Sem título, gravura de Anna Maria Maiolino. A artista ítalo-brasileira é uma das homenageadas da 60a Bienal de Veneza (Divulgação).

“Temos que reconhecer que, apesar de estarmos na era das Grandes Recessões, da austeridade e da estagnação, o que define a vida no Ocidente são os problemas de excesso, não da falta. Nem sempre a sensação é essa — afinal, quem não quer, ou mesmo precisa, de mais dinheiro? —, mas o fato é que, comparados a nossos antepassados, vivemos em meio à superabundância.”
Michael Bhaskar em Curadoria – O Poder da Seleção no Mundo do Excesso

Sinais dos tempos: antes, usávamos a palavra “conteúdo” para nos referirmos a uma abordagem de tema mais aprofundada ou mesmo como algo positivo que alguém possuía; hoje em dia, como um aceno cínico ao estado geral em que estamos, usamos a palavra para designar tudo aquilo, não importa o quê, que as redes sociais produzem. O “conteúdo”, feito bexiga de festa, vem se esvaziando, não sem fazer questão de soltar um barulho ao mesmo tempo estridente e moribundo.

Michael Bhaskar, em 2014. Foto: Bernd Hartung/ Frankfurter Buchmesse

Incrustados no excesso de informações dos dias atuais, envoltos sem direito de escolha nessa verdadeira contenda pela nossa atenção que faz com que cada visita ao celular se assemelhe a um desembarque violento em terras ocupadas, é essencial reconhecer a importância de se fazer escolhas conscientes que dizem respeito a conteúdo. Sob a névoa da guerra, o que consumir e o que não consumir? 

Existem duas razões principais que fundamentam essa necessidade: o gerenciamento do tempo (cada vez mais valioso) e a avaliação da relevância, qualidade e validade das informações recebidas. 

Considerando a limitação do tempo que temos disponível, é fundamental direcionar nossa atenção para aquilo que nos interessa e consideramos pertinentes. Se alguém se deixa levar, lá se vão horas e horas por dia num scroll infinito de informações extremamente descartáveis e pouca, para não dizer nenhuma, retenção de qualquer elucidação que em outro contexto seria válida. Nos tempos modernos — não exatamente iguais aos de Charles Chaplin, mas talvez mais análogos do que imaginamos num primeiro momento —, a inércia das redes sociais pode ser cruel. Com uma quantidade cada vez maior de conteúdos disponíveis, é inviável absorver tudo indiscriminadamente. Para que se cultive a saúde mental e se priorize alguma praticidade, desviar dos muitos dos estilhaços — numa lista rápida: postagens que retratam uma vida irreal e tóxica, influencers de qualquer tipo, pautas pouco desenvolvidas que se resumem às manchetes, notícias inexpressivas sobre o pé dessa ou daquela celebridade —, evitar que o jogo vire e que tudo nos consuma, é um mínimo.

Aos poucos estamos aprendendo, mas, sim, é verdade: nem tudo que chega até nós é factual ou representa uma opinião válida. Curioso pensar como muitas vezes obter uma informação em algum perfil do Instagram ou em qualquer site se assemelha ao que, antes, era ler algo no jornal, apesar deste estar cada vez mais desvalorizado. A lógica, ora, é praticamente a mesma: se está ali, se chegou até mim, então deve ser verdade. Porém, a lógica pregressa era um tanto mais sensata, já que, naqueles tempos — no vendaval do mundo digital, dizer “naqueles tempos” é pensar em praticamente tudo que está a mais de dois ou três anos de distância —, havia uma responsabilidade maior com o que era ou não noticiado, muito embora o poder manipulativo proveniente disso seja tão assustador quanto o das fake news atuais que nem se preocupam em parecer reais. A disseminação de desinformação e opiniões enviesadas é uma das realidade mais aterradores dos nossos tempos.

Desde o surgimento da internet e das mídias sociais, somos constantemente bombardeados por uma quantidade inimaginável de conteúdo. Notícias, artigos, vídeos, músicas, livros e tantos outros produtos, que, pelo volume exacerbado, chegam a ser nocivos, estão disponíveis em uma escala sem precedentes. Eleições já foram decididas tomando proveito disso e quem negar que elas têm papel crucial na formação de opiniões estará sendo, no mínimo, ingênuo. Portanto, é imprescindível desenvolver habilidades de avaliação crítica e discernimento para filtrar o conteúdo que encontramos. Isso envolve questionar a fonte das informações, verificar sua credibilidade, analisar diferentes perspectivas e considerar o contexto em que a informação está inserida. Ao fazer escolhas conscientes sobre o que ler, estamos adotando uma postura crítica e responsável em relação ao conhecimento que absorvemos.

Calma lá. Essa seleção criteriosa não significa fechar-se em uma bolha informativa ou limitar-se a apenas um ponto de vista. Pelo contrário, implica em buscar diversidade de fontes e opiniões, mas de forma consciente e fundamentada. Mais do que nunca, é de suma importância expor-se a diferentes perspectivas e ter acesso a informações confiáveis e embasadas, a fim de ampliar nossa compreensão e formar opiniões com base em ponderação, mas com um pequeno adendo: direcionar para o que nos é mais relevante, tanto pelas nossas predileções quanto pela necessidade de avaliar a qualidade e a validade das informações que nos chegam. Ao adotarmos uma abordagem consciente e crítica em relação à seleção de conteúdos, podemos otimizar nosso tempo, obter conhecimentos relevantes e desenvolver uma visão mais informada e equilibrada do mundo ao nosso redor.

Curadoria – O Poder da Seleção no Mundo do Excesso (2020), escrito por Michael Bhaskar, é um livro que explora a importância da curadoria, como uma forma de seleção proativa, em um mundo invadido por agentes com propósitos diversos, por vezes escusos. Como podemos navegar nesse oceano de excessos e encontrar valor e significado por meio da seleção? Como dar um sentido à loucura que é o bombardeamento de informações? Como é possível a abundância ser esmagadora e causar, paradoxalmente, uma sensação de esvaziamento?

“No contexto de excesso, curadoria não é só um modismo. Ela dá sentido ao mundo.”
Michael Bhaskar em Curadoria – O Poder da Seleção no Mundo do Excesso

Bhaskar é um profissional reconhecido na área da curadoria e do mundo editorial. Sua experiência prática o levou a explorar a importância da seleção como um meio de filtrar e dar significado em meio ao fluxo constante de informações disponíveis. À medida que somos inundados por uma quantidade avassaladora de informações, produtos e opções, a seleção se torna um poderoso mecanismo de autopreservação, filtragem e atribuição de valor.

Nos últimos duzentos e poucos anos, projetamos sociedade e negócios para que não parem de crescer, para que continuem somando. Mas, atualmente, os acréscimos provocam mais mal do que bem. Se muitos problemas são decorrentes de criar mais, não teríamos motivos para questionar esse pressuposto? Vivemos em um mundo fragmentado: nossas vidas se espargem por essas e aquelas redes sociais, com porções que se rompem cada vez mais e causam um danoso desmembramento de vivências, de personalidades, de visões de mundo. No fim, neste mundo estilhaçado, somos nós retalhos, frações, meros vestígios. Versões que gostaríamos de ser, mas não somos.

Ao criar um certo ideal de vida plena e satisfatória que muitas vezes parece inalcançável, uma ideia que se vê salpicada aqui e ali, a cultura e a sociedade amplificam um sentimento generalizado de perda. Perda daquilo que nunca se teve; perda daquilo que nunca se foi — fragmentos que nunca serão o todo. 

Adam Phillips, um renomado psicanalista britânico, escreveu O que você é e o que você quer ser (2012), um livro que explora a natureza humana e as escolhas que fazemos ao longo da vida. Partindo da ideia de que todos nós temos uma vida não vivida, uma vida alternativa que imaginamos ter se tivéssemos feito escolhas diferentes, ele argumenta que essa vida não vivida é uma fonte de angústia e sofrimento para muitas pessoas, pois dá a sensação de que estamos perdendo algo essencial e valioso. Mas questiona se devemos realmente nos lamentar por aquilo que não vivemos e propõe uma reflexão sobre a importância de abraçar as escolhas que fizemos e encontrar significado e satisfação na vida que temos.

“Como sabemos agora mais do que nunca sobre os tipos de vida que é possível viver (…), somos sempre assombrados pelo mito de nosso potencial, do que poderíamos ter em nós mesmos para ser ou fazer. Então, quando não estamos pensando, como o personagem do poema de Randall Jarrell, que ‘As maneiras pelas quais sentimos falta de nossas vidas é a vida’, estamos sofrendo, lamentando ou nos ressentindo por não sermos nós mesmos como imaginamos que poderíamos ser. Compartilhamos nossas vidas com as pessoas que deixamos de ser.”
Adam Phillips em O que você é e o que você quer ser

Adam Phillips, em 2017. Foto: Richard Saker/The Observer

Pensando nas escolhas que temos que fazer no que diz respeito ao que lemos e o que não lemos, aos vídeos que assistimos e aos que não assistimos, temos que saber que nem todas as vidas podem ser vividas. Inevitavelmente, algum assunto do momento passará batido — o que é bom. A curadoria motivada pela sobrevivência vai além da simples escolha, envolvendo também a capacidade de dar contexto, criar conexões e despertar emoções por meio das escolhas feitas. Talvez pareça algo simples, mas, diante do muito que vemos nas redes sociais e na mania que temos de optar pela manifestação célere ao invés de um momento de reflexão, não é algo que vem naturalmente. O natural é opinar sobre tudo, ao mesmo tempo, sempre que algum assunto amplamente discutido surgir — e, sim, ele vai surgir. Mas e se não fizéssemos isso?

É inevitável, e preocupante, o tanto que é possível nos enxergar na seguinte provocação: “Temos entretenimento constante, mas somos cada vez mais distraídos.”

Pensar no papel da seleção em um mundo abarrotado de informações é também refletir sobre como uma habilidade e um processo que pode nos auxiliar, e muito, na sinuosa navegação do mundo contemporâneo do excesso. 

“A curadoria é mal interpretada porque raramente é vista em todo o seu contexto. Curadoria tornou-se um modismo porque a ser resposta para uma série de problemas que antes não existiam: os problemas decorrentes do excesso. Há duzentos anos, vivemos num mundo que promove a criatividade, que busca o crescimento acima de tudo, que aumenta a produtividade sem dar trégua e que quer sempre mais: mais gente, mais recursos, mais dados, mais tudo. A cada dia que passa, porém, fica mais claro que estamos sobrecarregados.”
Michael Bhaskar em Curadoria – O Poder da Seleção no Mundo do Excesso

Mais do que selecionar: dar contexto e significado aos conteúdos escolhidos. Bons curadores, no contexto artístico em que estamos acostumados, são capazes de contar histórias, criar conexões e despertar emoções por meio de suas seleções, certo? Não seria ótimo poder aplicar isso à vida cotidiana?

“Por sorte, a natureza do problema sugere uma resposta: já estamos vendo uma revolução na forma como abordamos o valor. Se o valor, pecuniário ou de outro tipo, antes tinha a ver com a produção primária, agora, num mundo que deixou de ser dominado pela escassez, ele mudou. Hoje o valor está em resolver esses problemas e reduzir a complexidade. Curadoria tem a ver com construir empresas e economias em menos opções mais apropriadas, mais personalizadas. Essa é a diferença fundamental e a grande tendência subjacente que ainda estamos começando a entender.” 
Michael Bhaskar em Curadoria – O Poder da Seleção no Mundo do Excesso

Mais e mais também pode significar menos e menos. Esse, na verdade, é um paradoxo comum da vida. Se você tem muitas amizades, isso talvez signifique que você não tem amizades profundas; se você consumir 7 livros por semanas, isso talvez signifique que você não vai lembrar de nenhum deles daqui a uma semana. 

O excesso, afinal, também é o vazio cada vez maior de espaços livres. Talvez, com um pouco de seleção, o cenário abarrotado possa se inverter. 

Menos é mais, less is more, e nem sempre pingar é melhor do que secar.

Sem título, detalhe de escultura de Anna Maria Maiolino. A artista ítalo-brasileira é uma das homenageadas da 60a Bienal de Veneza (Divulgação)

Devido à pandemia, pela primeira vez em muito tempo nos vimos forçados a desafiar um modelo de trabalho há muito não questionado. Antes de tudo acontecer como aconteceu, o trabalho remoto estava fadado a eventualidades, guardado somente para casos extremos, como algum problema de saúde ou aquelas grandes chuvas capazes de parar metrôs e trens, impossibilitando o deslocamento do funcionário ao local de trabalho. Mas depois de um ano e pouco de pura ansiedade, a vacina e as suas doses de reforço vieram para acalmar os ânimos. Ainda que num contexto para lá de ruim, uma nova possibilidade foi apresentada às pessoas: ao contrário do que se imaginava, é possível trabalhar de casa — e com eficiência (até maior, a depender das circunstâncias). Como, então, voltar 100% ao trabalho presencial? Não se volta. Pelo menos não com a mesma soberania. Os números mostram que esse modelo de trabalho, antes uma maioridade acachapante, não voltou a reinar. O modelo preferencial de hoje em dia é o híbrido, que balança entre o remoto e o presencial, adotado amplamente por empresas do mundo todo. 

Presume-se que esse seja o futuro do trabalho e que, a partir dessa primeira grande mudança, outras virão, num processo contínuo de desencadeamento. 

Mas isso, claro, gera impactos relevantes na economia, tão assentada na logística que força as pessoas a usarem o transporte público, a comerem fora de casa e a frequentarem os comércios que circundam o local de trabalho. E quando a economia é afetada para pior, independentemente do quão positiva possa ser a mudança em termos humanos, a tendência é que a resistência seja das mais fortes, vindo inclusive de políticos poderosos pressionados por lobistas de todos os tipos. A título de exemplo, em janeiro deste ano a prefeita de Washington, Muriel Bowser, que atualmente cumpre o seu terceiro mandato no cargo, fez forte apelo ao presidente Joe Biden, dizendo que o trabalho remoto estaria “matando” a capital norte-americana. E no começo de 2022, o prefeito de Nova York, Eric Adams, direcionou um forte discurso à população novaiorquina, dizendo que “vocês não podem ficar de pijamas o dia inteiro”, pois “não é isso que somos enquanto cidade”.

Em parte, faz todo o sentido do mundo que os prefeitos de duas das maiores cidades dos EUA advoguem a favor daquilo que, num primeiro momento, parece melhor para a economia. Uma economia ruim, obviamente, não serve a ninguém e leva a problemas sociais sérios. Mas, ao mesmo tempo, é justamente por serem os prefeitos de duas megacidades que as falas ácidas chegam a impressionar. Seria de se esperar fossem estar um tanto mais abertos às novidades da vida profissional, ainda mais quando elas representam, em muitos casos, aumentos na produtividade e satisfação dos funcionários. 

Dentre os muitos argumentos em prol do trabalho remoto — como a liberdade e a comodidade para trabalhar de onde a pessoa bem entender —, um que ganha destaque é a economia, que chega perto de 40 mil reais anuais. Economiza-se um bocado com descolamento (seja ele feito com transporte público, carros de aplicativos ou com o combustível do automóvel próprio), outro bocado com alimentação e até um bocadinho com lazer. E é por conta dessa redução palpável de gasto, que, muito embora tenha o poder de colocar a vida financeira de alguém nos trilhos, o trabalho remoto representa um perigo para a economia das cidades, em especial as mais caras, como Nova York ou São Paulo. 

A política vem tentando entrar em jogo para interceder a favor dos seus e desacelerar aquilo que veem como uma ameaça à economia, mas o que mais paira no ar é a dúvida: será que o processo é mesmo reversível?

Antes da pandemia de Covid-19, apenas cerca de 7% dos negócios no país tinham empregados trabalhando à distância. Hoje, porém, de acordo com estudo feito pela FGV, o home office é adotado por 33% das empresas no Brasil. O número, claro, é menor do que era nos dois anos anteriores, quando a pandemia ainda estava no auge. Em 2021, 57,5% das empresas no Brasil  estavam trabalhando de forma remota, de forma parcial ou total, incluindo as que já adotavam essa modalidade antes de 2020. Em outubro de 2022, o percentual caiu para 32,7%.

Nos EUA, até 2019 apenas 4,7% do trabalho era feito em casa. Hoje, mais de um quarto dos estadunidenses cumprem jornada nessa modalidade. Em janeiro deste ano, 27,2% dos dias trabalhados cumpridos foram de forma remota, segundo a pesquisa Working From Home Research, um relatório mensal sobre o trabalho remoto.

Fato é que cabe aos líderes pensarem em estratégias para lidarem com as transformações inevitáveis da sociedade. Ao que tudo indica, o trabalho híbrido veio para ficar e, portanto, se o impacto na economia é uma realidade, os esforços devem ser direcionados para a elaboração de mecanismos de adaptação àquilo que é tido como problema. Solucionar não é barrar, e vice-versa. Se considerarmos que cada transformação tem seus próprios resultados, seja fortalecendo ou possivelmente enfraquecendo a economia, tentar frear todas as mudanças que se anunciam talvez não seja inteligente. Não em 2023. Num mundo altamente tecnológico que muda a cada dia, não é possível preconizar os modelos ultrapassados só por que eles operam a seu favor. 

O futuro do trabalho está com a boca cheia de promessas e, cada vez mais, ele tende a se distanciar daquilo tudo que vivemos até aqui, fazendo com que os reinados durem por menos tempo e aumentando a velocidade com que modus operandis e mentalidades entram na lista do “passado” do trabalho. Um tópico que vem ganhando força nos últimos tempos é a semana de 4 dias, certo? Se nem mesmo a semana de trabalho de 5 dias está segura nessa revolução, então nada está. Os símbolos que por tanto tempo reverenciamos começam a desbotar, tal qual a produtividade acima de tudo, e o melhor é abraçar os novos momentos, tomando deles o que potencializa as virtudes de uma empresa, de uma cidade, de uma pessoa. 

O que mais vem pela frente?

Wirearchy — O termo, que brinca com a palavra hierarchy (hierarquia), sugere uma fuga dos organogramas rígidos. Trata de empresas em que as pessoas, a partir da colaboração e da conexão possibilitada pela tecnologia, assumem a responsabilidade individual e coletiva, em vez de dependerem da hierarquia. É um fluxo dinâmico, de mão dupla de poder e autoridade, com base no conhecimento, confiança, credibilidade e foco em resultados. 

Inteligência Artificial Talvez nenhum outro tema esteja tão em voga quanto esse. O Chat GPT mal chegou e já há um sentimento de estafa em cima dele. Quem abrir o LinkedIn e, numa primeira batida de olhos, não se deparar com matérias e comentários sobre essa IA que atire a primeira pedra. É só uma questão de tempo até que a automatização faça parte de mais e mais empresas, fazendo com que o toque humano seja buscado em áreas que a inteligência artificial ainda não chega. Devemos, então, desenvolver competências e capacidades tecnológicas necessárias para o sucesso da colaboração e convivência entre os seres humanos e robôs.

9h às 18h? — O que realmente importa é a entrega, não os horários em que se bate o ponto. Parece simples, mas até há pouco isso soava como um sonho distante. Atualmente, a tendência é que as pessoas tenham cada vez mais liberdade para definir os horários e até os dias de sua jornada de trabalho. É claro que, para funcionar, esse é um modelo que passa pelo bom senso das pessoas também, que precisam ter em mente que, mesmo com toda a liberdade do mundo, nem sempre a agenda própria vai ser seguida. De vez em quando será necessário se fazer disponível, seja em momentos críticos ou quando o trabalho conjunto é imperativo, independentemente que isso fuja da rotina pré-estabelecida.

Tudo isso, semana de 4 dias inclusa, tem um impacto. Nem sempre será positivo, nem sempre será negativo. Mas será. Se nenhum desses novos capítulos representar uma recessão econômica, melhor ainda. O capitalismo, aliás, também está sendo posto à prova na medida em que, a galope, entramos na quarta revolução tecnológica. O quadro de transformações aponta uma renovação de valores que já não condiz com o arcabouço ideológico que fez o capitalismo prosperar por tanto tempo. Nada está garantido, a não ser que novos tempos batem à porta.

Vivemos um importante momento de transição e de definição. E, em termos de progresso, não há nada pior do que fechar os olhos para os fatos.

A Casa de Marimbondo é uma nova e promissora marca sergipana de mobiliários e artefatos brasileiros. Emergindo como uma ode à tradição entrelaçada com uma visão contemporânea, ela traz consigo um vínculo íntimo entre o artesanato ancestral e a expressão moderna do design. Sua primeira coleção, de objetos do cotidiano e da cultura do pantanal sergipano, carrega muito desse propósito, sendo inspirada na natureza orgânica e comunitária do povoado do Tigre, em Pacatuba, onde mantemos a tradição originária de viver no tempo e do que a natureza oferece. 

Prometendo carregar o bastião do design trançado em tradições atemporais, a marca floresce sob a parceria entre a multiartista Naná Oliveira e a arquiteta Giovanna Arruda.

Giovanna é responsável por traduzir o bioma, concretizando o sentir do ambiente em artefatos e mobiliários. Como arquiteta, indica o espaço, direciona os tamanhos e formas do que está sendo produzido.

“No caso da Casa de Marimbondo”, conta a arquiteta, “falar sobre tradição não está diretamente ligado ao desenho e funcionalidade do mobiliário de forma isolada, nós prezamos pela singeleza da estrutura para que o trabalho artesanal seja o protagonista. Ele traz a preservação dos modos de vida, manualidades e memórias, antecedendo a chegada dos mobiliários ao Brasil durante os processos migratórios, que foram sendo adaptados à disponibilidade de nossas matérias primas.

Em um período em que tudo pode ser replicado de forma muito rápida, lidar com os processos artesanais, o tempo das pessoas e da natureza é um desafio. São nesses processos de produção, principalmente os que não têm o auxílio de maquinário, onde cada artesão imprime sua personalidade nas peças. É inegável perceber a riqueza de autenticidade e originalidade das artesanias produzidas nas comunidades tradicionais do país, sobretudo no norte e nordeste. Neste espaço, queremos ser protagonistas tanto na fabricação quanto na narrativa do que se é produzido aqui.”

E se Giovanna cuida da parte mais técnica do empreendimento, Naná é quem cuida da parte mais espiritual. Junto com a comunidade na feitura das peças, ela traça a palha, trama ideias e comunica o passado de tradição com o presente de preservação.

“Sem a comunidade e sua bagagem histórica”, diz ela, “não haveria criação de mobiliário e artefatos. É a partir dos modos de vida e da influência direta do bioma local que a comunidade do povoado Tigre manifesta sua arte. Para explicar de forma mais didática, precisamos compreender a formação das famílias e detalhar como as pessoas lidam com a natureza ao seu redor. Naquele território, se pesca na costa oceânica, se marisca nos muitos e grandes lagos, extraem taboa dos pântanos e lagoas, se planta e se cria animais. Para toda lida baseada no extrativismo e agricultura familiar, é necessário a criação de artefatos e é nesse momento que se percebe a sabedoria e criatividade de um povo. Foi a esse cenário que a Casa de Marimbondo trouxe um olhar contemporâneo.”

Nesse universo de criação que evoca energias de épocas e entidades distintas, cada objeto é mais do que uma simples peça — é um testemunho da relação simbiótica entre o artesão e a matéria-prima, entre a tradição e a inovação. No caso da coleção de Pacatuba, símbolos do cotidiano da comunidade são transmutados em artefatos que transcendem sua utilidade original: o puçá que as mulheres usam para mariscar, o tear onde é trançada a taboa e o barco utilizado para retirar as fibras naturais das lagoas transformam-se em ícones de um legado vivo.

“Sempre dizemos que o artesanato é o fio condutor entre um povo e sua cultura”, escreve a marca em suas redes sociais. “É através da manualidade que materializamos o que vemos ao nosso redor, que transformamos a necessidade da vida em arte.”

Naná Oliveira em foto de Victoria Araújo.

A jornada criativa da Casa de Marimbondo é tecida com fios de taboa e o suporte do vergalhão. A taboa é uma planta aquática que vive de mãos dadas em suas raízes, envolvendo-se umas com as outras. Sua flor é um espigão de farta quantidade de sementes, que se dissipam com o sopro do vento. Em sua exuberância natural, passa por três etapas para compor as formas e texturas das peças. 

Na colheita, é preciso ter força e sabedoria para dar um talho na taboa, com precisão, rente ao chão. No desfiar, usa-se o método mais condizente com o que será produzido: o desfiar de cabeça, um trabalho mais denso, é usado para cestos e esteiras, ao passo que o desfiar fino e preciso na lateral da planta é para tranças em sua delicadeza natural. A etapa final é o trançar, momento pessoal do processo, em que todas essas histórias são contadas em forma artesanal. Enquanto isso, o vergalhão, haste de aço que faz parte dos mobiliários interioranos pelo seu baixo custo e longevidade, molda a estrutura dos mobiliários com sua simplicidade e robustez, conferindo-lhes durabilidade e caráter.

E a esses processos e materiais se soma a vontade superior e inquestionável da vida natural. Como também escreve em suas redes sociais, a marca “trabalha no tempo da natureza. É a chuva que enche as lagoas e o sol que baixa as águas. É a natureza que nos diz o tempo do corte, do desfiar, secar, de criar e trançar nossos mobiliários.” Há nas produções da Casa de Marimbondo, portanto, aquela aura mística e insubstituível do que vem das entranhas verdes de nossas terras. Independentemente de onde elas estejam, o espírito do biossistema se faz presente, pronunciando-se através de uma forma final que respeita seu poderio intrínseco.

A colaboração entre Naná e Giovanna adentra um território onde a história e a identidade se entrelaçam. Cada etapa do processo de criação é permeada por uma profunda devoção pela tradição, enquanto simultaneamente se busca explorar novas possibilidades e interpretações. Das mãos habilidosas das artesãs à mente visionária da arquiteta, surge uma síntese harmoniosa entre passado e presente.

“A arte é a representação do cotidiano de cada comunidade, de cada povo. É necessário viver para compreender o território. O povo que vive ali cria seus modos de viver e sua própria estética a partir da necessidade cotidiana. Tudo está conectado, a natureza e a comunidade. O artesanato existe para suprir as necessidades cotidianas. Quando a arte popular da comunidade é preservada, toda a história do lugar se mantém viva.”
Naná Oliveira

Ao contemplar as peças da Casa de Marimbondo, somos convidados a mergulhar em um universo onde a beleza reside na simplicidade, onde a herança cultural se mescla com a estética contemporânea. Cada cadeira, espreguiçadeira e tamborete é um elo entre gerações, uma manifestação exuberante da resiliência e da criatividade de um povo.

“Assim como a culinária e a música, o artesanato é uma das formas de conhecer mais sobre um povo. Por meio dele é possível verificar se sua origem é fruto de inquietações artísticas comunitárias ou pessoais, se surgiu para suprir alguma necessidade cotidiana. Percebemos o porquê da mesma matéria prima ser esmiuçada em um determinado local de um jeito e em outro lugar de outro completamente diferente. Também quais as lutas e anseios daquele povo e a forma como vivem.”
— Giovanna Arruda

Assim, a Casa de Marimbondo ergue-se como um farol de esperança e prosperidade, oferecendo sobretudo oportunidades de empoderamento e sustento para as mulheres das comunidades tradicionais nordestinas. Em cada trançado, ecoa o espírito resiliente e vibrante de Pacatuba e outros pontos, convidando-nos a celebrar a riqueza da cultura brasileira em sua forma mais autêntica e inspiradora.

Como a própria marca carrega em seu slogan: aquilo que se convencionou ser chamado de design, elas preferem chamar de tradição.

Sem título, serigrafia de Anna Maria Maiolino (1995). A artista ítalo-brasileira é uma das homenageadas da 60a Bienal de Veneza (Divulgação).

Talvez você se lembre do clássico de 1979, Video Killed The Radio Star, da banda The Buggles. A música celebrava um futuro em que as imagens tinham o poder de estar em todos os lugares (lê-se “sala de estar”), dizendo coisas como “Pictures came and broke your heart, put the blame on VCR” (as imagens chegaram e partiram o seu coração, ponha a culpa no videocassete). Embora datada, a canção teve um impacto imenso e ecoava um sentimento geral de que o passado estava totalmente para trás e ninguém mais precisava de rádios, porque as músicas agora vinham acompanhadas de videoclipes na televisão. E se você pode ter som associado a imagens deslumbrantes, por que ficar só com som? Bem… De maneira irônica, quem parece estar com os dias contados hoje em dia são justamente os videoclipes.

Esse cenário tão prolífico e indispensável de não tanto tempo atrás está passando por uma mudança sísmica, onde os números estrondosos de visualizações estão sendo substituídos por uma paisagem mais fragmentada e desafiadora. Após o declínio das vendas de CDs no final dos anos 2000, o YouTube emergiu como uma métrica crucial de sucesso e os números de visualizações de videoclipes pareciam estar em constante ascensão. No entanto, agora nos encontramos em um momento em que até mesmo os gigantes do pop estão lutando para manter a relevância e o engajamento com suas produções visuais.

Um exemplo marcante desse declínio é o contraste entre os videoclipes de artistas como BTS, Beyoncé e Drake, que conseguiram no passado atingir cifras estratosféricas de visualizações mas que, no presente, já não conseguem reproduzir tamanha relevância com esse formato. A grande questão é: eles continuam tão populares quanto antes. E isso só pode significar uma coisa: houve uma mudança de mentalidade, mesmo para as pessoas mais fanáticas. Algumas dessas estrelas, inclusive, já decidiram parar de fazer clipes tradicionais. O novo álbum da Queen B, Cowboy Carter, foi lançado recentemente e… nada de clipe. Ou melhor, ela lançou o que a indústria chama de “visualizers”, que, no fim, não deixam de ser videoclipes, mas são consideravelmente menos complexos e sem muitas pretensões. Com Texas Hold ‘Em, uma música central de trabalho do novo disco, foi assim. Nada daquele clipe elaborado que seria de se esperar há 10 anos, quando canais de videoclipes resistiam na televisão, na era que antecedeu o boom dos streamings e do reinado TikTok.

Foi-se o tempo de grandes clipes musicais como Thriller do Michael Jackson, dirigido por John Landis, ou Dancing in the Dark, hit de Bruce Springsteen, dirigido por Brian De Palma. Essas obras tinham a liberdade para serem o que quisessem ser e, por conta disso, ditavam tendência e definiam toda uma época. Os anos 1980 foram marcados por inúmeros clipes dessa estirpe: Take On Me, A-Ha; Like A Prayer, da Madonna; Once in a Lifetime, do Talking Heads; Total Eclipse of the Heart, de Bonnie Tyler; Welcome to the Jungle, do Guns N’ Roses; e tantos outros. Aqui no Brasil, os anos 1990 tiveram o seu auge de videoclipes marcantes, como Diário De Um Detento, dos Racionais, dirigido por Maurício Eça, e Minha Alma (A Paz Que Eu Não Quero), canção d’O Rappa com direção de Luciano Vidigal. 

Há não muito tempo, os clipes reinavam com ainda mais força do que nos anos 80 e 90, devido à abrangência sem precedentes do YouTube, que permitia com que as pessoas assistissem aos clipes que desejavam, na hora que quisessem, quantas vezes lhes desse na telha. Mas algo no meio do caminho mudou tudo. O quê?

Uma das razões por trás desse fenômeno é a mudança no comportamento do público. Em um mundo inundado de informações e entretenimento instantâneo, manter a atenção do espectador por toda a duração de um videoclipe tornou-se uma tarefa hercúlea, mesmo que você seja uma Billie Eilish ou uma Olivia Rodrigo. Se o vídeo matou a estrela do rádio, o scrolling matou as estrelas dos videoclipes. Se lançado nos dias de hoje, ninguém saberia os passinhos feitos pelos zumbis de Thriller e as marias-chiquinhas colegiais de Britney Spears em Baby One More Time não causariam tanto furor. A ascensão do TikTok como uma plataforma dominante para o compartilhamento de conteúdo musical contribuiu ainda mais para essa mudança de paradigma, onde os vídeos curtos e virais dominam a paisagem digital. Hoje em dia, mais vale uma dancinha de segundos feita no quarto de casa do que um grande número musical de quatro minutos. Da perspectiva de um artista popular, é compreensível, já que esse tipo de divulgação natural dá muito mais retorno e não custa nada. 

Além disso, a própria indústria musical está passando por uma transformação radical. Há uma contenda famosa e contínua entre artistas e serviços de streaming: os artistas ganham quase nada com Spotify, mesmo aqueles com bilhões de plays, mas, sem a plataforma, sem dúvida a mais popular delas, não são tão ouvidos. E, se isso vale para os gigantes, vale em dobro para os pigmeus, que se agarram aos seus poucos ouvintes para fazer shows menores em casas locais. O conflito por si só gera um atrito que acaba mudando o modus operandi geral, criando um senso de cautela maior. Os orçamentos para videoclipes, quando existem, estão encolhendo, e os diretores estão sendo desafiados a fazer mais com menos — eis os tais visualizers. Outra solução para isso, que entrega tanto economia quanto eficiência, é o lyric video, uma produção de motion design que apresenta a letra da música com alguma elaboração gráfica. Claro que, enquanto produto artístico, nem os visualizers e nem os lyric videos chegam aos pés das ambições por trás dos videoclipes tradicionais. Então, fica uma sensação de perda.

“A própria indústria musical está passando por uma transformação radical. Há uma contenda famosa e contínua entre artistas e serviços de streaming”

No entanto, mesmo diante desses desafios, há uma crença persistente na importância dos videoclipes como uma forma de arte. As novas gerações podem estar distraídas demais para assistir a um clipe, e elas são as que costumam jogar números nas alturas, mas muita gente que já se impactou por esse ou aquele videoclipe ainda está aí, como mercado consumidor. Talvez, hoje, um videoclipe não valha mais tanto a pena. Mas o que se pensa é que, nos ciclos inevitáveis da cultura, eles voltem à baila. Assim esperamos, ao menos, porque eles têm o poder de criar momentos visuais que ressoam com os espectadores e transcendem o tempo e o espaço. Por que outra razão se não essa ainda estamos assistindo ao clipe de Gangnam Style ou de Bad Romance? Ou de Bohemian Rhapsody? Dos visuais icônicos de artistas como Spike Jonze, que dirigiu clipes para bandas como os Beastie Boys, aos cenários deslumbrantes feitos para Bjork nas colaborações com Michel Gondry, os videoclipes têm o potencial de se tornarem marcos culturais que definem uma geração.

Fica a dúvida: os videoclipes podem sobreviver e prosperar neste novo cenário digital? Claro que sim. Mas adaptações precisarão ser feitas. Uma delas foi anunciada recentemente: o Spotify agora está passando clipes. Muito embora isso queira dizer que essas produções serão consumidas pela tela de um celular, o que incomodaria muitos realizadores, a tendência é que sejam mais vistas. Ao menos parte delas. É um sinal dos tempos, mas é o que é.

No final das contas, acima de lucros ou prejuízos, a indústria musical deveria continuar a apoiar e investir na produção de videoclipes de alta qualidade. Por quê? Mais do que nunca, precisamos de algo que nos fascine verdadeiramente. No TikTok, não acharemos isso. À medida que nos aprofundamos no vórtex sem fim de pequenos vídeos vistos pela tela do celular, sem ver ou sentir a vida passar, esquecemos da intensidade e complexidade dos nossos sentimentos — algo que um videoclipe tem o poder de traduzir, visto que sua função primária é representar as principais sensações contidas naquela canção. Precisamos nos entregar novamente ao que quer que esteja dentro de nós, deixando a passividade de lado. 

Precisamos disso, nem que seja por míseros três minutos e meio

Sem título, xilogravura de Anna Maria Maiolino (1942). A artista ítalo-brasileira é uma das homenageadas da 60a Bienal de Veneza (Divulgação).

“Além da extraordinária perspicácia, a grande amplitude de visão desse homem e o fato de que ele mesmo estava de tal maneira no controle de um grande movimento se faziam sentir, especialmente em público. Presenciei esse aspecto de Freud nas reuniões da Sociedade Psicanalítica de Viena, nas quais esse homem aparentava ser um gigante em meio a pigmeus.”

Sigmund Freud por Max Halberstadt (Domínio público via Wikimedia Commons).

Ler isso, e tendo ouvido o nome “Freud” pipocar aqui e ali nos mais variados contextos, faz surgir a pergunta: como devia ser a experiência dos pacientes do criador da psicanálise? Abram Kardiner, psiquiatra e psicanalista americano, mata um pouco dessa curiosidade no livro Minha Análise com Freud, lançado recentemente pela editora Quina

É verdade que, no caso de Kardiner, ele teve a oportunidade por ser um prodígio no mundo da psicologia e sua análise, portanto, serviria mais como um testemunho de como Freud aplicava sua psicanálise na prática e menos como uma terapia contínua. Mas, ainda assim, foi uma jornada que gerou um contato próximo com uma das pessoas mais influentes da história recente da humanidade.

“Poucas pessoas tiveram o privilégio de ser analisadas pelo próprio Freud. (…) Se eu fosse mais jovem, hesitaria em revelar os fatos biográficos necessários para essa empreitada. Em minha idade, no entanto, o que importa não é tanto dar uma contribuição à Freudiana, sobre a qual já existe material abundante. Minha motivação é um pouco diferente – revelar sua técnica, tanto quanto possível, em um caso específico.”

O psiquiatra Abram Kardiner (Bernard Gotfryd | Library of Congress)

Para se ter uma ideia de quem foi Abram Kardiner e entender o porquê dele ter sido selecionado para uma experiência como essa, basta citar alguns de seus feitos posteriores: foi responsável por promover estudos revolucionários sobre as interseções entre a psicanálise e a antropologia, além de ter feito contribuições seminais para a compreensão dos efeitos psicológicos do trauma e do estresse social, ajudando a estabelecer os fundamentos para o estudo moderno do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Embora nem sempre tão reconhecido, ajudou a expandir a psicanálise para além das fronteiras da psicoterapia individual.

Minha Análise com Freud, lançado fora do Brasil originalmente nos anos 1970, tem como força os trechos pessoais e reveladores do próprio autor, que compartilha suas experiências durante a análise entre 1921 e 1922, assim como suas reflexões sobre Freud enquanto analista e pessoa. Como o autor escreve no prefácio, a obra se caracteriza não como uma especulação sobre a teoria freudiana, mas por “revelar sua técnica, tanto quanto possível, em um caso específico.” Não à toa, um dos aspectos mais interessantes do livro é a análise crítica que Kardiner faz da própria análise que o dr. Freud está conduzindo. Ele discute sua técnica, apontando tanto suas virtudes quanto suas limitações. 

Revela, por exemplo, como Freud utilizava o complexo de Édipo como estrutura central da análise, mas também como se desviava de sua teoria da libido em determinados momentos. “Ele praticamente não falou nada sobre o erotismo anal, exceto de passagem (…). Em outras palavras, a análise foi iniciada com o complexo de Édipo, a derivação da constelação de dependência, com sua homossexualidade inconsciente, como uma das resoluções dos fracassos para resolver o complexo de Édipo satisfatoriamente, em cujo estado Freud me encontrou.”

Porém, ainda que cutuque uma ou outra atitude do psicanalista, Kardiner reconhece o “gigante entre pigmeus” quando escreve sobre a abordagem terapêutica de Freud, destacando sua habilidade única na interpretação dos sonhos e nas associações livres. Diferente dos outros, ele não lançava mão dos discursos inacessíveis, a genialidade de Freud também se manifestava ao fazer interpretações em linguagem comum, sem se prender excessivamente a formulações teóricas: “O que tornou Freud um analista extraordinário foi o fato de, pelo menos naquela época, ele nunca utilizar formulações teóricas, fazendo suas interpretações em linguagem comum.”

Ao longo do texto, Kardiner compartilha insights valiosos não apenas sobre Freud, mas também sobre o contexto histórico e cultural da Viena do início do século XX. Ele destaca a influência da psicanálise na sociedade da época e levanta a bola para falar das tensões e rivalidades entre os principais nomes do movimento psicanalítico, como Alfred Adler. Chega a ser curioso imaginar essas pessoas carregando qualquer tipo de rivalidade, mas acaba sendo um deleite. “Na verdade, não havia muitos psicanalistas – talvez uns quinze ou vinte –, mas todos eles tinham de passar por Freud, de modo que ele tinha um grande controle tanto sobre os aspectos econômicos quanto sobre o progresso do grupo. Não se podia deixar de reconhecer que essa influência era perniciosa, uma vez que também criava um bocado de rivalidade, brigas internas e manobras entre seus discípulos, levando a que se bajulasse aquele que era o grande provedor.”

Com sua narrativa envolvente e análises perspicazes, Abram Kardiner nos leva pelas profundezas da mente humana, principalmente na sua. No meio disso, nos convida a refletir sobre o legado duradouro de Sigmund Freud, o que talvez seja o que a obra tenha de mais instigante. 

Hoje em dia, a psicanálise continua a ser uma influência significativa no campo da psicologia e da psicoterapia, embora tenha enfrentado críticas e desafios ao longo dos anos. Muitos terapeutas ainda utilizam conceitos fundamentais da psicanálise, como o inconsciente, a transferência e a interpretação dos processos mentais, como base para sua prática clínica. A psicóloga Karin Silva1 acredita “ser importante considerar que Freud rompeu com paradigmas científicos muito fortes da sociedade da qual fazia parte e daquele cenário histórico”, sendo inegável “que a teoria psicanalítica freudiana trouxe contribuições singulares para o campo da psicologia em geral ao propor um método que valorizasse mais a singularidade e a complexidade dos processos subjetivos.”

No entanto, a abordagem psicanalítica evoluiu e se diversificou, incorporando ideias de outras escolas de pensamento, como a psicologia humanista, a terapia cognitivo-comportamental e a psicologia positiva. Essa integração de diferentes perspectivas permite uma abordagem mais holística e flexível, adaptada às necessidades individuais dos pacientes.

Dentro da comunidade científica e acadêmica, a psicanálise tem sido objeto de críticas e debates, especialmente em relação à sua eficácia em comparação com abordagens mais orientadas para evidências. Apesar disso, muitos defensores da psicanálise argumentam que sua ênfase na compreensão profunda dos processos mentais e emocionais, bem como na relação terapêutica, oferece benefícios únicos que podem não ser captados por métodos exatos. Na visão de Karin, “a psicanálise é injustiçada no campo das ciências quando dizem que ela não é científica devido ao fato dela não reproduzir um modelo de ciência parecido com o das ciências naturais e exatas.” 

Ao refletir sobre o futuro da psicanálise, isso nos anos 1970, o próprio Abram Kardiner escreve: “Devemos aprender a diagnosticar as doenças do nosso tempo e aquilo que está acontecendo na mente humana, numa cultura cujos padrões básicos estão se alterando a uma velocidade estrondosa.”

E Karin endossa sua opinião, voltando os olhos, inclusive, para o Brasil: “O fato da psicanálise ter sido criada no período Moderno em uma sociedade europeia voltada para as elites, pouco foi considerado na disseminação desta abordagem no Brasil. Por essa razão, por muito tempo e muitas vezes ainda na atualidade, a psicanálise pode apresentar uma leitura reducionista e individualista da subjetividade. Isso porque a realidade da maior parte da população brasileira, que é negra e/ou pertencente a classes populares, vivencia dilemas e problemáticas muito diferentes do público considerado por Freud na elaboração das suas teorias. Não é à toa que, por muito tempo com o aval da psicanálise freudiana, a psicologia no Brasil foi reduzida à psicologia clínica e acessada somente pelo público elitizado, os únicos com condição financeira e tempo para falar sobre suas aflições.”

O Sigmund Freud pintado por Kardiner de fato temia pelo futuro da psicanálise. Ele tinha medo de que ela fosse ficar restringida — daí a importância das adaptações temporais, culturais e socioeconômicas. Portanto, para além de sua leitura agradável e acessível, Minha análise com Freud serve como um lembrete de que, mesmo em uma era de avanços tecnológicos e mudanças sociais rápidas, as questões fundamentais da psique humana permanecem profundamente arraigadas e requerem uma exploração contínua e sensível para alcançar uma compreensão mais profunda e um bem-estar emocional duradouro. 

Com esse livro, publicado no Brasil pela primeira vez, conseguimos vislumbrar um pouco da experiência de ser analisado por um fundador do seu campo de conhecimento — e, a partir daí, vislumbramos também a ressignificação sempre necessária de seu corpo teórico.

Mesmo presentemente, a psicanálise carrega uma responsabilidade para com as pessoas, sendo a oportunidade para um renascimento depois que todos os impedimentos tivessem sido removidos. Adaptando-se a novos divãs e a novas realidades, ela pode “fazer o bem”, da forma como Freud e Kardiner acreditavam que ela era capaz.


1Karin Silva, mestre e doutoranda em psicologia, é psicóloga clínica e social ([email protected] / @_profpsi)

CinemaCultura

“Deságue” e as figuras mitológicas do Brasil

Em sua busca de desvendar as narrativas do Brasil, a Amarello apresenta Deságue, um filme de Pedro Perdigão.

Se você quer mergulhar em uma história legitimamente brasileira, Deságue é uma bela oportunidade. Realizado em película, o filme de Pedro Perdigão nada pelas águas do Rio São Francisco, entre Alagoas e Sergipe, onde a natureza exuberante da região serve como pano de fundo para um enredo enraizado em mitos e mistérios brasileiros. Narrando a jornada de dois pescadores cujas vidas são entrelaçadas por uma figura mítica, a obra lida com temas que estão cravados na tessitura da cultura nacional. 

A proposta de se debruçar sobre uma parte importante do imaginário coletivo do país direciona nossos olhos para uma narrativa ancestral, profundamente conectada à própria essência do rio. As lendas do Rio São Francisco, transmitidas oralmente através das gerações, desempenham um papel crucial no ideário brasileiro, servindo como uma fonte de identidade cultural e conexão com o passado.

Estas lendas, muitas vezes envolvendo seres mitológicos como Boitatá, Curupira e Iara, são fundamentais para a compreensão da relação do povo brasileiro com a natureza e com suas próprias origens. Elas não apenas enriquecem as narrativas regionais, mas também refletem a riqueza e diversidade da cultura brasileira como um todo. Assim, o filme não apenas conta uma história singular, pouco traduzida para o formato audiovisual, mas também se insere em um contexto mais amplo de tradição e folclore, contribuindo para a preservação e celebração dessas lendas tão preciosas para a identidade nacional.

Além da narrativa e da poesia visual, Deságue é enriquecido pela poesia que permeia cada cena, com a narração de um sonoro poema dividido em três partes: “Nasceu pro rio”, “A água sussurrou” e “Segredos que só o rio sabe”. A título de exemplo, em um desses momentos, o poema evoca a emoção e a conexão dos habitantes ribeirinhos com o Rio São Francisco:

“O menino escuta a história de um tio ou de uma avó
O pai saiu de jangada e a jangada voltou só”

Essas seções, entrelaçadas com as imagens deslumbrantes captadas em película, transportam os espectadores para um universo mágico onde o tempo parece desacelerar, permitindo uma imersão completa nas histórias e mistérios do rio.

Para falar sobre o filme e refletir sobre os seus desafios e significados, conversamos com o diretor Pedro Perdigão.

Qual o significado de fazer um filme como esse, que evoca a mitologia das águas, em tempos tão rápidos e tão propensos a esquecer do passado como os atuais?

Pedro Perdigão: Colaborar com a Amarello, principalmente em um tema como esse, nos coloca em uma posição de proximidade com as raízes do nosso país. É lindo pensar quantas histórias existem ou ainda podem existir no nosso imaginário como território. Mais lindo ainda é pensar como elas são capazes de atravessar gerações e provocar múltiplas interpretações. Nosso filme é apenas mais uma dessas possíveis interpretações.

O Rio São Francisco, claro, desempenha um papel central na narrativa. Como entrar em contato com o espírito do Rio São Francisco? E a pergunta vale tanto em termos pessoais quanto de realização audiovisual, se é que não são os mesmos. 

PP: Realmente esses termos se confundem, se embaralham – formam um grande borrão. Sempre aprendi a ter um respeito enorme pela força das águas. Seja no mar ou em rios. O Rio São Francisco tem segredos que só ele sabe, ele é um universo grandioso. Foram duas maneiras principais que me pegaram: escutando as pessoas que ali vivem e navegam; e mergulhando no Rio aberto ao seus atravessamentos. 

Conte um pouco sobre os porquês da escolha de filmar em película.

PP: Venho da fotografia, de uma prática que valoriza as texturas, sensações e atmosferas. Filmar em película me ajuda a encontrar esses caminhos. Outro motivo fundamental são as restrições que a película promove. No set precisamos ser precisos. Valorizo muito o improviso, mas a película nos faz escolher bem o que rodar, nos faz estar atento ao que o lugar nos apresenta em relação a luz, atmosfera e paisagem. Faz os atores estarem próximos do que precisam transmitir. Faz com que todos os colaboradores do filme estejam perto de suas funções.

Pensando que o roteiro divide a história em 3 partes, quais os desafios de se filmar cada uma delas com características particulares mas, ao mesmo tempo, fazer com que elas se conversem e se complementem?

PP: O filme precisa estar na cabeça durante todo o processo. Isso amarra tudo. O projeto vai levantando perguntas o tempo todo. São as pequenas escolhas em todas as etapas que vão moldando o filme. Usamos alguns recursos diferentes para evidenciar as diferentes atmosferas que gostaríamos de transmitir em cada parte. Essas escolhas podem vir durante a filmagem ou nas etapas de pós. 

O filme tem elementos que você explorou em outros momentos da sua carreira, como a vermelhidão que se apodera da tela quando a figura mítica aparece. Aqui esses elementos são elevados a níveis mais profundos. Você vê “Deságue” como um ponto culminante da sua trajetória profissional?

PP: Todo exercício me leva a uma direção. ‘Deságue’ tem uma grande importância para mim por todo seu processo. Ele me lembra a maneira que mais gosto de fazer filmes – uma história que provoca, perto de pessoas inspiradoras, em contato com um lugar de força maior, poucas pessoas no set e muita vontade de todos em realizar – do pré ao pós. Fazer um filme é algo muito colaborativo, e isso me move. Agradeço muito a todos que entraram nesse processo conosco. 

Como você entende o papel do cinema, e da arte como um todo, em explorar e preservar as tradições e mitologias culturais?

PP: Entendo como algo que faz você querer chegar perto.


DESÁGUE
Um filme de Pedro Perdigão
Narrado por Zé Manoel

Roteiro – Tadeu Bijos
Direção criativa – Tomás Biagi Carvalho
Direção de fotografia – Daniel Venosa
Elenco Nirvana Gonçalves de Souza, Alan Fontes e Luciano Pedro Ferreira de Lima 
Beleza – Dindi Hojah
Figurino – David Pollak
Cauda sereia – Thiá Sguoti
Trilha sonora – Fred Demarca e Marcelo Gerab
Sonorização e Mixagem Final – Marcelo Gerab
Músicas – Fred Demarca
Montagem – Luca Narracci, edt.
Cor e Animações – Flip
VFX – Cajamanga
Produção executiva – Marina Ferriani
Gráficos – Mateus Acioli
Assistente de roteiro – Antônio Pedro Ferraz
Primeiro assistente de câmera – Gabriel Moska
Assistente de direção/produção – Matheus Nascimento Monteiro
Ordem do dia – Rodrigo Lacerda e Rafael Lundgren
Produção local – André Fontes Torres
Participações especiais – Yasmin Pereira dos Santos, Livia Gomes Fontes, Paulo Lima dos Santos, João Marco Teixeira e Mike Nascimento dos Santos

Agradecimentos – Dan, Adriana, Alef, Joaci do Pandeiro, Gedevaldo Bezerra, Thiago Fontes Barros, Fagner Almeida Bezerra, Caru Magano, Handred e Victor Hugo Mattos

A linha Amarello Rituais Em Brasileiro chegou para celebrar os rituais particulares que constituem a parte mais fundamental da nossa existência. Tanto a Água de Colônia Folha de Tomate quanto a Água de Colônia Mel de Cacau foram lançadas justamente para promover esse encontro entre nós e a nossa essência, com ambos os aromas trazendo a calmaria singular daquilo que é frequente e seguro. Mas como traduzir as ideias por trás desses estímulos olfativos em uma embalagem?

No vasto espectro da criação, existe um desafio que transcende a mera materialidade: a tradução de um aroma e um conceito, ambos intangíveis, em algo palpável. Esse é o território onde a magia do design de produtos se entrelaça com a complexidade dos sentidos humanos em um intricado jogo de formas e significados. É desde os primórdios da civilização que os seres humanos têm buscado meios de dar forma às suas ideias mais profundas, seja através de esculturas, pinturas, arquiteturas ou, mais recentemente, produtos. Hoje em dia, os símbolos são mais abundantes, mas também parecem durar menos — o que pode ser um desafio, especialmente se o objetivo for criar algo duradouro.

É nesse contexto que conversamos com Bárbara Bareca, designer de produto das duas águas de colônia. Em suas palavras e experiências, encontramos insights sobre o processo criativo e reflexões sobre a busca pela extensão da beleza e como os processos podem variar de país a país.

Pensando nas garrafas das águas de colônia, qual foi o processo para chegar a um resultado final?

Bárbara Bareca: Acho que o processo começa já com algumas coisas entrelaçadas e a gente já tem uma ideia do que quer fazer. No caso, a gente já sabia que queria fazer uma colônia e tinha algumas informações técnicas. Por exemplo, a volumetria. A partir disso, a gente tinha que tentar traduzir o que a gente queria do aroma para a garrafa. A gente estava querendo fazer uma garrafa nada parecida com o que a gente vê hoje em dia nas perfumarias. Como a gente sabia que o nosso produto era um produto de perfumaria de luxo, a gente tinha que ter um desenho atrelado a isso. Ao mesmo tempo, esse desenho teria que causar um desejo de compra, mesmo pensando numa questão de mercado. O processo aconteceu a partir daí. 

Foram muitos desenhos e os desenhos também traziam dificuldades técnicas, porque, como a produção seria 100% brasileira, a gente também tinha que entender isso enquanto produção. A gente até fala que todo desenho cabe no papel, mas para fazer é uma coisa totalmente diferente. Partimos para alguns desenhos, conversando com algumas pessoas em conjunto, como fabricantes de moldes, os fabricantes de vidro, desenhistas e técnicos, para a gente conseguir adequar essas nossas vontades de desenho ao que cabia na produção. Nisso, a gente fez algumas impressões 3D para entender esses volumes, para poder pegar, sentir na mão, entender o tamanho, entender se a gente aumentava o diâmetro, se a gente aumentava a altura, se a pegada estava boa. Para isso, a gente fez dez mockups. Foram dez protótipos para a gente ir entendendo as mudanças a partir do momento em que via essas peças prontas. Passamos por tudo isso para conseguir chegar na garrafa que a gente tem hoje.

Como foi sua experiência com pequenos ateliês de vidro?

BB: Ainda existem alguns ateliês de vidro no Brasil, mas, obviamente, um número muito menor do que tinha na década de 60 e 70. Era um material muito usado e hoje foi muito substituído pelo plástico. Fiquei surpresa, e grata também, por conseguir ter acesso a isso. São ateliês, são lugares pequenos, são produções pequenas, mas eu acho que é uma manufatura muito possível. Eu, particularmente, nunca tinha trabalhado com vidro dessa forma. A Amarello já tinha alguns outros produtos feitos em vidro, mas com uma técnica muito diferente, mais manual. As garrafas passam por um processo de molde de vidro soprado. Ou seja, você precisa entender quais desses ateliês conseguem fazer o tipo de produto que você deseja, porque não são todos. A gente passou por dois para poder chegar em um que conseguiria entregar a garrafa do jeito que a gente queria. 

Mas é interessante saber que a gente consegue ainda produzir esse tipo de produto no Brasil, em pequenos ateliês ou pequenas fábricas. A nossa produção não é grande, mas é algo totalmente possível. Temos algumas restrições, mas eu acho que o mais importante de tudo é essa noção de que é, sim, possível produzir vidro aqui.

O que deve ser considerado para chegar a uma estética que converse com aquele produto, com aquele aroma? 

BB: É preciso saber principalmente qual é a identidade do aroma e qual é a estética dessa identidade. Só assim a gente consegue fundir uma coisa com a outra e fazer com que isso converse. Quando foi definido quais seriam os nossos aromas, a gente teve que buscar a identidade desses aromas, a identidade da Amarello, a identidade dessa pesquisa, desse projeto e dessa linha dos rituais, para conseguir desenvolver um desenho que fosse esteticamente compatível a essa identidade. As coisas precisam conversar. Entender a identidade do que se deseja é sempre o principal.

O processo seria muito diferente se estivéssemos em outro país? Tanto em aspectos geográficos quanto culturais.

BB: Seria totalmente diferente! O Brasil é um país de manufaturas. A gente é muito rico em manufatura, em artesanato, em técnicas identitárias. Então, eu acho que a gente detém essa riqueza, que é um grande luxo. Mas, se tratando de uma escala industrial, a gente apanha muito. A produção aqui é caríssima. Precisa-se fazer quantidades absurdas para que a gente consiga um bom preço. A gente não tem muita viabilidade técnica. Igual eu disse, a gente conseguiu chegar em duas empresas que faziam vidro soprado e, mesmo assim, elas não detinham todas as técnicas. 

Se a gente tivesse em um país desenvolvido, obviamente a gente teria essa facilidade industrial. De quantidade de cor, de molde, de opções de ateliês, opções de profissionais. Mas aqui no Brasil isso é muito, muito limitado. É um pouco difícil, mas não é impossível. Ainda é possível com que a gente fabrique aqui. Mas temos muitas, muitas, muitas limitações. É uma indústria muito cara. 

O que mais fez seu olho brilhar na história toda?

BB: Conseguir traduzir numa coisa física tanto o aroma quanto o líquido. Traduzir numa coisa física um projeto que começa com os rituais do dia a dia. Isso fez meu olho brilhar. E também o fato da gente conseguir fechar o ciclo de vida de um produto. Eu acho que isso é muito importante também. Desde quando a gente começou a falar em fazer colônia? Há muito tempo. Tem que definir os cheiros, definir as notas, definir os nomes, a identidade visual, o desenho da garrafa, se adequar à produção, definir as embalagens, ao mercado, aos valores de custo, aos valores de venda. É um mega processo. Conseguir traduzir fisicamente um conceito e um aroma, somado ao fechar um ciclo longo com sucesso, fez com que tudo fosse especial.

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“O perfume é sobre relacionamentos”, diz o perfumista François Demachy no documentário Nose. “Sempre há uma conexão humana”.

François Demachy. Reprodução

O filme é uma produção encomendada pela Parfums Christian Dior e agora está disponível para streaming na Apple TV. A figura central é o maravilhoso processo criativo por trás de alguns dos aromas mais icônicos do mundo e, claro, a pessoa por trás deles, o renomado Demachy. Criador de perfumes da Dior desde 2006, Demachy tem um currículo que inclui fragrâncias de sucesso para marcas como Chanel, mas seu trabalho na Dior abrange algumas das maiores franquias da famosa casa francesa. Como mostrado no documentário, ele é conhecido pela dedicação tocante ao trabalho, desde misturar notas em seu laboratório até sujar as mãos nos campos de flores e instalações de produção onde essas notas começam sua jornada do solo para a garrafa.

Já de partida, o filme oferece algo que vimos poucas vezes: um aprofundamento nos complexos meandros por trás das produções de perfume. Como tantas outras coisas, os perfumes acabam não ganhando muito a nossa atenção diária, ainda que usemos um frasco com frequência. Quais são as histórias por trás daquela combinação? Por que esse cheiro e não aquele? De onde vêm esses aromas que têm tanto poder?

Seguindo Demachy ao longo de dois anos, o filme revela sua incansável busca pelos ingredientes perfeitos, desde jasmim e bergamota até patchouli, em locais tão diversos quanto a Indonésia e a Itália. Clément Beauvais, diretor do filme, destaca a determinação de Demachy, descrevendo-o como um “perfumista viajante” disposto a explorar os cantos mais remotos do mundo em busca da excelência.

O que o filme tem de mais interessante é o fato de que as jornadas de Demachy em busca do perfume perfeito não se limitam aos glamourosos tapetes vermelhos ou às lojas de perfumes de luxo. O filme captura momentos menos romantizados, como a meticulosa mistura de notas aromáticas em seu laboratório e as cenas rústicas de trabalhadores agrícolas colhendo flores à mão. Esses instantes revelam a complexidade e a paixão que o perfumista investe em sua arte, oferecendo uma visão autêntica do mundo da perfumaria.

A capacidade do filme de revelar essas cenas menos glamorosas, enquanto fornece uma espécie de introdução para os não iniciados por meio de comparações úteis com composição musical, vinificação e um rápido desvio para uma oficina de katana em Tóquio, lhe confere um apelo mais amplo. São os momentos menos “elevados” que ficam com a gente, como trabalhadores destilando óleo perfumado em grandes tanques industriais e agricultores colhendo flores à mão em campos aparentemente intermináveis. Nada é tão elucidador quanto essas sequências que estabelecem a complexidade, e a beleza, da perfumaria. 

Em um misto de cinebiografia e publicidade requintada, Nose consegue também, ao menos em algum nível, descentralizar o holofote, reconhecendo que Demachy é apenas uma parte de uma equipe maior que contribui para a criação de cada fragrância. Se ele é o gatilho de muitos processos, a mão na massa que faz acontecer não é a dele. Em Grasse, o berço da perfumaria no sul da França, o próprio perfumista defende o legado das fazendas locais e destaca a herança centenária da região. Ainda que não fuja absolutamente da mística de seu personagem principal, o filme destaca a importância do savoir-faire tradicional.

A colaboração e o respeito são valores fundamentais que refletem a visão de Demachy sobre a perfumaria como uma forma de arte que une as pessoas. Uma fragrância é uma evocação de uma memória, uma experiência e um momento no tempo. E a busca de Demachy pela fragrância perfeita lhe confere uma aura quase divina. Ao proporcionar sua visão intimista, tal qual um aroma transcendental, Nose atinge além do nariz e revela a verdadeira essência por trás das fragrâncias mundialmente reconhecidas da Dior, além de nos fazer pensar sobre os processos que envolvem outras marcas. 

Se os perfumes são “sobre relacionamentos”, como diz Demachy, então nada como ver as entranhas dessas conexões.

Arte de Alvaro Seixas, capa da Amarello Erótica.

Meus desenhos partem da sedução que a imagem do outro exerce sobre mim. Sempre dediquei a minha atenção à linguagem encoberta nos corpos que não habito: sua intrincada complexidade mitológica, poética e política.

Sou fascinado pelas aquarelas de Rodin, pelos desenhos de Jean Cocteau, Ismael Nery e Tunga. Também pelas fotos de esculturas antigas feitas por Alair Gomes a partir de ângulos obtusos (eróticos) durante seus passeios pela Europa. Recentemente, me encantaram as figuras múltiplas retratadas por Lorenza Böttner.

Mas, uma de minhas obras de favoritas é o desenho de Leon Bakst representando Vaslav Nijinsky de fauno, feito para os Ballets Russes. A figura dançante e satânica desse bailarino fantasiado de divindade romana sempre ofereceu visões maravilhosas. Me interessa, dessa forma, essa fantasia do corpo, ou, ainda, esse enigma do corpo e sua penumbra ficcional. Não me interesso tanto pela arte e pelos corpos idênticos e reduzidos ao “inferno do igual”, para pegar emprestado uma expressão do filósofo Byung-Chul Han.

O sagrado tem algo a ver com esse enigma. O sagrado é erótico, uma entidade misteriosa que não se revela tão facilmente para nós. É a imagem do cupido que sorri com alguma malícia pois sabe que, para oferecer prazer, precisa necessariamente flechar a carne. É o mesmo sagrado do êxtase de Santa Teresa e por ela mesma narrado quando reencenava suas experiências místicas para as freiras do seu convento. O sagrado é o anjo de mármore, na escultura de Bernini, que atinge e faz contorcer a carne de Santa Teresa com uma flecha sagrada. O ritual religioso é indissociável da carne, pois é na carne que o sagrado se manifesta.

Ao desenhar, tento entrar em contato com esse erotismo sagrado e sua natureza contraditória: “as lágrimas de Eros” como nos falou Bataille. Ao desenhar, tento me distanciar do que é profano: do que é explícito, transparente e excessivamente luminoso. Precisamos das feridas eróticas, pois elas se opõem à matemática do regime da informação, desprovido de alteridade e narração.

Revista

Erótica — Amarello 48

“Sobre o tesão nada podemos saber”.

Garanta a sua Amarello Erótica aqui

A mais recente Amarello investiga nossas pulsões e nossos desejos em sua edição Erótica, número 48. Para o tema, recebemos como editor convidado o cantor e compositor Bruno Cosentino, com capa do artista Alvaro Seixas.

“a casa é o corpo. sentimos toda sua força não racionalizável — o tesão — que vibra desde nosso centro. sobre o tesão, nada podemos saber. podemos, no entanto, conviver com ele, encará-lo e deixá-lo agir. não devemos negá-lo”, nos instrui Cosentino, em seu editorial.

Leia a Amarello Erótica na íntegra. Garanta a sua aqui.

Arte de Alvaro Seixas, capa da Amarello Erótica.
#48EróticaCulturaEditorial

o corpo radiante

Bruno Cosentino é o editor convidado da Amarello Erótica, edição 48.

a erótica é uma matéria sitiada. em torno dela, nos quedamos agitados, cercando-a, contemplando-a. nela podemos até tocar, mas nunca penetrar. é como a definição de hermetismo dada certa vez por um teórico italiano: estamos confinados ao átrio, de onde nos chega a vibração vinda de dentro da casa, mas esta, porém, é inalcançável.

a casa é o corpo. sentimos toda sua força não racionalizável — o tesão — que vibra desde nosso centro.

(outro dia meu filho me perguntou o que significava a imagem do homem vitruviano. fui olhar de novo aquela figura circunscrita a um quadrado e a um círculo de mesma área cujo centro é o umbigo. fiquei pensando que se colocássemos o sexo no centro, onde imagino que esteja, o homem perderia a cabeça, sambando com o cânone geométrico. andré masson se inspirou em da vinci para desenhar seu acéfalo, que trazia o crânio entre as pernas e as tripas no ventre.)

sobre o tesão, nada podemos saber. podemos, no entanto, conviver com ele, encará-lo e deixá-lo agir. não devemos negá-lo, como o fez santo agostinho, que, lascivo inveterado, após se converter ao catolicismo, lançou mão de um estratagema intelectual para arrazoar contra sua tara persistente. e o pior, contra a alheia também. inventou, por exemplo, o pecado hereditário, do qual não livrou nem as criancinhas. ou a teoria da vontade, duelo dignificante entre a cabeça de cima e a cabeça de baixo, o bem e o mal, a alma e o corpo. mais de quinze séculos depois, o delírio engenhoso do santo ainda regula a vida sexual de muitos. desse grande recalcado, freud, mais recentemente, partiu para tentar entender o tesão, ao qual deu o nome de pulsão, definida como uma força constante que se move no limiar entre o psíquico e o somático. salvou a cabeça: tratou das vibrações do tesão na vida psíquica, pois sabia ser tarefa difícil, se não impossível, transpor os limites do átrio.

mas, sim, parece que há uma passagem. ela é estreita. não se sabe quando, não se sabe onde, não se sabe se. é chamada êxtase, graça, mística, pequena morte, gozo etc. imagem fugaz, aparece e desvanece sem que possamos apreendê-la. por isso a perseguimos obsessivamente, santos e putas, e repetimos o ato e vamos e voltamos e até nos multiplicamos para que novos seres possam repetir como nós o mesmo gesto sem sentido, a mesma pergunta sem resposta — este deus ecumênico.

o corpo é o prisma. o tesão é a luz que incide sobre os corpos-prismas, que, ao se desejarem, se iluminam, refratando-se em uma miríade de cores. cada matiz, uma pergunta, cada resposta, um devaneio. a fantasia é o vórtice que traga qualquer um que afirme seu tesão. a fatura erótica.

daí, esta edição dever ser isto que vibra e não diz nada — uma intumescência.

Arte de Alvaro Seixas, capa da Amarello Erótica.

Sentada à minha frente, uma só perna esticada, esfregando o pé de cima a baixo na minha língua de fora, eu imóvel, teso, só resistindo à pressão que seu pé fazia. Cheiros junto com saliva iam se espalhando pelo meu rosto, boca, nariz, testa, queixo, aí olho, bochecha e tudo de novo outra vez. De vez em quando ela para e distribui tapinhas em meu rosto com a palma e o peito do pé, olhos avisando pra eu nem tentar me esquivar ou buscar proteção. Obediência era o que se esperava de mim, obediência, apenas, e era eu me distrair um pouco, deliciado com os encantos daqueles pés, ora um de cada vez vindo pra cima de mim, ora os dois juntos, e lá vinha um golpe surpresa pra eu não ficar nunca muito acomodado. Tapinha de leve, que aquilo era um pé batendo num rosto, mas, por mais leve que fosse, mexia com os meus medos todos. E o engraçado é eu em dúvida, hoje, se gostei mais de ter os pés dela ao alcance dos meus cinco sentidos ou se dela brincando de distribuir tapinhas surpresas com esses mesmos pés. As duas coisas, talvez? Defender-se é reação inconsciente, em minha mente alarmes a que toda uma vida fui condicionado soando, perigo!, perigo!, e eu precisando aprender a ignorá-los, já que desligá-los não era uma simples questão de querer. Eu queria era o quê, aliás? Estar totalmente rendido, à mercê das vontades dela? Se sim, então era mais do que necessário aprender a estar entregue, as minhas defesas todas desarmadas. O frio na barriga que isso não traz! Ela percebe meu desconcerto, acho até que riu dos meus medos, mas sabe também, eu queria crer, que abusar demais, isso não seria lá muito prudente. Naquele momento inicial ao menos, eu ainda tão virgem nos meus sonhos de submissão. Seu pé então se aquieta e a língua precisava agir, cavucando fundo os poros daquele pé atrás do gostinho salgado, esfregando firme cada curvinha mínima, dedos, entrededos, palma, peito, calcanhar, mãos em movimento orquestrado aproveitando o ensejo pra massageá-lo. Pelezinhas soltas no pé, ela aponta, bolhas já secas, língua e dentes logo se revezando em raspar de leve até deixá-la lisa outra vez, eu engolindo os resquícios da esfoliação, assim como tudo o que empelotasse na língua. Me arrepiavam as sensações que eu vivia. Não havia script, não havia horário, nada, eu um poço de timidez, sem saber direito o que fazer com as mãos, se eu podia, ou não, olhá-la nos olhos, envergonhadíssimo da ereção indisfarçável que tomou meu genital logo que ela mandou eu me despir. Seus olhos pareciam nem notar aquele pedaço de carne, pedaço que sempre tratei como o ator principal do tesão, mas que ali encarnava o papel, no máximo, de um figurante espalhafatoso. “Agora que você já se esbaldou”, ela disse, “é minha vez de sentir prazer”. Fiz que sim com a cabeça e ela, dando uma última pancadinha em meu rosto, falou pra eu ficar de pé, mantendo as mãozinhas sempre pra trás. “É um belo pau, você deve ter bastante orgulho dele, não?”, ela falou, enquanto manuseava minhas bolas, apertando-as ora de levinho, ora com mais força para testar o tanto de dor que eu suportava. “Você garantiu que ia me dar prazer, fazer de tudo pelo meu prazer… Espero não me decepcionar”, declarou, por fim, levantando-se da cama e arrastando-me pelas bolas até um canto do quarto. Não transcorreram duas horas desde o bar em que casualmente nos conhecemos até chegarmos àquela espelunca, o hotel mais próximo que havia, onde entramos sem sequer saber nossos nomes, sem ter combinado nada. O que nos ligava eram aqueles pés, pés que me fascinaram, pés pelos quais caí rendido no bar, beijando-os de joelho, em público, sem que a dona dos tais manifestasse qualquer desconforto com a cena. Era como se ela já esperasse a atitude, talvez até estranhasse o tanto que demorei. Foi dela, aliás, a ideia de virmos para o tal hotel, onde eu teria toda a liberdade do mundo para reverenciá-la. Paguei nossas comandas, deixei acertado o pernoite e cá estávamos nós. No entanto, apesar do deleite supremo que eu vinha experimentando, eis-me agora confuso com a atenção que ela dedicava ao meu genital, receio de que aquele encontro mágico com um ser superior se convertesse, de repente, em mais uma transa banal igual a inúmeras outras. Como eu estava enganado. Ela iria se valer, sim, do meu genital, mas não da forma ordinária, com a penetraçãozinha bonitinha e, coroando tudo, uma ejaculação. O tesão se manifestava de formas menos óbvias para essa mulher, algo que eu só percebi no momento em que ela me mandou fechar os olhos e, sem aviso prévio, pá!, acertou um chute forte bem no meio das minhas pernas. Sim, lá mesmo. Caí no chão estrebuchando de dor e, diante da minha acerba indignação, ela se limitou a sentar na cama, rindo, e a dizer: “bom, agora você já sabe o que precisa fazer pra me agradar”. Eu nunca havia vivido nada parecido, nunca havia imaginado receber um chute daqueles, sobretudo num contexto erótico, e, apesar disso, a ereção em meu genital seguia firme e forte, me deixando confuso sobre como interpretar o que eu estava vivendo. Nisso, ela se aproxima de mim, faz carinho em minha cabeça e manda eu me recompor, pois esse era só o primeiro. Avistar seus pezinhos divinos, tê-los tão perto, me lembrou da razão de eu estar ali e da promessa que havia feito. Passado o susto, a dor já não parecia mais tão atroz, momento em que me levantei e, cheio de coragem, falei que, se era assim que ela queria que eu a servisse, assim seria. “No próximo, quero você de olhos abertos, agradecendo cada chute”, ela disse. De olhos abertos como? Seria possível ficar tão entregue? Já havia sido difícil eu não me proteger dos tapinhas de leve que ela dera em meu rosto, imagina assistir indiferente a um chute vindo na direção das minhas bolas, eu tendo que agradecer, ainda. Na primeira tentativa, o medo venceu — fechei as pernas antes que o alvo fosse alcançado e quase fiz com que ela torcesse o pé. Seu olhar transparecia raiva e contrariedade. Pedi para ficar de olhos fechados na próxima vez, seria mais fácil assim, mas ela estava irredutível, queria que eu me entregasse por completo, assistindo a tudo. Ela daria o chute e esperaria eu me recompor antes do novo ataque, mas eu não poderia fechar as pernas nem sair daquela posição, as mãozinhas sempre para trás. Nem me masturbar eu podia. Ela queria descobrir até quando a ereção ia se manter. O desafio era aprender a lidar não só com a dor, mas também com os meus medos, medos que me impediam de vivenciar o prazer de me ver tão rendido, um mero brinquedo nas mãos daquela perversa mulher. Contei oito chutes, talvez tenham sido mais. Minhas pernas tremiam, lágrimas escorriam pelo meu rosto, mas a ereção se mantinha, e agora era eu quem queria ir até o fim, eu quem queria descobrir o limite. No nono chute, sem eu sequer relar no meu genital, inexplicavelmente gozei. Caí no chão, em prantos. O gozo me trouxe à realidade, o gozo aflorou a dor, fez com que eu me sentisse violentado, humilhado. “Você nunca mais vai conseguir gozar de outra forma”, ela sentenciou enquanto calçava os sapatos. Nunca mais nos vimos, e hoje, escrevendo este texto, só posso dizer que ela estava certa.  

Os aromas são donos de uma fantasmagoria que sussurra segredos antigos e desperta os mais profundos desejos. Mas não pense naqueles fantasmas, pense naquela força maior que perpassa corpos para arrepiar toda e qualquer percepção. Não é à toa que entrar em uma perfumaria é estar em contato com os mistérios da história e da sexualidade humana. Desde os tempos mais remotos, os aromas têm sido aliados na busca pelo prazer e pela sedução, tecendo uma teia de sensações que envolvem os sentidos e a imaginação. Em uma manifestação quase corpórea, também há neles um inigualável poder de expressão própria, algo capaz de eriçar os pelos da nuca de qualquer um. Nessas ondas que circundam a aura, é inegável que existe uma lufada palpável de identidade e intimidade — daí a fantasmagoria.

Há milênios, os povos antigos descobriram os poderes mágicos dos aromas, utilizando-os em cerimônias religiosas, rituais de cura e, claro, encontros amorosos. Egípcios, gregos e romanos dedicavam oferendas aos deuses do perfume, acreditando que essas fragrâncias celestiais podiam atrair bênçãos divinas e despertar a paixão em corações mortais. A missão dos alquimistas e herboristas era extrair os segredos das plantas e transformá-los em elixires preciosos. Com a chegada da Idade Média, os perfumes assumiram o status de luxos extravagantes, reservados à nobreza e à alta sociedade. Na sedução aloucada das cortes, os mestres perfumistas trabalhavam para que os amantes trocassem presentes perfumados e se entregassem a jogos de amor e desejo.

Com o Renascimento, porém, o interesse pela ciência e pela filosofia despertou uma nova era, com alquimistas e herboristas se dedicando a estudar as propriedades medicinais das plantas e a arte da destilação. E, depois, no século XVIII, a perfumaria viveu uma revolução com o surgimento da indústria do perfume: Grã-Bretanha, França e Itália se tornaram os principais centros de produção e comércio de perfumes, exportando fragrâncias exóticas para todo o mundo. No século XX, tornou-se uma indústria global, com fragrâncias icônicas que marcaram épocas e definiram tendências.

Por mais que cada era tenha sua própria linguagem olfativa, que reflete os valores, as emoções e os desejos de sua época, o fator sedução parece sempre estar presente.

Eis, então, que chegamos ao século XXI e, nesta nossa era, temos algo que nem os renascentistas tinham: um oásis da perfumaria botânica chamado Aromaria. Fundada por Maria Cintra, ela honra as tradições antigas enquanto abraça a inovação e a criatividade. É a celebração da natureza, da arte e da sensualidade que faltava aos palácios de outrora. Com ingredientes cuidadosamente selecionados e técnicas ancestrais de destilação, Maria cria fragrâncias que capturam a essência da natureza em sua forma mais pura e sublime (o que, por si só, já é um grande afrodisíaco).

Em um mundo cada vez mais dominado pela tecnologia e pela artificialidade, as expressões naturais de sensualidade e sexualidade são cada vez mais prementes. Imagine uma vida que cabe em uma respiração profunda. Ou, então, tente materializar uma vida sem o distanciamento das redes sociais, sem as barreiras da comunicação remota, sem a falsa proximidade da vida digital. Que alívio, não? Há certa liberdade em saber que, para sentir um aroma, é preciso estar perto.

E a Aromaria é isso, um convite à liberdade de se estar perto.

Na conversa a seguir, Maria Cintra, além de nos contar mais sobre sua Aromaria, nos ajuda a refletir sobre a interseção dos aromas e da sensualidade.

Como você entrou no mundo da perfumaria e o que a inspirou a começar com a Aromaria, com essa proposta mais natural?

Maria Cintra — Desde bebê, sempre tive um nariz curioso. Me encantavam os cheiros, mesmo antes de pronunciar minhas primeiras palavras. Cresci como uma criança observadora, atenta aos aromas que permeavam o mundo ao meu redor, fossem eles envolventes ou desagradáveis. Durante meu período de estudos em design de moda, percebi o excesso de objetos que nos cercam e ansiava por criar algo mais íntimo, algo que pudesse refletir nossa identidade de forma mais profunda e transformadora. Foi assim que surgiu a ideia da Aromaria, que inicialmente era uma marca de cosméticos naturais, mas foi na criação dos perfumes que encontrei minha verdadeira paixão. Foi nesse momento que a perfumaria entrou de forma definitiva na minha vida. Fomos acelerados pel’O Boticário e viramos uma empresa de perfumaria com atenção à perfumaria botânica.

Qual é a importância dos aromas em sua vida pessoal, e como isso influenciou sua jornada?

MC — Os aromas são verdadeiras portas de entrada para minhas sensações mais profundas. Cada uma das minhas memórias está impregnada de cheiros distintos — desde meu primeiro dia na escola até os pratos que mais aprecio, passando por lugares marcantes que visitei. Quando viajo, faço questão de levar comigo um perfume específico, buscando deixar uma lembrança marcante associada ao olfato. Essa espécie de biblioteca de aromas que construí ao longo dos anos se tornou uma ferramenta essencial em minha jornada como perfumista. Ela me auxilia a memorizar matérias-primas, a identificar uma essência em meio a outras e a visualizar como essas fragrâncias podem se combinar para criar o perfume que idealizei.

Sobre o processo de criação desses “perfumes vivos” da Aromaria, como selecionar os ingredientes para suas fragrâncias e quais critérios são mais importantes nesse processo? O que vem antes, a combinação perfeita ou questões de sustentabilidade?

MC: Os perfumes da Aromaria têm vida própria, pois suas moléculas se revelam e se entrelaçam ao longo do uso. Para criar um perfume, é necessário construir uma pirâmide olfativa. As notas de topo, como as cítricas e aromáticas, são as mais voláteis. As do meio persistem por mais tempo, conferindo identidade ao perfume, com nuances florais e algumas folhas. E as notas de base ancoram o perfume, prolongando sua duração, com elementos como resinas e madeiras.

Primeiro, surgem as preocupações com a sustentabilidade. Todas as matérias-primas que utilizo passam pela avaliação do IFRA [International Fragrance Association], e sempre examino minuciosamente o processo de produção delas. Nem sempre a opção por ingredientes naturais é sustentável, pois pode acarretar problemas ambientais. Na Aromaria, valorizamos tanto as comunidades envolvidas na produção quanto os biomas afetados. Com essa ampla variedade de matérias-primas, vêm as combinações. Algumas ideias podem surgir espontaneamente, enquanto outras se revelam após várias tentativas. Às vezes, um perfume nasce de um acidente, quando misturo diferentes ingredientes. Tem perfume que vem de uma saudade, de um lugar que eu visitei, de uma história que eu ouvi.

De que jeito você acredita que os aromas podem despertar emoções e memórias em uma pessoa?

MC: Os cheiros são processados pelo nosso sistema límbico, responsável pelas emoções e pelas memórias. Ao contrário dos outros sentidos, eles não passam pelo córtex cerebral, que é a parte racional do cérebro. Para se ter uma ideia da potência do olfato, conseguimos nos lembrar de 35% do que cheiramos, enquanto só lembramos de 1% do que tocamos e 5% do que vimos.

E você acredita que é possível associar os aromas à sensualidade e ao erotismo?

MC: Com certeza! Estamos falando do nosso sentido mais instintivo. Nos perfumamos como um ritual para nós que se estende ao outro. O ser humano cria seus artifícios de acasalamento, e o perfume é o mais importante deles.

Há uma relação entre os aromas e a intimidade pessoal? Seja com nós mesmos ou com as pessoas com as quais nos relacionamos.

MC: Se perfumar é como abrir a porta para o íntimo, né? Cada pele possui sua singularidade, e quando o perfume se entrelaça, cria uma nuance que é exclusivamente nossa. Reconhecemos afinidades através do aroma, percebendo se aquela pessoa é compatível conosco ou não. É por isso que temos a expressão “isso não me cheira bem”.

Certos aromas podem mesmo ter um efeito afrodisíaco nas pessoas?

MC: Sim! O cacau, por exemplo, tem uma substância chamada teobromina, que eleva um pouco a pressão arterial, é um estimulante natural. Existem aromas tão afrodisíacos que já foram proibidos, como a tuberosa, nossa angélica. Seu floral narcótico fez moças solteiras serem impedidas de caminhar pelos campos de tuberosa durante o Renascimento italiano.

Então os aromas podem ser usados para aumentar a sensualidade e a conexão em um relacionamento?

MC: Existe algo mais poderoso do que o aroma da pessoa amada? Acredito que o simples gesto de sentir o cheiro de quem amamos já fortalece nossa conexão de maneira única. Além disso, momentos como uma massagem com óleos perfumados ou banhos aromáticos também são excelentes maneiras de enriquecer essa ligação especial.

Sempre me perguntei o que atrai mais as pessoas em um perfume —aquele aroma faz com que elas se sintam elas mesmas ou as distancia de quem elas são? Como você enxerga o papel dos aromas na expressão de nossa identidade pessoal? E na nossa sexualidade também.

MC: A escolha de um perfume revela muito bem o nosso ânimo ou o que queremos ser. Os cítricos, por exemplo, são solares, falam de alegria e leveza. Já os gourmand são sensuais e opulentos. Você pode brincar com nuances de personalidade e também com as temperaturas. Em um dia ensolarado, um banho de uma colônia aromática ou cítrica; em um dia frio, algumas gotas de um amadeirado ou gourmand. Há aromas que combinam com sexo. Por que gostamos tanto de flores? As flores carregam seus órgãos sexuais. Em um perfume, colocamos alguns cheiros animalescos, até escatológicos, que lembram o mais íntimo humano. É um jogo de atração.

Um perfume pode ser uma forma de explorar, ou até expressar, fantasias eróticas?

MC: Com certeza. Onde você passa um perfume diz muito sobre onde você quer ser cheirado.

Como você vê o futuro da perfumaria botânica no contexto da crescente conscientização sobre sustentabilidade e bem-estar pessoal?

MC: Eu vejo como uma descoberta que só vai crescer. Acho que as flores de amanhã nascerão mais perfumadas, parafraseando Manoel de Barros. Essa frase me inspira para explicar a importância e a potência da perfumaria botânica como uma forma de cultivar as plantas da Terra e garantir nossa sobrevivência. É um jeito de cuidar não só de si, mas do todo.

E, no meio disso, qual é o amanhã para a Aromaria?

MC: O amanhã é crescer nossa produção respeitando os limites da natureza e valorizando nossos parceiros que fazem a extração e que cuidam das etapas finais dos nossos produtos, da feitura até a venda. Queremos mostrar o poder da perfumaria brasileira ao mundo, mostrar que o cheiro das plantas faz floresta dentro de nós.

#48EróticaCulturaLiteratura

os eus sulfurosos de erm

por Bruno Cosentino

Dela disseram ter organizado a orgia — 

em livros como a Antologia da poesia erótica brasileira; duas coletâneas que cobrem um século e meio (de 1852 a 2022) de contos eróticos brasileiros, O corpo descoberto e O corpo desvelado; além da Seleta erótica de Mário de Andrade.

Mas também chafurdou-se nela — 

em ensaios que desnudam com faro crítico o imaginário erótico da literatura de Machado de Assis, Sade, Manuel Bandeira, Roberto Piva, Hilda Hilst, entre muitos outros; grande parte deles reunido em A parte maldita brasileira. Mas também em livros: O corpo impossívelLições de Sade e Perversos, amantes e outros trágicos.

                    Mais: é curadora da coleção Sete chaves, da editora Carambaia, que publica alguns bons exemplos de autores brasileiros e estrangeiros que escreveram sobre amor, sexo, erotismo e afins, alguns inéditos em português. Por enquanto, foram lançados Rosa mística, da uruguaia Marosa di Giorgio, e Cinema Orly, de Luís Capucho. 

                                                                                     Nossa conversa aconteceu numa manhã de março, eu de Maastricht, na Holanda, Eliane Robert Moraes de São Paulo. Durou mais ou menos 1h30 e precisamos desligar. Muito ficou por dizer. Ela é um instantâneo desse momento, com todas suas aparições; da minha janela, os botões intumescidos das cerejeiras prestes a.


Eliane — Tá gravando?

Bruno — Eu acabei de ler, agora de manhã, sua entrevista para os Cahiers Bataille no. 6 com o dossiê sobre “Georges Bataille e a América Latina”. Está maravilhosa.

E — Você gostou?

B — Adorei. Você fala de maneira muito clara sobre questões difíceis. Porque esse tema é muito intrincado. Trata de uma parte obscura do mundo, da gente mesmo. Então, dar clareza a isso, ainda mais tendo que se confrontar com certa moralidade que está sempre querendo oprimir qualquer manifestação desse tipo…

E — Que bom, pra mim é importante te ouvir, porque é uma entrevista longa, que foi feita aos poucos, teve uma primeira leva, depois uma segunda… Tive sorte de ter como entrevistadores a Monika Markzuk, editora dos Cahiers, que é uma graça, e o Marcelo Jacques de Moraes, uma pessoa que conhece o meu trabalho, com quem tenho muita afinidade e de quem gosto muito. Fiquei muito grata.

B — Eliane, também vou fazer perguntas mais pessoais. Por exemplo, onde você nasceu, onde você cresceu, como você era quando menina, enfim, sobre a sua infância. Te pergunto isso porque todo meu interesse no erotismo, pelo menos no meu caso, remeto às experiências que tive na infância, e acho que essas coisas se conectam de alguma maneira. Lembro agora da entrevista do Bataille falando de A literatura e o mal, em que ele relaciona o mal à infância. Então eu acho que a infância e o mal intrínseco ao tema do erotismo estão ligados, daí meu interesse, daí minha pergunta, também.

E — Sim, o celeiro é a infância. Vou tentar ser breve. Primeiro, como tenho bastante idade, tem muitas camadas. Mas você está direcionando um pouquinho a pergunta, e isso é bom. Eu nasci no dia 21 de julho de 1951, em São Paulo, e muito nova fui pra Minas Gerais. Meus pais se mudaram para Poços de Caldas, cidade que já é uma pontuação na minha infância, onde vivi de 1952 até 1961. Uma cidade pequena, super agradável. A primeira expressão que me vem quando eu lembro de Poços é: águas sulfurosas. Eu nunca fui ao dicionário pra tentar entender a palavra, o som, e essa ideia de que as águas poderiam ser qualificadas para além de quentes, frias ou geladas. As águas sulfurosas significam muito para mim. Só de falar agora, já vem um montão de coisas na minha cabeça. Então, Poços me fez conviver com palavras que estão fora de uma vidinha normal: bauxita, águas sulfurosas, termas, cassino… Em Poços havia um cassino! Então, tem coisas muito próprias da cidade que me formaram. A gente morava perto de um jardim, e ali tinha um lugar chamado Fonte dos Macacos, e era lá que a gente ia se molhar com as águas sulfurosas, quentes, chamando atenção ao corpo. Essas palavras para mim são ouro. A gente morava a uma quadra das termas, e eventualmente a gente ia lá tomar um banho. Então, essa cidade para mim é pontuada pela água. Mas além das águas — eu não sei se tem alguma verdade nisso, mas era o que se dizia e o que ecoava na minha cabeça de criança —, Poços era a cratera de um vulcão, obviamente extinto. Porque Poços é uma cidade rodeada de montanhas. Isso qualifica um pouco um espaço fechado, um espaço ali único. Penso um pouco no universo do Guimarães Rosa até, aquela coisa de “A menina de lá”, de “Famigerado”, a montanha, a Serra de São Ão, o que se esconde atrás da serra, pra lá ou pra cá da montanha, em Minas, região montanhosa e misteriosa.

Em 1961, quando a família volta para São Paulo, aquilo tudo já estava impresso na minha vida. Aí já estou com dez, onze anos de idade, já saí da infância. A gente deixou Poços de Caldas porque a família estava em crise. Aí entra a figura do meu pai, e que tem tudo a ver com as coisas que eu estudo, porque meu pai era um boêmio, era um dândi baiano que de repente se casa e tem que dar conta de uma família, de um orçamento, de tudo isso, e a coisa não dá muito certo. A minha mãe era uma mulher de São Paulo, uma self made woman, uma mulher extraordinária, com enorme capacidade de trabalho, que se casa com um boêmio que, na juventude, deixa a Bahia e vem pro sul.

Ele contava que, vivendo no Rio, na sua juventude, ele ia toda noite ao Cassino da Urca, onde havia um pianista que, quando ele entrava no Cassino, ia para o piano e tocava as primeiras linhas de uma canção que eu amo de paixão até hoje, que é The man I love — “Someday he’ll come along / The man I love”. Isso é uma fantasia minha, porque ele me contou, mas eu nunca entrei no Cassino da Urca, eu só conhecia o cassino de Poços, e mesmo assim, só do lado de fora… Cassino era um lugar absolutamente glamuroso, para reis e rainhas, para gente especial, que deslocava a gente de uma familiazinha de classe média, ali naquela luta do dia a dia, de uma mãe trabalhadora, que foi tudo que você pode imaginar — gerente de loja, sacoleira, fazia tudo que podia para sustentar os filhos —, porque não era o boêmio que dava conta disso.

Então, a gente sai de Poços de Caldas porque meu pai passa noites fora, joga, bebe — o que depois se tornou um alcoolismo brabo, difícil e sofrido. E, quando chegamos em São Paulo, vamos morar com minha tia e minha avó num apartamento de dois quartos em Santa Cecília: meu pai, minha mãe e três filhos (uma irmã que é um ano mais velha e um irmão que, infelizmente, já faleceu, mais novo que eu, que também foi professor da USP, um geógrafo muito talentoso). Então tudo muda, e eu entro nessa vida já adulta, mais dura, numa cidade mais dura, a família em crise, tudo complicado. Mas meu pai, sendo essa figura do boêmio, voltado à “alma encantada das ruas”, aos bares, ele era um cara culto. Vinha de uma família de classe mais alta na Bahia, que perdeu tudo — será por isso que eu falo tanto em perda? Era o mais velho de nove filhos e tinha uma vida de moço rico lá: ele dizia que, em Salvador, quando ele era moço, ia comprar uma gravata no centro e não carregava o pacote — aquela canção, “não carrega embrulho”, aquela pose de doutor… E aí ele chega em São Paulo em meados dos anos 1940 e cai na farra até os 36 anos, quando se casa com a minha mãe, que tinha dez anos a menos.

Depois que meu pai morreu, fiquei sabendo que ele mantinha a vida boêmia, teve amantes, frequentava bordéis. Aí entra o erotismo, claro, porque isso era tudo erotizado, e meu pai foi a pessoa a partir da qual eu soube que existia sexo. Não por nenhum abuso ou assédio conosco, mas pelo que a gente fantasiava da vida dele. E também, quando minha irmã e eu nos tornamos adolescentes, houve uma sexualização meio às avessas, aquela noia dos pais de que algum tarado podia pegar a gente e fazer qualquer coisa. Aquilo exalava uma erotização muito forte que a gente não podia saber, mas que obviamente a curiosidade infantil levava a interrogar. Essa história é multifacetada, mas eu já pensei que fui trabalhar com erotismo, libertinagem e tal porque havia no ar uma pergunta sobre a figura paterna, sobre a vida do pai fora da família, a vida dele antes da gente ter nascido e a vida oculta dele depois que a gente nasceu.

Uma imagem que eu tenho do meu pai — isso eu já mocinha, enquanto vivia com a família na Avenida Angélica, aqui em São Paulo, no 7º andar de um prédio — é ele na janela do apartamento olhando para o infinito, horas e horas. Horas e horas. Isso colocava o que essa pessoa estava pensando, o que estava se passando dentro dela… Hoje vejo que ele era o tipo melancólico. Quando fui ler sobre as teorias dos temperamentos, pois sempre me interessou muito esse tema dos caracteres, dos temperamentos, quando eu fui ler sobre a melancolia — Teofrasto, Bacon, Susan Sontag —, pensei: “nossa, a descrição do meu pai: melancólico”. Tive que montar um quebra-cabeça para entender: sensual, melancólico e muito pensativo também. Isso é um fio que não termina, e acho melhor parar por aqui.


B — Quando você fala que seu pai era uma pessoa aderente à vida e de um momento para o outro tem que constituir uma família, lidar com boleto, isso é um baque, uma crise. E essa imagem dele na janela é muito bonita. Como se estivesse mirando aquilo de que é impossível se ter o tempo inteiro, que é essa gratuidade, porque existe uma vida prática que assalta a gente. Mas amei as águas sulfurosas e você não querer procurar o significado no dicionário. Você vê que é uma memória dos significantes, dos sons que guardam segredos, e por isso — porque despertam nossa imaginação — fazem promessas.


E — Termas, termal, térmico…


B — Muita memória sensual, do corpo que vai na água quente. E a palavra sulfurosa é realmente muito sugestiva, enigmática. Enfim, remete também ao fato de você trabalhar com literatura, com os significantes e seus mistérios. Adorei essa história das águas sulfurosas.


E — Essas águas se devem ao fato — bem, essa é a explicação que eu tinha — daquilo originariamente ser um vulcão. Por acaso, hoje, neste momento da vida, estou lendo muito sobre vulcões para um livro que estou escrevendo, e a lava é uma matéria que me interessa muito para falar de sexo. E em Poços tinha essa história, uma lava adormecida, que eu ligo ao meu pai e à minha infância. Mas o meu pai também era colérico em alguns momentos: como você sabe, em qualquer momento um vulcão pode entrar em erupção!


B — Eliane, por que você foi estudar Marquês de Sade? Você foi estudá-lo com tesão? O que te moveu? E eu te pergunto isso porque eu sei o que me move para a erótica, o que me move é uma pergunta que não pode ser respondida — é um absoluto, uma energia, um mistério. E aí, claro, tudo vai se misturar tanto depois. É Deus, é o sagrado, o que é insondável vai acabar dando aí. Mas continua sendo uma pergunta sem resposta, daí a importância de fazê-la e de repeti-la sob diferentes formas. Então, queria saber: por que você foi estudar Sade, o que te perturbou?


E — Puxa, essa é uma pergunta que te faz ficar rodando em volta dela, pois ela não tem centro, não tem mesmo. Quer dizer, tem essa coisa longínqua da infância, que eu contei, mas fui me interessar pela erótica, do ponto de vista intelectual, já bem mais velha. Tive uma vida errante na juventude, bem afinada com a minha geração, tentei fazer várias faculdades, nada encaixava muito, eu não achava graça, fui bem errante. Passado muito tempo, me tornei uma pessoa completamente focada, voltada para um tema, uma questão. Eu acho interessante quando as pessoas escrevem “especialista em erotismo”. Eu falo: “gente, o que será que é isso, mesmo?”.

Nos estudos, eu comecei com o Direito, depois Pedagogia, depois Publicidade, e não terminei nenhum deles até que, enfim, entrei nas Ciências Sociais — foi a graduação que completei. Depois eu fui fazer pós-graduação em Filosofia. Sempre gostei de ler, mas pra chegar na literatura foi um caminho tortuoso. Só passei a dar aula de literatura há doze, treze anos, quando entrei na USP; até então, quando eu estava na PUC, eu dei aula nos cursos de Jornalismo e de Filosofia. O erotismo e a literatura erótica aparecem pra mim no final da minha graduação nas ciências sociais; até então eu me interessava muito por antropologia. Fiz graduação um pouco mais velha, beirando os 30 anos, porque, como boa espécime da geração 68, achava que tinha que experimentar de tudo, sair de casa cedo, com mochila nas costas, essa coisa toda. Sou muito grata de ter sido uma mulher dessa geração, que se recusou em casar com um mocinho lindo, etc. e tal.

Então, aos 29 anos de idade, fui fazer uma viagem para a África, África do oeste, fui conhecer o Senegal, o Mali, a Costa do Marfim, uma loucura, dois, quase três meses viajando com a minha irmã. E aquela viagem transtornou a minha paisagem mental, e aí eu falei: “eu quero estudar antropologia”, e fui fazer graduação em ciências sociais. Embora até hoje eu ame antropologia, na época comecei a me interessar pela filosofia. Foi quando conheci o Renato Janine Ribeiro, que viria a ser meu orientador no mestrado e no doutorado; por volta de 1984, ele estava defendendo o doutorado e ministrava cursos incríveis sobre As mil e uma noites, sobre Stendhal, e sobre literatura dos séculos XVIII, XIX.

Paralelamente, nesse momento, eu passei a integrar o movimento feminista aqui em São Paulo, num grupo chamado Nós Mulheres, que era muito legal. E uma das coisas que a gente fazia como atividade era ler literatura, a começar por Madame Bovary. Estava então estudando antropologia na USP, participando do feminismo, que já chamava para essas questões do sexo (a palavra gênero a gente não usava na época) e assistindo aos cursos do Renato na Filosofia. Foi nesse momento que conheci o Caio Graco Prado, da editora Brasiliense, que estava começando a coleção Primeiros Passos e me convidou pra escrever um livrinho chamado O que é pornografia.

Escrevi o livro com a Sandra Lapeiz, uma amiga querida, e com isso eu estava dando não só meus primeiros passos como também um grande passo, que iria definir minha vida intelectual. Isso porque continuo estudando a erótica literária até hoje, e até hoje eu quero saber o que é a pornografia… É o que o Henry Miller diz: “falar de obscenidade é tão difícil quanto falar de Deus, e a entrada nesse universo é também uma espécie de conversão”, ou seja, não é algo racional, você se converte. Você, Bruno, é um convertido, e isso eu entendi quando li a sua tese sobre o erotismo na obra de Vinícius de Morais.

Ora, no meu caso, foi justamente quando eu estava escrevendo O que é pornografia que bato com Sade. Não tem como estudar erotismo sem encontrar Sade no seu caminho. Eu lembro que arranjei um professor de francês que lia Sade comigo, ele morria de vergonha, e eu estava aprendendo tudo quanto é palavra obscena em francês… Aí foi aquela surpresa, aí eu me pergunto: “o que é isso?”. Quando terminei a graduação, fui procurar o Renato Janine Ribeiro e me tornei a primeira orientanda dele, estudando Sade, um autor quase desconhecido no Brasil. Isso coincidiu com um movimento internacional de interesse em Sade, quando se começou a publicar, estudar e traduzir a obra sadiana. Eu entendi que Sade era fundamental, e para mim é fundamental até hoje.

Então, você vê, minha trajetória passou pelo feminismo, pela filosofia (também por pensar a literatura pela filosofia), passou pela África, e tudo isso num momento em que tive uma filha, talvez o evento mais importante de todos. Foram vários eventos que me orientaram a um lugar… Enfim, o meu pensamento pousou num lugar absolutamente importante e turbulento, bem no meio de uma cratera de vulcão. Nessa altura, eu falei: “deixa eu conhecer então a matéria da lava”, que até hoje é a matéria que eu estudo.


B — O erotismo, do Bataille, é um dos livros da minha vida. Me fez pensar muita coisa, e uma delas — porque me acho uma pessoa muito religiosa, no sentido, digamos, secular até, ou desinstitucionalizado, porque não tenho nenhuma relação com instituições religiosas — é a relação que ele faz do sexo com o sagrado. O que disse o Henry Miller é também isso. O erotismo, o sexo, é o próprio mistério da vida, porque é também do sexo que nasce a gente. Queria saber qual foi o seu espanto com o Bataille.


E — Eu fui ler o Bataille quando comecei a trabalhar com Sade, ou seja, Bataille como intérprete de Sade. Logo, pela importância dele, pelas ideias, pelo impacto, eu li O erotismo, que teve sobre a minha pessoa um impacto imenso, e tem até hoje. Eu tenho uma relação com Bataille muito forte, às vezes eu brigo um pouco com o pensamento dele, acho que ele tem uma espécie de morbidez com a qual não me identifico — talvez eu seja uma pessoa mais solar do que ele, mas também é interessante que eu me fascine tanto por uma pessoa tão noturna. Então, tem ali algo que fica me convocando e a que eu resisto. Agora, conversando com você, eu acho que esse algo talvez seja a espiritualidade mesmo, porque esse campo é o meu recalcado, sabia? O recalcado é sempre difícil de se mexer.


B — Lendo sua entrevista no Cahiers, em algum momento você fala que existe um vínculo entre a necessidade carnal e a vida do espírito.

E — Eu acho assim: quando a gente fala da vida do espírito, da vida espiritual, eu acho que imediatamente a gente vai pensar num sentido religioso, seja ou não institucional, mas num sentido religioso ou em Deus. Mas a coisa que eu cultivo é a vida espiritual identificada com a vida intelectual, esse espaço que não é o da matéria e é muito misterioso. A matéria, para um ateu ou uma ateia como eu, é o que sustenta isso, mas isso não é matéria, entende? Então não posso admitir que só os religiosos reivindiquem a vida espiritual, eu reivindico também, eu vivo da vida espiritual. E ela é misteriosa. Quer dizer, eu acompanho até certo momento, mas eu não creio em Deus, em nenhum deus.

Eu não creio em Deus, mas eu tenho um montão de patuás, adoro, enfim, eu me identifico muito com rituais, isso é uma coisa muito batailliana também. Ontem mesmo um amigo meu escreveu dizendo que estava mal, eu já indiquei um banho de água com arruda, depois pipoca branca, e aí por diante. Inclusive, sou uma frequentadora bissexta do candomblé e adoro, porque com aquilo tudo vem a matéria, tem a comida, tem a pipoca, a água, a água sulfurosa, tem isso tudo com que eu me sinto bem; não só me sinto bem como eu sou uma pessoa que tendo a ficar transtornada com ritual. Eu já dei umas desmaiadas em ritual de candomblé e eu falo “mas será que…”. Agora, se você pedir pra eu preencher o formulário, eu vou botar que eu sou ateia, entendeu?

O Hans Bellmer, o artista plástico da geração surrealista, dizia: “o que me incomoda em Bataille é esse Deus morto”. Eu acho incrível essa frase. Quer dizer, Bataille tem esse deus, ele nomeia, ele traz o significante, e, nesse momento, eu chego junto com a transcendência, mas Deus, eu tenho dificuldade. Até, talvez, pela banalização de Deus nos dias de hoje.

B — Eu posso dizer com convicção que sou religioso, mas nunca pensei isso de forma monoteísta, em Deus, eu penso sempre a partir da imanência, do que existe e que a gente pode pegar, daí que eu gosto tanto do Bataille, adoro aquela coisa do baixo materialismo… Mas deixa eu te perguntar. Eu li recentemente A história de O, e tem uma coisa que me inquietou no livro. Até conversei com você sobre isso rapidamente quando nos encontramos no Rio. É o seguinte: existe uma espécie de servidão sexual voluntária de O, que, enquanto ela experimentava, entre as paredes do confinamento, a submissão e a humilhação, quando não estava ali, mas de volta à sua vida cotidiana, ela me passava, sobretudo em relação à outra personagem mulher, que era neófita naquele ritual, ela me passava uma sensação de soberania, uma espécie de integridade, justamente porque tinha se submetido sexualmente ao capricho daqueles homens. É como se, pelo fato dela ter vivido, de forma desassombrada, experiências sexuais radicais a que frequentemente a maioria das pessoas é privada, pois recalcam ou sublimam seus desejos, isto é, não os vivem efetivamente, é como se ela tivesse alcançado uma sublime indiferença, um bem-estar psíquico a que estou chamando de soberania. O que é perturbador para mim nesse livro é o fato dessa soberania advir justamente de uma submissão voluntária.

E — Eu acho essa questão bem perturbadora também. Sempre penso que, quando a gente está falando de sexo, não sei se isso vale pra tudo na vida, mas quando a gente está falando de sexo, o vivido e o psíquico estão absolutamente juntos, eles são inseparáveis. Enquanto experiência individual, entende? Claro que é diferente você ler um livro sobre sexo e ter a sua vida sexual. Mas a tua vivência, tua experiência do sexo, que é totalmente corporal, é sempre uma vivência psíquica também, no ato. Até porque eu acho que não existe uma vivência sexual que não compreenda uma fantasia, ou várias. A mais reles, a mais chula, a mais imediata, sempre tem algo de fantasia, de psíquico, já ali.

Eu acho que a importância da sexualidade é essa. Para os dois grandes formuladores modernos da vida sexual, que são Freud e Sade, é isso que os dois dizem. Não por acaso, eles são contemporâneos. Digo isso porque a obra do Sade também é descoberta no século XX, quando Freud está escrevendo; então, para mim, são os dois grandes formuladores ali juntos.

A situação da personagem O é uma situação extrema de despossessão. Ela é mesmo, na literatura, a personagem que chega a um limite de despossessão e de indiferença, que é a palavra que você usou. É uma ascese que passa pelo corpo. É como se ela fosse completamente despossuída também desse campo psíquico, mas, na verdade, aquilo é a fantasia dela também. Ela está o tempo inteiro vivendo a fantasia desses outros que vão, digamos assim, possuindo o seu corpo. Essa fantasia de ser violentado pelo outro, pelo corpo do outro — que demanda cuidado quando a gente fala, porque não é um elogio à violência, é um outro plano, até porque estamos aqui no domínio da arte, da literatura.

É importante a gente pensar esses casos extremos — como o da História de O, da literatura inteira de Sade, da História do olho, de Bataille, d’O caderno rosa de Lori Lamby, da Hilda Hilst — esse feixe de questões que a gente está abordando até onde dá, e esse “até onde dá” é justamente o que coincide com a coisa que te inquieta, e a mim também, que é um mistério. Aí você está na escuridão, aí é onde chega a escuridão. E aí é o que importa à Clarice Lispector: é “a escuridão na escuridão”.

O pensador iluminista da Enciclopédia de Diderot, que Sade cita, assim define o filósofo: “il marche la nuit, mais il est précédé d’un flambeau” [“ele caminha à noite, mas é precedido por uma tocha”]. Mas tem um momento em que a tocha apaga. E quando a tocha apaga, você entra no universo da Clarice Lispector, que é essa escuridão que você só pode conhecer na própria escuridão; dentro dela, não há esclarecimento, não há iluminismo possível.

Arte de Alvaro Seixas, capa da Amarello Erótica.

Atenção, este texto traz spoilers.

Quando li pela primeira vez História do olho, de Georges Bataille, fiquei impressionada com sua potência imagética. O livro é um convite a fabulações visuais. E, como numa sequência de fotografias ou cenas em movimento, as imagens se formaram em minha mente para nunca mais sair. Estavam lá, em sua maioria coloridas, algumas em preto e branco, borradas, granuladas. Havia de tudo. Todas fotográficas. 

Esse é um aspecto interessante a ser pensado. Afinal, eu não havia imaginado pintura ou desenho, mas fotografias. Obviamente não há resposta única para minha inclinação; a subjetividade de cada leitor oferece seus próprios recursos para fantasiar as cenas narradas. Ainda assim, há algo do dispositivo da fotografia que convém levarmos em consideração: ele pode nos oferecer uma dimensão de realidade — por mais que esta seja uma ideia questionável, bem como seria confiar na veracidade de História do olho.

A partir de algumas escolhas, conscientes e inconscientes, que compõem minhas fotografias mentais (e sem a pretensão de uma análise literária), proponho associações que relacionam as duas linguagens, literatura e fotografia. É certo, cada leitor tem seu próprio imaginário, e Bataille, através de seu livro, soube brilhantemente evocar fantasias. Inclusive as minhas, enquanto fotógrafa.

( * )

As imagens de História do olho oferecem um radicalismo para a imaginação. Aqui, não me refiro a uma dimensão fantástica no sentido de objetos e seres cujas formas são desconhecidas. Muito pelo contrário. De maneira geral, os elementos descritos no livro nos são incrivelmente familiares: leite, armário, mijo, ovos. E, para mim, esse é um trunfo. Durante a leitura, somos surpreendidos pela naturalidade da maioria de suas imagens. Lá estão elas, livres e estranhamente naturais. 

Efeito similar pode ser causado por algumas fotografias (tomadas as devidas particularidades que cada linguagem oferece), ao tirarem vantagem da qualidade de verossimilhança que carregam, ou seja, de sua capacidade de transmitir uma sensação de “verdade”. Para entender melhor onde quero chegar, façamos um breve resgate histórico: por um viés exclusivamente físico, poderíamos pensar a imagem fotográfica como uma impressão luminosa, capturada a partir de um objeto e congelada sobre um suporte. Ou seja, a luz emanada pelos elementos de uma cena é capturada pela câmera fotográfica, transformando aquele instante em uma imagem. Essa relação técnica fez parte do entendimento do que é fotografia e contribuiu para a construção de uma espécie de “verdade” que ela carrega: o registro de um instante que existiu. 

A imagem fotográfica, no entanto, é muito mais que isso. Há uma complexidade de elementos, escolhas, recursos que compõem a visualidade final e de que não trataremos neste momento. Nos limitaremos aqui a pensar na sensação mencionada, algo como “aquilo existiu, aquilo estava lá, porque estou vendo o seu registro”, que uma fotografia pode oferecer, mesmo que, na prática, sua construção não funcione exatamente assim. Inclusive no recorte de uma vida cotidiana atravessada por IA, fake news e deep fakes, a educação imagética e tecnológica se faz urgente. 

Para o mundo ficcional, no entanto, essa relação com o palpável pode funcionar lindamente. A imaginação que flerta com a realidade não poderia ser mais erótica. Parece que aconteceu. Será que aconteceu? Deve ter acontecido. Aconteceu. 

Retomo então o fio da meada: o tom de naturalidade com que os fatos (nem sempre banais) são narrados no livro é tamanho que a imaginação cede, se lambuza, sem tempo para resistir moralmente. Bataille brinca com nossa capacidade imagética, favorecendo a construção dessas “imagens fotográficas” ao oferecer elementos prosaicos em situações factíveis: “A partir dessa época, Simone adquiriu a mania de quebrar ovos com o cu” — abriria o capítulo “O armário normando”. Tenho a sensação de que, transpondo para o mundo da fotografia, o mesmo artifício seria o que faz nos entregarmos a uma imagem, flertando com o que de real aquilo poderia ter, afinal, a estamos vendo. 

“Simone colocou o prato num banquinho, instalou-se à minha frente e, sem desviar dos meus olhos, sentou-se e mergulhou a bunda no leite.”

Colorida, tons suaves quase pastéis, ar matinal. Será o leite? Não importa, as manhãs são sensuais por si só. A atmosfera me lembra o trabalho de Rinko Kawauchi, fotógrafa japonesa cujas imagens, mesmo as noturnas, costumam oferecer brandura na cor. Porém, diferentemente da artista, que com frequência brinca com texturas, nesta “fotografia” tudo é muito definido, em foco, sem flair ou contraluz, contribuindo para a concretude daquilo que vemos: a bunda de Simone mergulhada no leite. A imagem é serena, contrapondo-se ao gesto impetuoso da personagem. Nada daquele ambiente sugere; Simone, sim. Somos surpreendidos pelo ato que se realiza diante dos nossos olhos, sem rodeios. Seu vestido claro, feito de algodão fino e mole, está suspenso em suas mãos, enrolado pouco abaixo da cintura. Em minha fabulação imagética, percebo que sempre visualizei o leite numa tigela. No entanto, não há uma no texto, poderia ser um prato. O leite transborda, vejo uma poça dele no chão. O ruído da casa cessa, acompanhando nossa falta de ar. O olhar de Simone me desafia, o clique é feito.

“Aconteceu, de repente, uma coisa louca: um ruído de água seguido do aparecimento de um fio de líquido, que começou a escorrer por baixo da porta do móvel.”

O trecho se encontra também no capítulo “O armário normando”. Quem está dentro do armário é Marcela, personagem que perturba eroticamente o narrador e Simone. Mais uma vez, percebo o quanto minha imaginação preencheu visualmente todos os espaços do texto. O móvel nunca foi descrito, ainda que eu saiba exatamente como ele é: estreito e baixo apesar de sua altura maior que a largura, duas portas ornamentadas por uma moldura em alto relevo, pés curtos unidos por um arco, fechadura de metal envelhecido. Esta também é uma “fotografia” colorida. A madeira do assoalho se aproxima do tom dourado escuro do armário. A luz é baixa e quente, unificando a cor do enquadramento do quarto. Na apatia da regularidade cenográfica, um destaque: o líquido que escorre pela porta e pinga, reluz.

Na cena descrita no livro, não vemos Marcela, mesmo que possamos enxergá-la corada, entre o prazer e a agonia. Já nos lembraria Philipe Dubois: “[…] o que uma fotografia não mostra é tão importante quanto o que ela revela”. Essa compreensão serve também para o texto, a pintura, a escultura, o jogo erótico. Não ver autoriza ver de um tudo. Aquilo que não sabemos, preenchemos. A partir da porta fechada, fantasiamos. 

“Tínhamos pulado o muro e nos encontrávamos naquele parque onde o vento forte agitava as árvores, quando vimos uma janela abrir-se e uma sombra amarrar firmemente um lençol às grades […] no meio do lençol, que se estendia ao vento com um ruído estridente, havia uma grande mancha molhada que se tornou transparente ao ser atravessada pela luz da lua.”

Não há dúvidas, esta é uma cena em preto e branco, granulada, e o lençol é uma mancha ao vento. Nela, há algo de Antoine D’Agata, fotógrafo francês cujo borrão das imagens sugere monstruosidade e prazer. O branco do lençol se destaca entre os tantos tons de cinza que compõem a imagem: as árvores ao redor, a edificação junto da janela gradeada que sustenta o lençol, o céu escuro que envelopa o quadro fotográfico. A baixa velocidade do clique faz do lençol um vulto branco, um fantasma reluzente em oposição aos demais elementos que vemos. 

Diferentemente da maioria das cenas do livro, neste caso, as características técnicas de minha fotografia mental contribuem para uma imersão no fantástico: pouca definição, ausência de cor, objetos borrados, grão. Seus elementos oferecem ao olhar uma atmosfera distante daquilo que entendemos como verossimilhança, nos afasta de uma dimensão com a realidade e nos convida a nos aproximar da pintura ou do desenho. O mistério é ampliado a partir dessas escolhas visuais. Trata-se de uma tentativa de dialogar com Bataille, que, neste trecho, também convidou a um universo incrédulo e improvável, em que é possível ver a mancha molhada de um lençol que sacode ao vento através da luz da lua.

No princípio, era a música

A música, em suas diferentes formas, é um poderoso instrumento de expressão social. Ela reflete as crenças, os valores, os costumes e os desafios de cada tempo e espaço, servindo como um espelho da sociedade em que é criada, e através dela podemos tecer diferentes leituras sobre a história, as angústias e os desejos da humanidade. A música — e a musicalidade enquanto expressão sensível — pode nos ajudar a entender como pensam, sentem e se relacionam os indivíduos, embalando amores, gozos, dores, afetos e tensões sociopolíticas.

Roda de samba na Lapa, Heitor dos Prazeres (1965).

Uma tese interessante para pensar musicalidade e linguagens cifradas é a de que a dita cultura do duplo sentido no Brasil, tão presente em nossa linguagem e expressões artísticas, tem suas raízes nos processos de escravização e na chegada das populações africanas no Brasil. Em um contexto de opressão e censura, a comunicação velada era um instrumento de resistência, permitindo aos escravizados driblar a vigilância e expressar seus sentimentos e ideias sem represálias.

O século XVIII foi marcado por uma efervescência musical, com o surgimento de novos estilos que conquistaram o público popular. A ascensão da burguesia e a crescente urbanização impulsionaram a demanda por entretenimentos mais acessíveis, que pudessem ser apreciados em ambientes domésticos ou em pequenos espaços públicos. Nesse contexto, surge a moda portuguesa. No Brasil, a moda também se desenvolveu, com características próprias que a distinguiam da versão portuguesa. Domingos Caldas Barbosa, um talento “mestiço”, educado em colégios jesuítas, foi um dos grandes nomes desse movimento.

Caldas Barbosa absorveu da cultura popular carioca um rico repertório musical, incorporando-o à sua arte. Em Portugal, ele foi aclamado por seus dotes artísticos, mas também enfrentou críticas e repulsa. As letras da modinha brasileira abordavam o amor de forma mais sensual e explícita, com insinuações e requebros que encantavam e escandalizavam ao mesmo tempo.

Dando um salto no tempo, o século XX presenciou uma revolução musical impulsionada pelo rádio. A música podia então ser apreciada por um público amplo e diverso, transcendendo fronteiras nacionais e continentais. Essa democratização moldou a experiência sonora do século XX de diversas maneiras.

Assim como nas modinhas do século XVIII, o século XX também trouxe os desejos do corpo e as genialidades da mente em forma de música. Um exemplo disso são as cançonetas, gênero musical marcado pela descontração e, muitas vezes, pelo duplo sentido. Isso se vê na cançoneta Boceta de rapé, de Mario Pinheiro, datada entre 1904 e 1906, na qual se canta:

O que é que aparece
Raspada, seu compadre?
Ora, ora, ora
O que é que aparece raspada
A boceta de vovó
Quando aparece
Raspada a boceta de vovó
Homem, vocês inventam
Cada coisa (haha)
Vocês são danados, diabo!”

A boceta seria uma pequena caixa redonda, oval e alongada, usada para guardar diversos objetos e/ou coisas. No caso da cançoneta, a boceta guardaria rapé, extrato de tabaco em pó, muito usado para liberação das vias nasais. Porém, na linguagem popular, o termo também se refere ao órgão sexual cisgênero feminino. A brincadeira entre as “bocetas” no início do século passado revela que talvez o conservadorismo seja um fenômeno mais contemporâneo do que costumamos pensar.

Na década de 1920, o Brasil vivia uma busca incessante por uma voz artística própria. Foi nesse contexto efervescente que o teatro de revista encontrou seu “tom”, assumindo a forma brasileira que o consagraria. Ele se tornou um caldeirão cultural, onde a música, a dança, a sátira política e o humor se entrelaçavam em um espetáculo único. As vedetes, figuras emblemáticas desse gênero, brilhavam com figurinos exuberantes e carisma contagiante, enquanto o humor irreverente e as críticas sociais afiadas divertiam e provocavam o público. A música era a alma do teatro de revista. Através de sambas, marchinhas e outros ritmos brasileiros, as canções retratavam a vida cotidiana, as mazelas sociais e as alegrias do povo. Compositores talentosos como Noel Rosa e Ataulfo Alves eternizaram suas composições nesse palco.

Entre os grandes nomes da revista brasileira, Arthur Azevedo se destaca como um dos mais influentes. Em A fantasia (1896), ele define o gênero com uma receita picante:

Pimenta sim, muita pimenta
E quatro, ou cinco, ou seis lundus,
Chalaças velhas, bolorentas,
Pernas à mostra e seios nus”

O humor irreverente e as falas de duplo sentido eram armas poderosas para driblar a censura e provocar o riso. Canções “apimentadas” e hinos picarescos completavam a festa, celebrando a alegria e a liberdade de expressão. Ou seja, o teatro de revista se apresentava como um caleidoscópio da sociedade brasileira, com seus vícios, volúpias, hipocrisias e costumes expostos à luz da sátira.

As marchinhas de carnaval também revelam espaços de debate amplo sobre erotismo e sexualidade. Ao longo do tempo, elas acompanharam mudanças nos costumes e valores da sociedade brasileira. As letras, que antes eram mais veladas e sutis, tornaram-se mais explícitas e diretas, abordando temas como o sexo casual, o uso de preservativos e a igualdade de gênero. Quem nunca ouviu que “a pipa do vovô não sobe mais”? Mesmo com muitas ressalvas e contradições, havia permissão para a ousadia no contexto do carnaval.

Nesse sentido, a musicalidade nordestina se destaca. Genival Lacerda, natural de Campina Grande, na Paraíba, é um dos maiores nomes da música de duplo sentido no Brasil. Com seu estilo caricatural, marcado por vestes espalhafatosas e a famosa dança “sensual”, ele influenciou artistas como Reginaldo Rossi e Falcão. Em 1975, Genival e João Gonçalves lançaram o forró Severina Xique-Xique, que se tornou um marco do gênero. A letra, mais explícita do que as marchinhas da época, mas ainda ambígua, tece um emaranhado de sugestões sobre a tal “butique” da protagonista.

Em suma, a música não é apenas uma forma de entretenimento ou arte; é um reflexo profundo da sociedade, uma linguagem que transcende o tempo e o espaço para expressar valores e desafios. Através dela, podemos entender não apenas como as pessoas se relacionam entre si, mas também como se criam suas mentalidades e costumes. As expressões artísticas de duplo sentido mencionadas, desde as modinhas do século XVIII até os forrós de Genival Lacerda, nos mostram que a ousadia e a sátira sempre foram formas de desafiar normas e tabus.

Samba, o dono do corpo

O Samba — assim, com “S” maiúsculo — é um estado de espírito, e é também um ser tecnológico ancestral africano que nos conecta e está para além do entendimento humano. Assim, podemos nos conectar com esse estado de espírito de diferentes formas. Uma delas é a partir dos afetos, como os eróticos ou sexuais. Essa ligação se dá de formas não óbvias. Muito longe dos estereótipos ligados à hiperssexualização de pessoas negras — aquelas que intelectualmente construíram o samba —, essa conexão tem muito mais a ver com linguagem, afeto, ritmo e inventividade.

Assim como o jongo, a capoeira e diferentes musicalidades de origem africana, o samba pode funcionar como ferramenta de comunicação. Regido por Exu no sentido de falas, escutas, aberturas e caminhos, as musicalidades negras permitem que se jogue — com as palavras, com o tempo, com a vida — ao mesmo tempo em que se canta e dança. Samba-se e tramam-se lavantes. Samba-se e tecem-se romances. Samba-se e forra-se a cama onde se deitam volúpias, desejos e paixões.

No palco do samba, o corpo é protagonista. Seja o corpo enquanto território de Exu — segundo o intelectual Muniz Sodré, falar em “dono do corpo” é outra forma de referir-se a Exu —, seja o corpo enquanto plataforma em que se sofrem opressões e ao mesmo tempo produzem-se prazeres.

Composto por Sinhô e gravado em 1928, o samba Jura ilustra bem essa possibilidade de ler e sentir o samba:

Daí então
Dar-te eu irei
O beijo puro
Da catedral do amor
Dos sonhos meus
Bem junto aos teus
Para fugirmos
Das aflições da dor”

A ousadia de articular imagens ligadas à religiosidade cristã — que muitas vezes foi uma das responsáveis por processos de repressão e castração afetiva e sexual — com a narração de um ato sexual de forma bela e sutil revela a capacidade do samba de ser uma esteira — cadenciada — para os afetos. Muito mais do que uma igreja, a “catedral do amor” pode ser interpretada como uma porta para o prazer e para o gozo — feminino.

Em O espírito da intimidade, Sobonfu Somé traz reflexões importantes sobre relações, intimidade e comunidade pensadas a partir da população negra. Segundo Somé, “o povo Dagara não tem uma palavra específica para se referir ao sexo. Expressamos o conceito de sexo como uma viagem com alguém. A pessoa não quer fazer sexo com outra; ela quer ir a algum lugar. Normalmente esse lugar é desconhecido para os dois.

Seguiremos com Sobonfu, nesta viagem. Toda viagem necessita de rituais e de ritmo para seu percurso. O samba e o sexo também. No sentido dos rituais, é necessário “preparar a canoa antes de entrar no mar”. Os rituais não são receitas de bolo. No samba e no sexo, eles são mutáveis a cada tempo, espaço e necessidade. Em ambos ocorrem trocas de energias — entre presenças no plano terreno e em outros planos, e para isso é importante preparar-se. É necessário “afinar” os instrumentos — musicais, espirituais, corporais — para seguir nessa viagem.

Assim como o samba, o sexo e o romance têm um ou vários andamentos. O partido alto, por exemplo, tem um andamento mais acelerado. Numa roda de samba ou de sexo, começar com um “vai lá, vai lá” pode atropelar o fluxo natural do processo. É importante dar tempo para que cada nota, gosto, cheiro seja sentido e saboreado. No compasso inicial dessa viagem, o clássico Deixa eu te amar, datado de 1984 e composto por Agepê, pode ajudar a embarcar:

Quero saciar a minha sede
No desejo da paixão que me alucina
Vou me embrenhar em densa mata só porque
Existe uma cascata que tem água cristalina
Aí, então, vou te amar com sede
Na relva, na rede, onde você quiser
Quero te pegar no colo
Te deitar no solo e te fazer mulher.”

Esse mergulho sutil e intenso pode abrir caminhos para uma viagem afetiva e sexual em que o veículo é o samba. Nele, este ser supremo, há uma síncopa interativa que existe nas musicalidades africanas e que não se sabe exatamente onde está. E é o que faz arrepiar, sentir, rir e chorar. É onde mora o mistério do samba.

Em Samba, o dono do corpo, Muniz Sodré afirma:

Ritmo é a organização do tempo do som, aliás, uma forma temporal sintética, que resulta da arte de combinar as durações (tempo capturado) segundo convenções determinadas. Enquanto maneira de pensar a duração, o ritmo musical implica uma forma de inteligibilidade do mundo, capaz de levar o indivíduo a sentir, constituindo o tempo, como se constitui a consciência.

Dentro de uma lógica musical, o samba é um ritmo binário. Isso significa simplesmente que o tempo será dividido em dois (ou em múltiplos de dois). O ritmo binário é composto de duas batidas. O que também costuma ser binário são os movimentos de uma relação sexual. Senta-se em dois tempos. Chupa-se em dois tempos. Faz-se sexo — e, por que não, amor — no mesmo ritmo em que se faz samba. E voltamos à síncopa, que não se sabe de onde vem e nem onde está, mas que abre um terreno vasto para a expressão de diversas emoções, como alegria, tristeza, saudade, amor e desejo.

A roda de samba, a sexualidade e as tensões sociais

Se no carnaval observa-se um passaporte carimbado para o “brincar” em suas diferentes possibilidades, a roda de samba parece impor um ar mais sério. Em contrapartida, é essa mesma roda que faz girar uma série de energias. Nela gira ancestralidade e fundamento, mas também paquera e tesão, uma vez que a troca de afeto é inerente ao ser humano. E o samba pode ser palco para isso, assim como pode ser palco para que se extravasem desejos reprimidos ou mesmo condenados pela moralidade. Em 1977, Leci Brandão compôs e gravou a canção Ombro amigo:

Você vive se escondendo
Sempre respondendo
Com certo temor
Eu sei que as pessoas lhe agridem
E até mesmo proíbem
Sua forma de amor
E você tem que ir pra boate
Pra bater um papo
Ou desabafar
E quando a saudade lhe bate
Surge um ombro amigo
Pra você chorar
Num dia sem tal covardia
Você poderá com seu amor sair
Agora ainda não é hora
De você, amigo, poder assumir
Por isso tem que vir pra boate
Pra bater um papo
Ou desabafar
E quando a saudade lhe bate
Surge um ombro amigo
Pra você chorar”

A canção fala abertamente sobre “uma forma de amor” reprimida pela sociedade. A canção Ombro amigo, que, de forma explícita, oferece apoio àqueles que enfrentam o desafio de aceitar sua homossexualidade, revela também a capacidade política do samba — e de Leci — de cantar os afetos não pautados pela heteronormatividade ainda dentro de um contexto nacional de ditadura militar.

Em 1976, Leci lançou Questão de gosto, seu primeiro álbum por uma grande gravadora. O disco incluiu a faixa As pessoas e eles, considerada uma das primeiras canções brasileiras a abordar abertamente o tema da homossexualidade. Com versos como “As pessoas não entendem / Porque eles se assumiram / Simplesmente porque eles descobriram / Uma verdade que elas proíbem”, a música desafiava o preconceito e a invisibilidade impostos à comunidade LGBTQIA+.

Ainda na esteira das práticas de afeto perseguidas ou reprimidas pela sociedade cis-heteronormativa e baseada no patriarcado e na monogamia, em 2002, Renato César e Toninho Branco compõem Duas paixões, conhecida na interpretação do grupo Bokaloka:

Recorte do jornal Lampião da Esquina. Novembro de 1978.

Adoro a minha namorada
Que é minha amiga e eu a conheço bem
Mas desejo uma morena linda
Que já faz parte da minha vida
Eu sempre digo que a amo, meu bem
E eu nunca digo isso pra ninguém
Mas se estou com minha namorada
Eu digo também
Pra ter as duas paixões, não tem jeito
Só tendo dois corações no meu peito
Mas eu só tenho um
Pra suportar esse amor incomum”

A canção narra a história de um homem dividido entre duas mulheres, ambas com qualidades distintas. Na sabedoria popular, ficou conhecida como “hino da infidelidade”. Mas aqui, um pouco mais desapegados dos julgamentos morais — sem deixar de lado o olhar cuidadoso sobre as hierarquias de gênero geralmente impostas às mulheres —, podemos lançar um outro olhar. A música revela um dilema imposto pela monogamia, a impossibilidade de amar ou se relacionar afetivo-sexualmente com mais de uma pessoa. Os amores múltiplos geram tabus, repressões e incompreensões na sociedade mais tradicional. E, uma vez que o processo de composição parte da mola das emoções, tem sido cantado e vivido nos sambas.

Em 1989, Jorge Aragão e Jotabê compõem Logo agora:

Agora
Justamente agora
Agora que eu penso em ir embora você me sorri
Me sorri
Passou a noite inteira
Com seu amor do lado
Fingindo um bocado
Mas, hoje em dia
Os amores são assim
Ele foi embora
Nem faz uma hora
Pensando, quem sabe
Nos beijos que você lhe deu
Tolo
Pensou que beijar sua boca
Foi consolo
Despertou o instinto da fêmea
E agora quer se deixar abater
Se sentir caçada
Dominada até desfalecer
Agora entendo o sorriso
Ele é que não entendeu
Se não fez amor com você
Faço eu
Eu também
Agora entendo o sorriso
Ele é que não entendeu
Se não fez amor com você
Faço eu”

Se a possibilidade de viver amores múltiplos e de muitas vezes vilipendiar as estruturas monogâmicas é cantada por homens, há também exemplos de relações em que as mulheres priorizam seu prazer em detrimento das estruturas sociais.

O samba é um organismo vivo dentro da sociedade e tende a caminhar junto com os movimentos desta. Assim, como há temas e formas de se relacionar que são importantes de serem cantadas e contadas, há de se pensar também que não há mais espaço para algumas outras relações — na música a na vida.

Em 1932, Noel Rosa apresentou Mulher indigesta:

E quando se manifesta
O que merece é entrar no açoite
Ela é mais indigesta do que prato
De salada de pepino à meia-noite
Mas que mulher indigesta, indigesta
Merece um tijolo na testa”

Posteriormente, em 1998, o grupo Exaltasamba lança Cartão postal:

“Como sempre distraída
Te filmei você não viu
É a coisa mais bonita
O seu corpo de perfil
Pode parecer bobagem
Um impulso infantil
Meu amor não é chantagem
Mas você me seduziu
Te proponho amor
Um trato que tal se render
Eu te dou o seu retrato
Mas quero você
Você na foto toda nua
Num banho de lua
Meu cartão postal
Meu corpo deu sinal
Deu sinal, deu sinal
O meu desejo continua
Desejando a sua boca sensual
Meu sonho real”

Sem nenhuma intenção de “cancelamento”, há de se observar que entre Noel Rosa e Exaltasamba há similaridades no sentido de violências ligadas a gênero e sexualidade. Ambas as letras acabam por expor ou reproduzir comportamentos presentes em nossa sociedade, em que a maior parte das vítimas desse tipo de violência são mulheres e pessoas LGBTQIA+. Se em Noel Rosa a violência é física e explícita, com “Exalta” a violência se atualiza, num crime conhecido como “revenge porn”, ou pornografia de vingança, que consiste na exposição de imagens íntimas ou na realização de chantagens tendo este material como barganha. No samba, e na sociedade como um todo, não pode mais haver espaço para isso. Se dizemos que o jongo é o pai do samba, quando falamos de maternidade, o samba pode ser imaginado como parido do ventre de uma mulher preta e gorda, uma imagem talvez aparentada com Tia Ciata. E esse matriarcado tem de ser honrado.

Assim, colocando um ponto e vírgula neste enredo, podemos observar que o “duplo sentido” é mais do que um mero artifício linguístico. Talvez ele não encontrasse um campo tão vasto em outros países. Aqui encontramos uma associação entre linguagem, cultura, comunicação não literal e construções sociais e políticas que propiciaram a criação epistemológica e musical de formas de expressão musicada, que “dizem sem dizer” e mesmo assim tocam onde tem de ser tocado.

Maxixe, lundu, modinha, samba revelam uma interface entre tecnologias de comunicação e levantes disruptivos no campo do prazer, criando caminhos dentro de uma perspectiva hegemônica e colonizadora de castração de desejos. Não sabemos se é a vida que imita a arte ou a arte que imita a vida, porém, pensando o samba como um imenso baobá, com diferentes galhos, um deles é da sexualidade. Portanto, o samba pode, sim, ser uma camada poética para falar de amor e sexo. Temos visto no samba pessoas mais dispostas a romper com o tradicional. E temos visto também, pessoas mais dispostas a amar.

Tomar café na casa de alguém é um convite para conhecer profundamente essa pessoa. Nossa casa é a casca que nos proteje do mundo. Ela é parte importante de nossa cultura particular, e reflete a maneira como enxergamos e gostaríamos de nos inserir no mundo.

Aqui, dividimos casas de pessoas que gostam de casa. Que têm suas casas vivas, cheias de objetos que contam a história de uma vida, sem um lugar perene em seus espaços.

Jeanete Musatti é artista plástica, paulistana, e nos recebeu com toda sua graça em seu sítio em Tietê, SP, em um dia de previsão de tormenta.

“A casa existe há cinquenta anos. Quando compramos o terreno, havia uma casinha de taipa, onde vivemos até a atual ficar pronta. Ao chegar, encontramos uma paineira centenária, dois pés de jabuticaba e uma plantação de café.

Depois, cultivamos um bosque de árvores e um pomar. A horta veio somente mais tarde, em um período em que uma epidemia de meningite nos fez viver com com as crianças durante cinco anos.

Entre idas e vindas, retornamos definitivamente à casa há quatro anos, durante a pandemia de covid-19. Reconheci, então, o valor de se ter uma casa no campo, que é a de habitar em um reino seguro, um universo vasto, profundo e ilimitado. Por muitas vezes, me sinto uma sonhadora de moradas, ao poder presenciar a mutação constante da natureza. Essa transformação me dá enorme prazer e é altamente inspiradora, influenciando diretamente no meu trabalho. A evolução do processo de um artista demanda precisamente isto: estar com o olhar sempre atento e constantemente disponível para aprender a viver — inclusive no caos.

O projeto da casa foi realizado pelo meu grande amigo José Pedro de Oliveira Costa, que também assina o paisagismo. Sou e serei sempre grata a ele pela dedicação colocada nesse espaço, que me permite estar tão integrada à natureza a ponto de poder observar no detalhe as cores esplênidas de cada florada,  completamente envolvida pelo barulho do silêncio.”

Entre os murmúrios historicamente abafados das narrativas africanas, Carolina Rocha desafia os fantasmas do silêncio como uma lenda, ancestral e contemporânea a um só tempo. Seu pseudônimo, alter ego, nome artístico, alcunha de heroína — ou como preferir chamar — é nada mais nada menos que Dandara Suburbana. Seus superpoderes? A lista é longa: mulher preta, imersa na espiritualidade de Xangô, bissexual, escritora, ativista e historiadora. Mas o que ela própria acredita que a define, “melhor do que qualquer coisa”, é o fato de ser uma mulher de terreiro. “Todo o meu trabalho gira em torno da minha relação com a ancestralidade”, revela, “com todos os ensinamentos que a literatura e a vivência em uma Comunidade Tradicional de Terreiro me dão.”

É claro que, com poderes assim, periféricos, plurais e transgressores à ordem existente, há muitos inimigos à espreita. O elitismo, o racismo, a heteronormatividade, o capitalismo predatório, tudo que infelizmente ainda predomina nas entranhas da sociedade. Sua jornada é marcada por desafios e superações, mas ela não se importa; prefere continuar sendo um testemunho vivo da força e da resiliência da mulher negra brasileira.

Nascida e criada na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, Dandara cresceu em uma família suburbana. Filha de Eugenia e Fumaça, aprendeu desde cedo o valor do trabalho duro e da determinação. “Minha mãe dizia que, por ser uma mulher preta e pobre, eu precisava ser a melhor em tudo que fazia para driblar de alguma maneira as violências da sociedade em que vivemos”, reflete ela sobre o fato de ser exacerbadamente “certinha” quando criança. Já nessa época, antes de assumir um papel maior na própria lenda contempoancestral, os vilões do conservadorismo estrutural já se faziam presentes. Enquanto outras crianças pareciam caminhar ao seu redor com mais calma, sentindo confortavelmente os pés no chão, ela sentia que, para subverter essa mesma pavimentação incontestada, precisava voar.

Desde os oito anos de idade, “juntava as bonecas no sofá de casa e dava ‘aulas’ para elas”. Não são muitas crianças que fazem isso, mas a jovem Dandara talvez não fosse como a maioria. E, se pensarmos em sua trajetória acadêmica, era um prenúncio natural do que viria pela frente. Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense, tornou-se doutora em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Sua pesquisa aborda questões essenciais, como as relações étnico-raciais no Brasil, estudos de gênero, religiosidade e violência urbana, entre outros temas para lá de relevantes.

Com certo pesar, porém, admite que, durante muito tempo, sucumbiu à pressão de se adequar aos arredores esbranquiçados da vida acadêmica, encurralando-se em corredores labirínticos de normas elitistas que forçavam sobre ela certa autorrestrição: “Só depois de adulta fui entender que a violência do racismo fez com que eu me encolhesse para caber nos espaços que considerava importante.” Nessa contenda, porém, a autoconsciência também brigava por ar e, com um pé na ancestralidade e outro na contemporaneidade, a verdadeira Carolina Rocha empurrou as paredes e encontrou as brechas que precisava para fugir — e a partir daí tomou a narrativa para si, e o encolhimento virou agigantamento.

Deixando de lado a escrita formal e em terceira pessoa, fez emergir uma voz que se ouve em alto e bom som. Afinal, por que escrever? O que faz do ato um dedo em riste tão potente? A resposta é tão categórica quanto tocante: “É revolucionário escrever ao invés de servir.” Além de sua atuação acadêmica, Dandara é uma escritora com obras publicadas em diversas coletâneas e projetos. Seu livro O Sabá do sertão: feiticeiras, demônios e jesuítas no Piauí colonial, por exemplo, é uma contribuição significativa para o entendimento da história colonial brasileira. E o erotismo que perpassa e por vezes define sua literatura também encontra justificativas fortes: “Amor e sexo, para nós, não obedecem a uma lógica individualista. São, antes de tudo, expressões políticas.” Ou seja, ser Dandara Suburbana, e não uma pessoa rendida aos ditames elitistas da Academia, é uma escolha política, porque “a literatura é um campo estratégico na luta contra as opressões que vivemos, sejam elas de raça, classe, gênero ou sexualidade, pois elabora um imaginário social”.

Ao tomar a narrativa para si e optar por mergulhar no erótico, Dandara valoriza o prazer e a autonomia dos corpos negros; desafia os estereótipos e as representações objetificadas que historicamente os têm marcado; e reivindica o prazer como um espaço de poder e afirmação da identidade. É como ela mesma diz: “Quero falar do meu prazer em primeira pessoa, porque ele não existe só na relação com as outras pessoas, mas também na comigo mesma”.

Seu engajamento social se estende para além dos escritos. Ela é idealizadora da Ataré Palavra Terapia, uma comunidade dedicada à escrita criativa e terapêutica, especialmente voltada para a literatura negra feminina. A ideia geral do Ataré é tirar “a escrita do lugar sacralizado que ocupa neste país, que só reconhece como intelectualidade uma elite branca”. Essas oficinas têm sido um espaço de empoderamento e expressão para centenas de pessoas, incentivando-as a contar suas narrativas e a compreender o poder que reside na escolha pela primeira pessoa. É um lugar no qual a oralidade, a escrita e o corpo são faces da mesma encruzilhada. Em momentos difíceis, como nas mortes do pai e da mãe, que ocorreram consecutivamente em um curto intervalo, os momentos proporcionados pelos encontros têm sido um pilar na força de Dandara, pois, “ao longo desses anos, tudo foi se ampliando” e ela foi “compreendendo ainda mais a importância do poder da palavra para a transformação que queremos ver no mundo”.

Se as palavras fazem Dandara, Dandara também faz as palavras — e essa relação permite que ela transcenda as páginas de um livro e as salas de aula para não ser uma mulher idealizada, mas sim uma “mulher que beijamos na boca com vontade, que benze as feridas da sua comunidade, que falha e chora, que celebra pequenas vitórias, que escreve a sua própria história”.

Cada um de seus superpoderes está na batalha por algo maior. E, na guerra contra a vilania de uma sociedade que nega ou faz pouco dos prazeres que não considera dignos, nada como contar consigo mesma e com as vozes que vieram antes.

Para que Dandara e Carol escutem e se sintam reverberadas, leia a seguinte mensagem em voz alta: o prazer, em toda a sua complexidade, há de vencer.

ORGASMO CURA
Seleção poética de Dandara Suburbana

Dieta

Amor essa semana estou de dieta
Nada além do seu gosto me interessa
Me alimento do seu espesso gozo
Nada de coitos afoitos
Não admito desperdícios
Quero suor, apetites vorazes e vícios

Eu vou me lambuzar de você
Sem parar pra respirar
Sem olhadinha no celular
Sem despertador pra acabar
Eu vou fazer seu corpo, no meu corpo, de lar
Te proponho rever todo o alfabeto
Letra por letra vamos soletrar sobre prazer e afeto

Eu esperei demais pelo instante
De poder amar gemendo só em vogais
Tesão sem miséria,
Mas o papo aqui é manter a cuca sã
Enquanto dá comida à matéria!
Consoante é ter responsabilidade
Senão, nem me interessa…

Vem, desliza os lábios nos meus seios
Sem hesitar, me enche de beijos
Eu pego na sua mão
E desço até a minha calcinha
Pinceladas molhadas de ousadia
Que trago na boca,
E vou fazendo poesia
Enquanto saboreio os seus dedos…

Psiu, não conta pra ninguém esse segredo:
Tem gente preta insistindo em gozar
Ao invés de sentir medo!

Orgasmo que cura

Nego aguenta, hoje é sexta e eu preciso dizer:
Quero uma dose cavalar de você!
Exagero de dedos, dentes e saliva.
Não busco prazer no singular
Meus ancestrais cultuam a fartura
Tenho sede e grandes expectativas
Apetites vorazes, dignos de uma rainha.
Pra tocar meu corpo é preciso saber
Colher, quinar, temperar e mexer
Quando meu mel estiver quente
Escorrendo na ponta da sua língua
É o momento de consumar a magia
Estarei aberta, sedenta, nua e sua
Pode entrar e se servir
Mas não vá pensando que sairá ileso
Eu sou um continente inteiro
Muito maior do que seus olhos podem ver…
Na ânsia por me preencher
São meus grandes lábios que devoram você!
E que vantagem a sua,
Minhas águas são profundas
Nutritiva seiva bruta
Puro amálgama,
De um orgasmo que cura!

[sem título]

Você é um leitor voraz
que em poucas horas
me devora
costumo me abrir inteira
toda vez que me folheia
até lambuzar os dedos
com letra, papel e tinta
te sinto entrando pela capa
até atingir a última página
e no ápice
da ponta do seu lápis
escorre a poesia
que me invade
gota a gota
eu vou melando toda
já não é mais ficção
no meu corpo tenho
todos os vestígios
das suas mãos
você me acompanha
como um livro bom
e mal posso esperar
pra escrever
novas palavras contigo
outra vez.

– para o amor que vai chegar



[sem título]

Estou procurando um meio termo
Para me expressar
Eu quero te comer
Mas não quero ser vulgar
Peço desculpas pela franqueza
Minha poesia tem menos enfeite
Do que ousadia
Estou mais preocupada com o conteúdo
Do que com as rimas
Eu te vejo dançando na pista
Vou molhando o verbo
Que escorre até a calcinha
Me dá uma chance?
Não te prometo nada novo
Mas garanto ser bem gostoso
Meu sexo bruto
Com cafuné fofo
Não se espante
Por trás dessa cara de menina
Tem muita água e muito fogo
Para de se fazer de bobo
Aqui a loteria é certa
Uma pretona dessas
É sua sorte no amor e no jogo
Estou valendo mais que ouro
Pedra rara, dessas lapidadas
Cheias de brilho e contorno
Deixei de procurar uma forma ideal
Pra me expressar
Eu quero te comer
E estou sem tempo pra esperar!

Arte de Alvaro Seixas, capa da Amarello Erótica.

Na milésima segunda noite,
Sherazade degolou o sultão.

— Antônio Carlos Secchin


Você me vira a cabeça
Me tira do sério

— Alcione

1.
A bíblia era meu livro preferido. Na verdade, era um dos poucos livros que tinha em casa quando criança. Folheando aquelas páginas finas, caí de amores por Judite, a mulher que me ensinou a cortar cabeças sem portar espada.

Judite decapitando Holofernes, Artemisia Gentileschi. 1614-1620. Óleo sobre tela.

2.
A ideia me veio durante uma aula sobre corpos impossíveis à luz da Acéphale, revista capitaneada por Georges Bataille, que circulou na França pré-guerra; o periódico reunia outros importantes intelectuais franceses da época, como Pierre Klossowski e André Masson.

O objeto da análise, naquela classe, era uma ilustração de Marx Ernst, que estampou os cinco volumes que circularam entre 1936 e 1939. Em formato de cruz, o desenho trazia um torso masculino com duas estrelas no lugar dos mamilos e uma caveira no lugar do pênis. Abertos os braços, a mão direita segurava um coração flamejante; a esquerda, um pequeno punhal. Os pés grandes estavam bem fincados no chão.

Embora chamasse atenção, eu não queria cuidar da ilustração, do movimento histórico ou da discussão existencial sobre o corpo deformado. No centro do meu interesse estava menos o objeto e mais o agente: quem teria decepado aquela cabeça?

Ao lembrar de outros acéfalos, busquei ver nas histórias também a figura feminina. Há o caso célebre da cabeça de São João Batista que Salomé exige em uma bandeja de prata. Há Medusa, que, por oposição, não era um corpo sem a cabeça, mas uma cabeça sem o corpo. E havia a Judite da minha infância, da minha primeira pátria.

3.
No episódio bíblico, o mundo estava em guerra — como sempre esteve. Um homem em particular, Holofernes, encarnava a figura do terror a mando de Nabucodonosor. Sob seu comando estavam cerca de 200 mil homens.

O desespero de reinos e províncias precede a aproximação desse corpo militar. Se não há adjetivos que os possam definir, os verbos do texto bíblico dão contorno às suas ações: tomar de assalto, saquear, penetrar, rapinar, arrasar, apossar-se, levar, passar a fio, queimar, cortar.

Ao contrário de cidades anteriores — que tentaram pegar em armas ou abrandar a fúria de Holofernes entregando tudo o que possuíam de mão beijada –, a Judeia se vale de certo privilégio geográfico para arriscar uma resistência passiva que consistia em estocar água e comida. A resposta do general segue linha parecida: com paciência, ele se organiza para matar o povo de sede e de fome. Matar sem golpe de espada, apenas cortando o acesso aos reservatórios.

Em desespero, um conselho formado por representantes políticos, administrativos e religiosos (bem definidos na imagem de homens e anciãos) se reúne no templo e vaticina: estarão mortos em cinco dias. Com a cidade sitiada, chegaram ao fim todos os recursos.

4.
Judite, jovem e viúva, tinha um plano que soava como um sacrifício. Sem laços familiares, marido ou filhos, ninguém choraria em cima de seu corpo se falhasse o planejado.

A ideia não era mirabolante.

Ela se comportaria como esperavam que uma mulher se comportasse: corpo cheiroso e enfeitado para festa, cabelo no lugar, pulseiras e anéis nos braços, brincos pendurados nas orelhas. Carregaria nada além de um pedaço da cozinha: bons vinhos, pães, queijos, grãos e figos. Consigo, seguiria outra mulher, não nomeada, sua criada.

Passos firmes, elas andam em direção à grande ameaça. Cruzam o cheiro, o barulho, as cantadas de 200 mil homens. Pulam por cima dos animais que os serviam. Atravessam o acampamento até a tenda do comandante — o cabeça do exército.

Diz a bíblia que, ao ver Judite, Holofernes fica preso no laço de seus olhos e nas doces palavras de seus lábios: ela lhe promete contar os segredos para conquistar a cidade ao fim de três dias.

Animado — excitado — não só com a notícia, mas com a presença daquela mulher, o general abaixa a guarda e lhe dá tenda, comida e passe livre para andar pelo acampamento com ordens explícitas de não a incomodarem.

Judite avança em seu plano. Eis a vanguarda doméstica.

5.
A partir deste ponto, testemunhamos a reversão não só da conquista, como da hierarquia.

Se, no início da história, a bíblia diz que nada era capaz de “abrandar a ferocidade do coração” de Holofernes, depois de conhecer Judite, já no fim do terceiro dia, este mesmo coração arde de paixão por ela. O general nem de longe percebe que obedece ao que está previsto na etimologia da própria palavra sedução: se + ducere, o que pode ser compreendido como “desviar alguém do caminho”.

Até agora, a palavra “conquista” estava confinada a um contexto bélico: o poder de Holofernes dizia respeito a um domínio geopolítico, que se manifestava por meio do discurso de ameaça e da prática violenta. Para Judite, o campo de batalha é outro, é o corpo; é por meio de Eros que ela atrai amorosamente o inimigo, conquista sua cabeça e, logo, a vitória real na guerra.

Anoitece. Há festa. As taças ficam mais leves quanto mais cheias de vinho. O general come do que Judite lhe dá. A sedução desativa os dispositivos de poder. São deixados a sós.

6.
A tela pode ser dividida em três diagonais.

Na diagonal inferior, vê-se o colchão duplo, de aparência macia, forrado com lençol branco, invadido por linhas de sangue (não foi na cama que tantas virgens sangraram?). O amassado do lençol se intensifica com o peso da cabeça do general em agonia e o movimento dos outros dois corpos.

As rugas da cama se duplicam no tecido azul do vestido de Judite, já na segunda diagonal. Os braços dela formam paralelas que delimitam a cena e colocam em destaque duas cabeças: a de Holofernes, embaixo, e a sua, em cima.

Os olhos do general parecem fitar o nada; a boca permanece aberta na intenção de um grito, como um bocejo eterno. O corpo tenta se defender em vão. Sobre o colchão, observamos um homem que morre pela própria espada – sua arma. Ele morre pela latência em seu falo — uma grossa lâmina.

Enquanto Judite porta um distinto tecido azul com detalhes dourados, o homem, embaixo dela, está nu, coberto apenas com lençóis a partir do peito.

O cabelo dela está preso em um coque alto, meio bagunçado. Uma mecha escapa pelo pescoço e cai sobre os ombros nus. O ombro esquerdo, mais à mostra, e a sombra que acompanha seu torso, atrás, indicam uma folga — talvez o vestido esteja semiaberto?

De mangas arregaçadas, Judite empunha com destreza a pesada arma. Não se pode ler em seu rosto resquícios de hesitação. É a representação do clímax que ela planejara dias antes. O seu gozo é vermelho cor de sangue e dá certo: o grande guerreiro já não é mais guerreiro, nem grande. A acefalia se aproxima dentro de um minuto ou dois.

Na terceira diagonal, o vestido vermelho da criada (cúmplice, companheira, amiga) funciona como uma continuação vertical do sangue. É no pescoço desta mulher que está a mão já fraca do general. A parte esquerda do rosto dessa personagem faz par com a face esquerda de Judite: metades sombrias.

Toda a cena se desenrola em um fundo escuro. É o suposto silêncio da alta madrugada.

Quando os soldados souberam que Holofernes tinha sido decapitado, ficaram desorientados. A cabeça é o domínio da razão e, ao perder o cabeça, perdem a guerra. Como recompensa, à jovem é oferecido o espólio de Holofernes: ouro, prata, tecidos, pedras caras. Judite, agora duas vezes viúva, acumula a herança de dois homens.

7.
É curioso perceber como as esferas que apontam a tradição do feminino estão presentes tanto na antiga história de Judite quanto nas pintoras que retrataram o episódio.

A tela aqui comentada é de 1620, e nela podem ser identificados elementos do barroco italiano. De autoria de Artemisia Gentileschi (1593-1653), filha de um pintor italiano tradicional, ela foi a primeira mulher aceita na Academia de Belas Artes de Florença, e dedicaria ao episódio outras duas versões.

Contemporânea a Artemisia, Lavínia Fontana (1552-1614) foi outra pintora de destaque que deu a Judite algumas versões. Lavinia, que pode ser situada entre o Maneirismo e o Barroco italiano, seria eleita, de forma inédita, para a Accademia di San Luca, de Roma. Reza a lenda que o marido é quem cuidava dos onze filhos para que ela seguisse carreira e sustentasse a casa. Elisabetta Sirani (1638-1665), que morreu subitamente aos 33 anos, escolhe pintar não apenas o momento da decapitação de Holofernes, dentro do quarto, mas a volta gloriosa de Judite com a cabeça em mãos, recebida por uma gente pálida e curiosa na praça da cidade.

Fazendo uma ponte entre os anos, Julia Kristeva (1941), no livro O gênio feminino, afirma que “o próximo século será feminino”. Mas talvez os séculos passados também tenham testemunhado essa genialidade a partir de elementos banais e, muitas vezes, domésticos: o corpo, a comida, a festa, a futilidade, uma amiga ao lado.

Esse conjunto, tido quase como uma “condição natural” da mulher, é a receita para cortar cabeças de forma intelectual e política, baseada no desejo, no segredo e na sedução.

É precisamente aí que cabeça e mãos se unem com finalidades levemente semelhantes: mãos para cortar cabeças, no caso de Judite; mãos para pintar o corte de cabeças, no caso de Gentileschi, Fontana e Sirani; mãos para escrever sobre pinturas que retratam cortes de cabeças, no meu caso, aqui e agora.

— Este texto é dedicado a Marília Rothier que me ensinou a ler, escrever e pesquisar.

E num segundo momento veio a boca. O que era só uma clivagem se expandiu de uma ponta a outra do corpo, esgarçando a bolsa em um tubo. E, ainda assim, chegando depois, e pela outra extremidade, é ela quem nomeia nossa categoria no reino animal, deuterostômios — a segunda boca. A criação nomeada por seu estágio segundo. Se no início era também o verbo, ele não está tão ligado à boca quanto ao cu. Este, sim, a invaginação primordial do corpo humano. A rachadura que, de início indeterminada, remonta a ancestrais de quinhentos e quarenta milhões de anos. Do buraco milenar, autoerodido, constrói-se um corte radial, e com ele o paradoxo: definido pelo tubo, o centro interior embrionário é um canal de passagem a tudo o que lhe é exterior. O dentro é um processamento do fora e, a tomar pela noção de corpo, dentro e fora continuarão sempre a ser processamentos provisórios.

Daquela clivagem anal que boia no útero, o corpo desenvolve-se em um tubo gástrico enrolado por pele. A lógica do cu se dissemina por todo o tecido poroso, e sua dupla capacidade, de absorção e expurgo, multiplica a operação já infinita do paradoxo do dentro-fora. Oco e maleável, o tubo central pede uma sustentação mais firme, e, assim, acompanhando seu percurso, desenvolve-se a espinha dorsal. Ao redor dela, capilares nervosos se conectam, garantindo que aquele corpo consiga responder sensorialmente ao ambiente. Esse mecanismo consolida-nos no reino animal, sob a ameaça de que qualquer ruptura mais séria poderia levar-nos ao dito estado vegetativo.

Os sistemas ósseo e nervoso assistem o tubo paradoxal, e junto a eles vários aparelhos são incumbidos de auxiliar o processo de alimentação. Desenvolve-se uma série de filtros e distribuidores de energia; crescem-nos os membros que nos tornam perspicazes na fuga, bons de festa, de caça e de colheita; o corpo se infla de carne e sangue, às vezes de leite, às vezes de água e sempre de gases. Ele carrega, ainda, seus códigos de vida que são constantemente reatualizados. Aquela pequena clivagem inaugural que prepara o corpo ao expurgo, como a cloaca que nasce antes do ovo e da galinha, está agora protegida entre dois montes de carne estruturados pelos ísquios.

Ao bom funcionamento maquínico de todo esse sistema corporal vão dar o nome de “saúde”, ao passo que às suas disrupções chamarão de crime, doença, difamação, blasfêmia ou arte.

Seu funcionamento complexo e suas curiosidades internalizadas geram mapas dos mais diversos sobre o corpo humano, cada qual imbuindo este de narrativas fantásticas que, ao final, não elucidam mais do que constatam suas possibilidades de invenção. Esses mapas orientam relações de produção entre órgãos, forjam subjeção entre diferentes anatomias e atestam narrativas cuja coerência inventiva cria e persevera crenças — tanto aquelas advindas da fé na ciência quanto as advindas da ciência da fé. A força de vida do que é erótico confronta-se com o semiótico. Quanto mais um mapa é assimilado e reiterado, maior é a sua capacidade de determinar funcionamentos como norma. Foi assim, por exemplo, que prevaleceu até o século XVIII a percepção do humano como matricialmente dotado de um sexo único. Sob as lógicas então vigentes, o corpo era por definição masculino, porém, aquém ao modelo pleno, estabilizava-se uma outra versão, subdesenvolvida, dotada de órgãos genitais internalizados. Ainda sem nome, a vagina era percebida como uma anatomia negativa do pênis, e o útero, como um saco sem testículos — que, por sua vez, nomeavam também as duas gônadas que se elevavam à proximidade do umbigo. É só no século XVII que a incomensurabilidade dessa narrativa isomórfica do sexo dá lugar ao duplo sexo e à sua diferenciação linguística. É quando os ovários ganham nome próprio, quando se nomeia a vagina e mesmo quando mapas anatômicos diferenciados são construídos para o esqueleto e o sistema nervoso de cada matriz sexual, conforme o sexologista Thomas Laqueur. A nova invenção da mulher, agora em uma matriz anatômica díspar da masculina, acontece concomitantemente ao sumiço das inscrições de orgasmo feminino nos laudos médicos, segundo Laqueur. O que antes era vinculado à boa capacidade reprodutiva é tolhido então como material de estudo, visto que perde sua função generativa e, ao mesmo tempo, ameaça o estatuto fixo de masculinidade. O corpo já não se define em uma linha progressiva, mas paralela, e o prazer, além de múltiplo, é estimulável.

Afastados aqueles estudos de prazer orgasmático feminino, e havendo a possibilidade de produções autológicas que, em vez de se definirem por singularidade, são comparativamente vistas como exceção à norma, o corpo, seu funcionamento e seu comportamento se vinculam a noções que sejam verificáveis, mesmo se com frágeis aparatos e calcadas primordialmente na anatomia. Seu efeito brutal já vigora de saída no performativo médico, em pleno ato de nascimento, como nos diz Judith Butler. Se ao recém-nascido é verificada a existência de uma protuberância de mais de dois centímetros na região sacral, a assertiva “é um menino!” é iterada. Nessa fala celebratória, o entendimento sexual perdura como via binária, resumida a ter-se ou não um pênis e, junto a ele, uma série de prospecções sobre como o corpo deve passar a vida e responder à existência — ou não — desse genital. Uma pseudoestabilização anatômico-binária se estabelece. E dentre os vários apagamentos que ela gera, há uma série de outros mapeamentos anteriores que caem no ostracismo, sistemas corporais que são ricos estudos de como a existência é uma invenção.

Não porque o corpo não exista ou porque existindo não funcione, mas porque seus contornos e suas atuações estão diretamente atrelados às narrativas que o sustentam. Cada mapa do corpo é primordialmente um mapeamento dos sistemas lógicos que os geram.

 “O homem é chamado pelos antigos de um mundo em miniatura, e certamente esse nome está bem aplicado, visto que o homem é composto de terra, água, ar e fogo, assim como o corpo da terra”, afirma Leonardo Da Vinci. O artista e cientista italiano reproduz um ideário muito comum, a pretensão de autonomia. Esse delírio ganha inúmeras estratégias e modelos modernos. No Renascimento, o homem é de partida uma equivalência do mundo em menor escala. Essa necessidade racional de circunscrever a existência num contorno visual e integral destitui do humano a vulnerabilidade inerente e eroticamente vigente quando, do contrário, “consentimos em não ser um”, como define Fred Moten. Sendo cada humano um mundo em si, é a própria cosmologia de mundo que acaba por ser sintetizada. O homem, esse mundo em miniatura, forja ainda uma lógica cientificista misógina, o pré-formismo, em que se cria, o sêmen contendo um pequeno homem, e o corpo alheio sendo relegado a um espaço depositório.

Sublimando o paradoxo erotizante de ter o dentro constituído de fora, que é também resultado de dentro, o homem, autonomeado modelo universal, significa seu entorno objetiva e objetualmente. É assim que a antropometria se constitui numa ferramenta de mapeamento que indexa o espaço pela escala e proporção humanas.

Se seguimos com Da Vinci, no caso do homem vitruviano, seus membros são capazes de habitar um quadrado e um círculo simultaneamente, e o umbigo é o centro radial do corpo. O homem se torna escala de si mesmo e sua referencialidade, o fundamento para se pensar ocupações de espaço propondo-se uma forma simétrica ao universo.

É o protagonismo visual que gera tanto os atlas que reduzem o corpo à sua anatomia quanto aqueles que reduzem a geografia ao seu relevo. Mas como, então, liberar a episteme corporal da circunscrição ocular? Como estabelecer uma orientação marcada pela multissensorialidade, e ainda mais integrada a uma noção de experiência que reconheça na matéria o acúmulo de sua historicidade? Uma possível restituição do erótico frente a esse mapeamento talvez se materialize se tiramos o humano — e o tempo de uma vida do humano — como medida compulsória de percepção do mundo. Uma via é a que considera a capacidade sensório-cognitiva como uma limitação e opta por se referenciar a partir de substâncias que, situadas aquém do humano, conectam-se com o entorno que nos atravessa e nos ultrapassa.

Paul B. Preciado contundentemente recupera as relações entre corpo e mundo enquanto dinâmicas de fluidos e energias de um sistema integrado e suplementar através do que nomeia de somatopolítica. Longe de operarem fluxos livres, essas dinâmicas são, desde sempre e cada vez mais, cooptadas como a base de sustentação do capitalismo. Preciado reavalia a colonização, a servidão, a exploração e o extrativismo através da farmacopornologia junkie e seu consumo insaciável de moléculas químicas. O corpo humano deixa de ser um mundo em miniatura e se evidencia como um protagonista autoproclamado que reorganiza o resto do mundo em subserviência à sua satisfação. E, como bem sabemos, o protagonista não é simplesmente qualquer humano, mas o “macho adulto branco sempre no comando”, o modelo de agente desejante, que hierarquiza não só os existentes não humanos, como todo aquele que difere de si em classe, gênero, raça e eficiência.

Sob o fluxo do desejo e da busca de satisfação do prazer, com Preciado, o atlas corporal se interpõe ao mapa geopolítico. Formam-se, assim, diagramas nos quais a circulação de açúcar no sangue europeu está diretamente conectado à produção de melaço na América Central e à violência dos engenhos de cana-de-açúcar no Brasil. É também nessa circulação molecular que o ciclo do café e o tráfico de cocaína aparecem como economias fundamentais de geração de combustível energético; os temperos, os alimentos exóticos, o ópio e todo tipo de química são percebidos em sua capacidade de energizar e mobilizar o corpo europeu. São séculos de relação entre continentes e suas políticas extrativistas a serviço de compor quimicamente o sangue que circula pelos corpos consumidores, sua libido e os fluidos de suas maquinações.

Ao traçar esse complexo diagrama projetivo do humano em sua composição e desejo pelas moléculas, Preciado chama atenção para o embate de poderes que acontece numa dimensão invisível a olho nu que não se presentifica prioritariamente no formato anatômico e superficial do corpo, mas que acontece em regiões e relações bem mais profundas, pela via da fisiologia, seus processamentos químicos e a saciação de desejos. Esse debate acerca do corpo e da produção de subjetividade pela ingestão e circulação molecular abre outra via de pensamento sobre nossas relações intra e interespécies. Em meio a sociedades tão estimuladas visualmente e organizadas nas tramas de macro e micropolíticas, surge, pois, uma outra via que complexifica os mapas semióticos e nossos sistemas lógicos, e que instaura um modo de composição nanopolítica que opera entre a força energizante e insaciável por moléculas e o imaginário de satisfação e reeducação do prazer pela via do algoritmo.

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Este texto é uma revisitação de um trecho extraído do livro Ruminações: a arte de performance entre o prazer e a resistência, publicado pela editora Circuito em 2022.