A obra de Luiz Zerbini é profundamente enraizada em uma prática contemplativa e reflexiva, como observa o crítico e professor de história da arte Tiago Mesquita no livro Zerbini: Sábados, Domingos e Feriados. Sendo assim, parece natural que, desde 2013, nos períodos em que desfruta de férias, o artista venha explorando paisagens como um exercício lúdico de pintura. Fazendo isso já há algum tempo, ainda que produzidas sob pretextos e processos diferentes, há um conjunto bastante considerável a ser visitado. Mas essas pinturas nunca foram totalmente reveladas ao público, mantendo-se reservadas aos círculos mais íntimos de Zerbini. O recém-lançado livro-catálogo da editora Cobogó muda esse cenário e, pela primeira vez, podemos nos debruçar sobre obras cuja gênese é a descontração e o registro emotivo. Fazê-lo, no fim, é analisar as madeixas da produção principal de um artista notoriamente inventivo e profícuo, algo que, para além da divulgação da extensão de um corpo de trabalho consagrado, pode ser elucidativo dos mecanismos de sua intuição.

Praia de Mamanguá (2020).

Mesquita, organizador do livro, descreve essas produções inéditas como “objetos reflexivos que ajudam a construir um repertório de temas, imagens, sugestões compositivas e poéticas, nutrindo suas obras maiores”.

Presente do Mar (2021)

Luiz Zerbini é conhecido por desenvolver mosaicos visuais de cores vibrantes e disposições geométricas surpreendentes para pinturas, instalações e desenhos de maneira tanto figurativa quanto abstrata. No seu processo, as formas desmembram-se em traços sinuosos para evocar a vegetação tropical ou revelar ricas padronagens criadas a partir de texturas variadas.

Um dos representantes-mor da famosa Geração 80, que causou burburinho ao experimentar e abraçar as mais diversas linguagens artísticas, Zerbini já participou da Bienal Internacional de São Paulo e de tantas outras exposições importantes, além de possuir inúmeros trabalhos em coleções públicas, entre elas o Inhotim, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o Museu de Arte Moderna de São Paulo e o Itaú Cultural. Por essas e outras, é um dos principais nomes da arte contemporânea latino-americana.

Cocoa Pataxo (2016)

Sabendo de toda essa relevância, Tiago Mesquita logo acalma os ânimos dos entendidos, preparando-os para o que vem a seguir: “Essas paisagens são atípicas na trajetória de Zerbini. São telas pequenas, produzidas rapidamente, destituídas dos complexos jogos de padrões, cores e espaços que permeiam suas pinturas recentes. São obras feitas in loco, diante do tema, em uma tentativa delicada de capturar o que é visto, sem retoques ou ajustes posteriores no estúdio. Zerbini age com rapidez, tomando decisões e resolvendo problemas com instrumentos e materiais ao seu alcance, sem precisar de planejamentos minuciosos.”

Nesse sentido, as paisagens pintadas por Zerbini durante suas viagens de férias não são meras representações visuais, sendo também manifestações orgânicas e naturais que servem como resposta às sensações produzidas pelas cercanias geográficas e afetivas da vez. As ponderações e preparações prévias são deixadas de lado, assim como os aprimoramentos posteriores. Qualquer coisa que descaracterize a proposta de leveza está fora de questão. Simples assim, o artista testa ideias e aprimora suas habilidades. 

Mesmo diante das adversidades que fazem com que o retiro vire necessidade, como nos tempos turbulentos de pandemia, Zerbini encontra inspiração e vitalidade em suas paisagens, sem cair na onda catastrófica que se fazia preponderante nos noticiários e nem muito menos numas de redenção exagerada, como tantas obras sobre o período. Muito pelo contrário, essas pinturas se prontificam a amplificar a beleza da natureza, refletindo significados que se aprofundam pelas condições históricas que direta ou indiretamente moldam o mundo ao nosso redor. “A ordem que ele procurava nas vistas daquela época não era oposta à hecatombe, era um modo de viver que tinha como assombração essa morte que se avizinhava. Embora sejam vistas encantadoras, as pinturas não são nostálgicas nem idealizadas. De maneira sutil, sem tocar no assunto, parecem falar, em sua contemplação reflexiva, das condições históricas que a produziram.”

Vale do Paiol (2020)

A análise presente em Sábados, Domingos e Feriados destaca como as pinturas de Zerbini capturam mais do que às vezes é esperado de paisagens pintadas, coletando em cada escolha as complexidades e as contradições da vida contemporânea. Nessas telas, elementos do cotidiano se mesclam harmoniosamente com a paisagem, criando composições que são ao mesmo tempo ordenadas e desordenadas. Com astúcia, Mesquita observa como “mesmo em telas lindas que tratam da chuva”, há uma sensação de estabilidade e firmeza, onde “os elementos ainda permanecem firmemente ancorados na estrutura da paisagem”. É como se os recortes propostos pelo artista tivessem movimentos e argumentos para chamar de seus, conduzindo os olhares e as reflexões aos mais reais e enigmáticos lugares.

Essa capacidade de equilibrar ordem e desordem, estabilidade e transformação, calmaria e agito, é uma das características mais marcantes dessas obras singelas. “Tal atenção meditativa à composição”, observa o crítico, “não busca pacificar ou homogeneizar a cena. Ainda que afinados, os elementos seguem contrastados.” Essa dialética entre ordem compositiva e os resíduos que vagam por ela deixam claro que, mesmo nos momentos de lazer e descontração, o artista não renega a sagacidade de seu olhar artístico-social, propondo e pincelando interpretações que são amplas o suficiente para que cada pessoa diante delas enxergue o que sua percepção delimita.

Ilha Grande (2020).

Como conclui Mesquita, “as pinturas são esses pequenos achados e todas as suas sugestões e ambiguidades”, convidando o espectador a contemplar não apenas horizontes, vegetações exacerbadamente verdes, raios de sol e grãos de areia, mas também as histórias e os significados que residem dentro de cada uma dessas divindades. 

No pulsar da vida, descompromissos que têm muito a dizer. Nas páginas de Zerbini: Sábados, Domingos e Feriados vê-se reflexões pertinentes e maleáveis sobre a condição humana e o mundo ao nosso redor. São mais do que se captura à primeira vista: são pequenos achados, ambíguos e altamente sugestivos, que contêm o universo.

Praia de Mamanguá (2020), de Luiz Zerbini. Publicado em Luiz Zerbini: Sábados, domingos e feriados (Editora Cobogó).

Nos últimos anos, temos testemunhado uma mudança significativa nos hábitos de consumo. Chame de “consciência ambiental”, de “redução de custos”, de “quero ser a mudança que desejo ver no mundo”, de o que quiser — mas, no fim, tudo isso acaba sendo impulsionado pelo crescente interesse na economia circular e, claro, no desenvolvimento sustentável. E, por se tratar de uma indústria que causa um impacto ecológico substancial, tais transformações têm acontecido com força especial no mundo da moda. Analisando em retrospecto, talvez até tardiamente. Seja como for, o fato é que os brechós estão em alta. Mas o que está por trás do hype

Os brechós que vemos por aí, e sobre os quais falamos mais do que nunca, têm algo eloquente a dizer sobre o momento atual do consumo da moda: cada vez mais pessoas estão optando por esse modelo de negócio como uma alternativa consciente e bem mais acessível, gastando menos dinheiro, tomando a missão de preservar o futuro para si e reconhecendo o papel fundamental que os brechós podem exercer nesse propósito. A conta é simples: a extensão da vida útil das roupas é a redução dos preços e do desperdício. Nem sempre é assim, mas, neste caso, o que é bom para o bolso também é bom para o planeta.

No começo, o fenômeno se deu sobretudo devido à inflação e a necessidade de economizar — ou seja, comprar itens previamente usados é, sim, sobre gastar menos dinheiro. Mas não só. Nos últimos anos, as perspectivas sobre o assunto mudaram significativamente e os hábitos de compra estão evoluindo, sendo a manifestação de um novo comportamento ambientalista. Fala-se muito em reciclagem, em não comer carne e em tantas outras ações que seriam boas para o meio ambiente, mas raramente se fala sobre um consumo consciente da indústria da moda. Porém, ela produz em quantidades que estão bem longe de serem minimamente sustentáveis e o consumo excessivo, alimentado pela moda rápida, tornou-se um dos maiores inimigos do nosso planeta. 

Só entre 2000 e 2015, o consumo de roupas global aumentou 60%. A cada ano, o mundo consome cerca de 130 bilhões de itens de roupa. Estações mudam e mais roupas aparecem nas vitrines, gerando mais e mais produtos que em breve serão descartados, desvalorizados de maneira estratégica pelo próprio mercado que os produziram. Tudo isso resulta em um enorme desperdício e todo esse processo de produção cria uma poluição imensa. O impacto ambiental de uma peça de roupa de moda rápida é estrondoso. Temos os campos de algodão, que consomem uma alta quantidade de água (e que não param de se expandir); temos os plásticos e o papelão para transporte, que se tornaram indispensáveis; temos as fábricas consumindo muitos recursos e energia; temos um sem-fim de uso indevido de recursos. 

Doar ou revender uma peça de roupa é prolongar o ciclo de vida do item, mantendo-o fora dos aterros sanitários ou do fundo de nossos armários. À medida que mais pessoas adotam a economia circular e optam por brechós como uma forma de consumo mais barata e sustentável, testemunha-se uma mudança cultural significativa em relação ao modo como percebemos e valorizamos nossas posses. Aos poucos, a mentalidade de consumo excessivo e descartável perde força em prol de uma abordagem mais consciente e responsável em relação aos recursos finitos do nosso planeta.

Essa tendência está se expandindo também porque as roupas de segunda mão se tornaram mais acessíveis com a proliferação de aplicativos, como a plataforma Enjoei, e lojas especializadas na revenda de roupas, como o brechó Peça Rara. Em vez de seguir o padrão tradicional de produção, uso e descarte, a economia circular busca manter os recursos rodando pelo maior tempo possível.

Como esses itens não são novos, seus preços são significativamente menores. E “previamente usados” não significa que as roupas estão desgastadas. As lojas de roupas de segunda mão geralmente selecionam os itens antes de oferecê-los para revenda. É também uma oportunidade para adquirir produtos de alta qualidade, roupas de marca ou itens únicos que, de outra forma, seriam excessivamente caros quando novos, tudo a preços mais acessíveis. 

Em vez de seguir as tendências da moda que mudam rapidamente, os consumidores são incentivados a valorizar a qualidade, a durabilidade e o estilo atemporal das roupas encontradas nos brechós. Esqueça a fast fashion. Eis um categórico rala-peito direcionado à mentalidade do “descartar e substituir” que por tanto tempo reinou. Ao conectar fornecedores e consumidores em um ciclo virtuoso, empresas como o Peça Rara estão demonstrando o potencial da economia circular na transformação da indústria da moda. A mudança para uma moda mais sustentável é uma escolha individual e uma necessidade urgente diante dos desafios ambientais que enfrentamos. A economia circular visa reduzir nosso impacto no planeta e os brechós são aliados nesse objetivo — combinados, é possível moldar o futuro da moda em direção a uma indústria mais ética, sustentável e consciente.

Essa mudança não acontece apenas em nível individual, mas também está impulsionando mudanças sistêmicas na indústria da moda e além. Empresas estão sendo incentivadas a adotar práticas mais sustentáveis, desde a produção até a embalagem e distribuição. Os governos estão começando a reconhecer a importância da economia circular e estão implementando políticas e incentivos para promovê-la.

O que acontece na moda, claro, é um reflexo do que acontece no mundo. A transição para uma moda mais sustentável e consciente reflete não apenas uma mudança nos hábitos de consumo, mas também uma mudança fundamental na mentalidade coletiva em relação ao modo como interagimos com os recursos do nosso planeta. A economia circular não se limita apenas à moda, mas abrange todos os aspectos de nossa vida cotidiana, desde o consumo de alimentos até a gestão de resíduos. Nos brechós, vemos a economia circular em ação de uma maneira tangível, o que por si só é uma motivação extra.

Não faltam motivos para levar as pessoas a comprar em brechós. Da economia à preocupação ambiental, há uma transformação em curso — uma peça de roupa por vez.

Memória da Oceania (1952 – 1953), de Henri Matisse.

Há uma frase famosa de Gertrude Stein, escritora e figura emblemática para as artes do começo do século passado, que diz: “você pode ser um museu ou pode ser moderno, mas você não pode ser os dois.” Ela representa bem o espírito de uma época. Pode parecer mentira, mas houve um tempo em que Pablo Picasso passou por maus bocados, pelejando para conseguir que suas obras fossem recebidas de braços abertos pela crítica especializada e pelo público geral. Mesmo na Europa, onde era reconhecido mas pouco celebrado, seu nome não era sinônimo de genialidade e isso, mais de 100 anos depois, soa um tanto absurdo. 

Pablo Picasso em seu ateliê. Foto: Reprodução.

Se pensarmos nas Américas, em especial nos Estados Unidos, a situação era ainda pior para o pintor espanhol: na terra do Tio Sam, que em breve, com o advento das Guerras, se tornaria o centro do mundo, ele era ridicularizado por praticamente toda a elite consumidora de arte. Talvez seja óbvio dizer que a arte que desafia o establishment daquele presente sempre será vista com olhos tortos no início, mas, considerando o impacto que a arte moderna e o próprio Picasso tiveram no restante do século XX, é uma obviedade que precisa ser posta na mesa.

No período em que a arte moderna emergiu, pouco antes da Primeira Guerra Mundial, o público americano, em geral, não demonstrava interesse por obras que fugissem do padrão clássico. Os estadunidenses com poder monetário, capazes de adquirir obras de arte por boas quantias, simplesmente não tinham apreço pelas vanguardas europeias. Até mesmo a classe artística era hostil com ela, como evidenciado pela famigerada exposição de arte moderna Armory Show, realizada em 1913, na progressista Nova York, que resultou em protestos e na queima de pinturas do agora lendário Henri Matisse. Por essas e outras, é importante compreender que a história da arte não é estática, mas se reconfigura com a ascensão de novos movimentos artísticos.

Armory Show, em Nova York, em 1913.

A dinâmica do mundo da arte sempre esteve vinculada a duas perguntas fundamentais: o que é considerado arte; e, se arte, é considerada boa. Quando surgiram movimentos de vanguarda, as pinturas de Picasso não foram imediatamente reconhecidas como boa arte — em especial, por aqueles que se diziam experts. É algo que ocorre de tempos em tempos (o mesmo ocorreu com as obras de Jackson Pollock e Andy Warhol décadas mais tarde). A definição do que, afinal, é boa arte é um processo, um desenvolvimento no qual galerias, negociantes, colecionadores, museus e críticos desempenham papéis cruciais, sempre em consonância ao contexto político. Quando essas partes estão em sintonia, o que pode acontecer anos depois que um movimento artístico tem o seu ápice, um mercado de arte se estabelece, transformando as criações do artista em peças que vão do estúdio para colecionadores e museus. Sem isso, por mais brilhantes que possam ser, tais peças acabam em lugar nenhum.

Os movimentos estavam ali, quiçá no auge de sua produção, mas ainda não tinham a relevância que viriam a ter mais tarde.

O livro recente de Hugh Eakin, Picasso’s War: How Modern Art Came to America (ainda sem tradução brasileira), trouxe à tona o desconhecido John Quinn, um advogado nova-iorquino enérgico e culto que surpreendentemente surge como uma figura central nesse cenário em evolução da arte moderna. De acordo com o autor, Quinn estava em uma missão de “colocar a civilização americana na vanguarda do mundo moderno”. Sua influência foi expressa não apenas por meio de aquisições ousadas — no início, comprava essas peças para si mesmo, fazendo o mercado girar a partir do próprio bolso —, mas também por suas iniciativas para eliminar tarifas de importação sobre a arte moderna no começo do século XX. Antes de suas intervenções, enquanto essas tarifas eram obscenas, impostos sobre artes clássicas não existiam. Pensada com esse propósito ou não, era uma manobra tributária que favorecia a produção artística do passado e ignorava a do presente. Com muito suor, dedicação e algumas artimanhas sociais, a visão de Quinn foi fundamental para tornar viável a exposição e a venda de pinturas europeias contemporâneas nos Estados Unidos, o que ajudou a globalizá-las.

A Dança, de Henri Matisse (1910)

A partir desse ponto, movimentos como o Expressionismo e o Cubismo encontraram solo fértil para florescer. A vanguarda europeia que inspirou a Semana de Arte Moderna no Brasil, em 1922, subiria degraus de abrangência e se colocaria no panteão que reivindicavam desde o início. Aos poucos, com uma mentalidade pós-guerra mais aberta sendo criada, um espírito de inovação se alojou no peito de muitas pessoas e coleções privadas e públicas começaram a se enriquecer com obras de artistas modernos, consolidando um movimento que inicialmente fora enfrentado com resistência. Com a tarifa tributária derrubada, o caminho estava livre para o lucro; com a nova mentalidade, o caminho estava livre para a apreciação. Outros colecionadores e galeristas começaram a apoiar artistas modernos, fazendo com que a abertura de galerias ousadas e a disposição para desafiar as convenções se tornassem uma marca registrada desse movimento. 

Nesse contexto, as redes de apoio cultural exerceram influência significativa, com intelectuais e artistas locais contribuindo para a formação de um ambiente propício à aceitação da arte moderna. Essas redes facilitaram a troca de ideias, exposições de obras e estabelecimento de diálogos interculturais, fortalecendo os alicerces para a disseminação do movimento. Com isso vem a aceitação das instituições culturais, como museus e galerias de arte. 

Um grande marco da chegada definitiva da arte moderna europeia nos EUA, e isso sendo um espelho para a celebração da modernidade mundo afora, foi a inauguração do MoMa, em 1929. No começo, suas instalações eram humildes, mas, com o tempo, foi ganhando mais e mais espaço. Em 1939, sediou uma famosa retrospectiva do trabalho do então experiente Pablo Picasso. Aos trancos e barrancos, numas de “contra tudo e contra todos”, John Quinn foi o pontapé inicial para uma espécie de revolução — uma que já acontecia há algum tempo, mas que, com esses empurrões, recebeu um laivo de dimensão e permanência.

Ao observar o impacto da arte moderna em escala global, torna-se evidente que sua influência transcende fronteiras e muitos artistas envolvidos se tornaram ícones culturais cujo legado persistirá enquanto a humanidade for humanidade.

E tudo isso nos faz pensar um pouco na questão: o que é o gosto? 

Tomando essa história como referência, é seguro dizer que o gosto das pessoas foi alterado. O que antes não agradava passou a agradar e há quem simplifique tudo com noções de “bom” e “ruim”, ou resuma o debate a preferências pessoais. O interessante de se discutir o tema é refletir sobre o que levou a essa reação positiva ou negativa, que, sim, são genuínas. Mas serem genuínas não quer dizer que não foram resultados de uma intrincada miríade de fatores que vão bem além da constituição inata de um indivíduo. Há cultura, há contexto sociopolítico, há contexto pessoal, há técnica, há falta de técnica, há conceito, há falta de conceito, há uma série de agentes que determina o gostar ou não-gostar de uma geração de artistas. Se dependêssemos do bom gosto da sociedade na segunda metade do século XIX, talvez nem soubéssemos quem foi Picasso, Matisse e Dali. 

Quantos artistas não tiveram suas trajetórias ocultadas pelas circunstâncias, não só nesse período mas em toda a história?

A Persistência da Memória, de Salvador Dali (1931)

É natural que os gostos mudem. Todos somos frutos do nosso tempo — mesmo esses artistas que fizeram com que o tempo tivesse que correr mais rápido. A história da arte é um constante diálogo entre o passado e o presente, e a arte moderna é uma expressão vívida desse diálogo. Recusar-se a abraçar novas formas de arte em nome de um apego nostálgico ao passado ou a um determinado arcabouço técnico é privar-se da riqueza e da diversidade que o cenário artístico contemporâneo oferece. A verdadeira apreciação da arte reside na capacidade de reconhecer e valorizar a inovação, a experimentação e a expressão individual, independentemente das normas estabelecidas. Ao abraçar tanto as formas tradicionais quanto as expressões artísticas contemporâneas, construímos uma narrativa inclusiva e enriquecedora que reconhece a evolução natural da cultura e da sociedade. 

A platitude está errada: gosto se discute, sim, senhor. A ele não se opõe, é verdade, mas sobre ele é possível se debruçar de maneira respeitosa, pois isso gera esclarecimento sobre a agência de fatores externos naquilo que, em tese, nos define de uma maneira íntima. Nada é mais humano que a arte e dela se tira valiosos insights sobre os espectros que nos delimitam enquanto seres racionais. A verdadeira apreciação da arte reside na habilidade de abraçar a mudança, valorizando a expressão individual e reconhecendo que a inovação artística é um reflexo constante do movimento da condição humana. 

Em um mundo em constante transformação, a arte permanece como um testemunho poderoso da capacidade humana de criar, questionar e redefinir constantemente os limites da criatividade. E saber quem somos enquanto sociedade e pessoas é fundamental no meio disso tudo.

Ao longo da história da arte diversos materiais e técnicas são utilizados para encarnar questões humanas, alguns atravessam o tempo dialogando com meios e suportes jamais imaginados por aqueles que os desenvolveram no passado remoto. A produção de utensílios e representações em barro queimado tem origem ainda no período pré-histórico seguindo até os tempos atuais, desta forma sua existência se confunde com o tempo da própria humanidade. 

Engoma, 2021. Foto de Marina Ribas.
Zungueira, 2023.
Sem título, 2022. Foto de Marina Ribas.
Paisagem, 2022. Foto de Mayk Brambilla.

Gabriella Marinho é mulher negra, artista, reside na cidade de São Gonçalo e utiliza a cerâmica como o seu principal meio de criação. Em seus trabalhos encontram-se a história da cerâmica e também o processo de investigação sobre si. O contato modelagem divina do ser humano em mais de uma cultura ao redor do globo, a trouxe indagações que são visíveis no seu fazer artístico. A reprodução da forma humana, sobretudo feminina, demonstra como o conceito de beleza foi traduzido em cada período histórico. Em seu trabalho Gabriella submerge subjetivamente no ato de construção de si através da experiência artística, seus objetos, máscaras e retratos são meio de descoberta e de comunicação com o mundo pelas lentes de uma mulher com potencial para conhecer e dizer sua própria história, sua própria beleza que vai além das curvas do corpo idealizado. 

Rocky Stone Sea, 2022.

Do barro ao corpo: A Experiência Feminina na Cerâmica* me parece a tradução da vontade de ocupar o espaço com seu corpo além do envasamento, do acabamento, é a busca no processo que revela em cada peça um encontro com origens e anseios que tanto são propiciados pelo material quanto ditos através dele. Além da cerâmica propriamente dita, Gabriella tem trabalhos sobre outras superfícies, podendo flertar com meios de produção que propiciem uma conversa milenar entre a versatilidade do barro e as novas possibilidades de investigações e experimentações nos corpos.

Nessa altura do campeonato, já está claro: a criação de inteligências artificiais levanta um sem-fim de preocupações éticas desde o estágio inicial de seu desenvolvimento. As decisões dos criadores e engenheiros — tão humanos quanto qualquer um de nós — desempenham papel crucial na definição dos valores que essas máquinas incorporam. Surge, então, um cenário ético complexo ao, primeiro, escolher os princípios que nortearão o comportamento da IA e, segundo, ao tentar entender como essas escolhas impactam a sociedade. Apesar de parecer um tanto alarmista, a verdade é que essas pessoas detêm as rédeas de boa parte do futuro e do presente do que entendemos como sociedade.

O livro Ética na Inteligência Artificial de Mark Coeckelbergh, lançado no Brasil pela Editora Ubu, proporciona uma análise abrangente dos novos desafios decorrentes desses avanços que já não parecem mais escolhas e sim inevitabilidades. Antes mesmo da ascensão de modelos gerativos como o chatGPT, Coeckelbergh se dedicava ao estudo das implicações éticas relacionadas ao desenvolvimento de IA e, portanto, é alguém que tem o que dizer. Seu livro de agora visa conscientizar o leitor sobre as inovações incorporadas de forma invisível em tecnologias do cotidiano, além de levantar questões importantes sobre a vida prática da tal ética, abordando preocupações sobre responsabilidade, privacidade e viés. A obra abrange desde narrativas influentes sobre o futuro da IA até questões filosóficas sobre a natureza humana. Sendo bastante acessível, é um acerto.

Livro de Mark Coeckelbergh. Foto: Reprodução

A reflexão ética proposta por Coeckelbergh transcende as ações e capacidades da IA, mergulhando nas implicações morais que existem a partir do momento mais incipiente de sua criação. As tomadas de decisão dos criadores, programadores e engenheiros no desenvolvimento das tecnologias inteligentes é o que determina os valores incorporados nas máquinas, sendo que a transparência no desenvolvimento de algoritmos e sistemas é uma peça-chave na abordagem ética. Se assegurar a responsabilidade e a confiança na utilização dessas tecnologias for, de fato, um objetivo, a compreensão clara dos critérios de treinamento, fontes de dados e processos de tomada de decisões é o passo inicial. O sigilo excessivo em torno dos modelos de IA, como aponta o autor, naturalmente cria uma barreira de distanciamento para lá de perigosa, pois os usuários raramente estão cientes das bases sobre as quais as decisões automatizadas são tomadas. A compreensão clara dos critérios de treinamento, fontes de dados e processos de tomada de decisões anda de mãos dadas com a missão de responsabilidade e de confiança dessas tecnologias.

E há camadas sobre as quais nem todo mundo pensa. Quem é responsável por ações prejudiciais ou decisões equivocadas tomadas por uma IA? Se um carro que não usa motorista humano tiver que fazer uma escolha rápida no trânsito e isso resultar em algum acidente, quem se culpabiliza? Como atribuir responsabilidade em situações em que a autonomia da máquina desempenha um papel significativo? Esses dilemas exigem abordagens claras e sistemas de responsabilização para garantir que a IA seja utilizada de maneira ética e justa.

A necessidade de abordar questões como essas é incontestável, até mesmo pelo maior dos entusiastas, e diversas iniciativas buscam integrar princípios éticos na formulação de políticas para esse campo. A busca por diretrizes éticas robustas na interação com a inteligência artificial é fundamental para garantir que o progresso tecnológico esteja alinhado com os valores humanos e que as IAs contribuam positivamente para o avanço da sociedade. O diálogo contínuo e a colaboração entre comunidades éticas, desenvolvedores e usuários pode fazer a diferença nos moldes de futuro que estão se formando.

Entretanto, a complexidade do cenário demanda uma cuidadosa reflexão sobre quais ações devem ser tomadas e como orientar essas políticas. Ética na Inteligência Artificial nos diz que, se analisarmos várias propostas e iniciativas, será possível notar que: muitos documentos começam justificando a necessidade de políticas éticas para a IA, articulando princípios que servirão como base para recomendações específicas; esses princípios, frequentemente, derivam de códigos éticos profissionais e princípios éticos gerais; e diversas propostas rejeitam a ideia de uma IA superinteligente que assumiria o controle, concentrando-se em questões mais imediatas, como viés algorítmico e falta de compreensão dos desenvolvedores sobre seus próprios sistemas. 

Governos, como o dos Estados Unidos, enfatizam a autorregulação da IA, com intervenção governamental focada na monitorização da segurança e justiça das aplicações. Na Europa, muitos países incorporam a ética na IA em suas estratégias, destacando a importância da “IA explicável” para garantir a transparência e o direito à explicação, com uma abordagem centrada no ser humano. Princípios comuns, como transparência, responsabilidade, justiça e explicabilidade, são destacados em várias propostas, apesar das nuances culturais e abordagens específicas de cada região ou setor. Essa convergência destaca a grande questão global que justifica a leitura de Ética na Inteligência Artificial: é necessário domar o que estamos criando antes que seja tarde.

Coeckelbergh destaca outro ponto que parece ignorada, talvez por soar como um filme de ficção científica (Spielberg que o diga). Como lidar com uma inteligência capaz de sentir? Como tratá-la, vamos dizer, de maneira humana? 

Alicia Vikander no filme Ex Machina (2015). Foto: Reprodução.

A controvérsia em torno da suscetibilidade moral na inteligência artificial desencadeia uma reflexão profunda sobre nosso relacionamento com entidades artificiais. Ao imaginarmos uma IA superinteligente, surgem questionamentos sobre a moralidade de desligá-la, e até mesmo sobre a aceitabilidade de interações mais próximas. Pesquisas mostraram que, já nos dias atuais, pessoas criam empatia por robôs e hesitam em causar mal a eles. O caso real do cão-robô Spot, que foi lançado por seus desenvolvedores para testar justamente a empatia das pessoas perante à inteligência artificial, mostra respostas surpreendentemente empáticas. Ou seja, seres humanos não exigem muito de agentes artificiais e logo projetam sobre eles traços de pessoalidade ou humanidade. O exemplo do cão-robô Spot destaca a crescente necessidade de considerar a ética nas interações com entidades artificiais que podem se tornar parte integrante do nosso cotidiano.

A complexidade emerge quando confrontamos a ideia de responsabilidade moral em relação às IAs. A abordagem convencional, considerando as IAs como meras máquinas sem propriedades similares às humanas, é desafiada pela crescente intuição e experiência moral que nos leva a hesitar em maltratar uma IA. Diante disso, diferentes perspectivas éticas são apresentadas, desde a posição mais intuitiva que vê as IAs como ferramentas sem obrigações morais, até argumentos baseados na ética da virtude ou dever indireto. A controvérsia se intensifica quando se explora como as relações sociais, linguagem e cultura humana desempenham um papel na atribuição de status moral às IAs. A ideia de que esse status dependerá de como estão inseridas em nossa vida social sugere que, assim como tratamos animais de estimação, a moralidade em relação às IAs pode ser moldada pela interação humana, contexto e cultura.

Essa controvérsia não apenas instiga a ponderar sobre o status moral das IAs, mas também a repensar nosso papel enquanto juízes morais em um mundo cada vez mais permeado por tecnologias inteligentes. A intrincada trama ética que envolve a inteligência artificial torna evidente que a responsabilidade humana na concepção dessas tecnologias desempenha um papel determinante na definição dos valores incorporados por essas máquinas. Mark Coeckelbergh oferece uma análise perspicaz e para-todos dos desafios. Seu trabalho ressoa com ponderação e esclarecimento, o que é louvável considerando o terreno incerto sobre o qual pisa.

O desafio é abraçar divergências para, em conjunto, fazer com que as inteligências artificiais alcancem todo o potencial benéfico que têm. Mas a jornada ainda é longa e pode seguir em qualquer direção.

Estamos em pleno 2024 e, para a surpresa de alguns e incredulidade de outros, os ventos parecem soprar a favor do barco das relações não-monogâmicas. Esqueça o clichê do amor livre hippie que costumava vir à mente quando se pensava em conceitos que gravitavam em torno de um relacionamento afetivo mais abrangente. Esteja você a bordo ou não, o não-monogamismo consensual está aqui e, ao que tudo indica, não vai recuar tão cedo.

Na verdade, esse tipo de relação é um fenômeno bastante presente em todo o mundo há algum tempo, inserido inclusive em acordos matrimoniais. Paulatinamente, o processo de mudança comportamental vem acontecendo. É como diz a escritora e psicanalista Regina Navarro Lins: “Não foi de uma hora para outra que a separação foi considerada normal. Veio vindo. Quando você olha agora, não sabe dizer o momento exato em que se separar deixou de ser uma tragédia. É a mesma coisa com as relações múltiplas.”

Ou seja, o casamento, outrora uma instituição selada em parte pelo moralismo e em parte pelas convicções, agora se vê desafiado, e talvez até encorajado, pela crescente aceitação desse novo modo de se relacionar.

Antes de qualquer coisa, é importante colocar os pingos nos is. A não-monogamia não é exclusivamente focada na diversidade de relações, mas sim no rompimento com as normas monogâmicas, o que quer dizer que há variações de relacionamentos que se encaixam nessa ideia. “Poliamor” é a possibilidade de se envolver sexualmente com mais de uma pessoa, mas é também poder ter um envolvimento afetivo com alguém de fora da relação central. Já “relacionamento aberto” trata da possibilidade de relações sexuais casuais que não envolvem amor, sendo os episódios extra-relação mais pontuais e sem envolvimento emocional. E se de um lado do espectro está a monogamia, em que há exclusividade total com o parceiro ou a parceira, no outro extremo, há a “relação livre”, em que não existem regras e nem centralidade entre as relações. 

Nomenclaturas como essas ganharam destaque sobretudo a partir de 1972, quando George e Nena O’Neill lançaram o livro Casamento Aberto, um best-seller estadunidense que contribuiu para promover uma espécie de revolução sexual naquela década. A bem da verdade, os O’Neills tinham para eles que um “casamento aberto” não passava de um relacionamento em que cada parceiro teria espaço para crescimento pessoal e desenvolvimento de amizades fora do matrimônio. A maioria dos capítulos apresenta abordagens práticas pouco controversas para revitalizar o casamento em áreas como confiança, flexibilidade de papéis, comunicação, identidade e igualdade. A intenção dos autores, curiosamente, era somente livrar o casamento de seus danosos ideais antiquados e falsamente românticos, encontrando maneiras de torná-lo mais contemporâneo e leve. Não fazia parte dos planos fomentar um grande movimento em prol do poliamor. Mas, uma vez que chega ao mundo, as repercussões de uma obra podem fugir do controle daqueles que a conceberam — e disso os O’Neills sabem bem. 

No meio de suas tentativas apaziguadoras de revisar ideias ultrapassadas, foram mais “radicais” em um capítulo — obviamente, o capítulo que mais deu o que falar. Ele propunha a ideia de que um casamento aberto poderia, sim, incluir algumas formas de sexualidade com outros parceiros. Essa sugestão, mais do que quaisquer outras presentes no livro, entraram na consciência cultural e o termo “aberto” tornou-se sinônimo de casamento sexualmente não-monogâmico. Até então, o que quer que acontecesse em casamentos e relacionamentos que driblavam a monogamia não tinha uma denominação específica. Assim, ainda que não fosse sua proposta inicial, os autores não só foram bastiões da possibilidade de casais explorarem novas formas de intimidade e conexão emocional, mas também criaram a linguagem que faltava para dar mais palpabilidade àquilo que, ainda que numa escala pequena, já existia. A partir daí, o céu virou o limite. O livro teve um impacto significativo na cultura e contribuiu demais para a discussão sobre relacionamentos que fogem da convenção.

O debate, portanto, talvez não seja novidade. O que acontece hoje é um resgate que viria a se dar mais cedo ou mais tarde. Mas a questão é que ele vem ganhando um espaço que talvez nunca antes tenha tido. Com as redes sociais e a discussão mais franca sobre muitos temas que antes eram tabus, a monogamia passa por um período de questionamentos. “Nós temos que nos sintonizar com as mudanças das mentalidades porque o amor e o sexo são construções sociais”, reflete Regina. “Alguém vai dizer assim: ‘Ué, mas sexo e amor sempre existiram’, mas a forma de você amar tem que ser aprendida. Em cada período da história o amor se apresenta de uma forma. Essas expectativas e esses ideais que regem esse amor é o amor romântico. O amor romântico é péssimo, causa sérios prejuízos, porque traz expectativas de que os dois tem que se transformar em um só, o que é um horror.”

Sons de alarme ressoam: é verdade que a monogamia já não representa o que entendemos como amor nos tempos presentes? Seria essa uma crise? 

Se tomarmos produções culturais como reflexos de um zeitgeist, sim — e isso inclui o Brasil. A não-monogamia não é mais “coisa de seriado gringo”, uma vez que o fenômeno não está mais restrito a enredos estrangeiros que soam distantes e improváveis. Cada vez mais, a ideia está se infiltrando nas produções culturais brasileiras. Lembra de A Porta ao Lado, filme de Julia Rezende com Bárbara Paz e Letícia Colin? A história, lançada em 2021, se debruça sobre a dualidade entre o amor monogâmico e o poligâmico por meio do convívio de dois casais de vizinhos muito diferentes entre si. E de Lov3, série brasileira do Amazon Prime? Na produção de Felipe Braga, três irmãos simplesmente se recusam a vivenciar o amor da maneira “quadrada” dos pais. E o poliamor ganhou espaço em séries aclamadas, como no notório Succession, em que Siobhan Roy e Tom Wambsgans, casal que vive às turras, explora possibilidades que se esquivam da monogamia — embora, claro, não seja esse um exemplo de relacionamento não-monogâmico saudável.

Se antes a monogamia tradicional era o padrão a ser representado, sendo a traição sempre uma fonte interminável de conflitos e discussões que ditavam os altos e baixos de uma narrativa, roteiristas e produtores estão agora explorando relações abertas para criar novos tipos de dramas envolventes. Isso não aconteceria se a mentalidade dos relacionamentos não estivesse, de fato, se transformando na vida real também. Ainda que se crie tendências comportamentais a partir de obras culturais, abordar tal assunto sem que isso fosse pauta na vida diária das pessoas, como algo com o qual elas podem se relacionar em algum nível, soaria como irreal e até antiquado, já que muita gente automaticamente ainda liga relações não-monogâmicas a décadas passadas. 

Ao examinarmos o quadro, não podemos ignorar a influência da realidade na arte. De acordo com pesquisas norte-americanas — uma sociedade que, em geral, é conservadora —, em 2023, 51% dos adultos com menos de trinta anos consideram o casamento aberto “aceitável”. Cerca de 20% dos americanos relatam ter experimentado alguma forma de não-monogamia. Seria inviável pensar em números assim há poucos anos. Não por um acaso, o caso Will e Jada Pinkett Smith se alojou no ideário popular, porque, além da popularidade gigantesca dos dois, também contribuiu para uma discussão que estava acontecendo, fazendo com que todas as polêmicas do casal gerassem uma multiplicidade de respostas por parte do público.

Mas por que isso? Adê Monteiro, psicóloga e sexóloga, acredita que cada um tem que “escolher o seu difícil” e que, na teoria, a não-monogamia oferece uma leveza que a monogamia muitas vezes falha em proporcionar, o que não quer dizer que seja fácil. “É difícil viver a não-monogamia também”, explica ela, “porque nós temos ainda uma estrutura de monogamia bastante forte. Essa estrutura tem, inclusive, base genética. A gente tem uma estrutura de romantismo, de patriarcado, é muita estrutura monogâmica para você, de uma hora pra outra, desconstruir isso.” O aspecto de aprisionamento conceitual é bastante relevante, já que leva em conta a hipótese de o panorama psicossocial ser, no final das contas, a maior das barreiras. E Regina Navarro Lins entra para o coro de maneira categórica: “Enquanto não se mudar aspectos como controle, possessividade, ciúme, desrespeito à individualidade do outro, o casamento não vai funcionar.”

Aqui no Brasil, vale citar a empreitada que aprovou na Câmara, em dezembro do ano passado, o projeto de lei que proíbe o poliamor. A Comissão de Previdência, Assistência Social e Família da Câmara dos Deputados aprovou o projeto que proíbe o reconhecimento de uniões poliafetivas com nove votos a favor da aprovação e três contra. A comissão é a mesma que, em outubro de 2023, aprovou um projeto que proíbe o casamento civil homoafetivo. Sempre haverá aqueles que apontam o dedo para qualquer formato que não seja o binarismo heteronormativo, condenando-o como “subversivo”. Mas, de subversivo, o amor não tem nada. Sob uma perspectiva poética, talvez sim; mas, sob uma perspectiva legal, definitivamente não.

Então, depois de muito pelejar e enfrentar todo tipo de preconceito, os relacionamentos não-monogâmicos naturalmente recuperaram seu lugar ao sol. Não fizeram esforço para que isso acontecesse, somente esperaram nas sombras a sua hora chegar — e, mais do que nunca, estão entre nós. Em meio a muitas novas visões de mundo que estão surgindo, essas formas de amar voltaram com tudo. Entre muitos obstáculos superados, os não-monos estão desafiando, de uma maneira muito particular (e, por isso, forte), a ideia convencional de casamento. Mas veja bem: isso não quer dizer necessariamente que estão desafiando o casamento em si. Não significa que estejam batendo de frente com a ideia do matrimônio como a conhecemos. 

Ao invés de se postarem como verdadeiras ameaças à instituição matrimonial, têm um arcabouço argumentativo para fazer com que os relacionamentos não-monogâmicos emerjam, na realidade, como uma possível salvação de uma instituição que vem perdendo popularidade há décadas. Não é mais apenas sobre “trocar” de parceiros, sobre não deixar de explorar caminhos sexuais, sobre aproveitar os “bons anos” antes da decadência física. Talvez ela até se apoie nesses pontos em alguns casos, mas a não-monogamia presente é sobre incentivar relações mais profundas e duradouras, reinventando as leis antes impostas e oferecendo uma perspectiva mais flexível e, acima de tudo, emocionalmente mais sustentável.

Sob essa ótica, é curioso pensar como, ao chegarem a um consenso de que a monogamia não será o caminho de um relacionamento, pessoas possam chegar a um compromisso ainda mais forte entre si. Uma coisa não exclui a outra e o que quer que permita que pessoas se amem mais e melhor deve ser reconhecido e validado. Isso porque, no fim, o casamento em si não é o maior problema. O que dá uma má fama à instituição é, principalmente, todos aqueles preceitos que tomamos como naturais e incontornáveis. Regina Navarro Lins resume bem: “Eu só acredito que uma relação funcione bem quando houver respeito ao jeito do outro ser, se comportar, pensar. Quando houver liberdade de ir e vir, ter amigos em separado, programas independentes e não houver controle algum da vida do outro. A maioria dos casamentos nunca foi assim. As mulheres não podiam se separar, não trabalhavam, não tinham como se sustentar. Havia aquela ideia de casamento ‘até que a morte nos separe’. Também a morte chegava muito antes, agora a morte chega depois.” 

Difícil pensar na monogamia perdendo todo o seu viço. Isso talvez nunca ocorra, ainda que seja possível que ela se veja na defensiva em seu corner, porque suas ideias ainda correm nas veias dos corpos sociais. Mas os tempos pedem que ela se adapte o quanto antes, pelo bem de todos os envolvidos. E, ufa, quem sai ganhando é o amor. As pessoas podem optar por um relacionamento não-monogâmico por várias razões, da atração por múltiplos gêneros até um rechaço à limitação imposta pela norma cultural da monogamia. Mas, seja qual for a motivação, é uma possibilidade, e quanto mais possibilidades de amor tivermos, melhor. O que a sociedade parece nos dizer é: vamos lá, finalmente estamos preparados para o poliamor. Resta saber se estamos igualmente prontos para exercitar a sinceridade, a conversa franca, a transparência em nossos desejos e a ética nos nossos afetos.

Claro, um relacionamento aberto é feito de humanos e, sendo assim, não está isento de desafios — mas o preconceito não pode ser um deles.

Ilha Grande (2020), de Luiz Zerbini. Publicado em Luiz Zerbini: Sábados, domingos e feriados (Editora Cobogó).

“O agudo precisa de espaço. É preciso abrir o caminho para aquilo que exige um pouco mais de nossa voz. Abra bem a boca e deixe entrar o ar. Se acostume com esse outro som que sai de dentro de você. Expanda o peito para sentir. Não tema a força da nota, apenas se entregue a ela“ parecia interpretação de psicanalista, mas era, na verdade, um conselho de Roberta, a professora de canto.

Após 20 anos, a mulher decidiu retomar as aulas de canto. Foi preciso ganhar um mapa astral da prima de aniversário para que ela se lembrasse desse assunto.

“O que você faz de hobby?”, perguntou a  astróloga. “Seu ascendente precisa que você exercite seus hobbies”.

Achou aquilo uma bobagem, pois, no fundo, não acreditava em nada, e ao mesmo tempo acreditava em tudo. Mas a tal frase ficou rodando na cabeça da mulher como aqueles sabiás laranjeiras, que começam a cantar às três da madrugada no início da primavera.

Havia respondido à astróloga que seu hobby era fazer caminhadas. Mas ouviu como resposta: “Isso não é suficiente”. Então decidiu que era hora de voltar a cantar. Algo que tinha começado a fazer aos 19 anos, numa escola de bairro, quando saía da faculdade. Foi o que  a salvou de uma depressão, após um término de um namoro. Gostava de cantar a música Paralelas, de Belchior. “No Corcovado, quem abre os braços sou eu. Copacabana, essa semana o mar sou eu. Como é perversa a juventude do meu coração, que só entende o que é cruel, o que é paixão .”

Agora ela estava adulta, seu coração era definitivamente menos perverso com ela mesma e menos cruel. Além disso, tinha mercado para fazer, cartolina de filho para comprar, aniversário de criança para buscar, festa de tia avó para prestigiar. Mas não, ela não tinha um hobby.

Então se lembrou de como um dia gostou de cantar, procurou uma escola perto de casa, para não atrapalhar nem o trabalho, nem o almoço dos filhos.

Na primeira aula, a professora perguntou o que ela gostava de cantar. Sem pensar muito, respondeu: Joni Mitchell. E que sabia a letra de cor, como dizem os gregos, pelas cordas do coração. A professora achou ousada a nova aluna, mas topou tocar no piano para a A case of you: “I could drink a case of you and still be on my feet. I would still be on my feet”.

Quando reencontrou Joni em sua voz, ainda que fosse uma imitação barata, lembrou-se da moça que saía correndo da faculdade para as aulas de canto, ali perto da Rua Maria Antônia, lugar onde um dia, seu pai também foi jovem.

Na graduação, um professor costumava dizer que, quando criança, dormimos com os braços para cima, livres e entregues. É conforme apanhamos do destino, ao longo da vida, que vamos dormindo encolhidos, cada vez mais. Foi disso que se lembrou quando abriu o peito, dando espaço para o agudo. Ao cantar, não estava apenas dando espaço para a voz, mas para outra versão de si mesma – outras facetas que andavam perdidas, entre ondas interestelares do tempo e do espaço.

É preciso abrir o caminho e ressuscitar aquela que já fomos e que ainda habita dentro de nós. Certa vez, numa aula sobre Roma, ouviu que a cidade era uma mina de si mesma. Ou seja, a sua história sempre pode ser reencontrada dentro de si, basta cavar .

Somos minas de nós mesmos, não podemos desistir daquilo que um dia nos fez brilhar os olhos. Basta cavar.

Bendita astróloga. Bendita a Roberta. Salve Joni Mitchel.

*Dedico esse texto a Roberta, que nesse próximo mês estará dando a luz. Obrigada por me devolver minha majestade o sabiá.

Sumário de plantas oficiosas: um ensaio sobre a memória da flora, do escritor e crítico colombiano Efrén Giraldo, combina uma rica iconografia a memórias pessoais, comentários literários e análise social para se debruçar sobre o papel e o poder curativo das plantas em nossas vidas.

Além de escritor, o autor nascido em Medellín é curador de arte, crítico, professor e pesquisador da Universidade Eafit. Com uma atuação ativa no debate sobre artes, literatura e cultura na Colômbia, já publicou outros trabalhos, incluindo Los límites del índice (2010), Entre delirio y geometría (2013) e La poética del esbozo (2014). Agora, com este que é seu primeiro trabalho traduzido para o português e lançado em solos brasileiros, foi vencedor do Prêmio de Não Ficção Latinoamerica Independiente. 

Capa de Denise Yui para a edição brasileira, lançada pela Editora Fósforo.

Diga a verdade: você já parou e pensou, de fato, sobre as plantas? Tudo bem se a resposta for “não”, pois Efrén Giraldo felizmente já pensou. Em uma mistura bem encontrada entre erudição e irreverência, o autor propõe esse olhar raro, mais aprofundado sobre a flora, fazendo com que as aulas de biologia se somem às aulas de sociologia e filosofia. A onipresença das plantas em nossa existência comumente é tomada com certa indiferença, no sentido de que tomamos tal existência como algo natural, partindo do pressuposto de que as plantas que estão nos circundando o fazem porque, bem, é aqui que elas deveriam estar. Onde mais estariam? Mas, se partirmos para uma proposta mais reflexiva — algo que se assemelha à perspectiva sociológica dos povoados de uma determinada terra, por exemplo —, concluímos que elas têm muito a nos ensinar sobre as andanças que espalham espécies e a superação de traumas coletivos (incluindo a pandemia de COVID-19, que estava no seu auge no período em que o livro foi escrito). 

Giraldo, assim, apresenta uma mescla inusitada de registros, saberes e emoções, destacando a resiliência da natureza diante da ação humana e convidando os leitores a repensarem suas ações em relação ao meio ambiente.

O livro é um tratado sobre plantas, tanto reais quanto imaginárias, sendo uma obra que pensa o fascínio que elas exercem. No entanto, a coisa toda vai além, ao abordar a importância crucial da ficção, especialmente em tempos em que violência e política parecem indissociáveis. Os capítulos do livro buscam reunir uma constelação de ornamentos, árvores, comidas, venenos e seres vegetais conhecidos e desconhecidos, provenientes da memória, experiência e diversas representações literárias, científicas e artísticas.

Juan Manuel Echavarría, elemento da série “Corte de florero”, (1997)

A nota do autor, que serve como preâmbulo para o livro, destaca que os textos exploram temas como transplantes, extinções e invasões, contribuindo para o inventário de ficções e iconografias das plantas. Escritos durante o confinamento pandêmico, eles formam um diário imaginário sobre presenças e ausências, representações e perplexidades da flora em um momento de dificuldade extrema.

Para quem lê essas linhas descritivas, talvez seja até difícil de visualizar o que, afinal, é este Sumário de plantas oficiosas. Um exemplo vem a calhar. 

No início da jornada literária proposta pelo colombiano, o autor apresenta as bases do livro com o capítulo inaugural, cujo título é Das árvores peregrinas às floras narradas – Uma invasão da beleza. O conceito floresceu durante o septuagésimo quinto aniversário do devastador bombardeio de Hiroshima, ocorrido em 2020, marcando o ponto de partida para uma reflexão profunda sobre a resiliência das árvores no pós-tragédia. Com habilidade, o autor tece uma teia de conexões entre o reino vegetal e a consciência humana, indagando sobre a origem das plantas e explorando minuciosamente o impacto da história, cultura e política na paisagem, muitas vezes relegada ao simplório “o que está aí”. Nessa narrativa perspicaz cheia de insights valiosos, ressalta-se a imperiosa necessidade de reconhecer não apenas a presença das plantas, mas também a intrincada relação que elas mantêm com a tapeçaria histórica e cultural. Linha após linha, começamos a olhar com atenção para os seres que estão do nosso lado e entender que há maravilha no pequeno e no cotidiano.

Mas Giraldo não se limita a contemplar apenas o mundo vegetal. Ele adentra o domínio da neurobiologia das plantas, valendo-se das palavras de seu pioneiro, Stefano Mancuso, para destacar a incrível capacidade das plantas de se moverem e adaptarem, desafiando a preconcebida noção de sua estaticidade — “Se os extraterrestres nos visitassem”, escreve ele, “buscariam as plantas como interlocutores, não os humanos.” Se com Cosmos, de Carl Sagan, e Uma breve história do tempo, de Stephen Hawking, a astrofísica ganhou um destaque sem precedentes como o ponto de partida para reflexões maiores, Mancuso nos últimos anos vem fazendo o mesmo com a biologia. E Efrén ajuda, e muito, nessa reafirmação da área. Ao explorar a difusão do conhecimento botânico através de correspondências entre ilustres cientistas como Carlos Lineu, José Celestino Mutis, Francisco José de Caldas, Alexander von Humboldt e Jules Émile Planchon, cria no leitor a necessidade de abaixar o olhar para esquecer um pouco das estrelas, planetas e galáxias. É certo: as plantas estão aqui e têm muito a nos dizer. 

A narrativa ganha vivacidade e ainda mais palpabilidade ao se dedicar também a esclarecer a importância crucial das ilustrações botânicas, delineando a sutil diferença entre representação artística e captura realista das plantas. Com a apreciação de ilustrações antigas, evidencia-se o impacto singular que o estilo realista e analítico das composições botânicas exerce na representação das plantas. A partir desse capítulo inaugural, começamos a questionar, a exemplo do que Mancuso escreve, se há uma maneira estritamente vegetal de compreender. 

Sumário de plantas oficiosas emerge como uma obra singular e poliédrica que desvela a presença das plantas em nossas vidas, estabelecendo eloquente conexão entre a natureza e os intrincados fios da cultura, história e experiência pessoal do autor. Do começo ao fim, é uma experiência de leitura enriquecedora e instigante da interseção entre a flora e a condição humana.

Deu para visualizar o que é a obra premiada de Efrén Giraldo ou ainda estamos no campo da abstração? Se a segunda opção ressoar, uma nova perspectiva de mundo se apresenta como a solução, que é, com a mente aberta, ler Sumário de plantas oficiosas.

Obra de Aislan Pankararu, capa da edição Amarello Futuro Ancestral.

Não sei exatamente quando os insetos chegaram, mas lembro do nó que surgiu enlaçando meu peito, minha boca e meus ouvidos. Os insetos faziam muito barulho e parei de escutar minha voz. Eu já não era muito de falar. Não por falta do que dizer, mas por excesso de palavras na cabeça e de amor no coração. “Não tem como não te amar”, me diziam. E eu respondia, satisfeita, sentindo o cansaço nos olhos. 

 Estudei numa escola só de meninas, muito católica e coordenada por freiras que tinham cabelos curtíssimos. “Tudo o que é feito com amor tem sentido de eternidade”. Essa frase, que nunca saiu de dentro de mim, foi dita por uma freira de cabelos cacheados, que usava óculos de grau com lentes Transitions e tinha uma alegria honesta no sorriso. Ela falava de amor como quem respirava. Achei aquilo bonito, porque desde pequena me sentia sufocada e entupida. Respirar era amar? Esse dito se instalou em mim, revirou minha linguagem como um vírus, e a sensação de areia nos olhos aumentou.

Uma das minhas atividades preferidas é gritar, e esse também era o hobby de quase todas as meninas na escola. Conseguia encontrar todas com o olhar e via os insetos instalados dentro das suas bocas, cada uma com seu motivo. Gostava de olhar para as garotas, sentir toda a força, a raiva, a alegria, o desespero, o alívio, a dor delas. A gente inventava desculpa para gritar na hora do recreio, quando era permitido se rebelar. As freiras estavam ocupadas com alguma danação que as meninas faziam: puxões de cabelo, menstruação surpresa ou gravidez surpresa, uniformes customizados com decote, desobediência, meninas que se negavam a fazer a oração, rebeldias em geral. Ainda consigo escutar as freiras com vozes agudas cantando alto na oração, às sete horas da manhã: “Espírito, espírito”.

Desde os meus oito anos de idade eu carregava comigo duas bananas, papéis cheios de anotações, um terço e um livro. Assim eu me sentia preparada para o que estivesse por vir. Sentia medo e esperança de que algo mudasse completamente o rumo da minha vida. O alarme tocou e me fez voltar para a realidade. 20h59. A caixinha de som que tocava a mesma música há 40 minutos denunciava a bateria fraca. “Não, não posso parar, se eu paro, eu penso, e se eu penso, eu choro.” A voz dramática de Moacyr Franco saía rouca entre os livros da minha estante e ocupava todo o apartamento de 36m2. Fui tomada pela angústia, e os insetos se agitaram: à meia-noite as inscrições do concurso iriam se encerrar. 

Pensei na vida tranquila que teria se passasse no concurso e no emprego em que eu estava, em que o trabalho consistia em fazer contas para que nenhum dos meus chefes tivesse surpresas financeiras. Eu tinha todo o controle do que saía, do que entrava, o que comprar, como comprar. O meu chefe me chamava na sala dele e quase sempre começava a comer uma barra de cereal com tanto chocolate que me deixava enjoada. Ele dizia, com a boca cheia de chocolate e cereais, que só confiava em mim para cuidar dele e do dinheiro dele: “Você será minha eterna cuidadora”. Cuidado era outro nome que eu dava para o amor, e me envolvia nele como uma detetive que fareja vidas que precisam de cuidado. 

Eu me sentia um grande inseto rodeando a vida das pessoas. E eu estava cheia delas, que pediam tudo de mim enquanto eu oferecia tudo que tinha. Me ocupava das pessoas, queria satisfazê-las, amá-las, servi-las. Queria descobrir qual era o inseto que as pinicava, fazer um antídoto com as próprias mãos. Olhava os movimentos das pessoas para tentar antecipar tudo. É disso que você precisa? Você precisa de ajuda? Como posso ajudar? Queria desvendar seus problemas. Vivia cheia de soluções e certezas. Vivia entupida. Queria solucionar a vida antes do amanhecer, e todo dia acordava assustada às sete horas da manhã. “Espírito, espírito, que desce como fogo”. A música tomou meu pensamento, e eu sabia que me esqueceria de tudo. Comecei a fumar o cigarro que tinha comprado, apesar de não fumar. Eu precisava tragar alguma coisa na tentativa de matar os insetos dentro de mim. Não consegui. Nunca consegui fumar. Até hoje consigo ouvir minha mãe gritando meu nome com um cansaço tremendo na voz. Eu morria de medo desse cansaço, porque achava que algum dia ela diria que estava cansada de mim. “Se comporte, minha filha, seja uma boa menina”, ela me dizia. 

Sentia falta de gritar e de ser rebelde; isso me ajudava a tirar o peso do peito. Fiquei viciada em parques de diversões, e reservava o último final de semana do mês para gritar em todos os brinquedos. Foi a forma que encontrei de botar os insetos para fora. Havia algo na minha voz desesperada na montanha-russa que abria espaço para eles saírem. Era o único lugar em que me permitia gritar. “Tudo o que é feito com amor tem sentido de eternidade.” Tinha medo da freira com lentes Transitions aparecer e falar sobre amor. Todos os dias eu me lembrava de esquecer e seguia em frente com o desprazer colado no meu corpo. Estava trancada junto com os insetos, que faziam um barulho estrondoso. Tinha medo de falar e meus insetos saírem um por um, revelando tudo o que sabiam sobre mim. Aprendi a sorrir e a falar somente o necessário. Eu era prisioneira e aprisionava os insetos. Vítima e algoz. Me sentia um caquinho de dor que passava pelo mundo. Acho que foram tantas as palavras que me magoaram que acabei me afogando dentro de um abismo sem fim, como se não pudesse me manifestar toda vez que alguém dizia algo cortante. Eu me entupi de tantas vidas que vivia sem sequer saber da minha. Tinha medo de nunca mais chorar. 

21h33. Chegou mensagem de Camila, minha melhor amiga. “Sua vaca, se inscreva nessa merda! Que se fodam os outros, que se fodam os outros”. Camila é uma produtora de eventos renomada, conhece muitos artistas e é a presença mais querida e solicitada em qualquer festa. Nem parece mais a menina desengonçada que eu conheci há 15 anos no colégio das freiras; agora é loira, alta e ostenta um nariz enorme, que a deixa ainda mais poderosa. Eu tinha muita inveja de Camila, porque ela falava alto e não tinha medo de ser uma menina má. Seus insetos saíam em forma de palavrão. 

Fui moldando meus silêncios como as massinhas de modelar que usava na escola, enquanto minha melhor amiga continuou na missão de gritar e se rebelar. Camila estava certa: eu adorava fazer contas, mas não só as de matemática, eu gostava também de calcular cada passo que daria, quanto tinha na minha conta bancária e como as pessoas me veriam — sempre sorridente, controlada, mesmo que milhões de insetos me corroessem por dentro. 21h46. Mais uma mensagem de Camila, dessa vez um áudio que denunciava sua voz bêbada. “Sua égua, não esquece de se inscrever, caralho! Já preencheu a autodeclaração?” 

O documento estava aberto há dias, mas os insetos haviam dominado a minha mão desde o dia em que o havia lido. “Como você se autodeclara? Quais seus traços?” Que perturbação. 22h. Os insetos que estavam dentro de mim saíram para fora da minha pele. Eles aumentaram de tamanho, não eram mais os mesmos insetinhos, agora pinicavam. Levantei desesperada, tomei o resto de vinho que tinha na taça. Como sempre, decidi limpar todos os cantos da casa com água sanitária. Eu tinha a sensação de que conseguiria matar os insetos com o cheiro ruim que ficava. Lembrei de todas as vidas que entraram em mim, como se eu tivesse uma fenda que as atraía. Vou abrindo espaço e as vidas-insetos vão entrando, fazendo forma dentro de mim. O peito pesou ainda mais. Meu coração pareceu ter aumentado de tamanho, meu corpo se agitou. Eu estava infartando? 

22h46. A caixinha de som ainda tocava a mesma música. “Eu canto, eu choro e eu grito e o mundo, tão bonito, não consegue me entender”. Meu pai adorava escutar essa música. Ele dançava e dramatizava enquanto cantava, e eu ria, era uma criança apaixonada vendo seu pai se divertir. Isso fez com que eu nunca prestasse muita atenção na letra; é como se as palavras fossem substituídas por meu pai cantando no seu microfone imaginário. Nos momentos em que me sentia entupida, imitava meu pai e cantava junto com ele. “Não, não posso parar, se eu paro, eu penso, se eu penso…” Caí no chão sem perceber. O celular tocava, mas eu não conseguia chegar até ele. Olhei para as plantas da minha casa como quem pede aconchego e cuidado. As plantas foram a única coisa que decidi levar comigo.

O meu exercício diário era esquecer de mim para que as freiras com cabelos curtíssimos não me punissem, para que a lentes Transitions não me cobrassem cuidado e amor. Todos os dias lembrava de esquecer. Mas as plantas ficaram. A única lembrança que trouxe para a grande e assustadora metrópole em que morava. Eu estava infartando? Morrer era assim? “Não, não posso parar.” Seria a primeira mulher que morreria de amor. “Espírito, espírito, que desce como fogo, vem como em pentecostes e enche-me de novo.” O coração aumentava a cada memória que me invadia, dilacerava, cortava. Os insetos gritavam e se rebelavam.

Não queria mais nada. Fui inundada pelo descontrole, pelo surto festivo, pela vida, pela morte. E se eu quiser o meu querer? Quanto mais tentava esquecer e sufocar os insetos, mais o coração aumentava. Uma lembrança nova me invadiu, e enxerguei com meus olhos pequenos minha mãe dançando e cantando na sala junto com Emílio Santiago: “Mas o que é a vida, afinal?”.

Comecei a tossir de forma descontrolada. Vi todos os insetos saindo de mim. Eu estava infartando? “Espírito, espírito… E enche-me de novo.” Me senti desgovernada, desequilibrada e louca. “Seja boazinha.” As plantas se levantaram e começaram a arrumar a casa. Elas tinham olhos profundos, que iluminavam a sala inteira, e andavam devagar, observando a casa, ao mesmo tempo em que eram ágeis para fazer o necessário. Elas começaram a preparar um chá com suas folhas enquanto conversavam entre si e sobre o corpo caído que tinha sido esquecido por mim. Quando tentei levantar, escutei a grandiosa gargalhada delas. Elas cresceram ainda mais, e me senti minúscula num apartamento cheio de plantas vivas e falantes. 

— Ela não quis lembrar de nada, agora tá aí, caída.

— Por isso que não sabe para onde ir, não sabe mais de onde veio — disse uma planta que tirava um ramo de si. 

Meu corpo estava imóvel, mas eu via tudo o que estava acontecendo. As plantas estavam cuidando do meu corpo-cabeça. As memórias me invadiram junto com as cantigas que minha avó cantava. Lembrei do pano que adornava sua cabeça e da sua gargalhada, que parecia infinita. Lembrei das histórias mirabolantes que meu pai contava, da sua cor e do seu coração.

As plantas continuavam me molhando com a água que elas produziram. Escutei as rezas de minha mãe e sua voz que dizia “estou aqui”. As memórias me invadiram tanto que resolvi chamá-las de insetos. Memórias que acreditava com todas as minhas forças que poderiam ser lavadas, deixadas de molho na água sanitária, enxugadas, deixadas para secar. Eu estava seca e também cheia de insetos. Eu estava entupida.

As plantas entoavam um canto junto com suas gargalhadas, dançavam na sala, junto do meu corpo-cabeça. Cheguei lá tomada pelos insetos. Não havia muito mais de mim além disso. Cheguei levada pelas vozes da memória que eu quis esquecer. Cheguei e fui tomada por tudo o que veio antes de mim. O espaço-tempo era uma invenção. Quando fiquei, me tornei viva. Senti todo o impacto que a água trouxe. Senti a vida, a água viva em mim. Me tornei água e nada sabia. Minhas certezas boiavam, meu corpo-cabeça já não era mais o mesmo. 

Acordei esvaziada e com os olhos cheios de lágrimas. Estava molhada, banhada de afeto e de lágrimas. Os insetos se foram e eu fiquei. 23h. No notebook havia uma mensagem. “Sua inscrição foi confirmada”. 

#47Futuro AncestralCultura

Sankofa: ideias ancestrais para a construção de futuros possíveis

por Priscila Carvalho

Nêgo Bispo
Ailton Krenak

As dinâmicas da sociedade capitalista nos trouxeram para um lugar de grande individualismo e distanciamento do ser. O valor de nossas existências tem sido diretamente relacionado ao quanto podemos produzir e consumir. 

Em paralelo, os reflexos da ação humana sobre o planeta nos impõem que recalculemos a rota. É dado que o modelo de humanidade projetado pelo paradigma colonial falhou e, caso não construamos novas possibilidades, caminhamos a passos largos para o fim.

Abdias do Nascimento definiu Sankofa como o ato de retornar ao passado, ressignificar o presente para construir o futuro. Partindo desta definição, entendemos a necessidade de revisitar ideias e trajetórias ancestrais para criar um novo amanhã.

Estas ideias ancestrais não ficaram no passado. Elas seguem existindo na vivência cotidiana de muitas comunidades, inclusive, muitas lideranças destas comunidades têm lutado para se fazer ouvir, como verdadeiros porta-vozes de uma terra que grita por socorro.

A fim de representar estas vozes, pretendo neste texto dialogar com as contribuições de Ailton Krenak e Antônio Bispo dos Santos, o mestre Nêgo Bispo.

 “Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui.”
Ailton Krenak, Futuro Ancestral

Ailton Krenak é uma das grandes lideranças na luta pelo direito dos povos indígenas, além de ser ambientalista e doutor honoris causa pela Universidade de Juiz de Fora.

Uma característica marcante de sua atuação é o diálogo com a sociedade não indígena. Um forte exemplo desse poder de comunicação foram as lives realizadas por ele durante o isolamento social decorrente da pandemia da Covid-19.

Em seu livro intitulado Futuro Ancestral, Krenak nos convida a questionar as práxis eurocêntricas que estruturam a nossa sociedade desde o período colonial. Em um dos textos que compõem o livro, ele diz: 

Para começar, o futuro não existe – nós o imaginamos. Dizer que alguma coisa vai acontecer no futuro não existe nada de nós, pois ele é uma ilusão.” 

Em contrapartida, o passado é ancestral, pois já esteve aqui. Neste ponto Krenak propõe o resgate dos valores dos nossos antepassados, valores que têm sido paulatinamente abandonados em prol da incerteza que é o futuro. Grande parte dessa incerteza se configura pela relação exploratória que o sistema capitalista estabelece com a natureza. 

Estamos diante de um modelo de existência em declínio. Já nos ronda a dúvida sobre o que será da humanidade diante das crises climáticas, sanitárias e sociais que se impõem como resposta à lógica de consumo pautada no esgotamento, até que se use a última gota de água, petróleo e suor visando o máximo lucro. Krenak sugere que a resposta está no hoje, mais especificamente, nas crianças. É essa a geração que questiona os padrões e interliga passado e futuro bebendo da fonte das contribuições dos que vieram antes para lutar pela chance de um porvir para si e para sua descendência. 

Krenak nos diz que o futuro é incerto, mas nos diz também que é nesse futuro que moram nossos sonhos, que são também os sonhos de nossos ancestrais.

“Um rio não deixa de ser um rio porque conflui com outro. Ao contrário: ele passa a ser ele mesmo e outros rios, ele se fortalece.”
Antônio Bispo dos Santos, Contracolonização e confluência

Antônio Bispo dos Santos, conhecido também como Nêgo Bispo, é um relator de pensamentos e saberes e líder quilombola que constrói sua trajetória de vida e sua produção intelectual a partir do modelo de organização dos quilombos.

Nas comunidades afro-pindorâmicas, como o autor nomeia os povos de origem africana e indígena, um dos principais valores a ser considerado é a oralidade. Nêgo Bispo se coloca como um tradutor da oralidade para a escrita e da escrita para a oralidade, ampliando assim as possibilidades de articulação e troca de conhecimentos quilombolas com o ambiente acadêmico. 

Em 2007, lança seu primeiro livro, Quilombos, modos e significados, reeditado em 2015 com novo título, Colonização, Quilombos: modos e significações. O principal conceito desenvolvido nesta obra é a ideia da contracolonização. Contracolonizar é se colocar em oposição aos moldes de existência euroreferenciados que empurram todos os biomas e espécies, inclusive a humana, para o caminho da extinção.

Ele diz:

Quando completei dez anos, comecei a adestrar bois. Foi assim que aprendi que adestrar e colonizar são a mesma coisa. Tanto o adestrador quanto o colonizador começam por desterritorializar o ente atacado quebrando-lhe a identidade, tirando-o de sua cosmologia, distanciando-se de seus sagrados, impondo-lhe novos modos de vida e colocando-lhe outro nome. O processo de denominação é uma tentativa de apagamento de uma memória para que outra possa ser composta.

Esse “adestramento” nos distanciou das tecnologias desenvolvidas por nossos antepassados. Desaprendemos o fazer orgânico para aprender o sintético. 

Segundo Bispo, constituir com a terra uma relação pautada na biointeração pode ser um dos caminhos possíveis para o resgate destes saberes orgânicos que foram subalternizados. Se observarmos estas proposições com olhos atentos, perceberemos a sua validação através de práticas já estabelecidas e que funcionam há séculos em espaços como quilombos, aldeias e terreiros, exemplos de comunidades autossuficientes, colaborativas e voltadas para a produção de prosperidade, não de escassez, onde o que tem valor é ser, não obter.

A contracolonização pensada por Nêgo Bispo se dá também através do conceito de confluência. O autor costuma iniciar suas falas com a frase “somos começo, meio e começo”. Essa circularidade que se assemelha muito com a filosofia ubuntu, dos povos Bantu, estabelece uma existência coletiva onde se é com e a partir de quem veio antes e de quem ainda virá, ou como o mestre costuma dizer, geração avó, geração filha e geração neta. Estar em sintonia com as nossas raízes nos fortalece e impulsiona, como as águas de um rio, que em confluência com outro não deixa de ser ele mesmo, mas, através da troca, se engrandece e engrandece também os outros com os quais flui. 

Plantar e cultivar sementes para colher bons frutos — a educação como base para a perpetuação dos saberes ancestrais

Entendemos a partir das ideias de Ailton Krenak e Nêgo Bispo que as nossas melhores chances de construir futuros possíveis para a humanidade estão em manter vivas as sementes ancestrais através das novas gerações.

É comum em muitas culturas africanas e indígenas que os mais novos se sentem com os mais velhos para aprender oralmente. Mas, como expandir o alcance destas trocas? A resposta pode estar na escola. 

A grande virada nesse jogo envolve a construção de uma educação que se comprometa a romper com a narrativa dominante e que se abra para fomentar em nossas crianças uma consciência de coletividade, e esse entendimento só se torna possível ao apresentar para estas crianças cosmologias plurais.

Gostaria de referir aqui dois exemplos de instituições de ensino que têm se comprometido a cultivar saberes ancestrais em suas crianças. São elas a Escolinha Maria Felipa e a Escola Dandara de Palmares.

A Escola Afro-brasileira Maria Felipa funciona no Bairro do Rio Vermelho, na cidade de Salvador, Bahia. A instituição é privada, logo, não recebe nenhum apoio do Estado para manter suas atividades.

O projeto desta escola foi idealizado em 2017 por jovens negros educadores, que visavam para seus filhos um espaço educacional centrado nos valores civilizatórios africanos e ameríndios. No entendimento destes educadores, é preciso retornar às origens ancestrais para construir novas formas de existência possíveis na diáspora. 

A Escolinha Maria Felipa reforça a importância da valorização de referências negras. Os idealizadores da instituição avocam para si esse princípio já ao nomear a instituição e dar visibilidade a esta grande mulher negra, estrategista, quilombola que foi silenciada pela história dita oficial. Para além de Maria Felipa, o projeto político-pedagógico da escola apresenta aos seus alunos referências diversas de lideranças negras e indígenas, que muito provavelmente eles não acessariam em instituições não comprometidas com uma educação decolonial. 

Já a Escola Comunitária Quilombista Dandara de Palmares está localizada no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. É uma organização autônoma gerida por moradores da favela que não recebe nenhum auxílio governamental ou privado. A escola surgiu com o objetivo de oferecer às crianças de forma lúdica ensinamentos da sua ancestralidade, territorialidade e cultura. A ideia-base é que as crianças desenvolvam seu potencial humano, trazendo a devolutiva para sua comunidade. 

Uma das representações do adinkra, Sankofa, é o pássaro que se volta para trás e busca algo para trazer consigo para este tempo e espaço. Pensar ideias ancestrais é fazer o movimento de resgate. Quais são as práticas que nossos avós nos ensinaram e que podem se perder se não ensinarmos aos nossos filhos? A forma como nossos antepassados lidavam com o cultivo, com os animais, com as folhas, com a saúde através de tecnologias de cura seculares. Trago estas provocações para que cada um de nós exerça este movimento de retorno. Olhe para seu mais velho, é nele que mora o futuro.

O ano era 2012. Só agora percebo que já se passaram mais de 10 anos do momento em que conheci o professor Flávio dos Santos Gomes no Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Talvez soe estranho começar uma resenha assim em primeira pessoa, mas o livro que será comentado nas próximas linhas me atravessou dessa forma. Na primeira pessoa mesmo. Enquanto jovem estudante de licenciatura e bacharelado em História, a publicação, bem como a posterior orientação do professor Flávio Gomes, abriram um novo horizonte para mim: era possível reler minha própria cidade e meu próprio país a partir de uma lente que visibilizasse trajetórias negras. E é com essa lente que escrevo a resenha que segue.

Diferentemente das plantations estadunidenses, caracterizadas por grandes plantéis, agroexportação e feitores, grande parte do processo de escravidão no Brasil se deu em contexto urbano ou semiurbano. Milhares de escravos, tanto africanos quanto crioulos, entrelaçaram-se com marinheiros, caixeiros, comerciantes, viajantes e outros segmentos sociais do mundo transatlântico.

De 1570 até meados do século XIX, o Brasil recebeu entre 38% e 43% de todos os africanos traficados para as Américas, estimando-se esse total em aproximadamente dez milhões. Esses indivíduos desempenharam papéis cruciais nas zonas rurais, contribuindo para atividades como o cultivo de café, açúcar, algodão, tabaco, além da pecuária e da extração de ouro e diamantes. Paralelamente, moldaram diversas instituições relacionadas a tradições, família, culinária, música e cultura material em geral. Também formaram quilombos e nos contextos urbanos deram origem às irmandades.

O livro Cidades Negras, de Juliana Barreto Farias, Flávio dos Santos Gomes, Carlos Eugênio Líbano e Carlos Eduardo Moreira de Araújo, destaca algumas das instituições forjadas pelas populações negras nos contextos urbanos. Africanos e seus descendentes emergiram como figuras importantes nos universos do trabalho e da cultura urbana durante o século XIX, inventando territórios urbanos e diásporas, redefinindo identidades e sentidos de existência.

A publicação foi escrita a quatro mãos. Juliana Barreto Farias atua como editora-assistente na revista Nossa História e obteve o título de mestre em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Flávio dos Santos Gomes é professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Carlos Eugênio Líbano Soares desempenha a função de professor na Universidade Federal da Bahia. Carlos Eduardo Moreira de Araújo é mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutor em História Social do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas.

Os autores destacam que antes mesmo de vários países se constituírem enquanto Estados nacionais, em suas terras já havia territórios negros. Na primeira metade do século XIX, O Rio de Janeiro se destaca nesse sentido, sendo a maior cidade escravista das Américas. Em 1821 escravizados representavam 45.6% da população das freguesias urbanas do Rio. Observando a freguesia da Sé na cidade de São Paulo, 20% da população era composta por escravizados. Em freguesia homônima no Pará, a população cativa somava 51,8%. 

Ainda em período próximo, em 1872 em Curitiba, 33% da população livre era formada por pardos, pretos e caboclos (termo usado à época para se referir à população indígena). Já na província do Ceará, escravizados eram 35%. No Espírito Santo, pretos e pardos (livres, libertos ou escravizados) formavam um contingente de 74% da população. Assim, podemos elencar algumas importantes cidades negras no contexto de escravidão brasileira: Rio de Janeiro, Salvador, Recife, São Luís e Porto Alegre.

Com relação à origem, na região do Rio de Janeiro destacam-se os negros de origem angola, cabinda, cassange, benguela e congo, chegando a cerca de 80%. Em São Luís há destaque para os cabinda, moçambique, angola e mina. Já em Salvador destaca-se o perfil ocidental, com origem nagô, jeje e hauçá. 

Porém, a virada de chave de Cidades Negras se dá justamente em apresentar de início ao leitor uma série de dados e análises demográficas — que sem dúvida corroboram com a tese de que vivemos em um território negro enquanto país — e finalmente discutir que o conceito que dá nome ao livro vai muito além de dados. As cidades apontadas são negras não só por historicamente ter uma população de maioria africana ou afro-brasileira. Falamos de cidades negras porque estas populações inventaram e reinventaram identidades. 

As identidades se tornam questão importante no debate. O conceito de identidade é complexo. Segundo o sociólogo Stuart Hall, em A identidade cultural na pós-modernidade:

A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu” (veja Hall, 1990). A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar — ao menos temporariamente.

O caráter mutável e até mesmo contraditório das identidades apresentado por Hall dialoga com o que lemos em Cidades Negras:

Africanos e crioulos não eram necessariamente uma multidão ou massa escrava nos centros urbanos. Os recém-chegados produziam identidades diversas, articulando as denominações do tráfico, aquelas senhoriais e a sua própria reinvenção em determinados cenários. Ser um africano mina em Salvador não era o mesmo que no Rio de Janeiro. Os próprios minas do século XVIII no Rio de Janeiro eram outros daqueles do século XIX.

Assim, os tempos, espaços, redes de contato e de sociabilidade, bem como objetivos e articulações, foram essenciais para forjar diferentes identidades entre negros escravizados, livres e libertos que formavam as cidades negras no contexto escravocrata.

Os autores discutem também aspectos que interferiram diretamente nos fluxos de vida e de morte dessas populações. Os portos foram considerados “laboratórios de enfermidades” e de práticas de cura, a partir do intenso vai e vem de embarcações abarrotadas de pessoas em condições sub-humanas. A principal doença que acometia os trabalhadores escravizados era a tuberculose, seguida de disenteria, varíola, tétano e malária. Até metade do século XIX as forças do escravizado eram levadas ao seu limite, uma vez que era razoavelmente fácil realizar a substituição desta mão de obra em caso de morte. A partir de 1850, com a proibição do comércio negreiro o trabalhador escravizado fica mais caro, culminando em alguns cuidados maiores por parte dos senhores. Não por humanidade. Mas pela diminuição da oferta. Este quadro era semelhante em diferentes “cidades negras”.

As fugas também são analisadas, não como movimentação heroica de poucos, mas sim como atos políticos e organizados:

Nas cidades, as ações de fuga estavam inseridas na experiência cotidiana dos cativos. Revelavam tanto mecanismos de protesto como a constituição de comunidades e culturas na diáspora. Nesse processo, desvendam-se lógicas dos cativos e universos sociais das cidades negras (cotidiano, relações de trabalho, controle social, etc.).

No contexto de organização social e política, nos documentos de fuga e busca de escravizados, são encontrados relatos de africanos e crioulos com certo grau de profissionalização. Carpinteiros, barqueiros, sapateiros, alfaiates… Estas ocupações contribuíam para que esses indivíduos conseguissem reconstruir suas vidas após a fuga. Os fugitivos encontravam nos quilombos — rurais ou nas periferias urbanas — um destino frequente, de diferentes tamanhos e formas, especialmente nas proximidades das principais capitais coloniais. Exemplos são o Quilombo de Laranjeiras, localizado próximo à Corte, e o Quilombo do Urubu, situado na freguesia do Cabula, nos arredores da Cidade da Bahia (atual cidade de Salvador).

Ainda no sentido de reconhecer a agência dos negros, cabe destacar o papel dos marinheiros nos processos de fuga e ressignificação. Sua posição, podemos dizer “privilegiada” ao estarem em navios, facilitava a comunicação e percepção de políticas. Era nos portos, conveses e navios que as informações de África, Américas e Europa se encontravam e de certa forma ajudavam a alimentar redes de solidariedade entre negros.

Para concluir, cabe destacar a capoeira como fenômeno de resistência e agência, podendo ser interpretada como um dos maiores exemplos da reinvenção cultural urbana na diáspora brasileira. A participação dos capoeiras na Guerra do Paraguai contribuiu com o reconhecimento desse grupo social como grandes “lutadores de rua”. Em Cidades Negras percebemos que a capoeira passou por transformações, transitando da expressão africana para a crioula durante o século XIX, à medida que o número de africanos desembarcados diminuía. Podemos perceber um movimento de crioulização — ou, nas palavras de hoje, brasileirização — da capoeira, articulada em maltas, algumas de grande notoriedade nas cidades negras.

Assim, o livro Cidades Negras: africanos, crioulos e espaços urbanos no Brasil escravista do século XIX defende brilhantemente a tese de que as principais capitais do Brasil colonial podem ser consideradas territórios negros. E não há como não concordar. Uma análise crítica e sensibilizada pelas políticas públicas do Brasil contemporâneo reforça a percepção de que escravizados criaram diversos mecanismos cotidianos para resistir e mitigar os impactos da escravidão, bem como para criar e recriar identidades e subjetividades nas cidades negras por todo o Brasil.

Desembarque de Pedro Alvares Cabral em Porto Seguro em 1500, de Oscar Pereira da Silva (1922).

“É preciso reflorestar o imaginário”
— Nêgo Bispo

Agô a Exú, para começar e para dar continuidade (meio) peço a bênção dos que estão acordados e aos que ainda dormem, nesta temporalidade física e na cosmológica, porque palavra é Axé e movimenta trajetórias temporais das guardiãs das memórias territorializadas. E começo novamente agradecendo à guiança da minha geração Avó.

Então, o ato primeiro é de apresentar as graças, sou Mona — ribeirinha, filha do coco-babaçu e do Rio Marataoã, pertenço ao território caatinga que conflui com a mata de cocais. E quando digo que sou filha da principal vegetação de minha cosmunidade Tabocas é porque me compõe e faz parte de quem sou e de minha trajetória, desde quando era guardada dentro de um cofo para minha Mãe Maria do Socorro conseguir catar e quebrar coco-babaçu e as galinhas não me carregar, até quando comecei a ir para a escola, que mesmo tendo que estudar pela manhã, antes ia me banhar no rio do meu quintal, meu Rio Marataoã. Rio esse que banha a cidade não só de água, mas que é a principal tecnologia de guarda de memória territorializada que temos, ou como diz Vôinho Nêgo Bispo, é o envolvimento que conecta todas as vidas no território.

Para essa confluência aqui com vocês, gostaria de compartilhar uma cosmossensação vivida, sentida e narrada, escrita ou inscrita em nossa dissertação Os Nêgo da Minervina e a rede do caruá: confluências da memória e a biointeração no Quilombo São João do Jatobazinho/Piauí. Digo nossa, pois não chego só, sou nós, e porque é uma pesquisa orgânica feita junto com Rosilda Maria da Conceição, autonomeada Dona Didi, que é matriarca do quilombo, mestra de ofício contra colonialista, artesã do caruá e guardiã das histórias e saberes de sua geração avó e do território, ela é quem nos guia nessa encruzilhada da memória com a biointeração que é expressa no trançado da rede de caruá, planta catingueira. É também como Vô Bispo, lavradora da terra e das palavras, e rezadeira, espanta qualquer cobra que apareça pelo seu caminho.

Dona Didi, guardiã das sabenças de sua Mãe Minervina, de Vó Marta e de sua Bisavó Rosa, trindade, compartilha a memória matriarcal quilombola-afro-pindorâmica e as sensações que confluenciam no território, a bem dizer a biointeração que Nêgo Bispo tanto fala, ou seja, é o envolvimento, a conexão das trajetórias, quilombolas e o caruá. Uma vez que a comunidade existe e re-existe no território graças ao envolvimento com a artesania do caruá, principal fonte de renda no território. O Quilombo São João do Jatobazinho, assim nomeado pela Fundação Palmares, se autonomeou de “As Minervinas”, nome da matriarca que trouxe ao mundo 17 crianças, uma tendo nascido já se encantando pelo mundo espiritual. Quando seus filhos ou filhas chegavam às comunidades vizinhas para um festejo, jogar bola ou visitar, eram de longe apelidados de “Nêgos da Minervina”, diziam assim “lá vêm os nego da Minervina” como forma de sinalizar aos presentes que eram quilombolas que carregavam a pele cor da noite e que não queriam se misturar com eles, sendo assim, houve uma forte relação de parentesco na formação do quilombo, primos próximos se casaram e ainda hoje existe um índice de cegueira e baixa visão na comunidade.

Olha como em nossa vida realmente não existem coincidências, pois quando fui guiada a ir para o Quilombo São João do Jatobazinho, e chegando lá entendi que ali era As Minervinas, passei a sempre pensar nessa autonomeação. Daí que por esses dias, estava olhando pela janela vendo se o tempo estava bonito de chuva, e me veio à mente um sopro palavreado dizendo assim “teu umbigo, jatobá. Jatobazinho.”, e uma chave virou nesse momento. Pois algo que sempre soube e minha Mãe sempre falou é que meu umbigo tinha sido enterrado embaixo de um pé de jatobá, e não é que eu nunca havia feito essa conexão. É, quando é missão a flecha é certeira, pois também, em uma das viagens para a caatinga, passei na casa de minha Vó Odilia, para ficar uns dias, e conversar é algo que minha família gosta muito, pouco não. Nisso, estou falando com Vovó sobre a pesquisa, sobre a rede e como faz a rede, e ela para e olha para mim e fala “eu também sei fazer rede, nós tínhamos um tear lá em casa”, quase caí da rede nesse momento, olha a confluência aí.

É, pois é, é muita gente mesmo dentro d’agente, e não falo só dos nomeados humanos. Já que a nossa corpa é território, ela se ajunta, mas não se mistura, cabe o físico, o espiritual e os encantados e se duvidar até nossa Mãe a gente já carrega, como Aline Motta fala que carrega em sua escrita performática A água é uma máquina do tempo. Bom, como tudo o que é nosso é girando, é impossível que o nosso pensamento também não seja circular, pelo menos o meu é assim, vou, volto, vem um turbilhão de conversas que querem se amostrar, sabe como é, sou neta afetiva de Nêgo Bispo, meu orientador, e a proposta aqui é confluenciar.

Esse compartilhamento só é possível após o reencontro, já que não acredito em encontros, entre duas afro-pindorâmicas, Dona Didi e nós no verão intenso da caatinga, num riacho entre enormes lajeiros, onde acontece uma das etapas da confluência com o caruá, que é uma planta da caatinga, que não pode ser semeada, plantada somente pelos passarinhos e pela senhora ventania. Só pode ser colhida na época da seca, quando chove menos no semiárido, pois na época da cheia, das chuvaradas no sertão, ela solta uma toxina. Nesse momento me lembro de Dona Didi, quando ela fala sobre a grande seca de 1932 (que inspirou obras como Vidas Secas, de Graciliano Ramos), que foi graças à macambira, considerada como planta venenosa, e o saber de seus mais velhos que sabiam como confluenciar com ela, que sabiam que cozinhando ela em cerca de cinco águas daria para usá-la como alimento. Lembra também o Seu Claúdio, Mestre de defesas contra colonialistas do Quilombo — Território Lagoas, o segundo maior em extensão de Pindorama, sendo o primeiro o Território Kalunga, conectados pelo bioma. 

Em uma de nossas confluências, na Lagoa das Emas, em frente à sua, quando o sol esfriou, me disse que quando se lembra de seu Pai, recorda que ele repetia que ele não poderia esquecer o seu Bisavô, que era um “Patavó”, disse que nunca entendia o que significava o nome, mas que quando ele começou a se movimentar pela luta contra a mineração no território conheceu o povo Pataxó, e que nesse momento ele entendeu o que seu Pai falava e que hoje repete no território, para que não se esqueçam dos indígenas do lugar e de que também descendem dos “Patavó”. Ou quando ele fala sobre os saberes de seus mais velhos, que lhe ensinaram o que deveria ou não comer no território, esse é o envolvimento responsável por conectar todos os viventes pertencentes e não moradores, pois a pertença é o autoconhecimento, que é a sabedoria, do que também conhecemos por “saber entrar e saber sair”, saber quando está bonito de chuva ou quando os vizinhos peixes estão aumentando sua família, ou quando as águas vão dar peixe ou quando ela naquele dia vai estar de resguardo. Pensar nessa perspectiva me lembra meu Avô Chibanca, pindorâmico, que já se encantou, pescador que fez muito compartilhamento de peixes por farinha, ou de cofo por rede de pesca, repassou esse ofício a seu filho, meu Tio Mandioca, que inclusive em uma madrugada de pesca foi avisado pelo Rio Marataoã que o Vovô tinha se encantado.

Pertencer ao território é ter conexão cosmológica, como quando Beatriz Nascimento fala que o quilombo é território espiritual e existencial (1975). Nisso retorno à circularidade da lembrança, pois gostaria que refletissem sobre como a existência do caruá na caatinga possibilita a existência das Minervinas, do Quilombo São João do Jatobazinho. 

Como fazer a guarda da memória pela biointeração? 

Bom, após a colheita do caruá, ele terá os espinhos de suas folhas raspados, e terá que ficar de molho no riacho por três dias, e quando retirado da água será torcido e batido com um pedaço de jucá, uma planta bem forte da caatinga, usada para feitura de cercas e até usada como ferramenta de autodefesa. A última etapa para deixar a fibra no ponto para a artesania é estirar a fibra da folha do caruá em uns tocos para ficar por cerca de três dias no sol. Após essas etapas a fibra é trabalhada para a artesania da rede. Para que a rede esteja pronta, demora cerca de quinze dias, nisso o trabalho é coletivo, não tem como fazer sozinho, e enquanto os dedos trabalham para encantar a fibra em uma rede, a melhor rede do sertão, Dona Didi fica por perto contando as histórias, suas e de sua Mãe, e de sua Vó e de sua Bisavó, e quem ouviu, ouve de novo, quem não ouviu, ouve, e nesse envolvimento, nessa biointeração é performada a guarda da memória na artesania da rede, ou melhor, da colheita que semeia envolvimento com o território.

As Mestras e Mestres de defesas contra colonialistas afro-pindorâmicos, como Dona Didi, Mestre Claudio, Mestre Krenak, Mestre Kopenawa e Mestre Nêgo Bispo, entre outros lavradores das palavras-sementes nos convidam a reflorestar nossos imaginários. 

Nêgo Bispo nos sinaliza que o ataque às comunidades tradicionais e povos originários é um ataque que mira os modos de vida, o envolvimento com os viventes, a confluência que acontece entre rios, gente humana, gente bichos, gente plantas. Quando nos apresenta suas ideias sobre envolvimento e desenvolvimento, nos aponta que enquanto um tem a ver com o “ser” o outro é alinhado ao “ter”. Ainda segundo ele,

Enquanto a sociedade se faz com os iguais, a comunidade se faz com os diversos. Nós somos os diversais, os cosmológicos, os naturais, os orgânicos. Não somos humanistas, os humanistas são as pessoas que transformam a natureza em dinheiro, em carro do ano. Todos somos cosmos, menos os humanos. Eu não sou humano, eu sou quilombola. Sou lavrador, pescador, sou um ente do cosmos. Os humanos são eurocristãos monoteístas. Eles têm medo do cosmos. A cosmofobia é a grande doença da humanidade. (Antônio Bispo dos Santos, 2023).

O imaginário construído e principalmente reforçado cotidianamente sobre a caatinga, cerrado, sertão, sobre o nordeste, sobre os povos, é uma imagem de pobreza, de falta e ausência. Nem sequer pisaram o ser-tão sagrado e já o nomeiam, isso nos confirma como a guerra das narrativas é presente, afinal é através dela que se justifica a necessidade do desenvolvimento, semelhante ao que justifica a nossa ida para a escola “para ser alguém na vida”. 

O desenvolvimento é colonialista, é a promoção da desconexão, como nos diz Nêgo Bispo, desconexão com o território, desconexão com os demais viventes do lugar existencial e espiritual. É um discurso que tem como foco a destruição de seres, de mundos em prol da existência de um só mundo, o do monoteísta, monista e linear. Já o envolvimento, o pertencimento, é conexão, é legado, é ancestralidade, possibilidade de coexistências de vidas pluralistas, politeístas e circulares, né, Vô.

Notas:
1. Biointeração”, “contra colonialismo” e “afro-pindorâmica” são termos cunhados por Antônio Bispo dos Santos no livro Colonização, Quilombos: modos e significações.

A MPB, sigla para Música Popular Brasileira, sempre foi um lugar de disputas, discussões e teorizações, talvez sem nunca ter se chegado a uma unanimidade sobre uma definição final referente a sua forma e conteúdo. Seria um movimento, uma categorização musical ou uma época de produção cultural? Seria uma fase pós-bossa nova que abrangeria uma miríade de gêneros e estilos? Estaria ligada a uma suposta “modernização” da música brasileira e, assim, mais próxima do que se consideraria como “sofisticado”, “criativo”, “inteligente”? Ou uma representante, digamos, mais emblemática do que seria uma “brasilidade”, frente ao medo dos estrangeirismos dos mais nacionalistas? Poderia nos levar também a uma época de canções de protesto à Ditadura? 

Se você respondeu “sim” para algumas dessas perguntas, saiba que todas essas possibilidades já foram levantadas e discutidas por diverso(a)s autore(a)s, sendo algumas delas mais constantes que outras. E o objetivo desta reflexão não será responder a essas questões, mas pensar onde estaria o denominador “negro” dentro deste termo guarda-chuva que se tornou a MPB. Afinal, isso se torna uma questão urgente diante da afirmação do maestro Letieres Leite sobre toda a música das Américas, de caráter popular, advir de uma base africana (afirmação concedida ao jornalista GG Albuquerque, para o site Volume Morto) e de influenciar em toda uma produção transnacional de música pop e/ou popular no mundo, mesmo que não seja feita por negros. 

Porém aqui ainda vigora o racismo de ora inferiorizar o contributo negro à formação da cultura brasileira, ora de tentar apagá-lo. Que, por mais violentos que sejam esses movimentos e todas as consequências drásticas que recaem sobre a população negra, não passam de uma atitude desesperada da branquitude de querer se enxergar enquanto europeia e subtrair o nosso inegável prefixo afro. 

Da ideia colonialista da superioridade europeia, passando pela eugenia, à democracia racial dada pela mestiçagem e ao encontro das três raças, temos mitos fundadores ainda arraigados no imaginário social brasileiro, implicando diretamente no apagamento das contribuições afro-indígenas, pois servem, até hoje, para a manutenção dos privilégios da branquitude. De forma sempre perspicaz, nossa ancestral Lélia Gonzalez, assim como outro(a)s antes dela, abriram nossos olhos para o que estava em jogo: não deveríamos reivindicar o nome América para nós deste lado do Atlântico, mas sim Améfrica. A amefricanidade que nos constitui teria sido dada pelo movimento maciço de chegada de africanos às bandas de cá, que nos formaram através de seus valores civilizatórios e costuraram nossas espiritualidades e culinária; nosso jeito de andar, dançar e gingar, o uso do corpo; as línguas que subverteram a do colonizador e criaram o pretuguês; as formas de existência e resistência através dos quilombos; nada, porém, inventado, mas nos ensinado pelos povos Congo-Angola, iorubá e ewe-fon. 

Em sua teorização, Gonzalez nota mais semelhanças do que diferenças nos países em que visitou em todas as Améfricas, seja a do Norte, a Central ou a do Sul, reforçando sua tese de interligação entre as afrodiásporas a partir do inegável legado africano. Tendo lançado esse texto em 1988, é interessante notar como a mesma continua a confirmar suas hipóteses em momentos posteriores, como fica evidente em seus dois textos sobre a viagem à Martinica em 1991. Mas, voltando à categoria político-cultural da amefricanidade, Lélia atesta: 

Similaridades ainda mais evidentes são constatáveis se o nosso olhar se volta para as músicas, as danças, os sistemas de crenças etc. Desnecessário dizer o quanto tudo isso é encoberto pelo véu ideológico do branqueamento, é recalcado por classificações eurocêntricas do tipo “cultura popular”, “folclore nacional” etc. que minimizam a importância da contribuição negra.

Estamos chegando a um ponto crucial do argumento, que é articulado por Lélia quando destaca que muitos dos nossos saberes e tecnologias são enquadrados enquanto cultura popular e folclore. Percebemos, então, que as criações afro-indígenas são destituídas desses prefixos, sendo estas liquidificadas em termos genéricos para serem deglutidas com mais facilidade pelas classes brancas hegemônicas. O movimento é de apagamento para sua aceitação, desde que reconheçam seu devido lugar, numa posição de subalternidade em relação às referências eurocentradas. 

Talvez, desde que se começou a discutir o que seria de fato uma cultura brasileira, a partir de sua independência, e voltando para a discussão sobre a música popular, de caráter urbano, provavelmente o lundu e o maxixe, ancestrais do que hoje chamamos samba, tenham sido os primeiros gêneros musicais a pautarem esse debate. No brilhante livro Do Samba ao Funk do Jorjão, nosso mais velho, Spirito Santo, mostra com detalhes a origem indubitavelmente africana de nosso gênero mais popular e definidor e, mais especificamente, oriunda diretamente dos povos do arco linguístico bantu, genericamente identificados como Congo-Angola. A própria palavra samba já era utilizada e, através de escritos da época e mais contemporâneos, semelhanças entre lundu, coco, jongo, calango, entre outros, são mapeadas e comprovam a origem africana, em regiões diferentes do país, da “nossa” música popular. 

Daí voltamos para a questão inicial, a Música Popular Brasileira. Apesar das eternas disputas em relação ao termo, e sua consequente indefinição para os moldes acadêmicos, sabemos que o mesmo carrega, no imaginário popular, uma identificação de cultura local, reivindicando a ideia de uma certa brasilidade; assim como generalizações em torno de uma qualificação positiva de sofisticação e “bom gosto”, não tão generalistas assim, quando observamos como a mesma foi defendida pelas instâncias legitimadoras das classes mais abastadas e sua crítica cultural. E não poderíamos deixar de mencionar a bossa nova como ponto nevrálgico desses caminhos que levarão à MPB. 

Mas antes lembremos que o samba, aqui enquanto amalgamador de variadas expressões sonoras africanas em território local, apesar de sempre vilipendiado, perseguido e negado, mostrou-se como força imparável, mesmo diante do racismo brasileiro. Sendo inegável e irresistível, foi roubado e descaracterizado pelos cantores brancos famosos da Era do Rádio, mas, mesmo assim, prosperou. Assim sendo, foi até escolhido como fator de ligação nacional, na Era Vargas, que tentou unificar um país de tamanho continental e extremamente diverso, através desta sonoridade irrefutavelmente africana. Sem dúvidas, o samba teve que fazer concessões, e perdas significativas devem ter ocorrido nesse processo, além do embranquecimento, de aceitação e transformação em sinônimo de representação nacional. 

Observemos como a bossa nova, apesar de discursivamente defender o samba em falas publicadas pelas mídias nacionais, sempre teve uma visão extremamente racista sobre o samba e toda a música preta feita no Brasil. Além da já propagada definição de ser uma música branca de apartamento do Leblon, que muito lhe convém, diga-se de passagem, seu “maior maestro” afirmou isso de forma inquestionável numa entrevista resgata por, novamente, Spirito Santo. Tom Jobim fala para Gene Lees na Hifi/Stereo Review de 1963: 

O samba autêntico negro do Brasil é muito primitivo. Eles usam talvez dez instrumentos de percussão e quatro ou cinco cantores. Eles gritam e a música é efusiva e exuberante demais. Mas a Bossa Nova é leve e contida. Conta uma história, tentando ser simples, grave e lírica. […] Você pode chamar bossa nova de um samba limpo, lavado, sem perda do clima. (Do Samba ao Funk do Jorjão, Spirito Santo, 2016, p. 249).

Primeiramente nos salta aos olhos a fala extremamente racista, aos moldes de relatos de colonizadores ao se deparar com a música em solo africano ou até mesmo a “música de negros” aqui feita, mesmo estando em pleno século XX. Para Jobim, o samba é primitivo, gritado, exagerado, pesado, grotesco, sujo: visto por brancos que usaram dois gêneros negros para “criar” algo novo. As aspas estão muito bem colocadas, já que, como se falou, o samba sempre apresentou fusões com as mais variadas sonoridades da Améfrica e, de forma muito pontual, essa revolução de juntar jazz e samba já estava presente, pelo menos, desde a década de 1920, através dos Oito Batutas, grupo seminal para a música brasileira, que fora formado por, entre outros, Pixinguinha e Donga, esses sim, Maestros maiúsculos da música brasileira. 

O recalque da branquitude, em seu racismo por denegação (Gonzalez, 1988) produz “pérolas” que seriam quase inexplicáveis, quando em 1960, outro branco canonizado da MPB, autodenominou-se “capitão do mato” e o “branco mais preto do Brasil” na mesma canção: estamos falando de Samba da Bênção, de Vinicius de Moraes. Ele usa o execrável labor do capitão do mato, que perseguia escravizados fugitivos, para se definir, ao mesmo tempo que reivindica o título de branco de alma negra, aqueles que querem o bônus da nossa cultura, mas não o ônus de ser negro no Brasil. Como disse nossa outra ancestral, Beatriz Nascimento, em Por uma história do homem negro (1974), não podemos aceitar essa frase se queremos superar complexos, frustrações e escrever nossa própria história. Então, como disse um dos nossos maiores compositores de todos os tempos, Mano Brown, é “Muita treta pra Vinicius de Moraes”.

Outro frequentemente esquecido na lista dos maiores, mas tão grandioso quanto os anteriores, foi Moacir Santos, que, na mesma época do mito de origem do gênero, já unia jazz e samba com orquestrações da mais alta complexidade. Quem também foi pioneiro, e também preto, e também quase esquecido, foi o pianista Johnny Alf, que já criava algo do que viria depois a ser chamado de bossa, e que não era tão nova assim. Onde estava Alaíde Costa, mulher preta que ajudou a alavancar o gênero com sua voz profunda e marcante? Quem ainda fala da belíssima voz de Jair Rodrigues e da “bossa negra” de Elza Soares? Há inúmeros outros exemplos de experimentações afrossônicas nas bandas de cá, assim como de diferentes estilos de samba, nos lembra Spirito Santo, como os de Ataulfo Alves, Cartola, Heitor dos Prazeres, Ciro Monteiro e Geraldo Pereira, mostrando complexidade, assim como lirismo e “tranquilidade”.

A bossa nova é canônica na música popular brasileira, e a ela é atribuída a “modernização” desta linguagem, assim como sua sofisticação, a internacionalização e respeito à nossa música no estrangeiro, entre outras coisas. E também se lhe concede o título de geradora de outras musicalidades de igual prestígio, como o que veio a ser chamada de MPB. A partir da bossa e somente a partir dela, pôde-se gerar outros artistas que dividiriam os louros de estarem no topo desse lugar de prestígio, importância e legitimação. Poderíamos até discutir muitos nomes e sem dúvidas encontraríamos pretos e pretas nesse rol de importância, mas os primeiros que estão na boca da maioria, seriam Chico Buarque e Caetano Veloso. Gilberto Gil, Jorge Ben, Milton Nascimento, Luiz Melodia, Itamar Assumpção, Jards Macalé, Marku Ribas: uma lista heterogênea, de estilos e épocas diferentes, porém de grande importância. Uns mais populares que outros, alguns com mais aceitação de público e crítica, mas, reflitamos: algum desses nomes realmente foi tratado e alçado ao patamar dos artistas brancos já citados de forma equânime e com a devida profundidade de análise que mereciam? 

A MPB, como toda música brasileira, vai partir de uma base africana para se desenvolver, mesmo com todo o embranquecimento aplicado por parte de alguns artistas, e vai seguir o rumo de uma sociedade racista para sua aceitação e legitimação. O popular aqui é elevado a outro nível, para além de “cultura popular” — que estaria mais ligado ao “folclore” —, e propõe antes uma diferenciação com a referência do erudito, e reconhece em parte suas origens, mas de forma totalmente genérica e não afroreferenciada. Denominação que também, para existir enquanto “brasileira”, repete o mesmo processo, pois vai investir muito mais numa ideia capenga de nacionalidade, sustentada pelo mito do encontro das três raças e da consequente democracia racial. Precisaríamos então de toda uma revisão de nossa historiografia a partir de África, já em curso, mas ainda insuficiente, para projetarmos futuros possíveis através da nossa ancestralidade preta e assim pormos no altar aqueles que devidamente o merecem, assim como tantos que foram esquecidos. Pois o futuro é ancestral.

A educação, não raramente, é definida como a base de tudo. Nos últimos pleitos eleitorais, por exemplo, ela apareceu nos discursos políticos com força total. Os candidatos faziam um alerta sobre sua importância na formação das nossas crianças. Falar sobre educação, portanto, um assunto tão valioso, é uma tarefa muito gratificante, mas que impõe uma busca contínua pela prudência e humildade. É neste espírito que tento iniciar o presente texto, expondo que estou mais próximo de ser um pensador que um educador. Entretanto, como peixe no mar sempre estive cercado por um oceano de excepcionais educadores, desde minha mãe aos três anos de idade até os mestres e doutores que me orientaram e me orientam hoje no mundo acadêmico.

Cada educador que fez parte da minha história de vida foi mais que um professor, eles foram, são e sempre serão parte viva do meu caráter, por isso penso que educar é, sobretudo, subjetivar. Tornei-me quem sou aprendendo a me adequar ou rejeitar certos discursos sobre mim, aprendi a me adaptar ou não a certos ambientes e grupos de pessoas, tudo que sei sobre mim foi aprendido, fui educado para ser quem sou. Apesar de sermos sujeitos no discurso do outro muito antes de nascer, quando nascemos não carregamos nenhuma verdade ou pensamento sobre quem somos ou seremos, vamos aprendendo pelo caminho a construir nossa identidade. O que quero dizer é que não nascemos sujeitos, aprendemos a ser, e é nesse ponto que reside a importância e a emergência da educação.

Educar, podemos dizer, é estabelecer uma relação entre ser e verdade, o sujeito e o conhecimento. Michel Foucault, inclusive, em um curso ministrado no Collège de France entre 1980 e 1981, descreve como ocorre essa conexão intrínseca entre subjetividade (ser) e verdade (conhecimento). Segundo o filósofo francês, a partir do pensamento moderno: não há verdade sem sujeito, ou seja, toda verdade necessita da enunciação de um sujeito, porém, como o sujeito singular poderia ser capaz de chegar à verdade (um descritor universal da realidade)? Evidentemente, o hercúleo trabalho dos pensadores modernos foi estabelecer um método para a aquisição da verdade. Deste ponto, o sujeito deve deixar sua singularidade, suas sensações, suas percepções, suas ideias etc. e assumir um método de obtenção da verdade que impõe ao sujeito uma condição universal.

Nesse curso ministrado no Collège de France, Michel Foucault aponta que a verdade é concebida e transmitida como um sistema de regras. Educar pode tornar-se, portanto, um lugar de representação e reprodução de verdades preestabelecidas sobre os sujeitos e o mundo em que eles estão, sem que haja espaço para qualquer transgressão do pensamento. Com bell hooks, entretanto, em sua obra Ensinando a transgredir, aprendemos que a educação pode ser uma prática de liberdade. Educar deve ser um ato contínuo de transgressão e libertação desses sistemas de regras que contam a história do ponto de vista daqueles que impuseram à alteridade os grilhões, aos outros, ferrolhos e ao diferente, o decesso.

A doutrinação primeira em nossas escolas é antiga e colonizadora, pois ensina uma realidade espaço-temporal quebradiça, desconectada entre si e separada do senso de responsabilidade bioética que a vida nos exige. Tratamos o passado como se ele fosse inativo, uma história a ser contada sem implicações e responsabilização. Ensinam-nos a ver o passado como algo que se foi e só é acessível a nossa existência pela via da memória, como se não possuísse influência e efeito sobre o hoje. O futuro, por sua vez, é levado como se não fosse responsabilidade nossa, no presente tempo — como lembra Krenak, vivemos como se o amanhã fosse negociável pelo agora. Essa concepção temporal, ensina Cida Bento, em O pacto da branquitude, é transmitida de geração em geração através de estruturas institucionais diversas que regimentam e uniformizam processos, instrumentos, valores e perfis sociais, que limitam a mudança e a transgressão dos pactos sociais já estabelecidos e que buscam sempre a manutenção, majoritariamente, do poder branco masculino heteronormativo. A isso ela chama de “branquitude”, um fenômeno capaz de subjetivar (educar) consciente e inconscientemente.

A subjetividade como efeito educacional precisa ser produzida e localizada fora dessa temporalidade colonial, e, nesse sentido, uma experiência de entrelaçamento com a ancestralidade é fundamental. A ancestralidade não está conectada num espaço-tempo vazio de vida e cheio de informações e decodificações, isto é, em um cogito com suas regras lógicas ao que a educação tende a se limitar algumas vezes, mas ela também não é atemporal, antes está fixada na biotemporalidade, no tempo da vida, da relação com o semelhante e o diferente.

Para bell hooks, o trabalho do educador não é simplesmente passar uma informação, mas “participar ativamente no crescimento intelectual e espiritual dos alunos”. O que quero dizer é que a educação pode acontecer em dois tempos-espaços diferentes: ou no fundo de uma caverna a ver sombras para se supor algo; ou na vila inteira que se mobiliza para educar uma única criança a fim de garantir que ela floresça em suas potencialidades, caráter e cognição. A libertação que bell hooks parece propor é a de uma educação que sai da caverna (uma boa representação da sala de aula) e mobiliza uma vila (boa representação da vida) para educar. Educação não é uma responsabilidade restrita aos profissionais da educação, mas sua função, me parece, é tornar todos nós educadores.

Em seu livro A terra dá, a terra quer, Antônio Bispo ensina que precisamos aprender a semear palavras como forma de produzir novas denominações a certos fenômenos, como forma contracolonial. Essas denominações são o que a academia gosta de chamar de “conceitos”, afirma o autor, e atualmente vivemos uma guerra de denominações ao educar na espaço-temporalidade diaspórica do Brasil. As mentiras dispensadas, particularmente, à educação e à cultura do país nos últimos anos, remontam ao regime de tempos estranhos em que censura e perseguição eram o modus operandi na república. A educação, por exemplo, segue sob a acusação de alienar alunos e doutrinar sujeitos, porém, nessa guerra de denominações sobre a educação, a palavra que devemos valorizar é a confluência (no lugar de coincidência). Educar é confluir! Proposta por Antônio Bispo, essa palavra sinaliza a partilha, o estado de trocas vivas que funciona como uma energia que nos move. A educação é o que nos leva ao encontro do outro e não à submissão do outro. É se permitir ser atravessado pela diferença e se encruzilhar com a alteridade, isso é fundamental para a construção de um modelo comunitário, ou na denominação ocidental, um modelo civilizatório.

Encontramos na ancestralidade a biotemporalidade, que nos conecta à vida em sua continuidade, nela o passado, o presente e o futuro são entidades viventes e não uma realidade partida e diagramática. Estão em nós as vidas passadas e as vidas futuras, quer em latência, quer em manifestação. Somos a extensão das vidas passadas, a perpetuação genética e epistêmica dos ancestrais que fizeram dos seus corpos saberes e dos saberes sopro de vida. Somos ainda o elo de vida para os recém-nascidos, os nascituros e não nascidos, atalaias do amanhã que se faz hoje! Na biotemporalidade: os rios, as matas, as plantas, a terra, os animais, os mitos, as músicas etc. constituem a ancestralidade.

Para não parecer algo abstrato, penso que um bom exemplo de manifestação da ancestralidade é o samba. No seu livro Samba, o dono do corpo, Muniz Sodré afirma que “todo som que o indivíduo humano emite reafirma a sua condição de ser singular, todo ritmo a que ele adere leva-o a reviver um saber coletivo sobre o tempo (…)”. O samba, premência dos pretos e pretas nos séculos passados, é um resgate da singularidade, da coletividade e do tempo. Quando digo que o samba foi uma urgência, refiro-me a uma urgência educacional frente à repressão cultural e religiosa afro-brasileira. Não é por coincidência, mas por confluência que as escolas pretas no Brasil surgiram como “Escolas de Samba”. Há no samba e sua história todos os componentes que temos pensado até aqui. A educação contracolonizadora, portanto, que faz do futuro um fenômeno ancestral encontra no samba sua maior inspiração.

O samba é esse dispositivo para diálogos futuros entre educação e ancestralidade. Ao ouvir um samba é preciso se permitir sentir a ancestralidade. A ancestralidade não está na temporalidade metafísica. Ancestralidade é aqui, é agora, mas foi ontem e será amanhã. Assim também é o samba. Samba é o ontem, é o amanhã e é o agora. No ritmo do partido-alto, nas críticas sociais do samba-enredo, nos afetos do samba-canção ou na coletividade do samba de roda é possível ouvir ao fundo a voz ancestral nos guiando à sabedoria do bem viver. No samba, a ancestralidade ensina a aprender.

No samba Produto do morro, Bezerra da Silva já falava “Sou produto do morro/ Por isso do morro não fujo e nem corro/ No morro eu aprendi a ser gente/ Nunca fui valente e sim conceituado”, mais à frente ele diz: “Embarquei no asfalto da cruel sociedade/ Que esconde mil valores que no morro tem/ Tenho pouco estudo, não fiz faculdade/ E atestado de burro não assino também”. Nossos ancestrais, muitos deles não fizeram faculdade, por isso habita neles um saber que escapa aos redutos acadêmicos e é bem traduzido por bell hooks, que denuncia uma formação educacional bancária que prepara o aluno para consumir a informação do professor, memorizá-la e armazená-la. Uma educação que prepara para o mercado de trabalho (ou econômico) está fadada não a educar, mas a produzir uma sociedade que é um produto valorizado economicamente e não humanamente.

Os que estão fora dessa educação bancária ficam à margem da sociedade, são reservados para os subempregos, a criminalização, a violência estatal, lidos como um perigo para o sistema de regras. Foi assim com Bezerra da Silva, que chegou a viver em condição de rua pela cidade do Rio, mas como ele mesmo cantou e canta até hoje: “E se não fosse o samba/ Quem sabe hoje em dia eu seria do bicho?/ Não deixou a elite me fazer marginal/ E também em seguida me jogar no lixo.”. Se reservaram a Bezerra o lugar do bicho (da clandestinidade e da própria desumanização), ele encontrou no samba o conhecimento transgressor que muda vidas e transforma pessoas e está localizado na biotemporalidade (tempo da vida). É, da rua à história viva e à ancestralidade eterna, Bezerra da Silva é um filósofo que deveria ser ensinado nas escolas, ouvido nas praças e incorporado com sua malandragem na vida.

Ancestralidade é assim, ela fala de forma popular. Diz uma linguagem que todos entendem, mas somente alguns podem ouvir e aprender. Sua sabedoria é para os que sentem antes de saber. A sabedoria do samba e o samba da ancestralidade são o remédio da alma. O mundo é duro, mas a vida é bela, parafraseando o samba: “Nós somos verso e somos reverso/ Somos partículas do universo/ Somos prazer, também somos dor/ Somos causa, somos efeito/ Somos torto e somos direito/ Enfim nós somos, o que somos ou aprendemos ser”.

 

A filosofia puramente grega é um mito, para além de uma construção mitológica é uma grande pirataria de conhecimentos científicos africanos, mais precisamente de Kush e Kemet (territórios conhecidos como terras pretas, atualmente Etiópia e Egito). É contundente a afirmação anterior, embora coloque em xeque os cânones da história das filosofias ocidentais. 

George James afirma, em Legado Roubado: filosofia grega é a filosofia egípcia roubada, que os gregos foram proibidos de entrar em instituições africanas até 670 a.c. Os jônicos eram conhecidos como piratas do conhecimento, pelo fato de não mencionarem suas fontes e seus verdadeiros mestres (os africanos antigos). Além da influência africana na cultura grega, de acordo com James houve o roubo do legado africano de kush-kemet.

Numa perspectiva geopolítica, os gregos construíram suas filosofias a partir do que antigos africanos chamavam de “sistema de mistérios”. Segundo James, a filosofia grega é fruto deste conhecimento. Este pensamento investigava o que mais tarde na história do Ocidente (na Idade Média) irão chamar de sete artes liberais (trivium e quadrivium) como algo “inovador” no ensino. No entanto, os africanos antigos já haviam sistematizado estas artes no interior das Per Ankh (instituições) muito antes até mesmo da existência greco-romana.

As instituições da vida (Per Ankh), como eram conhecidas, receberam estudiosos e pesquisadores de todas as terras. Inclusive os pré-socráticos, os próprios Sócrates e Platão. Este fato demonstra a falsificação do pensamento puramente grego. Até mesmo Homero indica de forma minuciosa, em suas obras Odisseia e Ilíada, as viagens de Platão à Kemet (Egito antigo) e a influência africana na cultura grega. Os pensadores ocidentais sucessores fizeram esforços para inferiorizar os conhecimentos africanos, os quais serviram de fonte para diversas perspectivas da humanidade. 

O discurso do Logos (razão) como fundamento da filosofia ocidental é o demarcador da universalidade e consequentemente do racismo epistêmico na antiguidade e no desenrolar da história da filosofia. O filósofo sul-africano Mogobe Ramose (2011) defende a pluriversalidade como um dos fundamentos das filosofias africanas, pois nas realidades do continente todos os povos produzem conhecimento, portanto, o pensamento racional não inicia com os gregos. 

Nesse sentido, o conhecimento é atemporal, pois não somente a filosofia como também o pensamento científico não surgem com os helênicos, mas sim às margens do rio Nilo com os africanos. A universalidade induz à centralidade numa só cultura, de uma só terra, logo, apenas uma única comunidade é demarcadora de uma sistematização de conhecimento, o que na verdade é uma tautologia (uma falsa verdade). Tal discurso intelectual inclina-se à dissimulação, apagamento e homicídio de outras filosofias e outras humanidades. 

O discurso filosófico hegemônico da atualidade tem como estratégia a manutenção do poder centralizado em apenas um modelo de sujeito e este modelo deve atender aos requisitos básicos, como utilizar referências gregas e sucessoras, usurpar outras culturas para legitimar seus conhecimentos, disputar com outros discursos com o objetivo de ser superior e universal. O filósofo Renato Nogueira argumenta que o conhecimento é um elemento-chave na disputa e na manutenção da hegemonia. 

Portanto, qual o objetivo em apagar a fonte de inspiração dos gregos? Por que filósofos e intelectuais fazem esforços para menosprezar as contribuições do continente africano na cultura da humanidade e no desenvolvimento científico? O discurso filosófico impacta na construção subjetiva da ideia de humanidade. Logo, o racismo na filosofia moderna solidifica um projeto hegemônico e racista nas produções filosóficas futuras, ou seja, quais serão os novos cânones para o desenvolvimento de um futuro da humanidade sendo que a ideia vigente desumaniza corpos inferiorizados racialmente? 

Kant e Hegel, “filósofos” iluministas, conduzem discursos, ditos filosóficos, que desumanizam e visam à negação da capacidade cognitiva da produção filosófica dos africanos e seus descendentes. Érico Andrade, no texto “A opacidade do Iluminismo: o Racismo na filosofia moderna”, dimensiona tais discursos. Neste ponto, percebe-se que o conceito de humanidade ou cidadania envolve a grande questão: onde “nasceu” a filosofia? 

A grande analogia atribuída a Sócrates como parteiro de ideias é muito semelhante às narrativas filosóficas africanas do processo de conhecer a natureza das coisas. A linguagem figurativa é algo presente nos discursos filosóficos africanos. Por exemplo, Amen-om-ope, filósofo da 21ª dinastia, quando fala sobre a ética da serenidade ou virtude do silêncio carrega em seu discurso a figura da barca como degustação, experimento ou imersão. Logo, a barca se refere ao discernimento junto com outros elementos como o rio, que simboliza as adversidades da vida, da dúvida e do mistério. 

O processo de conhecer ou o “parto da ideia” é um fenômeno presente nas Per Ankh. Veja bem, o processo de conhecimento na antiguidade africana continha etapas que eram extremamente profundas, a primeira etapa que muitos dos gregos antigos sequer alcançaram era chamada de “mortais” (como chamavam os africanos), que se refere à frase atribuída a Sócrates: “conhece-te a ti mesmo”. Nessa perspectiva, conhecer a si era o objetivo maior. Além disso, era o momento de instrução, introdução e experimento.

A segunda etapa do acesso aos “sistemas de mistérios” era chamada de Nous, ou inteligência, ou seja, o momento em que o estudioso conhece a si e inicia o parto da ideia. Já a terceira etapa se refere à grande atribuição socrática, o que na verdade é um processo de aprendizagem africano antigo (a maiêutica). Pois na etapa chamada de “filho da luz” é justamente quando nasce o conceito e a ideia, ou seja, a sistematização da produção de conhecimento. Então, quem são os verdadeiros parteiros da humanidade? 

Homens e mulheres africanos da antiguidade são os verdadeiros parteiros da ideia da humanidade, pois além de sistematizar um complexo método de investigação filosófica ensinavam as sete artes liberais que direcionam o sujeito a uma moralidade justa e equilibrada em Maat (verdade) e com o Cosmos (universo). Algumas narrativas desonestas carregam consigo o discurso de que os africanos colonizaram os gregos, o que de fato é uma falsa verdade, justamente porque a colonização é um fenômeno que guarda uma herança nórdica ocidental.

Outra falsa verdade é a inferiorização do corpo entre os africanos. Ao contrário de Platão, que sustenta a inferiorização do corpo com relação ao conhecimento verdadeiro, os africanos antigos acreditam na harmonia entre as dimensões do Ser e o conhecimento de si. Ou seja, há uma tentativa de assimilar conhecimentos africanos aos conhecimentos gregos de maneira integral por conta do legado africano roubado, porém muitas produções filosóficas não são integralmente africanas em territórios gregos. O que isso quer dizer?

Quer dizer que o alicerce das comunidades africanas antigas (Camítica) é ntr (espírito divino), o que mantém a dialética e integridade entre corpo, mente e espírito, segundo Afua (2021). O corpo faz parte do fazer filosófico, nesta perspectiva o parto é, de certa forma, mitológico e isso não descaracteriza a sua fonte e profundidade filosófica. Uma análise de maneira geral do nascimento de Heru (Hórus), por exemplo, mensura a tese. 

Segundo Emanoel Araújo (2000), na literatura dramática, Isis, para salvar seu filho da perseguição de Seth (que matou Osíris em 14 pedaços), invoca a proteção divina a Atum. Então, Isis proclama a sentença de proteção e por fim instrui seu filho prestes a nascer. De maneira analítica, na perspectiva filosófica africana, Hórus seria o conhecimento e foi sentenciado pela proteção divina. O pai de Hórus (Osíris) carrega consigo a simbologia da restituição ou renovação da vida, percebemos que Osíris renasce, além disso, seu filho (conhecimento) nasce a partir da atitude de Isis (a portadora da cultura). Compreendemos então, que o conhecimento surge com o renascimento. Isis carrega consigo o título de portadora da cultura, o símbolo matrilinear. Por fim, Seth simboliza a escuridão, a desordem e a irracionalidade. 

Contudo, o processo de parir uma ideia é tão complexo quanto o significado de filosofia, que segundo Obenga (2004) é uma espécie de pedagogia. O processo filosófico é desconfortável e requer o renascimento, ou seja, a reinterpretação ou reelaboração do conhecimento instruído pela cultura. A não sistematização de conhecimentos leva à não compreensão da natureza das coisas e impacta no futuro da humanidade gerando o caos e a desordem. Portanto, o reconhecimento da influência e contribuição das filosofias e culturas africanas na cultura da humanidade possibilita a reinterpretação e reelaboração da pergunta “o que é a humanidade?”, assim legitimando e garantindo a qualidade de vida e intelectualidade africana e de seus descendentes na produção filosófica e científica no presente e no futuro.

A leitura dos trabalhos de Antônio Bispo dos Santos e Ailton Krenak nos convoca a refletir sobre a nossa relação com o meio ambiente, o espaço que a cultura ocidental nos ensinou a nomear como natureza. Esses pensadores nos mostram que apesar da diversidade de criaturas vivas no planeta e as possibilidades de outras interações com o espaço, somos direcionados a acreditar (no sistema de pensamento ocidental) que estamos apartados da natureza devido a uma crença de que somos superiores aos outros seres da terra por sermos humanos. Os povos pertencentes às comunidades tradicionais e que não se coadunam com esta lógica, como argumenta o intelectual indígena, Ailton Krenak, são vistos como sub-humanos.

Em seu livro, Ideias para adiar o fim do mundo, publicado em 2019 pela editora Companhia das Letras, o autor comenta que o processo de empreitada colonial tem nos colocado como princípio um único e equivocado projeto de sociedade no qual a humanidade vai sendo afastada da terra, das interações, e, sobretudo, da confluência com o ambiente. Para Krenak “a humanidade vai sendo deslocada de uma maneira tão absoluta desse organismo que é a terra. Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, Ásia ou na América Latina. São caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes — a sub-humanidade […] Parece que eles querem comer a terra, mamar na terra, dormir deitados sobre a terra, envoltos na terra. A organicidade dessa gente é uma coisa que incomoda, tanto que as corporações têm criado cada vez mais mecanismos para separar esses filhotes da terra de sua mãe.

Esse projeto político e econômico destacado por Krenak também é apontado pelo pensador negro e quilombola, Antônio Bispo dos Santos. Em seu livro Colonização, Quilombos: modos e significados, lançado pela editora UNB/INCTI em 2015, o autor aborda a ferocidade do Estado brasileiro em promover, ao longo da história, ataques às comunidades tradicionais. Nêgo Bispo (outra forma em que é conhecido), chama atenção para as inúmeras práticas de etnocídio cometidas pelo Estado brasileiro contra os Quilombos, os Retiros, os Mucambos entre outras terminologias usadas para caracterizar as comunidades contracolonizadoras. 

O autor explica que as comunidades contracolonizadoras podem ser descritas como as tentativas de organização de sociedade que resultaram da rebelião e processos de fuga dos africanos escravizados no período colonial e que por muitas vezes aconteciam em parceria com os povos originários (indígenas); bem como as iniciativas de organizações sociais negras e indígenas que ocorreram no período de pós-abolição. Como exemplo dessas comunidades com princípios e práticas contracoloniais, Nêgo Bispo menciona o povoado de Caldeirões, na cidade de Crato, interior do Ceará, em 1889. O povoado de Canudos, cidade de Canudos, na Bahia, no ano de 1874. O povoado de Pau de Colher, no município de Casa Nova, na Bahia, em 1930 e o Quilombo dos Palmares, em Alagoas por volta de 1695. 

Para Nêgo Bispo, os ataques do Estado brasileiro a essas organizações comunitárias revelam o incômodo da instituição com as populações que têm uma ligação com a terra e que carregam uma perspectiva de que “a terra era (e continua sendo) de uso comum e o que nela se produzia era utilizado em benefício de todas as pessoas, de acordo com as necessidades de cada um, só sendo permitida a acumulação em prol da coletividade, para abastecer os períodos de escassez, guerras ou festividades”. 

Além disso, podemos considerar a partir das reflexões de Ailton Krenak e de Nêgo Bispo que tais práticas de etnocídio cometidas pelo Brasil em relação às comunidades quilombolas, indígenas e tradicionais se relacionam às tentativas de extirpação de outros projetos de sociedades, de trajetórias de vidas, de racionalidades e de epistemologias que têm em comum a valorização do coletivo e não do indivíduo. Ou seja, é um combate a toda e qualquer narrativa que não prioriza o discurso homogêneo, o ego e, principalmente, a noção de propriedade privada. Pois se a terra é de todos e dela devemos retirar o suficiente para vivermos, sem desperdiçar e acumular para o lucro individual e para a exploração do trabalho o projeto econômico e político do capitalismo torna-se ineficaz. É preciso alimentar a sede pelo consumo, o estabelecimento de relações competitivas e a desvalorização e o não reconhecimento das epistemologias em que o sujeito só existe plenamente mediante a sua interação com a natureza e com o grupo étnico-cultural a que pertence. 

Por esse motivo, como pondera Ailton Krenak, as sociedades ocidentais vêm tentando, de todas as formas, acabar com a pluriversidade de narrativas oriundas das populações julgadas como sub-humanas. De acordo com Krenak, as diversas narrativas encontradas nestes grupos (geralmente racializados) não coadunam com a razão ocidental. O autor enfatiza a seguinte questão ao tratar das cosmovisões dos povos indígenas do Equador e da Colômbia: “Por que essas narrativas não nos entusiasmam? Por que elas vão sendo esquecidas e apagadas em favor de uma narrativa globalizante, superficial, que quer contar a mesma história para a gente?” (p. 19). 

A estratégia de combate do projeto colonial às formas de pensamento quilombola e indígena também aparece na obra de Antônio Bispo dos Santos. O pensador menciona o processo de transmissão de pensamentos genuinamente ecológicos das comunidades quilombolas. Em diversas passagens do seu trabalho, Nêgo Bispo nos presenteia com valores comunitários que aprendeu com seus mais velhos. Um desses momentos é o relato em torno da prática da pesca em sua comunidade, como ela é aprendida de maneira coletiva e de forma que não agrida o ecossistema. Nêgo Bispo expõe: 

Ainda garoto, comecei a participar das pescarias. Um grupo acampava na margem do rio e escolhia o poço onde todos pescariam. Alguns remendavam tarrafas, outros cortavam palhas para tapagens, outros retiravam balseiros de dentro d’água, outros distribuíam cachaça, bolos e tira-gosto ou faziam café. Tudo isso coordenado pelos mais velhos […] Independentemente da atividade desempenhada por cada um, no final todas as pessoas levavam peixes para casa. A medida era o que desse para cada família comer até a próxima pescaria. Seguindo a orientação das mestras e dos mestres, ninguém podia pescar para acumular, pois o melhor lugar de guardar os peixes são os rios, onde eles continuam crescendo e se reproduzindo.”

Uma breve análise do relato de Nêgo Bispo apresenta práticas ecológicas em relação aos recursos naturais, integração de todos os membros da comunidade na atividade da pesca e ênfase em um tipo de pensamento matemático no qual a quantidade para cada família é medida de acordo com sua necessidade e não pela adoção de métricas e regras de acúmulos capitalistas absurdas. Um tipo de socialização que desafia a razão do capital e que, por esse motivo, segue sendo pressionada, perseguida e combatida pelo Estado brasileiro.

Inevitavelmente, ao ler as obras desses autores, sou levada a recordações da minha trajetória de vida, instigada a pensar nos valores comunitários e nos aprendizados sobre a ocupação do território que aprendi com minha família e que atravessaram todo o meu processo de socialização infantil, juvenil e da fase adulta. Eu, uma mulher negra, de terreiro e moradora da periferia do Rio de Janeiro, aprendi desde muito cedo com minha mãe e avó materna a conceber a terra como lugar de morada, de plantio e de forças sagradas. 

Cresci em um quintal onde moravam minha avó materna, dona Maria das Neves, e seus cincos filhos com suas famílias. Uma ocupação do espaço onde a casa da minha avó ficava ao centro do quintal, e as dos outros familiares, inclusive a minha, ao redor. Foi neste espaço que aprendi a cultivar hortas, colher frutas em pés de goiabeira, jaca, cajá, manga, acerola, araçá, jamelão, graviola e amora, evitar cortar árvores sem necessidade, e respeitar a temporalidade do solo diversificando o cultivo dos alimentos em espaços diferentes para não “cansar a terra”.

Testemunhei por diversas vezes a vida se fazer presente no nascimento de porcos, frangos, gambás, ratos, pássaros, cães e gatos. Nos meses de julho e de dezembro, participava como espectadora do processo de imolação dos porcos que tínhamos criado. Nesse processo participavam alguns homens da minha família e profissionais de açougues do bairro. Esse momento era muito cobiçado no local e muitos moradores iam até nosso quintal assistir e buscar o seu prometido pedaço de carne do porco, afinal eles haviam contribuido no processo de alimentação dos suínos juntando lavagem (resto de cascas e sementes de legumes) ao longo do ano. Vi e aprendi com minha avó materna, mãe e tias como se imolavam galinhas para fazer o famoso frango à molho pardo. Andei descalça, tomei banho com água de poço, brinquei com lama e senti meu corpo voar no balanço improvisado na mangueira em frente a minha casa.

Em diversas ocasiões, vi minha avó materna cercar o quintal com elementos da natureza considerados sagrados para as religiões de matrizes africanas. Todo esse contexto de devoção e aproximação a modos de lidar com a terra me permitem dizer, evidentemente apoiada nas literaturas tratadas acima, que nada é mais avassalador do que o processo de alienação e distanciamento da natureza a que estamos sendo levados. Ficamos aterrorizados com a sinuosidade e força das águas e com o tempo da terra. Compramos nossos alimentos em mercados, esquecemos que as carnes expostas ali um dia eram criaturas vivas e julgamos a imolação das religiões de matrizes africanas. Alimentamo-nos de comidas e bebidas que podem nos adoecer devido às substâncias que lhes são adicionadas. Desaprendemos a ouvir o barulho dos pássaros, do galo e do vento nas árvores. Queixamo-nos do calor, mas não suportamos o solo sem asfalto, sem estar sobrecarregado de cimento e dos projetos urbanos.

Assim, não percebemos a eliminação de tecnologias ancestrais. De repente, temos a substituição das erveiras pelas terapeutas de florais. Não sabemos mais reconhecer um pé de goiabeira e um pé de araçá. Acreditamos piamente que nossas casas de cimento são melhores que casas de barro e de palha das comunidades tradicionais. Nunca questionamos qual casa é mais fresca, qual casa cheira e tem a energia de nossas mãos. Acostumamo-nos com o cenário de terror e de fim de mundo proposto pela razão ocidental. Por esses motivos, é tão pertinente nos cercamos de reflexões de autores quilombolas, indígenas, de religiões de matrizes africanas para que possamos perceber o que temos perdido e como não sabemos mais identificar o cheiro do tempo quando vai chover, raiar um profundo sol ou quando haverá um dia equilibrado de frescor.

A flecha artística de Aislan me atingiu em meados de 2021, pelo Instagram: impactado com a produção incansável e inédita desse jovem artista, entrei em contato: “Olá, boa tarde, tudo bem? Sou curador e gostaria de conhecer mais sobre seu trabalho.” A partir daí, seguiram-se incontáveis mensagens, uma conversa por videochamada e um convite que fiz para o então estudante de medicina da Universidade de Brasília (UnB), prestes a se formar: fazer parte da residência artística que eu estava organizando no Kaaysá, na Praia de Boiçucanga, em São Paulo. Dez dias depois, lá estava Aislan. Dada sua habilidade pictórica, em desenho sobre kraft, transposta à tela pela primeira vez, o então médico se formou artista, e com ele aprendi inúmeras relações entre ciências biomédicas e arte, entre universos ínfimos e a visualidade de suas obras, eivada pelos padrões e ritmos das células e moléculas — algo que, para o homem branco, geralmente são apenas elementos constitutivos da matéria observados pelo microscópio, mas que, para Aislan, são representações da sua maior ancestralidade. Isso sem falar em propriedades curativas, atribuídas por ele tanto à medicina como à arte. Rebelde e contestador, Aislan soube trilhar seu caminho com autonomia e liberdade, e digo isso como quem o viu “saindo do ovo da cobra”, como ele mesmo afirma. Hoje ele é representado pela Galatea Galeria, onde realizou sua primeira mostra individual, em novembro de 2023, com curadoria de Lisette Lagnado. O artista de 33 anos também tem um trabalho que integra a mostra Histórias indígenas, no Museu de Arte de São Paulo, o Masp.

Todo esse enorme preâmbulo para falar do que importa: a produção de Aislan. Por sorte, já tomei ayuahuasca algumas vezes (uma delas com um maldito xamã Hanilkui, deixa ele), mas digo isso porque a aproximação com a ayuahuasca me parece fundamental pra entender a onda de fractais inexplicáveis em movimento orgânico, contíguo, infinito. E como pessoa branca, distanciada dessa realidade, uspiano de formação eurocêntrica, olho com deslumbre para essa força pulsante calcada na planta e na organicidade celular. Num tempo cada vez mais dissonante, com pandemias que parecem só começar, degelo de calotas polares, enfim, o caos, ter contato com uma produção artística que problematiza o conhecido a partir do elemento celular mais elementar e do encantamento provocado por ele me parece um vislumbramento instigante e necessário — quase da ordem da “miração”. Daí a força de Aislan, que, com cosmovisão, transforma tempos, movimentos e traços — e pontos (ele é obcecado por bolinhas). Eis que o médico-artista-curandeiro nos receita uma medicina que pode causar rebuliço. Incontrolável. E se soma a isso seu questionamento quanto a uma visão indígena exclusivamente amazônica, dado que ele vem e fala da caatinga. Tudo isso nos faz rever de onde falamos e também indagar sobre a multiplicidade de visões e cosmogonias presentes apenas no território chamado Brasil.

Com isso, torna-se urgente dizer: nada de se ater à beleza por si. O belo no trabalho de Aislan convida à luta — resta encontrar qual luta transformadora é essa. Assim como ele descobre o mundo através do fazer, primeiro pintando em posca sobre papel kraft, agora em telas de linho, em couro, bordado em voal ou ainda em escultura. Isso deixa claro que o suporte não realiza, só informa, mas o problema que ele alcança segue se mostrando inalcançável, e a elaboração sobre o fazer segue sendo a posteriori, dada a urgência de realizar e de se apresentar. O que ele alcança, porém, segue, de certa forma, inalcançável, porque é mistério é dessa ordem micro-macrocósmica ligada ao funcionamento de tudo. Mesmo para Aislan, a elaboração sobre o que faz parece ser a posteriori, dada a urgência daquilo que pressente e manifesta.

Alheio a rótulos, livre e contundente, Aislan nos apresenta, por meio de seus trabalhos, um cosmo complexo, muito mais ligado ao sentir do que à racionalização. Entretanto, se trata de um sentir conectado a algo imenso. Aislan apresenta em seu trabalho um tipo de junção de firmamentos, conhecimentos, sensações — algo que para nós tem também o efeito de um universo de perguntas em aberto.

Essa falta de resposta em sua produção, uma progressiva elipse, paradoxalmente produz conexões inesperadas em todos os suportes e as técnicas que utiliza. Esse paradoxo de seu trabalho, esse inesperado, esses delicados momentos de espanto que nos oferece e que talvez ele próprio não entende completamente são a impressionante e crescente força de sua produção: a força de um mistério.

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Da Baixada Fluminense para o mundo, Gabriel Massan conquistou um espaço que parecia não lhe pertencer. Quando pequeno, ninguém lhe disse que havia vida para além do Rio de Janeiro e que a arte era, de fato, uma possibilidade. Isso porque, talvez, não fosse. Porém, quando descobriu que bastava criar um mundo para que ele fosse seu, todos os espaços que um dia lhe foram negados sorriram de volta. 

Hoje, no cruzamento entre arte, tecnologia, videogames e inovação, Massan ilumina o cenário artístico com uma luz que é impossível ignorar. 

Sua obra, ousando transgredir as convenções de até mesmo as formas narrativas mais recentes que ainda estão se descobrindo, amalgama inteligência artificial, realidade aumentada, esculturas virtuais, interatividade e hologramas. Essa sinfonia de elementos confere a sua jornada artística um lugar de destaque no cenário artístico internacional. Traz consigo uma perspectiva única, rara de se ver: quantas vezes vimos um artista citar os jogos Final Fantasy e The Sims como influência? Esses ingredientes, aliados a animes, filmes de Glauber Rocha e incursões teatrais, moldam os alicerces da identidade brasileira de Massan, ora sofrida, ora dançante. Anos mais tarde, apresenta agora ao mundo uma produção que não apenas reflete o seu tempo, mas o transcende, ecoando ressonâncias do passado. 

Em suas obras, busca desbloquear universos de possibilidades, transformando-os em experiências virtuais palpáveis e incorporando a eles símbolos que cabem em épocas e culturas diferentes. O mais animador reside na certeza de que há ainda mais a ser descoberto por Gabriel. Quem ousar fechar os olhos por um instante, despertará diante de alguém que prefere dançar sobre as extremidades, construindo universos digitais num mundo excessivamente real. 

Diante de tanto destaque e do inegável magnetismo de suas criações, lidera a colaboração especial em comemoração aos 75 anos do ícone Serpenti no Brasil. Essa aliança não somente sublinha a expressão artística de Massan, mas também simboliza a fusão de sua narrativa pessoal com a rica história da Bulgari. O propósito é claro: entrelaçar a tradição da joalheria com uma visão que é singular, gerando uma experiência que costura o legado da Serpenti com os sonhos incipientes de novos artistas. 

Com menos de 30 anos de idade, as criações de Gabriel Massan não são meros reflexos da diversidade cultural brasileira, mas também testemunhos de seu compromisso com questões sociais e ambientais. Nesse contexto, sua colaboração com a Bulgari representa uma simbiose de tradição e inovação, uma imersão nas profundezas da complexidade da Serpenti. Na celebração dos 75 anos de um ícone em constante renovação que representa uma busca sem fim por novas interpretações de si mesmo, nada mais justo do que contar com a visão de um artista que

transcende barreiras, entrelaçando passado, presente e futuro numa dança caleidoscópica de criatividade. 

Ao olhar para a sua trajetória pessoal, como as experiências paradoxais da sua infância na Baixada Fluminense, entre a dureza cotidiana e o colorido do samba, influenciaram a criação de universos e mundos alternativos em sua obra? Como esse caminho todo culmina na sua produção atual? 

Gabriel Massan: Meu primeiro contato com a arte se deu pelo teatro. Acho que também por uma grande influência do meu pai, que foi ator. Participava de peças no Tempo Glauber, em Botafogo, no Rio, ao mesmo tempo em que me interessava por animação e 3D. Eu já conhecia o jogo Final Fantasy, era apaixonado por anime e curtia as animações da Disney, da Pixar. Até que em dado momento eu saio do teatro e passo a frequentar lan houses e, pouco depois, ganho o meu primeiro computador. Por viver numa região violenta, as outras crianças da minha rua costumavam jogar jogos que conversavam com essa realidade, como jogos de tiro, Counter Strike, esse tipo de coisa. Mas eu tinha um interesse em recriar a vida, então eu jogava The Sims. Com esse jogo eu começo a construir narrativas com a minha tela e publicar no YouTube. Então, passando a primeira parte da minha adolescência, acho que até uns 15 ou 16 anos, eu passei na internet publicando essas séries, construindo roteiros e meio que aprendendo a usar ferramentas de edição de vídeo e imagem. A realidade de ser artista não fazia muito parte do meu recorte, né? Não era uma possibilidade de vida que me foi apresentada. Então, na hora de escolher carreira, eu vou para publicidade, que é onde eu acreditava poder criar, construir essas narrativas de algum jeito. Mas logo acabo desistindo, depois de ganhar uma bolsa para duas escolas de artes. 

Você conseguiu essas bolsas com trabalhos de faculdade, de publicidade? Ou foi de outro jeito? 

GM: Fiz um ano de faculdade em uma instituição privada e, depois, ingressei em uma faculdade pública no interior de Minas Gerais, onde me envolvi nos movimentos estudantis. Ali tive mais contato com áreas como antropologia e estudos de mídia, e isso despertou meu interesse pela dimensão política da comunicação e pela condição humana como ser social. Ao retornar para o Rio de Janeiro, já estava desinteressado na abordagem comercial da publicidade, querendo buscar novos cursos. Consegui uma bolsa na Escola de Arte e Tecnologia Oi Kabum! e outra na Escola de Artes Visuais Parque Lage, onde me aprofundei em Videoarte e Videoinstalação. Aí comecei a desenvolver um forte interesse por diferentes cinemas, incluindo o trabalho de Glauber Rocha. Foi nesse período que mergulhei com tudo no audiovisual, o que me levou ao 3D.

Sua vida atual, que é um tanto itinerante, influencia suas criações? No sentido de soma. Como as cidades pelas quais você passa e passou moldam sua perspectiva artística de eterna imigração e expansão? 

GM: Por conta dos eventos de anime e do teatro, eu me deslocava bastante, o que não era muito comum na minha região. Isso porque a mobilidade urbana no Rio já é bastante sacrificada, ainda mais se você não está dentro da parte turística. Então, ao conhecer mais lugares e expandir um pouco a minha visão, consigo entender a complexidade da cidade, até por ter amigos em diferentes regiões e, às vezes, demorar três horas para chegar na casa de alguém. Nesse momento, comecei a entender que eu gostava de transitar, de poder habitar diferentes espaços e também de ser diferentes pessoas, gesticular de diferentes formas. Acho que, a partir do momento em que você amplia o seu entendimento do território, sua identidade também começa a se ampliar. Me interessar pelos diversos lugares e possibilidades do Rio acho que foi o que virou essa chave, porque aí depois eu vou para São Paulo, vou para Minas, vou para fora do Brasil. Eu sempre estou interessado nas formas como as pessoas vivem nesses diferentes territórios e como eu posso perceber a minha existência nesses locais também, explorando possibilidades e entendendo o que posso vir a ser. É uma abertura para conhecer e compreender as coisas. 

Você falou de algumas referências que são bastante populares, como Final Fantasy e The Sims. No mundo da arte, nem sempre vemos pessoas citando jogos eletrônicos. A arte digital parece ter um poder de inclusão maior. Qual é a sua perspectiva sobre o papel dessas técnicas na narrativa contemporânea, destacando como essas formas de expressão contribuem para a promoção da inclusão e diversidade? 

GM: A arte digital, para mim, representa um novo emblema, uma nova expressão dentro desse contexto, comparável à arquitetura. Apesar de minha formação técnica e não acadêmica, minhas influências vêm do cinema, dramaturgia e samba, moldando minha capacidade de construir um mundo imaginário. Esse processo me fez perceber que, antes de me considerar um artista, eu primeiro crio a obra e, posteriormente, questiono se é arte. O mesmo ocorreu com minha incursão na arte digital. A curiosidade inicial foi repensar o propósito da ferramenta, algo que acredito ser comum a muitos artistas. Acredito que a essência é ter acesso à ferramenta, visualizar suas possibilidades e, instintivamente, explorá-la de maneira inovadora. Ao longo dos anos, meu foco mudou para games e experiências interativas, algo impensável há duas décadas, sem uma grande indústria. Essa evolução tecnológica respinga não apenas nas áreas mais óbvias, mas também na arte, trazendo a arte digital para o contexto atual da sociedade. 

Você está desenvolvendo três obras de arte NFT para a Bulgari, com os lucros destinados a projetos sociais que promovem a inclusão de mulheres no mercado de tecnologia no Brasil. Como isso se integra à sua visão artística e ao impacto social que você busca alcançar? 

GM: No meu trabalho, vejo um impacto social significativo. Quando compartilho o conhecimento que adquiri sobre a tecnologia de uma certa forma e imagino compartilhar isso

com a sociedade, percebo um impacto social direto e indireto. Trabalho com múltiplas perspectivas em minhas obras, seja nas ruas, nas diversas interpretações do meu trabalho ou nas várias formas de interagir com ele. Gosto de trazer essa liberdade para as pessoas. Discutir tecnologia em arte de uma maneira que tenha um impacto social significativo é trazer o público de diferentes idades para essa discussão. A arte digital, por sua natureza democrática, torna-se acessível a todos, uma vez que a maioria de nós possui smartphones. A arte está literalmente nas mãos de todos, sem a necessidade de sair de casa ou pagar ingressos. Isso tem uma extensão significativa. No contexto do Brasil, é crucial ressignificar o espaço das artes, desafiando noções arcaicas e promovendo uma compreensão mais inclusiva. 

A digitalização desempenha um papel vital nesse processo. Seja na forma de exposição da arte, como a Bulgari que leva a arte para as ruas, eventos e redes sociais, ou na mídia em geral, a digitalização ajuda a redefinir o conceito de arte. A arte precisa ser acessível a todos, permitindo que o imaginário e a fantasia se tornem tangíveis, proporcionando discussões sobre outros mundos, vidas e formas de existir. 

Hoje em dia, é muito esperado que artistas se posicionem politicamente e tenham um impacto social claro. Essa pressão para que pessoas públicas se manifestem pró ou contra isso e aquilo é evidente, o que pode ser desafiador. Como um artista queer, negro, como você enxerga seu papel na celebração da autenticidade e diversidade por meio da arte? 

GM: Acredito que a pressão existe, mas também vejo o papel do artista, pelo menos para mim, como o de confundir e apresentar perspectivas diversas, quebrando expectativas preestabelecidas. Em meu trabalho, muitas vezes enfrento a dificuldade de ser enquadrado em uma arte negra, pois não estou discutindo a negritude de forma convencional. Trabalho com formas humanas, e acredito que estou explorando mais a minha experiência como alguém que vive em um território desigual, uma experiência que classifica a negritude de uma maneira e a branquitude de outra. Minha abordagem é mais uma reflexão da experiência pessoal, a partir das noções de mundo, sistema e política que tenho. Minha discussão sobre política parte da responsabilidade de fazer com que a audiência não apenas discuta a obra, mas também se torne parte integrante dela. Conceder poder de agência e responsabilidade ao participante é fundamental. Dessa forma, propondo essa participação, meu trabalho se torna político, ainda que não necessariamente de maneira tradicional. 

Gosto de situar minha arte no contexto latino, como na exposição da Serpentine Gallery, onde discuti a desigualdade social e a forma como eu e outros artistas navegamos por essas questões. Muitas das problemáticas que abordo são apresentadas de forma subjetiva, trabalhando no Brasil com uma dimensão latina, reconhecendo a complexidade e fetichização do tema. No entanto, essas questões são globais e poderiam ser realidade em outros lugares, como na Indonésia ou na África do Sul, uma vez que a desigualdade econômica, o racismo e a guerra são discussões

globais. Ao trazer uma estética humana para o meu trabalho, busco explorar o inconsciente e despertar o interesse das pessoas pela linguagem corporal e interpretação. Vejo meu trabalho como um espelho, e o que me interessa é como as pessoas se veem quando confrontadas com certas imagens, cenas e experiências. 

Conte um pouco mais sobre a instalação interativa itinerante Infinite Tales, pensada a convite da Bulgari 

GM: Inspirado pela história da marca, especialmente por artistas como Andy Warhol, decidi seguir uma abordagem histórica, considerando que o criador da Bulgari era grego e, portanto, um imigrante, o que ressoou com a minha própria história. A narrativa que criei focou em sua jornada, migrando da Grécia para Roma, um berço do luxo na época, em busca de um lugar onde seu talento pudesse prosperar. Essa narrativa se estendeu pela família dele e isso me interessou muito, esse movimento de levar conhecimento para outro lugar, expandindo-o por meio de sua própria linhagem. 

Minha intenção era criar algo moldável, que existisse em diferentes formas e lugares. Ao fazer um recorte em São Paulo, busquei a conexão entre a Bulgari e a cidade, entre a Serpenti com São Paulo. Descobri, então, que há uma espécie rara de jiboia em São Paulo, que ressurgiu após anos, mesmo com desmatamento significativo na região. Isso me intrigou, pois São Paulo já foi um encontro de diferentes biomas, modificado pelas mãos humanas ao longo do tempo. Para construir o misticismo da serpente baseado nessa raridade, fiz testes com diferentes cores, inspiradas na paleta da marca. A serpente foi composta por partes separadas, como cabeça, peito, rabo e corpo, sendo possível adicionar mais peças, como um colar ou um bracelete. E também queria brincar com o imaginário brasileiro, remetendo às serpentes de um real que moldávamos na infância, dando uma perspectiva luxuosa e rara. Assim, nasceu o símbolo da serpente, que se tornou o foco do evento de lançamento da colaboração e se expandiu por diversas formas, incluindo escultura digital, pintura, animação 3D, projeções de videoarte online, e NFTs. Estamos construindo essa colaboração explorando novos territórios e possibilidades.. 

Conte um pouco mais sobre as possíveis interações que existem com a sua serpente. 

GM: Por exemplo, a cada vez que eu desenvolvo uma peça com a serpente, eu moldo o corpo dela de maneira diferente. Posso criá-la longa e sinuosa ou pequena e separada, quase como uma joia independente. Essa flexibilidade que construí durante o processo de pesquisa permite que eu brinque com o tamanho e a forma em cada peça. A dinâmica se conecta diretamente com a Serpenti da Bulgari. E essa abordagem se estende a praticamente todas as minhas produções. É uma ideia de arte viva, que se adapta e evolui ao longo do tempo.

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Como fazer jus a um ícone que completa 75 anos? Como celebrar algo que se alojou no ideário de tantas gerações e promover todos os valores que fazem da Serpenti uma das mais importantes criações da história da joalheria? A missão não é fácil. Mas, com um punhado de imaginação e ousadia, ela se tornou possível. 

Obra de Daniel Rozin.

Na busca incessante pela beleza e pela elegância, em 2023 a Bulgari celebra os 75 anos da icônica Serpenti com uma iniciativa artística de magnitude internacional: a Serpenti Factory. Primeiro, pegue tudo que você entende por herança e artesanato; depois, eleve isso à máxima potência. É com essa abordagem ambiciosa que a Maison italiana mergulha em tecnologias multissensoriais e em novas estratégias de abrangência para unir passado, presente e futuro em uma sinfonia de inovação. 

Para marcar esse capítulo histórico, a Bulgari levou a exposição Serpenti 75 Years of Infinite Tales a cidades emblemáticas como Madrid, Xangai, Cidade do México, Nova York, Seul, Dubai e, mais recentemente, Milão. A mostra é uma meticulosa fusão de peças de joalheria deslumbrantes, vídeos envolventes e materiais de arquivo que representam não apenas a visão de vanguarda que caracteriza a essência Bulgari, mas também toda a atemporalidade alcançada a partir de criatividade e uma necessidade incontornável por transformação constante. 

Marcando presença em locais icônicos como o Museu de Arte Contemporânea, de Xangai, a Galeria Kukje, em Seul e o histórico Dazi Milano, em Milão, esta exposição é uma verdadeira jornada de imersão pelos polos mais relevantes da produção artística contemporânea. Reunindo obras temáticas centradas em serpentes, criadas por talentos de diversas nacionalidades, o evento é uma grande celebração da diversidade artística. 

Nessa iniciativa internacional que coloca a Serpenti como uma fonte infinita de inspiração, a Bulgari colaborou com o brasileiro Gabriel Massan, responsável por liderar um projeto criativo exclusivo destinado ao público nacional. Com essa parceria, Massan junta-se a um grupo global e eclético de artistas contemporâneos, incluindo nomes como Refik Anadol, Davide Quayola, Daniel Rozin, Sougwen Chung, Cate M, e muitos outros, que desenvolveram trabalhos exclusivos para traduzir com maestria a inesgotável inspiração proporcionada pelo ícone. 

Obra de Cate M. Mercier.

Também como parte das ações artísticas para celebrar o ícone Serpenti, a Maison Bulgari apresentou a coleção-cápsula de bolsas Serpenti in Art, fruto de uma colaboração visionária com três renomados artistas contemporâneos: Sunwoo Kim, Zhou Li e Sophie Kitching. Cada um emprestou sua visão criativa e técnica única para transformar cada bolsa em uma obra-prima de elegância e inovação. Dando continuidade a uma longa tradição de vanguarda, a serpente é

levada para uma dimensão virtual até então inexplorada: os NFTs. Seis vídeos tridimensionais proporcionam um acesso exclusivo a um universo digital dedicado ao próprio acessório, conduzindo-os por uma jornada perfeita da materialidade à imaterialidade, ou da imaterialidade à materialidade. 

Assim, estreita-se ainda mais o vínculo entre a mítica serpente e os universos da arte e da tecnologia. 

Para a Bulgari, a inovação é a tradição do futuro, e a Serpenti Factory é a expressão máxima desse compromisso. A celebração não se limita a fronteiras geográficas e temporais, unindo artistas e apreciadores em uma busca incessante por novas formas de beleza — é uma ode à 

criatividade, à beleza atemporal e à maestria artesanal. A Serpenti Factory é mais do que uma comemoração — é uma reverência à eternidade da elegância e do espírito revolucionário da Bulgari. 

Influência sem fronteiras: A Serpenti pelo mundo 

Para celebrar a longevidade do seu ícone, a Bulgari apresentou a exposição itinerante Serpenti 75 Years of Infinite Tales em cidades protagonistas no universo da arte e tecnologia. De Madrid a Xangai, passando por Cidade do México, Nova York, Seul, Dubai e, mais recentemente, Milão, a exposição promove a herança de excelência da Maison italiana e o seu espírito vanguardista em eventos dedicados à pluralidade artística. 

Dubai 

Dra. Azra Khamissa 

Usa a hena natural como recurso artístico, conectando-se com diferentes gerações e culturas, muitas vezes apresentando a natureza como pano de fundo para apreciar a criação de Alá. Seu trabalho reflete a cultura, herança e estética local da região SWANA (sudoeste da Ásia e norte da África), onde as tradições da hena são profundamente valorizadas, evocando memórias de famílias e ocasiões especiais. 

Dra. Afra Atiq 

Poeta de recitação nascida nos Emirados Árabes Unidos, filha de pai árabe e de mãe nipo-americana. Ela foi cofundadora do Untitled Chapters, um coletivo de escritoras dos

Emirados. Em 2017, ganhou o prêmio de Criatividade da Abu Dhabi Music and Art Foundation por seu poema Uma Carta Aberta ao Câncer, que se inspira nas criações Serpenti. 

Azza Al Qubaisi 

Designer de joias e escultora dos Emirados Árabes Unidos. Com um foco em distintos materiais locais, práticas sustentáveis e técnicas tradicionais, celebra artisticamente a cultura de onde nasceu. O trabalho de Al Qubaisi é uma prova do seu compromisso em preservar a essência da sua cultura e do seu patrimônio. 

Obra de Azza Al Qubaisi. 

Milão 

Davide Quayola 

Emprega a tecnologia como uma lente para explorar as tensões e equilíbrios entre forças aparentemente opostas: real e artificial; figurativo e abstrato; antigo e novo. Construindo instalações imersivas com software de computador personalizado, reimagina imagens canônicas por meio da tecnologia contemporânea. 

Sougwen Chung 

Considerada uma pioneira no campo da colaboração homem-máquina, Chung investiga as interações entre humanos e não-humanos. A artista e pesquisadora sino-canadense explora as impressões artísticas feitas à mão e pela máquina como uma abordagem para entender a dinâmica e os limites dos humanos e dos sistemas. 

Daniel Rozin 

Nascido em Jerusalém, Daniel Rozin investiga a estrutura e a materialidade das imagens. Em seu trabalho, emprega diversos materiais, questionando o que constitui a imagem e o que pode ser transformado em imagem. Suas instalações interativas convidam os espectadores em tempo real a criar uma representação de sua semelhança no objeto. 

Cate M 

Escultora e artista que percebe a arte como sua fuga secreta da vida real, movendo-se entre o realismo e a fantasia. Inspirando-se no mundo animal e também na infância, coloca a natureza e o meio ambiente no centro de seu trabalho criativo como uma questão que não deve mais ser negligenciada. 

Seul 

Chun Kyung-Ja 

Chun Kyung-Ja ultrapassou as normas da pintura oriental tradicional e construiu seu estilo inovador ao explorar tons ousados e saturados, incorporando temas autobiográficos e fictícios.

Ao retratar flores, figuras femininas, cobras, fantasia e sonho como temas, não apenas reflete sobre seu eu interior, mas também contempla as realidades da vida por meio de suas obras. 

Wook-kyung Choi 

Na vanguarda do Expressionismo Abstrato coreano, Wook-kyung Choi desafiou continuamente o desenvolvimento de sua expressão única por meio de inúmeras experiências de composição formal, cores ousadas e gestos incessantes. Suas obras, repletas de cores poderosas, pinceladas dinâmicas e formas rítmicas, refletem a luta da artista para encontrar sua verdadeira identidade. 

Kyungah Ham 

Adota uma variedade de meios, incluindo pintura, instalação, vídeo e performance para produzir obras conceituais. Seu trabalho busca impor visibilidade a elementos que, de outra forma, seriam indiscerníveis. 

Hong Seung-Hye 

Inicialmente usando pixels retangulares, uma unidade básica de imagens digitais, Hong Seung-Hye recentemente adotou a gramática vetorial, combinando, desmontando e acumulando esses gráficos para criar formas proliferantes que são ao mesmo tempo orgânicas e geométricas. 

Jae-Eun Choi 

Engajando-se ativamente em um âmbito internacional, Jae-Eun Choi não limita sua expressão a um único meio, abrangendo escultura, instalação, arquitetura, fotografia, imagem em movimento e som para explorar os temas do tempo infinito e existência finita. Através de uma intensa imagética visual caracterizada por grandiosidade arquitetônica e sensibilidade estética meticulosa, cria um espaço para meditar e navegar pelo tempo. 

Niki de Saint Phalle 

Uma artista que traduz sua dor infantil em arte criativa. A serpente é um elemento frequentemente presente em suas obras como símbolo do medo e inseguranças que qualquer pessoa enfrenta internamente. Usando cores intensas e vívidas, pretende dissipar esses sentimentos e definir a natureza de sua arte futura. 

Obra de Jae-Eun Choi.

Xangai 

Liu Jiayu 

Conhecida por suas instalações imersivas, seu trabalho recria e aprimora o mundo natural, focando nas relações entre humanos, natureza e meio ambiente. Usando fluxos de dados, bem como tecnologias digitais, suas obras de arte permitem novos nós de comunicação com o público.

Qian Lihuai 

Nascido em uma família de mestres de bambu em Wuzhen, lar da arte da tecelagem de bambu por 500 anos. Praticando este ofício tradicional em sua antiga cidade, Qian tornou-se o herdeiro representante da herança cultural imaterial da província de tecelagem de bambu Wuzhen. 

Wu Junyong 

Desde que descobriu as possibilidades da animação de gráficos vetoriais, tornou-se pioneiro em trabalhos peculiares e experimentais de animação digital, enquanto continua a pintar e trabalhar em uma variedade de mídias. O artista criou uma linguagem pictórica idiossincrática de códigos e símbolos, através da qual muitos significados possíveis são revelados e ocultados. 

Refik Anadol 

Nascido em Istambul, o artista de novas mídias e diretor de Los Angeles é um verdadeiro pioneiro na estética da inteligência artificial. Cria arte pública in situ usando uma abordagem de escultura de dados paramétricos, bem como performances audiovisuais ao vivo, culminando em instalações imersivas.

Conteúdo oferecido por BVLGARI
Benedetta Barzini por Gian Paolo Barbieri para Vogue EUA, em 1969. Imagem: Divulgação.

Em sua incessante busca por elegância e sofisticação, traduzindo essas características conforme as nuances de cada época, a Bulgari tece uma narrativa de beleza eterna e design distintivo desde sua fundação, em 1884, no coração de Roma. Consolidando-se como uma joalheria romana magnífica e um ícone de excelência italiana, a marca é reverenciada globalmente pelo primoroso apuro técnico, visão de design revolucionária e pela ousada harmonia de cores que caracteriza cada criação. 

Para além de seu renomado catálogo de joias finas e relógios de alta relojoaria, a Bulgari expandiu sua influência para uma diversificada gama de produtos e serviços de luxo, incluindo acessórios e perfumes, culminando em uma rede exclusiva de boutiques e hotéis em alguns dos destinos mais prestigiados do mundo. 

Em cada peça meticulosamente confeccionada, ecoa não apenas a excelência artesanal, mas também uma narrativa dedicada ao empoderamento e à celebração da beleza em todas as suas formas. Com um legado marcado por uma visão audaciosa e uma paixão pela inovação, a Bulgari personifica a capacidade de evoluir e se reinventar, moldando o presente para um futuro que reflete os mais elevados padrões de criatividade e elegância. 

E quem melhor do que Jean-Christophe Babin, CEO da Bulgari, para falar sobre esse DNA artístico tão forte e inovador? 

A história da Serpenti é fascinante, desde os anos 40 até os dias de hoje. Como a evolução desse ícone reflete a abordagem da Bulgari em unir arte, design e técnica ao longo do tempo? 

A serpente é uma criatura cujas características únicas há muito tempo fascinam a imaginação humana. Este símbolo se faz presente de maneira proeminente em mitos e tradições folclóricas de todas as culturas do mundo como sinônimo de renascimento, proteção, fertilidade e muito mais. Esta imensa significância histórica e simbolismo enquadram-se perfeitamente nos valores e DNA da Bulgari: um caminho de evolução que busca fundir-se com diferentes formas de arte precisamente para explorar as infinitas facetas do símbolo a partir de perspectivas distintas, em uma transformação sem fim.

A própria técnica Tubogas, outro exemplo de ousadia, é uma parte fundamental da identidade da Serpenti. Por que ela é tão especial e de que maneira ela representa a habilidade artesanal da Bulgari e sua inovação no design de joias? 

A técnica Tubogas é uma síntese perfeita da nossa essência. A faixa tubular flexível de inspiração industrial, em metal precioso, sem solda, ilustra a capacidade da Bulgari de experimentar e inovar, sempre expandindo os limites. Isto se torna possível, pois nunca esquecemos nossas origens, levando adiante um conhecimento precioso profundamente ligado ao artesanato e transmitido com empenho ao longo dos anos.

A Maison tem uma longa história de colaboração com figuras icônicas, como Elizabeth Taylor. Como essas parcerias contribuíram para o legado da marca e a percepção global da Bulgari como uma joalheria de prestígio?

Desde a era Dolce Vita até hoje, a Bulgari teve a honra de receber algumas das personalidades mais extraordinárias do mundo do cinema e das artes. Atrizes como Elizabeth Taylor, Audrey Hepburn, Ingrid Bergman, Grace Kelly, Anita Ekberg, além de Sophia Loren e Anna Magnani, entre muitas outras, usaram joias Bulgari dentro e fora das telas com um carisma inabalável. Ainda atualmente, a mistura mágica entre celebridades e criações Bulgari consegue sempre chamar a atenção e roubar a cena. Os nossos embaixadores, de fato, personificam perfeitamente os valores da Bulgari: são talentos multifacetados, carismáticos, fortes e determinados, e isso contribui inevitavelmente para garantir a continuidade e coerência do legado da marca e sua percepção global. Um exemplo é o Festival de Cinema de Veneza em 2021, quando Zendaya usou o colar Serpenti Hypnotic Emerald. Charme, beleza e magia compuseram aquele look de grande impacto!

As criações da marca muitas vezes incorporam motifs geométricos e estilizados. De que maneira esses elementos de design se relacionam com a rica tradição arquitetônica de Roma? 

Roma sempre foi a principal fonte de inspiração da Bulgari. As geometrias e motivos que encontramos nos designs de nossas joias e relógios tomam forma a partir da arquitetura romana: igrejas, lugares icônicos, monumentos. O imenso patrimônio artístico e cultural da Cidade Eterna é incorporado na criatividade da Bulgari e revisitado de maneira única e contemporânea. Assim como as cores e o clima de viver nesta cidade que é lar da Bulgari há quase 140 anos.

A inovação é uma constante na história da Maison. Como a marca busca manter um equilíbrio entre preservar a tradição e se manter relevante conforme o tempo vai passando, promovendo novas ideias e abordagens criativas? 

Eu diria que este é o maior desafio que seguimos enfrentando desde a nossa fundação. Preservamos um espírito pioneiro inerente, que hoje mais do que nunca é essencial para acompanharmos as mudanças e nos mantermos atualizados frente aos desafios cada vez maiores do nosso tempo. É fundamental trabalharmos constantemente para encontrar o equilíbrio entre a necessidade de inovar, experimentar e crescer – explorando novas soluções e ultrapassando limites – ao mesmo tempo em que preservamos nosso DNA e essência, mantendo-os reconhecíveis e consistentes.