subversão e da dádiva

por Bianca Coutinho Dias

As filhas do pescador, de Sergio Larraín

A delicada zona de interseção entre infância e arte pode ser entendida como lugar de uma potente experiência onde se aglutinam o jogo, o lúdico, a brincadeira, a dimensão nebulosa da fantasia. O infantil, tomado como uma pulsação que problematiza e dá novas nuances ao humano e à linguagem, se aproxima de propostas artísticas que marcaram o século XX e que continuam incidindo na produção contemporânea.

Desde Van Gogh, passando por Renoir e pelas garatujas de Cy Twombly, até as fotografias de imagens de museus com crianças, que mostram a dimensão da fresta, de um olhar movediço e que não se deixa capturar por obviedades – como nas belíssimas fotografias de Sabine Weiss ou Herb Slodounik – a temática da infância – não como um estado fixo, mas como corpo mutante que leva a uma interrogação constante sobre o visível e o invisível – é constantemente recolocada. Como sujeitos dessas mutações, as crianças transbordam sua própria identidade, criando uma zona de indefinições e de jogos que escapam ao controle adulto e abrem brechas a um espaço próprio.

E essa é a zona para onde arte e infância convergem. Se as vanguardas do século XX desfazem a visão idílica da infância; por outro lado, elas lhe são tributárias. Surrealismo, Dadaísmo e Futurismo, cada uma a seu modo, recuperaram algo da sensibilidade em construção da criança, quer para recriar valores, quer para atingir uma sensibilidade não coagida pela razão, ou, ainda, para acessar regiões de não sentido.

Aqui, podemos evocar as propostas do designer e artista italiano Bruno Munari, que, nos escritos “A arte como ofício”, propõe a abolição da ideia do artista como um deus que cria inutilmente e reinsere a vida junto da arte, a arte junto da vida. Munari revoluciona também a ideia de livro quando o encara como um objeto que precisa encarnar algo de uma escrita. Seus projetos infantis trazem a arte para o centro do exercício de leitura, com materiais, formatos, cortes especiais e acabamentos de sofisticação precisa e agregadora da capacidade infantil de imaginar e se encantar diante do mundo e das coisas.

A artista brasileira Lygia Clark também estabeleceu relações com o imaginário infantil e o jogo, provocando a participação do espectador em trabalhos que incitam a percepção das sensações por meio do contato de objetos com o corpo. Somos chamados ao encontro do infantil, por algo que se desloca e não está fixo nos objetos, que flui entre texturas, pesos e tamanhos distintos, estimulando a interação através de linhas vivas que se transformam em casulos ou por bichos que escapam da concepção tradicional de fazer arte e convidam ao lúdico em mil dobraduras e mundos que podem ser inventados com as mãos. Dos bichos, Lygia Clark passou para materiais mais táteis como isopor, tecidos, sacos com água e penas ou borrachas.

Outra artista que apresenta a ideia de infância como campo de experimentação da linguagem é Rivane Neuenschwander, também brasileira. O projeto “O nome do medo” reflete sua pesquisa e interesse na psicanálise e a tentativa de entender como o medo pode ser traduzido por meio de palavras, desenhos e objetos. Numa série de oficinas, foram criadas capas de vestir, a partir de desenhos feitos por crianças, com a dupla função de abrigar e afugentar o medo. As oficinas iniciaram com uma roda de conversa, acompanhada de uma projeção com referências da arte, como os parangolés de Hélio Oiticica, o manto de Arthur Bispo do Rosário, “O Divisor” de Lygia Pape ou a imagem de Joseph Beuys enfrentando um coiote numa performance de 1974, além de capas usadas em diversas culturas. A proposta da artista encontra ressonância na proposta de Giorgio Agamben, presente no livro “Infância e História”, em que o filósofo italiano pensa a infância não apenas como idade cronológica ou fisiologicamente definida e fechada, mas como uma forma de sensibilidade que atravessa a existência.

Na relação porosa entre infância e arte, as crianças são, então, leitores e participantes críticos que trazem a dimensão do humor e o flerte com o que escapa aos sentidos domesticados. A criança é tomada não como receptáculo dos saberes adultos, mas como agente ativo que propõe o inusitado e a possibilidade da vertigem

Ao abordar a infância, Walter Benjamin trata a criança como uma pessoa inserida na história e na cultura, da qual é também criadora. No ensaio “Brinquedo e Brincadeira”, Benjamin observa o interesse espontâneo que os pequenos têm pelos resíduos dos trabalhos manuais dos adultos, como a costura e a marcenaria.

Com a psicanálise, aconteceu a desnaturalização dos discursos sobre a linguagem e sobre a infância. Para Freud, deve haver sempre uma crítica aguda ao imaginário social que impõe uma noção universal e generalizada sobre as crianças, que as tornam depositárias de todas as angústias dos adultos que as tomam como objetos de satisfação narcísica.

A função da arte e da literatura ditas infantis coloca a questão “como uma sociedade sonha sua infância” e pontua o “lugar que um adulto assume em relação a uma criança” ou à criança que o habita. Em última instância, é sempre do infantil que se trata. Ele está, na vida adulta, naquilo que Freud nomeou como o “umbigo do sonho”, e no que foi denominado por Jacques Lacan como “fantasma fundamental”: o que da experiência infantil persiste como marca no sujeito, ou seja, o que permanece como matriz pelo resto da vida, por toda a vida.

Nesse sentido, a potência de trabalhos como o de Rivane Neuenschwander encetam um importante debate sobre as marcas simbólicas que as crianças recebem dos adultos. A temática do medo no trabalho dessa artista é sempre atravessada pela dimensão social e pela maneira como cada um pode encontrar seu próprio estilo ou, ao menos, viver a própria história de modo singular. As capas são escrituras derivadas do desenhar, rasgar, colar, manchar: gestos que fazem surgir a enunciação velada, função mediadora do fantasma, uma apropriação da criança de seu mal-estar no mundo, transformando-o e refundando o jogo de presença/ausência do objeto.

Se há uma função na arte, esta pode ser a de provocar furos na ilusão da existência da criança universal, trazendo para o centro do debate as soluções provisórias que todos precisamos criar diante do abismo ameaçador inaugural.

Para adensar a temática, a exposição “Marepe: estranhamente comum” (até 28/10/2019 na Estação Pinacoteca, São Paulo): num gesto ético e político, Marepe (nascido na cidade de Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo Baiano) reivindica algo próximo daquilo que Benjamin propõe, ao tratar com aguda sensibilidade a temática do cotidiano da pequena cidade do interior baiano. As crianças são centrais no trabalho de Marepe, que toca o intangível da existência numa atitude tão singela quanto intelectual. Em “Periquitos”, temos uma televisão gigante, em que as cores remetem a um elemento de plástico usado nas televisões preto e branco antigas. O que se vê, através da enorme tela televisiva, são imagens repetidas da infância do próprio artista, vestido de periquito para um desfile de 7 de setembro. Marepe altera o tamanho de filtros de água; apresenta um grande caminhão de madeira, desestabilizando a convenção do tamanho dos brinquedos; extrai o sumo da nuvem nas imagens de “Doce céu de Santo Antônio”, trabalho em que o artista, de maneira mágica, segura um pedaço de algodão doce contra o azul do céu. Em “Camas de vento”, feito com camas dobráveis, o artista coloca asas de pássaros – Marepe usa a infância como ponto fulcral de sua obra: na infância sertaneja, o próprio artista dormia em camas parecidas. Com “camas ao vento” ele evoca a imaginação e a fantasia e, com as mãos, segura o inefável e a experiência do mistério.

A arte permite que o mistério dos primeiros tempos nunca se dissipe. Eis porque a história não pode ser o progresso contínuo da humanidade falante, ao longo de um tempo linear: em sua essência, ela é intervalo, descontinuidade. Aquele que tem a infância como pátria e origem deve prosseguir no seu caminho em direção à infância e na infância, como na belíssima fotografia “As filhas do pescador” de Sergio Larrain: numa aldeia à beira-mar do litoral chileno, duas meninas maltrapilhas brincam, penduradas de cabeça para baixo, em traves de madeira que lá estavam para secar redes de pesca. Capturadas na efemeridade da brincadeira infantil, as meninas atualizam ao infinito o próprio lugar acrobático da existência, a ideia subversiva da brincadeira como dom e dádiva da vida, como bem lembrado por Cecília Meireles: a infância é um “reino que começamos a desconhecer desde que o começamos a abandonar”.

A infância como chamamento é a pátria transcendental da história.


Bianca Coutinho Dias é psicanalista, ensaísta, crítica de arte e autora do livro “Névoa e assobio”. Fez história da arte na Faap e mestrado em estudos contemporâneos das artes na Universidade Federal Fluminense.


Originalmente publicado na edição Infância

Assine e receba a revista Amarello em casa
#33InfânciaCulturaSociedade

A Descoberta da Infância

por Juliana de Albuquerque

Foi no século XVIII, a partir de um engajamento crítico com as ideias propostas por John Locke, que Jean-Jacques Rousseau formulou a noção que hoje possuímos da infância como um estágio privilegiado do desenvolvimento humano: a requerer proteção e cuidados específicos de modo a assegurar o pleno desenvolvimento do indivíduo.

As Meninas, de Diego Velázquez

Segundo Locke, a mente humana seria uma espécie de tábula rasa na qual o conhecimento seria impresso aos poucos, a partir da experiência que os nossos sentidos nos proporcionam. Locke opunha-se à tese das ideias inatas, ou seja, de que o homem já nasceria pronto. Assim, em Some Thoughts Concerning Education, ele escreve que as crianças careceriam de um tipo de instrução condicente com o seu estágio de desenvolvimento, tratando-se elas de “viajantes recém-chegados a um país estranho, do qual nada conhecem.”

Antes de Locke e Rousseau, alguns historiadores asseveram que as crianças eram vistas como adultos em miniatura, a partilhar de algumas responsabilidades semelhantes, a exemplo do trabalho, ainda que reconhecidas como menos versadas sobre a vida.

Ademais, o elevado índice de mortalidade infantil durante a Idade Média e início da Moderna inibia os adultos de formar laços afetivos mais estreitos com as crianças. Sobre esse aspecto, nos seus Ensaios, Michel de Montaigne reporta a perda dos seus filhos durante a mais tenra idade: “Eu perdi dois ou três filhos (…) não sem algum remorso, mas sem muito pesar.”

A ênfase de Locke na educação infantil reflete, portanto, uma gradual mudança das atitudes sociais da época em relação à infância. Assim, Philippe Aries, autor de Centuries of Childhood: A Social History of Family Life, comenta que, embora as sociedades europeias tenham começado a modificar suas concepções da infância a partir do século XIII — como bem demonstra o desenvolvimento da iconografia religiosa da época —, somente no limiar do século XVII os europeus passaram a demonstrar genuíno interesse pela graciosidade dos pequenos e por seus hábitos. Isso foi expresso pela literatura francesa do período, que passou a incorporar em suas criações determinadas expressões do vocabulário infantil, além de relatos entusiasmados sobre o desenvolvimento e o cotidiano das crianças.

No século seguinte, esse interesse pela infância ganhou contornos ainda mais definidos. Em 1762, Rousseau publica Émile, ou De l’éducation: tratado sobre a natureza e a formação do homem, a tecer críticas sobre um modelo de educação que não levava em conta as necessidades inerentes dos pupilos. Assim, adverte-nos o filósofo: “Não se conhece a infância; no caminho das falsas ideias que se têm, quanto mais se anda, mais se fica perdido. Os mais sábios prendem-se ao que aos homens importa saber, sem considerar o que as crianças estão em condições de aprender. Procuram sempre o homem na criança, sem pensar no que ela é antes de ser homem.”

Anos mais tarde, em 1782, a infância volta a ocupar Rousseau em sua autobiografia, a discorrer longamente sobre as experiências que moldaram seu caráter durante os primeiros anos de sua vida. Influenciado por essas leituras, J. W. von Goethe tornou-se o preceptor do filho de sua velha amiga Charlotte von Stein. E, embora a experiência não tenha dado muito certo, a preocupação com a infância ganha um lugar de destaque em obras como Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meisters (Wilhelm Meisters Lehrjahre, 1795).

Nesse mesmo período, surgem os primeiros livros para o público infantil, ao exemplo de manuais de conduta e abecedários, escritos de forma simples, com o objetivo de inaugurar um diálogo entre o pequeno leitor e o pensamento da época. Dentre esses textos, destaco: Neues ABC Buch, welches zugleich eine Anleitung zum Denken für Kinder enthalt. Escrito por Karl Philipp Moritz em 1794, em rimas e com ilustrações, esse compêndio estimula o interesse por alguns preceitos iluministas sobre a autonomia individual, o lugar do homem no mundo e a relação entre a natureza e a cultura.

Aqui, se faz interessante notar como a primeira ilustração do texto retrata um olho humano: Auge, em alemão. Dando-nos a crer que será a partir da visão que o conhecimento da natureza e da realidade humana poderá ser adquirido e organizado. Já as outras cinco primeiras ilustrações representam os demais sentidos: olfato, paladar e tato. Ao elencar as mais variadas experiências que a criança pode acumular em seu cotidiano, o texto provoca a reflexão sobre como os sentidos se completam: “Os olhos abertos enxergam o livro (…) O que eu leio com os olhos, posso escutar com os ouvidos”. Apresentados os sentidos, Moritz introduz a criança ao conhecimento de conceitos abstratos, como o espírito — Geist — que anima o corpo e nos permite refletir sobre as nossas ações: “O pensamento é prazeroso. Eu sempre quero pensar no que faço.”

Ora, por mais aguçados que sejam os nossos sentidos, nem tudo o que desejamos conhecer é-nos imediatamente acessível. Assim, Moritz nos ensina que, para reconhecermos as letras do alfabeto, precisamos treinar a nossa visão. Isto é, expandir os limites da sua aplicação. À medida que exercitamos os sentidos, nosso pensamento também adquire maior complexidade: começamos a questionar tanto o que temos por certo diante dos olhos como o que nos permanece invisível; tal é a vasta topografia da nossa vida interior.

Esse tema veio a ser resgatado pela psicanálise na literatura do início do século XX, a exemplo das reflexões inspiradas pelas obras de Sigmund Freud: responsável por nos chamar a atenção para as características infantis que habitam alguns dos mais insondáveis recantos da mente adulta. Por exemplo, a carência de que padecemos por autoridade, acolhimento e proteção – que se expressa tanto em nosso comportamento sexual como na maneira pela qual nos relacionamos em sociedade. Do que podemos concluir que a gradual descoberta da infância pela nossa cultura traduz-se em uma maior compreensão da própria humanidade.


Originalmente publicado na edição Infância
Assine e receba a revista Amarello em casa
#33InfânciaArteArtes Visuais

Arjan Martins e a sociedade do espetáculo

A criança colonizada muitas vezes é alienada de seu direito ao show de narcisismo. As pinturas de Arjan Martins mostram a dimensão trágica da sociedade do espetáculo. O corpo da criança afogada, que buscava se refugiar nas terras estrangeiras com a família – uma imagem que circulou pelos veículos de imprensa internacionais –, é mesclada às representações de instrumentos de navegação e coroas que simbolizam cinicamente o imperialismo do qual a tradição da pintura evocada por Arjan se origina. Desde Michelangelo, os Juízos finais não são meramente sobre injustiça, vingança e crueldade divinas, mas sobre a beleza das formas pictóricas em meio ao sofrimento.

Na pintura de Arjan, por vezes o horror é sublimado pelo azul de inspiração sistiniana, que salta do fundo da pintura para seduzir e deleitar o espectador. A menina cuja mão está enfiada na boca reaparece em inúmeras pinturas e foi inspirada na fotografia de Sepp Werkmeister, que originalmente não possui ares tenebrosos. Mas, dada a violência da pintura do artista e a inserção dos mapas que remontam ao colonialismo, esse retrato da criança negra passa a afirmar e expressar a crueldade de seu apagamento histórico. Já a criança refugiada morta tem nome –– Aylan ––, mas se torna conhecida só após sua morte trágica, produzida pela aterrorizante Necropolítica. O mundo as fez assim – apagadas, anônimas ou tragicamente célebres. A pintura de Arjan se impõe a tarefa, entre outras, de lutar contra o apagamento do artista negro ao longo da história. As crianças pintadas por Arjan já não podem ser mais salvas; resta a ele assumir a persona de herói negro da pintura para inspirar romanticamente outros artistas para que venham lutar contra o apagamento, a colonização, a mercantilização e/ou a cooptação pelo capital.

Obras de Arjan Martins, incluindo pinturas da série O Estrangeiro

Originalmente publicado na edição Infância

Assine e receba a revista Amarello em casa
#33InfânciaCulturaSociedade

Nós somos o amanhã

por Mãeana

Para falar do tempo, quero falar um pouco da Xuxa, grande símbolo dos nossos anos 80, época pós-liberalismo-sexual-hippie porém megacapitalista e escravocrata, onde a rebarba da liberdade ideológica acabou servindo para mascarar muitos meios de exploração, a começar pelo potente mundo das crianças.

Foi-se o tempo em que uma rainha descia de uma linda nave todos os dias e, no entanto, recebia cartas de amor escritas a mão via Correios. (Hoje, qualquer imbecil pode entregar-lhe virtualmente comentários sobre suas rugas.) Uma de suas canções, dirigida aos seus baixinhos, dizia assim: “nós somos o amanhã num disco voador, invadindo a Terra na tela do computador”, e nós cantávamos ansiosos por um passeio naquela nave. Foi bom ser criança nos anos 80. Sinto que já intuíamos os futuros ciborgues que nos tornaríamos através de telas infinitas e, assim, nos despedíamos diariamente e carinhosamente de todo aquele triste, cafona e aprisionado mundo do passado.

As mudanças de lá para cá podem nos dar um anúncio de que o futuro será praticamente uma alucinação. Se em 30 anos as coisas evoluíram tanto, como estaremos daqui mais 30? Estou particularmente ansiosa pelo fim da era do fio.

Quando o programa da minha TV a cores terminava, as plataformas de contato com aquele mundo mágico que me restavam eram a vitrola, os LPs, os livros e as revistas. Lembro de passar a tarde inteira com apenas um disco nas mãos, virando e revirando capa, contracapa e encarte. Hoje, fica meu filho quietinho num canto com seu iPad, navegando na tela do infinito. O YouTube é realmente infinito. Dom tem apenas 7 anos e, quando nasceu, ainda não existia WhatsApp – veja só, aplicativo que hoje é protagonista da maioria dos contatos que fazemos no nosso dia a dia. Nossos hábitos estão mudando em uma velocidade estonteante. Fica quase inexplicável para uma criança de hoje a precariedade da minha infância. Meu amor, eu vi os computadores nascerem, me lembro da primeira impressora, do primeiro celular, do primeiro CD, das fotografias, dos gravadores, jesus! É muito sinistro. Depois veio DVD, MP3, etc., a perder de vista… Mecanismos cada vez mais livres da matéria e cheios de recursos.

Foi uma boa ideia quando alguém resolveu proibir propagandas direcionadas para as crianças na televisão, mas, antes disso, foi possível formar um império às custas do mercado infantil. Mercado que continua vivo, buscando novos caminhos. E eu, que, no caso, sou artista de filosofia trash-kistch-transcendental, até agradeço. (Qualquer manifestação humana é menos coerente com o sistema do que uma criança surtando no shopping – ou na festa de família –, sim, uma criança revoltada chorando e berrando é a manifestação mais coerente da humanidade hoje, e dá-lhe aplicativos calmantes.)

Só agradeço porque não se constrói império infantil sem arte. Que bom ver trapalhões ou vagabundas conquistando seus lugares no mercado.

Eu ouvia mais os foras que a Xuxa dava quando saía completamente do protocolo do que quando ela dizia “beba Toddynho” ou “compre minha sandalinha”. Se ela precisou se vender para poder incoerentemente e ingenuamente me fazer crer que o mundo pertence às crianças, aos artistas e aos loucos, tudo bem. E tudo bem principalmente porque assim foi, e é preciso perdoar. Vai da qualidade de consciência de cada um. Prova-se hoje cientificamente que a tecnologia das emoções vale mais do que qualquer outra. Uma criança que aprende a sonhar e confiar no próprio coração está pronta pra se salvar e salvar a todos nós.

Se o consumismo se tornou a doença extravagante do Ocidente, e se é isso que alimenta a evolução dos meios, tudo bem, também. É o que temos! Ou pelo menos o que tivemos até agora. Independentemente de qualquer avanço, precisaremos sempre ressignificar o passado. O que faremos a partir de tudo isso?

Vamos rezar para que as cores transmitidas nas telas digam muito mais do que os podres poderes manipuladores por trás delas. Que novas brechas se abram mais e mais. Vamos cuidar uns dos outros. Vamos, sim, rever nossos privilégios. E não vamos abrir mão das nossas potências, mesmo inseridos num sistema doente. Vamos dançar como bailarinas por sobre o capitalismo. Precisamos acreditar na inteligência dos nossos baixinhos – e orar por ela. Hoje, são cores infinitas que os invadem através dos YouTubers, por exemplo (nossa, que maravilhoso saber que o Felipe Neto está do nosso lado).

Odiadores odiarão. E ponto final.

Eu receio pelos influencers, mas não posso freá-los.

Minha mãe não gostava da Xuxa e, no entanto, eu intuía um feminismo louco e um segredo espiritual naquilo tudo. Segredos inimagináveis para um adulto frustrado. Sabe-se lá, tudo é possível.

Consigo ver com olhos de muita positividade o fato de uma mulher que acreditava trilhar o caminho para sua autonomia prestando serviços ao patriarcado (zero julgamentos sobre modelos ou prostitutas – sempre bom lembrar que elas podem estar sendo menos escravas do que uma secretária ou professora, ou dona de casa sustentada pelo marido etc.) e acabou conquistando rios e mares sendo a diva das crianças. Vegana, vê duendes, conversa com os animais e canta mensagens positivas. Isso é uma história linda. Que todos nós possamos nos vingar do machismo, do racismo e da exploração que nos cerca usando o avanço tecnológico e o lixo a favor do que há de melhor em nós.

Mãeana tem formação em dança na escola Angel Vianna. É cantora e artista visual.

Originalmente publicado na edição Infância

Assine e receba a revista Amarello em casa
#33InfânciaArteCinema

Ressignificar o passado: François Truffaut e a infância

por Willian Silveira

Jean-Pierre Léaud como Antoine Doinel em Os Incompreendidos (1959)

Como se não bastasse ter de fazer um bom filme, os desafios de um diretor de cinema são inúmeros. Fiquemos com o mais singelo e insuspeito: saber dirigir uma criança em cena. Os empecilhos não são poucos. O set de filmagem é um espaço frio, rígido, calculado e desinteressante. O nível de tensão é alto. As cenas repetidas até atingir a luz correta, o movimento preciso ou o diálogo desejado são desestimulantes. Após horas de gravação, sobrevive apenas o silêncio e o cansaço. Em um ambiente hostil ao lúdico, harmonizar a dinâmica das câmeras com o espírito infantil é uma lição que ninguém ainda ousou ensinar.

A dificuldade é tão conhecida que, costuma-se dizer, quem consegue dirigir um pequeno pode acumular até outros defeitos que estará desculpado. Pensemos nos grandes diretores. Por via de regra, fizeram – ou têm feito – o possível para retirar dos seus roteiros a necessidade de lidar com dois tipos de personagem: animais e crianças. Afinal, reconhecer um contratempo é virtude apenas menos louvável do que evitá-lo de antemão.

Exceção à regra, François Truffaut destacou-se por ter tematizado a infância e conduzido com aptidão singular as atuações mirins. Nascido em um ambiente familiar fraturado, na Paris de 1930, Truffaut acabou sendo criado pela mãe e pelo padrasto, sem jamais ter conhecido o pai biológico. Tal ausência somou-se à disfuncionalidade de um lar tomado por uma série de problemas – das dificuldades financeiras às relações extraconjugais –, resultando em uma criança revoltada, agressiva e contrária a qualquer forma de autoridade. Não demorou muito para que o perfil de insubmissão encontrasse problemas. Fundador de um dos movimentos mais importantes da história do cinema, a Nouvelle Vague, Truffaut foi um menino indomável, conhecido por pequenos furtos, transgressões e pela expulsão da escola em que estudou, acontecimento que o marcaria profundamente, talvez como um segundo abandono.

O Amor aos 20 Anos, de François Truffaut (1962)

Anos mais tarde, o diretor francês levaria a experiência infantil para o cinema. Se uma das dicas mais difundidas entre os escritores é a orientação “escreva sobre o que você conhece”, Truffaut parece ter seguido o ensinamento literário a sério durante a preparação do seu primeiro longa-metragem, em 1959. Para a estreia na tela grande, o diretor revisitou a infância, aproveitando-se das memórias acerca de duas fragilidades dos adultos que o cercaram – o autoritarismo e a indiferença – na composição do cenário de Os Incompreendidos.

O filme nos apresenta a história de um garoto que cresce sem receber afeto e atenção. Os adultos ao seu redor – invariavelmente indisponíveis – o percebem como um problema, circunstância que cria a atmosfera perfeita para que ele esteja muito próximo de se envolver com o crime. Ironicamente, é a indiferença alheia que marginaliza o protagonista, Antoine Doinel, e o impede cada vez mais de contemplar os anseios da sociedade.

Concebido de maneira particular, Os Incompreendidos marcaria um evento de inúmeros significados na vida de François Truffaut. No campo profissional, foi responsável pela inauguração de uma carreira de prestígio, além de iniciar a famosa parceria com o ator Jean-Pierre Léaud, alter ego que estaria presente em outros cinco filmes do diretor: O Amor aos 20 Anos (1962), Beijos Proibidos (1968), Domicílio Conjugal (1970) e O Amor em Fuga (1979). No campo pessoal, Os Incompreendidos foi o símbolo de uma vitória. Diante da falha dos sistemas – o familiar e o social –, o filme aponta para um horizonte em que não apenas Truffaut é socialmente reconfigurado, colocando-o em uma posição que antes lhe era dita como impossível – a de poder vislumbrar um caminho de sucesso e relevância –, mas também constata o defeituoso olhar dos adultos, contaminado por muita expectativa e cobrança. Doinel e Truffaut representam uma linhagem, por assim dizer, que aponta para a noção contraintuitiva de que os jovens podem muito mais quando não são criados com a finalidade de preencher o vazio de quem os criou. De que pode-se mais quando as crianças não são outra coisa que elas mesmas.

Na cena final, a corrida pela praia em direção ao mar tornou-se icônica na literatura cinematográfica. É certo que Truffaut e muitos de nós acompanhamos os passos de Doinel na busca por ressignificar o passado. Ato que, em muitos casos, significa preencher a memória da infância com aquilo que ela foi, e não com aquilo que deveria ter sido. O menino que tanto desejava ver o mar está mais próximo do que nunca de realizar essa façanha. Mas há uma subversão. A câmera em zoom se aproxima do protagonista, que dispara um olhar perplexo contra o espectador. Quanto mais livre se percebe, mais assustado se apresenta. Por mais que digam o contrário, seremos sempre Antoine Doinel – aquele menino perplexo diante das possibilidades da vida.


Willian Silveira tem formação em Letras, Cinema e Filosofia. É crítico de cinema, colunista de O Estado de S. Paulo, e escreve sobre arte, cultura e sociedade.

Originalmente publicado na edição Infância

Assine e receba a revista Amarello em casa
#33InfânciaArteArtes VisuaisCulturaSociedade

Um e três olhares

por Isabel de Castro

No mês de outubro, celebramos a infância. Dedico este texto a três olhares artísticos sobre a representação de crianças. O olhar de Diego Velázquez (1599-1660), artista barroco espanhol; de Pablo Picasso (1881-1973), também espanhol, porém do período modernista; e de Balthus (1908-2001), pintor francês de origem polonesa, esclarecendo que classificá-lo de moderno seria praticamente uma ofensa, uma vez que o próprio se dizia inclassificável. A escolha de três artistas com características tão díspares não é por acaso, isto porque possibilita evidenciar três facetas do período inicial da vida de todos nós.

Retrato de menina, de Diego Velázquez (1640)

“Retrato de menina” (1640), de Velázquez, é um exemplo da naturalidade que o artista captava de seus retratados. Embora a tela esteja inacabada, a face está pintada com terna dedicação e realismo. Não há informação de quem seja a modelo, e não é necessário saber. O pintor foi um dos expoentes do barroco e renomado artista da corte de Felipe IV de Espanha. Ele não registrou somente a nobreza, como também as figuras menosprezadas pela elite, sendo a série dos bobos da corte e da criadagem os melhores exemplos, resgatando a dignidade desses personagens. Sua pintura não apenas trouxe frescor ao barroco espanhol, mas também serviu de modelo aos pintores vanguardistas, como os impressionistas e o próprio Picasso. Velázquez soube tirar o máximo da representação em poucas pinceladas, como é possível ver nos cabelos brilhantes, nas pupilas negras e no acetinado da pele da menina. Poderia ser um retrato sério e pesado, mas o artista mostra leveza e, talvez, indagação. As feições da menina são ainda infantis, embora seu penteado já a introduza na moda do mundo adulto. Neste retrato aparentemente singelo, tem-se o nascimento de uma personalidade, o início de uma pessoa em formação retratada pelos olhos do artista.

Paul vestido de arlequim, de Pablo Picasso (1924)

Pablo Picasso é considerado o maior pintor do século XX, tendo passado por inúmeros movimentos, sempre deixando sua inquietude marcada em cada um deles. A experimentação foi seu procedimento mais destacado. Escolhi o retrato de seu filho, “Paul vestido de arlequim” (1924), como um representante da “primavera da vida”.
É como uma aula de pintura e desenho, com diversos tratamentos que se justapõem em harmonia e serenidade. O menino está acomodado entre duas manchas pretas, que representam a cadeira, e tem o rosto representado com traços simples e manchas que indicam o volume das faces. Sua roupa está estilizada em losangos amarelos e azuis e tornam seu corpo quase planificado. Se deduz que as manchas acinzentadas são os babados do figurino que emolduram o decote e os punhos. Os pés da cadeira estão simplesmente indicados por traços espontaneamente inacabados. O artista vanguardista não se preocupa em disfarçar a hesitação com a transparência da cena, porque deixou o sinal de um terceiro pé desenhado embaixo da cadeira. Aqui, Picasso explicita toda a liberdade lúdica da infância, afirmando-a com respeito e seriedade (e aqui penso estar evidente a influência de Velázquez na obra de Picasso). O menino está com uma roupa divertida sentado em um “trono”, e não uma cadeira qualquer. O artista enobrece a infância.

Joan Miró e sua filha Dolores, de Balthus (1938)

E, em terceiro lugar, elegi o retrato de “Joan Miró e sua filha Dolores” (1938), de Balthus, admirador de Velázquez e contemporâneo de Picasso. O artista franco-polonês é controverso pela temática erotizada de sua obra, embora aqui não seja o caso. É a representação de um pai artista e sua filha. A construção da cena é clássica, linha do horizonte localizada na metade da altura da tela, e as figuras estão centralizadas no espaço. A metade superior da imagem é clara, e a inferior, escura, o que dá peso ao espaço. Mas os aspectos clássicos acabam por aí. Miró e Dolores estão pintados com fortes traços expressionistas, feições marcadas, volumes exaltados e contornos definidos. As cores predominantes são neutras, com fortes contrastes de luz e nas linhas do vestido da menina. A figura do pai está sentada e tranquila, olhando diretamente para o observador. A da criança demonstra tensão, olha para um ponto abaixo à esquerda do espectador. Aparentemente, ela está apoiada na perna do pai, mas as listas do vestido, junto à posição suspensa da perna, indicam movimento, além de o corpo estar fora do eixo vertical. Ela pode ter acabado de chegar à frente do pai, ou pode estar com a intenção de sair de cena. Já o pai apoia uma mão no joelho e a outra envolve o corpo da filha, porém também sugere que ele esteja contendo o movimento da garota. A figura paterna está representada com proporção, mas a cabeça da menina é maior em relação ao corpo; inversamente, os pés e as mãos estão pequenos para este mesmo corpo, como se ainda estivesse em crescimento, necessitasse de ajustes. É uma imagem que, embora pareça posada, denota tensão e, por isso, é significativa. Mais que um retrato de pai e filha de caráter familiar, ele remete a outras simbologias; pode ser a proteção de um pai em relação à sua prole e/ou pode ser a infância que escapa, evidenciando o olhar aguçado de Balthus.

A arte é o campo que nos capta pela visão. E é boa arte quando apresenta camadas de leitura variadas, que podem se entregar de forma imediata e direta ou de forma mais sutil. Depende da sensibilidade do espectador também e, por essa razão, estimular nas crianças o senso de observação e indagação traz diversidade à realidade percebida. Assim, a naturalidade, a nobreza e, também, a ambiguidade são três olhares sensíveis voltados à infância por meio dos quais os artistas escolhidos realizaram suas obras. E meu olhar os uniu.


Isabel de Castro é Doutora em Comunicação Social (PUCRS), Mestre em Artes (USP) e professora do curso de Design, Moda e Comunicação Social da ESPM-POA.


Originalmente publicado na edição Infância

Assine e receba a revista Amarello em casa
#33InfânciaArteCinemaCulturaSociedade

A chama e o fogo que queimam a casa da criança

por Thiago Blumenthal

A infância não é uma batalha, é um massacre. A frase, claro, é do Philip Roth, e quem está familiarizado com a obra do autor americano sabe que não é a infância, mas a velhice. O que proponho aqui, portanto, é uma subversão, ou melhor, uma extensão desse massacre, uma extensão não para a frente – pois o que há para a frente da velhice? (melhor não pensar) –, mas para trás, como Fitzgerald propõe em sua versão maluca de parábola, com Benjamin Button. Nascer no sopro derradeiro e expirar na placenta da mamãe.

Não quero falar de ficção, não devo, embora a ficção alimente nossas vidas sem que nos apercebamos. A ficção, da velhice e da infância, nos visita toda noite, quando não conseguimos dormir. Ela não pede licença – às vezes pede – e se senta no canto da cama, me observa e, com seu olhar enorme, como o de um deus semítico no meio do deserto, diz, sem dizer, que está à minha espera, somente à minha espera, e que, enquanto eu não chego, prostra-se do lado do portão que separa vida e morte, o primeiro de muitos que iremos atravessar quando partimos para o lado de lá. Quem estará do meu lado? A ficção, sempre ela, a mentira, o simulacro, como querem os intelectuais, a meu lado. Mais ninguém. Mas quando? Por isso preciso atravessar obstáculos em uma floresta, como a de Aokigahara, esse mar de árvores, tentando evitá-la, a ficção, enquanto ela me persegue pela escuridão do dia, pelas frestas da folhagem com o monte Fuji ao fundo. Não divago, embora pareça; apenas detalho.

Enquanto a ficção me persegue, tento não olhar para trás, para minha própria infância, e puxo aquele caso clínico célebre, citado por Freud, da criança vienense que chamava sua mãe não de mãe, mas de meine Tochter, em uma inversão egoica que terminou por fazer a mãe sentar-se no colo da criança aos catorze anos de idade, buscando carinho e proteção na própria filha, enquanto ela mesma deveria estar cuidando de satisfazer todos os caprichos da pequena. Bom argumento para um filme, uma piada de mau gosto, sandice, dirão alguns. Mas não. Verdade. A mãe havia se tornado filha a partir do momento em que esta verbalizara o pronome errado, o nome errado, a gramática errada. A gramática da criação às avessas chamou tanto a atenção de Freud, que, evidentemente, não conseguiu tratar nem mãe nem filha, mas compôs uma linda teoria a respeito da maternidade e da infância (mãe e filha morreriam juntas, em um acidente bizarro, anos depois – tempestade, raio, piquenique).

A verdade nos supera, a verdade me supera, ainda que a mentira esteja atrás de mim pela floresta e venha me visitar toda noite na cama. Nas palavras de Mick Jagger, only get my rocks off when I’m dreaming. Essa história do Freud nos faz pensar muito em nossas experiências pessoais, talvez. É possível. Eu mesmo olho para trás e me pergunto se não carrego comigo muito daquela garotinha do começo do século passado, chamada docemente apenas de “A. Blum”, se não inverti os polos dessa equação da criação e da gramática – e, claro, da semântica. Para Freud, “os instintos mais primevos, ancestrais da srta. Blum-filha haviam desligado em seu sistema psíquico uma ordenação externa default, quando, em contato com uma realidade recriada em uma complexa camada inconsciente, entraram em choque direto com o papel que a sra. Blum-mãe não parecia conseguir cumprir”. Culpa da mãe? Maternidade como veredicto culposo? Longe disso. Apenas uma troca de papéis que a sociedade teima em esconder no fundo do mar, e que fez vibrar fenômenos sociais como o da carnavalização no medievo.

Não caberia, portanto, curar, ou tratar, essas pacientes. Havia ali apenas uma demonstração, ainda que extremada, do avesso do avesso do avesso. Ali estava a cura. No veneno estava a cura. Em outras palavras, para a teoria psicanalítica, caberia à infância o papel de assumir os papéis sociais dos progenitores, em uma idealização digna de uma ficção científica ou de um documentário falso pós-moderno, que pretende mais confundir que explicar. Ao assumir-se como adulto e, mais do que isso, responsável pelos pais, a adorável srta. Blum projetava em seu comportamento um instinto básico humano, presente desde a mitologia mosaica israelita: a criança não passa pela infância e já se torna adulto.

Antropologicamente, e há estudos curiosos sobre o assunto, recaímos no estilo de vida errante do deserto, comportamento este que daria origem a um conceito posterior na legislação judaica, o bar/bat mitsvá. Sob o olhar do Deus mosaico, a criança é alvo. A criança que a mulher de Urias teve com Davi é ferida e posteriormente adoece gravemente. As crianças morrem no sétimo dia. São ofertadas em sacrifício em nome de uma submissão que viria a ser a marca primeira do protoislamismo (e mesmo do islamismo moderno), como no caso de Isaque. Não por acaso, e tudo na Bíblia está condensado em números, é Isaque o patriarca que mais vive, ou seja, mais envelhece; ele que esteve, vamos dizer, na ponta da faca, na cara do gol com a eternidade. Porque não é Deus quem o salva, mas um anjo. Há toda uma discussão talmúdica sobre o sacrifício da criança Isaque, sobre a presença/ausência de Deus e sobre o papel da infância naquela sociedade. Mas deixemos a religião de lado. Afinal, religião caminha de mãos dadas com a ficção. E procuro a todo tempo evitá-la – a ficção, no caso.

A infância é um massacre. A frase, vilipendiada de Roth, soa pesada, histérica. Pode até soar dramática ou melancólica. Cruel. Penso o contrário, apesar de ter noção exata do peso e do valor das palavras, ao escolhermos cada uma delas – cada palavra, uma história; cada sentença, uma vida, na reflexão filosófica. O massacre de passar correndo por uma casa em chamas, o que o pensamento oriental chamaria de aparato humano. Porque a casa não pode desabar, nem queimar como um todo. Eu estou dentro dela. Se queimar por completo ou desabar, morro cedo demais, uma espécie de natimorto na efêmera passagem da vida. Tampouco posso permanecer muito tempo dentro dela; é preciso correr, como uma criança corre pela sala de estar atrás de seu objeto de afeição preferido. Como nunca temos ciência ao certo de qual é esse objeto de afeição ao longo dos anos, o fogo nos consome, porque é desejo, e não se deseja nada nunca, a não ser o próprio desejo de sentir desejo.

Não estamos, diferente da surrada imagem de montanha-russa, em um parque de diversões. Não há ápices nem quedas livres, somente a constante sensação de inércia em um mundo cheio de distrações, sensações, tatos, mãos, rostos. É a casa em chamas, da infância, da criança correndo e se queimando, mas com a proteção, na visão popular, de um anjo da guarda, talvez aquele mesmo anjo que salvara Isaque no mito ocidental tão antigo. Ou como a srta. Blum, aquela por quem Freud tanto se encantara e que morreu tragicamente, polarizando os opostos, chamando pelos pronomes invertidos, olhando tudo, como na imagem da colher, entre o côncavo e o convexo. E, na ansiedade mais humana de ganhar um colo, oferecer um colo. À nossa própria mãe.

Thiago Blumenthal é jornalista e professor do curso de Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Originalmente publicado na edição Infância

Assine e receba a revista Amarello em casa
#33InfânciaCulturaEducaçãoSociedade

Tempo e cotidiano: tempos para viver a infância

por Maria Carmen Silveira Barbosa

Índios do clã Amondawa, tribo que vive fora do tempo.

“A infância é quando ainda não é demasiado tarde.
É quando estamos disponíveis para nos surpreendermos,
para nos deixarmos encantar.
Quase tudo se adquire nesse tempo em que
aprendemos o próprio sentido do tempo.”


Mia Couto

Se compreendermos que educar é acompanhar, com atenção, os novos em seus começos e em sua imersão no mundo, não há nenhuma dúvida de que os modos como organizamos a vida cotidiana nas instituições educacionais têm grande importância na formação das crianças. No entanto, a valorização do cotidiano e sua compreensão como elemento fundamental de uma pedagogia não têm como se enraizar em concepções de educação que estejam atentas apenas às normas, às transmissões de conteúdos e às avaliações.

Observei que a vida coletiva na educação infantil se estrutura no cotidiano a partir de algumas variáveis como o modo como os espaços são organizados (móveis, decorações e acessórios) ou as materialidades que estão à disposição do grupo (jogos e brinquedos, objetos cotidianos, materiais artísticos, científicos e tecnológicos) e que oferecem as possibilidades para as ações das crianças – individuais e em grupo – e para estabelecer relações de convívio entre adultos e crianças.

Cada integrante de um grupo traz uma experiência cultural, social, emocional diversificada, seja ele um bebê, uma criança pequena ou um professor. Portanto, quando se encontram em um mesmo espaço essas pessoas e suas experiências, há necessidade de tempo para transformar esse espaço em um ambiente – um lugar – onde ocorra o encontro e a construção de uma vida em comum. O tempo é a variável que imprime movimento, energia, ritmo para que as crianças e os professores possam viver, com intensidade, a experiência da vida coletiva no cotidiano. É ele que nos oferece a dimensão de continuidade, de durabilidade, de construção de sentidos para a vida. Mas é também o tempo que irrompe e, em um instante, desvenda outros caminhos, desloca, desvia, flexiona outros modos de ser, ver e fazer.

O tempo é, portanto, um tema fundamental para a organização da escola infantil, pois é uma categoria política que diz respeito não somente à vida das crianças, mas à vida de seus pais e também dos seus professores. O tempo é um articulador da vida; é ele que corta, amarra ou tece a vida: individual e social. É o tempo que nos evidencia que temos um passado comum, uma memória e uma história: que é preciso compreender esse passado, mas também distanciar-se dele para não ficar aprisionado, repetindo-o.

Compartilhar a experiência do passado para, assim, pensar e projetar possibilidades para o futuro. Viver o presente. É o tempo que nos oferece a dimensão de durabilidade, de construção de sentidos para a vida.

Isso nos encaminha para algumas perguntas: de que modo estamos vivendo o tempo nas escolas de educação infantil? Como temos vivido o tempo em nossas vidas como docentes e ensinado as crianças a vivê-lo? Como organizamos o tempo na escola ou como estamos sendo por ele organizados?

TEMPO ACELERADO, TEMPO DO CAPITAL

No final da década de 70, Félix Guatarri escreveu uma importante reflexão sobre a creche. Afirmou que a creche era um espaço de iniciações e que a iniciação fundamental era a da inscrição das crianças num tempo – mas não qualquer tempo: o tempo acelerado do capital. Quando essas palavras foram escritas, talvez não estivesse tão evidente, para todos nós, professores, o impacto que a reconfiguração do tempo e do espaço causaria no mundo contemporâneo. Nos últimos anos, nas escolas de educação infantil – apesar da sua aparente (im)produtividade econômica –, pode-se observar a presença do tempo do capital como uma pedagogia implícita. As manifestações dessa pedagogia podem ser observadas em diversos elementos:

Ausência de tempo – Os professores dizem que falta tempo. Falta tempo para fazer tudo aquilo que desejam e tudo aquilo que deles exigem. Estão angustiados e não têm tempo para escutar as crianças, olhar para cada criança.

Pressa – Essa velocidade se manifesta no modo como a infância vem tendo diminuída sua duração no início deste século e também no modo como as crianças são apressadas para atender aos horários da instituição e para acompanhar o ritmo dos demais colegas.

Fragmentação do tempo – As ações das crianças são reguladas por tempos fixos estabelecidos pelos adultos, sem encadeamentos: nem intelectual, nem corpóreo, isto é, sem sentido pessoal. Em uma rotina de vida sem sentido, as ações não deixam marcas.

Produtividade – A priorização da realização de tarefas que se encerrem com produtos avaliáveis.

A regulação temporal que caracteriza a vida contemporânea com a tríade produção-acumulação-consumo atropela e desapropria o tempo da vida. Para dar conta dessa regulação são construídos nas escolas artefatos como cronogramas, horários, rotinas, que, ao invés de organizar o coletivo, mais o controlam. Um tempo que é visto apenas como tempo cronológico, linear, sequencial. Todo o tempo investido livremente pelas crianças nas coisas que lhes dizem respeito, nas coisas que as afetam, naquilo que as desafia, que as distingue, se não tiver uma produção objetiva, é visto como perder tempo. Portanto, o que encontramos nas escolas infantis é a presença desse tempo característico das relações capitalistas, que brutaliza a vida cotidiana e empobrece a experiência da infância. Um sentido de tempo que apenas passa, cumprindo o ordenamento da produtividade.

E o que fazer com esta realidade? Aceitar?

OUTROS SENTIDOS PARA O TEMPO

Pensar o tempo no cotidiano da educação infantil tendo em vista criar rupturas está vinculado à ideia de romper com a compreensão do tempo linear e com a dinâmica de aceleração imposta pelo sistema capitalista. A aceleração provoca a ausência de sentido naquilo que se realiza cotidianamente na vida, na escola, pois, paradoxalmente, oferece uma sensação de muitas tarefas realizadas, mas de fracasso no sentido da realização docente, e uma derrota no sentido de educação das crianças – a vida basta com produção e consumo.

Um modo de romper com essa realidade é refletir acerca de outras acepções de tempo: como aquelas pensadas pelos gregos, que, além de chronós – o tempo sucessivo do passado–presente–futuro, compreendiam o tempo também como kairós, isto é, o instante, o momento crítico, a oportunidade, que é preciso marcar, ou ainda o tempo como aión, isto é, intensidade, duração. Os antigos mesoamericanos inventaram calendários onde contavam o tempo não apenas como diacronia, mas também como sincronia. Alguns povos amazônicos contemporâneos, como os Krahô, constituíram uma noção de tempo a partir de seu universo simbólico e pensam-no como uma força que produz a vida tanto através do seu escoar como também em alternâncias: nascente/poente, seca/chuva, tempo do sol (rápido) ou da lua (lento), isto é, o tempo como criação. No limite, podemos encontrar o não pensamento de tempo como na nação Amondawa que, apesar de saber contar eventos sequencialmente, não separa o presente dos eventos que aconteceram ou acontecerão em outros momentos. Essa diversidade cultural das compreensões do tempo pode nos ajudar a pensar sua interação com modelos de educação e escola e os modos como são oferecidas às crianças as experiências de infância.

O TEMPO DO COTIDIANO SE CONSTRÓI NA VIDA COLETIVA

Na educação infantil podemos incorporar, nas práticas da vida cotidiana, outros modos de conceber e produzir o tempo, formas que rompam com a lógica temporal dominante. Construir tempo para estar junto e fazer-se presente, isto é, estar com as crianças, atentos, interessados, tranquilos, solícitos, acompanhando, estando junto, perguntando, inventando com elas. Ser presença e guardar espaço para que a criança se torne presença no mundo. Podemos pensar em três práticas pedagógicas, que nasceram nos processos iniciais da educação infantil, mas que hoje estão sendo substituídas por práticas de escolarização: compartilhar a vida, brincar e narrar. Três modos não lineares de viver e contar o tempo.

Uma das ideias mais potentes constituídas pelas pedagogias da educação infantil foi a de caracterizar a escola como um lugar de encontro. A escola como um lugar para o qual as crianças se dirigem, todos os dias, com segurança e tranquilidade para, através do acolhimento e reconhecimento dos demais, aprender a viver – fazer suas iniciações à vida comum. Um ambiente onde as pessoas compartilham as coisas simples e ordinárias do dia a dia e também geram contextos para que o extraordinário possa invadir o cotidiano.

Para constituir encontros na vida cotidiana, é necessário um tempo longo de permanência e, também, a participação de todos na definição dos usos do tempo que se realiza no cotidiano da escola. As novas gerações podem compreender o tempo como um bem precioso, como algo que cada um de nós pode usufruir e usar de modo pessoal. Algo que não pode ser, banalmente, vendido ou comprado, mas sim dividido, compartilhado, usufruído. Aprender a valorizar e a apropriar-se do próprio tempo é oferecer às crianças instrumentos de resistência aos tempos do capital. O tempo é aquilo que nos resta, é a única coisa que ainda nos pertence.

A vida cotidiana é a vida mesma; nela estão em funcionamento os sentidos, capacidades, sentimentos, paixões, ideias, pensamentos. É através das experiências compartilhadas na vida cotidiana que aprendemos muito daquilo que usamos para estar no mundo e conviver com os demais; é com essa bagagem que nos inserimos como copartícipes nos valores e especificidades de nossas culturas. Construir a experiência, narrar a experiência, aprender da experiência. Qual o valor de todo o patrimônio cultural, se a experiência não o vincula mais às crianças? Torna-se necessário captar os elementos sensíveis da vida cotidiana e relacioná-los aos processos sociais, históricos e políticos para que eles façam sentido para as crianças e ofereçam a elas outros olhares e modos de viver.

É a partir das vidas cotidianas que os bebês realizam suas experiências iniciais com os objetos, com os amigos, com as pessoas que os alimentam, com suas brincadeiras e com as histórias que escutam e as músicas que ouvem. São esses pequenos atos, feitos em conjunto, que dão início à construção de um mundo real e à formação de um mundo imaginário, assim como à possibilidade de inventar formas dilatadas da vida, ligando as artes do fazer às artes do viver. Com os adultos e as demais crianças, cada bebê ou criança aprende maneiras de estar e se relacionar com o mundo, criar seu estilo de ser. Cabe aos adultos, em seu papel de acompanhantes mais experientes, ofertar tempo para escutar uma poesia, uma música, uma voz, imagens, ideias que ampliem as sensibilidades infantis. O cotidiano como o lugar do ritual, do repetitivo, mas que escuta o extraordinário que existe no dia a dia. O cotidiano é onde se aprende a ver a beleza das pequenas coisas.

Será no exercício compartilhado da vida coletiva que as crianças irão socializar-se, aprender a conviver, confrontar, discutir, procurar soluções com seus pares e o apoio dos adultos. A democracia, mais que uma forma de governo ou um modo de vida social, é uma estruturação simbólica do ser em comum, de uma vida coletiva, aprendida no cotidiano. Construir tempo para estar junto é fazer-se presente, estar com as crianças, deixar as crianças atentas, interessadas, tranquilas. Instaurar conforto, solicitude, respeito. Valorizar o realizado, escutar o que dizem as palavras e os gestos, escutar os pontos de vista. Não solicitar em excesso, intrusivamente, obliterando ou roubando o tempo de inventar. A vida cotidiana está permeada pela vida política, nas artes do fazer, do agir, das relações entre as pessoas, e por isso também tem uma função ética e política, que é a da relação respeitosa com o outro, da formação da memória, da narrativa e da transmissão da experiência, oferecendo o deleite estético. Constituir uma relação da educação com a democracia que não seja nem iluminista nem instrumental – que pretendem, através de uma preparação em conhecimentos e habilidades, formar sujeitos racionais, autônomos e democratas –, pensando a democracia como ação política, realizada no e por um coletivo, em contextos onde as crianças possam propor inícios, fazer suas pesquisas e investigações num espaço de pluralidade e diferença. Aprender a viver junto é algo que se faz na escola infantil; é tarefa de seus professores. Começa quando as crianças chegam à escola, isto é, quando não estão mais nas suas famílias, mas num espaço de diversidade e heterogeneidade. Compreender isso, estar juntos e compartilhar a cotidianidade desses tempos vividos juntos é um primeiro ato de resistência a um mundo definido previamente. É uma mudança que comporta muitas mudanças.

Texto adaptado do original, publicado em Leitura: Teoria & Prática (v.31, n.61, 2013)

Maria Carmen Silveira Barbosa é doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas e professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


Originalmente publicado na edição Infância
Assine e receba a revista Amarello em casa