Cine Veneza, no filme Retratos Fantasmas.
Foto: Divulgação

O tempo não age somente sobre o que está vivo, no sentido biológico da palavra. Ele age, de um jeito ou de outro, sobre tudo aquilo que existe, ainda que a coisa viva ou não viva sequer tenha noção disso. Kleber Mendonça Filho entende a abrangência democrática da passagem do tempo e, munido de sua voz singular, tão conhecida e celebrada ao redor do mundo, conta uma história sobre cidade, cinema, memória e arquitetura em Retratos Fantasmas, seu mais novo filme. 

Imagem com o cinema São Luiz, em Recife, ao fundo. Foto: Divulgação

Mas veja bem: “entender o tempo” não é acionar o botão da nostalgia. É como próprio diretor disse na coletiva de imprensa do 51º Festival de Cinema de Gramado, onde o filme fez sua estreia nacional em 12 de agosto: “O que me preocupava desde o começo era que eu não queria fazer um filme saudosista, de ‘ai, como as coisas eram tão melhores antigamente’, eu não queria cair nessa coisa. (…) Queria evitar a nostalgia como produto. Eu queria passar direto e pegar na veia do que é um conhecimento histórico. De uma compreensão histórica. Acho que é isso que está nesse filme.”

Entender o tempo é reconhecer o efeito incontornável das mudanças. O que vale para nós, cujos relógios biológicos batem aceleradamente, vale também para as cidades e os cinemas, que sofrerão processos de alteração até que, bem, não sejam mais cidades e nem cinemas. Composto por imagens do acervo pessoal de Mendonça Filho — registros de mais de 30 anos, captados, principalmente, com Super 8, VHS e câmeras fotográficas —, que se juntam a um material de arquivo da Cinemateca Brasileira, do Centro Técnico Audiovisual e da Fundação Joaquim Nabuco, Retratos Fantasmas constrói uma espécie de mosaico de vultos urbanísticos, cinematográficos e pessoais, um labirinto de espectros que habitam o mundo dos “vivos”. Humanos, cidades e cinemas, no fim, estão fadados a virarem fantasmas.

“A minha relação com a cidade”, explicou também em Gramado, “é um pouco como a casa: na sua casa você sabe que, à direita, tem um banheiro e, depois, tem um quarto. Na cidade, você tem o seu próprio mapa pessoal do lugar. Então, para mim [a relação] fazia completo sentido. (…) E, claro, quando você se apaixona por um cinema, você também pode considerar aquele cinema a sua casa.”

Narrando no tom monocórdio-mas-expressivo ideal, o filme apresenta os cinemas como verdadeiros personagens da cidade, partícipes que muitas vezes por meio de seus letreiros fazem (ou fizeram) — voluntariamente ou não — comentários espirituosos sobre a sociedade (pense em “Bye Bye, Brasil”, de 1980), ao aparecer no fundo de inúmeros registros, marcando presença com uma aura quase etérea. Personagens-termômetros que observavam e marcavam a temperatura que sentiam.

As transformações humanas, arquitetônicas e urbanas são expostas a partir de uma lógica de boneca russa, com uma contendo a outra, mas não necessariamente tomando os atributos de tamanho físico como referência para saber qual contém qual. É mais ou menos assim: temos Recife, temos o apartamento de Kleber em Recife e, no apartamento de Kleber em Recife, temos Kleber Mendonça Filho; mas, nesse Kleber, temos o seu apartamento em Recife e, também, Recife em si. O organismo funciona de maneira complementar e contínua.

“O filme começaria sempre na coisa da cidade e dos cinemas, mas, no começo, eu ficava muito incomodado, porque parecia algo meio National Geographic. Aí no processo — esse filme, aliás, teve todo o tempo que precisava, acho importante respeitar o tempo de cada filme —, aconteceu uma coisa totalmente não relacionada mas que, no final das contas, definiu o filme. Nós entendemos que íamos nos mudar, a gente ia sair daquele apartamento, do apartamento em que eu cresci. Isso aconteceu em 2017. Então, 2016 já teve um impacto muito importante na minha cabeça. (…) E a ideia de sair daquele lugar levou um tempo de processamento. E aí eu comecei a entender que era um lugar muito filmado, porque fiz muitos filmes lá, fiz muitos curtas lá, fiz ‘O Som Ao Redor’ lá e, com a chegada dos filhos, muita imagem foi produzida naquele lugar. Imagens domésticas. E aí que o apartamento se transformou na primeira parte do filme. Quando isso aconteceu, o filme entrou no trilho.”

Kleber Mendonça Filho, coletiva de imprensa do 51º Festival de Cinema de Gramado

Para fazer um paralelo estratégico e necessário com o seu primeiro longa de ficção, O Som Ao Redor (2012), que traz muitas cenas dentro do apartamento em que o diretor morou durante muitos anos, o filme é dividido em três partes que sintetizam como as metamorfoses tomam forma. 

Na primeira, o enfoque é justamente esse apartamento, um espaço que passou por muitas transformações ao longo dos anos, tanto em seu próprio raio geográfico quanto em seus arredores. Estabelece-se de maneira orgânica, quase imperceptível — do jeito que grandes filmes costumam operar —, a relação cumulativa e multifacetada que fatores internos e externos têm no processamento de qualquer passagem de tempo. A sutileza, vale dizer, é algo de positivo, pois, em um filme que se volta ao texto narrado, cravar pingos nos is com qualquer tipo de retórica enfática cansaria qualquer um. 

Em nenhum momento, porém, Retratos Fantasmas parece inatingível. Sabe que se fazer de difícil não bateria bem com a gentileza a que o filme se propõe. É mais como se, espargindo um pouco de alma aqui e ali, ele simplesmente deixasse a assimilação para quem quer que esteja assistindo. O realizador conta que “sendo filhos de dois professores de história, a explicação das coisas sempre pareceu interessante, mas não a explicação com autoridade: a sugestão do que talvez as coisas sejam.”

O que acontece nos vizinhos interfere diretamente nas internas do apartamento e o que acontece em cada moradia também ecoa cidade afora. Paisagens urbanas e pessoas, colocadas juntas como um processo simbiótico: é dessa maneira que aquele jovem cineasta — antes, durante e depois da faculdade de Jornalismo —, aparece em alguns momentos, mostrando entusiasmo em criar narrativas dentro de sua casa e sua cidade. Quando um zoom é dado na cara de um Mendonça Filho imberbe (imagina-se que na casa dos 20 anos), o voice over da pessoa que filma diz: “O foco dessa câmera está zero, viu, Kleber”. Há uma leveza que, além de surpreender pela soma de elementos que a priori não deveria desaguar no mar que deságua, também pinta as vestes do filme com cores relacionáveis e deixa tudo mais instigante. A personalidade do diretor, leve por natureza, transparece pela sequência de registros e pela voz recifense que ressoa, o que talvez seja a justificativa para o ótimo resultado inesperado. 

Com a bênção de Agnès Varda, da leveza suave se tira um senso de compreensão dos porquês o cinema, e os cinemas, são tão importantes na vida dele e da cidade retratada com frequência em seus filmes.

A segunda parte, mais voltada para os cinemas, é recheada de gravações antigas de Alexandre, projetista do São Luiz, com quem Mendonça construiu bonita relação. Alexandre executa sua função com destreza, às vezes com métodos próprios — tirar a camiseta para sentir um mínimo de frescor no calor da sala de projeção é um deles —, mas sempre com objetividade. “Por mim, tudo certo”, dizia o projetista sobre suas reações às censuras da Ditadura Militar, “quando acontecia eu voltava para casa mais cedo”. Por essas e outras, é uma personificação carismática, completamente humana, de quem são os cinemas, do que eles representam e do efeito invisível que eles incutem nas pessoas e nas cidades. 

Na seção seguinte, as transformações de muitos cinemas em templos evangélicos ganham a ribalta. Por suas estruturas que se assemelham às de mega-igrejas, muitas salas de Recife (e do Brasil) foram compradas para dar lugar a palacetes de louvor. Apesar do simbolismo que se enxerga na transformação (as salas de cinema sempre foram templos de exaltação divina, certo?), há melancolia na acepção dos fatos. Onde estão os cinemas que tão bem representavam o Brasil, que tão bem refletiam o mundo e os anseios contemporâneos? Aonde foram parar aquelas salas que nos tiravam das ruas somente para, em seguida, com um choque dos bons, nos jogar de volta a elas? Pois bem. Viraram igrejas ou foram substituídos por estacionamentos, símbolos de uma inação epidêmica.

E, então, o epílogo. Muito embora as imagens que aparecem ao longo dos 90 minutos de filme sejam marcantes, o que mais se aloja na memória e na ponta da língua de qualquer discussão posterior é a sequência final, que dissipa os resquícios de melancolia e joga fumaça em cima de tudo. Num momento ficcional, Kleber Mendonça Filho, interpretando ele mesmo, pega um Uber. O motorista que aceita sua corrida é o ator Rubens Santos, que trabalhou também, sempre com eficiência, em O Som Ao Redor, Aquarius (2016) e Bacurau (2019). O diretor lhe diz que está dando um rolê pela cidade para espairecer, olhar ao redor, esvaziar a cabeça antes de deitar, talvez até esquecer que as farmácias espalhadas pelas ruas gritam que a cidade está doente. Ao descobrir que Kleber trabalha com cinema, e adicionar que “cinema é massa”, o motorista diz que tem um superpoder. Tão logo, desaparece. Mas o carro segue em movimento no trânsito de Recife. O volante é guiado por um fantasma que está ali, mas não está ali.

Fantasia e documentário se encontram para dar espaço a um realismo mágico que, enquanto nota dissonante, conclui a sinfonia com uma fantasmagoria humana.

“Eu recebo muito incentivo das pessoas para fazer um filme fantástico, mas a minha sensação é que eu só faço filme fantástico. (…) Com o ‘Retratos Fantasmas’ eu quase fico incomodado com a definição de documentário, porque eu realmente não estava com essa preocupação de ‘estou fazendo um documentário’. E também não quero chamar de filme-ensaio. Não é isso. Também não posso afirmar que é uma ficção, porque, seguindo como o mercado funciona, é difícil dizer. Mas é um filme. Seja lá o que for, é um filme.”

Kleber Mendonça Filho, coletiva de imprensa do 51º Festival de Cinema de Gramado

Godard dizia que “todos os grandes filmes de ficção tendem ao documentário e todos os grandes documentários tendem à ficção”. A frase parece servir como uma luva aos filmes ficcionais e documentais de Kleber Mendonça Filho, que, como em outros momentos de sua carreira, aqui evoca uma beleza que não é autossuficiente e nem espalhafatosa. É um encanto que se faz dos contornos e depende do olhar externo para se fazer completo. 

Cinema São Luiz, anos 1980. Imagem: Divulgação

O que se projeta numa tela está ali e não está ali, são projeções e retratos de algo que já nasce no passado. As pessoas que se foram estão vivas e não estão mais vivas. Dentro de uma casa ou de uma cidade, vivem todos que por ali passam e passaram. O filme de Mendonça Filho é prova disso. É um filme que, tal qual os cinemas, há de nos assombrar por muito tempo.

Do saudosismo, lágrimas. De Retratos Fantasmas, o mais quente frio na nuca. 

A Bienal de Arquitetura de Veneza é uma das premiações mais importantes e tradicionais do setor, sendo reconhecida mundialmente. Sua 18ª edição, inaugurada para o público no último dia 20 de maio, tem como temática central “O Laboratório do Futuro”, com destaque para a influência e a indispensabilidade do continente africano na formação do mundo de amanhã. A exposição internacional, com curadoria de Lesley Lokko, conta com 89 participantes. Já a exposição nacional conta com 63 pavilhões. 

Foto: Murdo MacLeod/The Guardian

“Que impacto terá esta Bienal? Que impacto espera ter? Espero que ressoe, que provoque o público a pensar de forma diferente e talvez com mais empatia sobre aquelas partes do mundo que parecem, à primeira vista, ter pouco a ver com ele, que proporcione momentos de alegria, surpresa e curiosidade” 

— Lesley Lokko, curadora da Bienal de Veneza 2023

E, pela primeira vez na história, o pavilhão brasileiro foi agraciado com o Leão de Ouro de Melhor Participação Nacional. A exposição intitulada “Terra”, vencedora do prêmio, foi organizada por Gabriela de Matos e Paulo Tavares, que com inventividade e apuro teórico estimulam uma reavaliação do passado capaz de projetar o futuro. 

Matos e Tavares propõem uma reflexão sobre a arquitetura ancestral realizada por comunidades quilombolas e indígenas, ao mesmo tempo em que investigam a tese de que Brasília foi construída sobre terras originalmente ocupadas por povos nativos, abordando assim um processo de colonização territorial. O pavilhão contempla o passado, presente e futuro do Brasil, com a terra como tema central de discussão tanto de forma poética quanto concreta no espaço expositivo. Ao cobrir completamente o pavilhão com terra, os visitantes são convidados a entrar em contato direto com as tradições indígenas, quilombolas e com a prática religiosa do Candomblé. A instalação site-specific enaltece a abordagem da terra em todas as suas dimensões.

“Terra” também aborda um futuro pós-mudanças climáticas, um porvir onde os conceitos de “descolonização” e “descarbonização” caminharão juntos, quase como noções interligadas e inseparáveis. Práticas, tecnologias e costumes relacionados à gestão e produção da terra, assim como outras abordagens na concepção e compreensão da arquitetura, são fundamentados na terra e carregam conhecimentos ancestrais para ressignificar o presente e vislumbrar futuros alternativos. Esses futuros não se limitam apenas às comunidades humanas, mas também se estendem às não humanas, caminhando em direção a um futuro planetário.

Foto: Rafa Jacinto/Fundação Bienal São Paulo

Com uma estrutura dividida em duas galerias — “De-colonizando o Cânone” e “Lugares de Origem, Arqueologias do Futuro” —, há uma aproximação entre temas emergentes no contexto brasileiro, como reparação e decolonialidade, e tópicos abrangentes e fundamentais no debate global contemporâneo, como descarbonização e meio ambiente. 

O Ministério da Cultura, que destinou aporte ao projeto, comemorou a vitória. A ministra Margareth Menezes, além de prestigiar a presença brasileira no evento, parabenizou os arquitetos vencedores em suas redes sociais por promoverem a cultura brasileira e proporcionarem aos visitantes uma imersão nas tradições indígenas, quilombolas e na prática religiosa do Candomblé.

Gabriela de Matos é criadora do projeto Arquitetas Negras, que mapeia a produção de arquitetas negras brasileiras e pesquisa o racismo estrutural e suas influências no planejamento urbano. Também é professora da Escola da Cidade, em São Paulo, onde é vice-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil no departamento de São Paulo (IAB-SP). Em 2020, foi premiada como Arquiteta do Ano pelo IAB-RJ. Seus trabalhos pesquisam tanto o racismo estrutural e suas influências no planejamento urbano quanto a arquitetura contemporânea produzida na África e sua diáspora. 

O trabalho de Paulo Tavares abre um campo colaborativo voltado para a justiça ambiental e contra-narrativas na arquitetura, operando através de múltiplas mídias. Seus projetos foram apresentados em várias exposições e publicações em todo o mundo, incluindo Harvard Design Magazine, The Architectural Review, e a Bienal de Arte de São Paulo. Além disso, foi co-curador da Bienal de Arquitetura de Chicago 2019 e faz parte do conselho curatorial consultivo da Bienal de Sharjah 2023. No Brasil, lidera a agência de defesa espacial autônoma e leciona na Universidade de Brasília.

Leia nossa conversa com Gabriela e Paulo:

Foto: Matteo de Mayda/Courtesy La Biennale di Venezia/dpa/picture alliance

Do ponto de partida “Laboratório do Futuro”, como chegar à ideia de explorar a arquitetura ancestral realizada por quilombolas e indígenas no pavilhão “Terra”?

Um conceito que sempre foi crucial para nosso projeto é a ideia de que “o futuro é ancestral”, elaborada por Ailton Krenak e o movimento indígena. Há algo de muito profundo nesta ideia do ponto de vista do design, do desenho da paisagem, da produção de uma arquitetura da terra, por assim dizer, terra como chão e planeta. É amplamente comprovado cientificamente — e também através de certificados patrimoniais como recentemente laureado ao Quilombo Kalunga pela UNESCO — que os saberes e as tecnologias de produção e reprodução da paisagem cultivados através de gerações por povos originários e povos africanos diaspóricos são cruciais para enfrentar a encruzilhada existencial que se impõe à espécie humana frente a crise climática global. Por isso olhamos para estes espaços e práticas como tecnologias do futuro, tecnologias ancestrais e ao mesmo tempo radicalmente contemporâneas. 

Foto: Rafa Jacinto/Fundação Bienal São Paulo

Qual foi o processo de pesquisa envolvido na coleta de informações sobre a arquitetura ancestral e sua relação com a colonização territorial em Brasília?

“Coleta de informações” é um termo ruim. O que tentamos fazer, com todas as dificuldades e limitações de um projeto desenvolvido em prazo tão curto, foi estabelecer relações com entidades e lideranças das comunidades e povos que são os autores das arquiteturas apresentadas no pavilhão. Por exemplo, o Terreiro da Casa Branca, as Tecelãs do Alaká, a FOIRN — Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, entre outros. São muitas gentes (sic) e terras que fizeram este pavilhão, a quem agradecemos por compartilhar deste projeto. E também tentamos entender de que maneira o projeto da bienal poderia estar em aliança com o contexto político destas comunidades e organizações. 

Por exemplo, o filme de Day Rodrigues, O Corpo da Terra, uma comissão da curadoria, fala das ameaças ao patrimônio do Terreiro da Casa Branca, em Salvador, primeiro patrimônio negro tombado no Brasil, que nos últimos anos tem visto suas terras ameaçadas pela especulação imobiliária e total descaso do poder público em preservar este patrimônio. Um outro exemplo é o modelo digital da Cachoeira do Iauaretê, desenvolvido em parceria com a FOIRN e a BrTech, que utiliza técnicas sofisticadas de preservação patrimonial digital. Esperamos que estes materiais possam ter uma agência para além de Veneza, fortalecendo a agenda de reconhecimento e proteção destes patrimônios culturais. 

Quais foram os principais desafios enfrentados ao propor uma reflexão sobre o passado para projetar o futuro na exposição? Em especial, como alcançar uma mensagem universal a partir das especificidades contidas no pavilhão “Terra”, como as reflexões sobre Brasília?

Acho que é importante salientar que, apesar de estarmos olhando para questões memoriais, questões relativas à memória e ao patrimônio, não estamos falando do passado no sentido de algo remoto, distante, passado em termos literais. Estamos falando de questões muito contemporâneas, que, sim, certamente refletem sobre a história, mas uma história muito presente. Por isso também não falamos de “arquitetura vernacular” ou “arquitetura tradicional”, ou mesmo “arquitetura popular”, para designar as espacialidades originárias e diaspóricas do Brasil. Estes conceitos são, em muitos sentidos, legados de um sistema colonial de classificação da arquitetura elaborado pela modernidade, que desafiamos no pavilhão através de diferentes camadas e narrativas. Talvez um termo mais adequado seja “arquiteturas ancestrais”, no sentido projetivo que a frase “o futuro é ancestral” de Ailton Krenak carrega. 

Sobre “como alcançar uma mensagem universal”, como você pergunta, achamos que a universalidade da mensagem está justamente no fato de que o pavilhão trata de questões e práticas locais, situadas e históricas, práticas do chão e do solo, mas que assumiram uma dimensão política global, propriamente planetária frente a crise climática, da terra à Terra. Além disso, questões sobre a de-colonização de narrativas canônicas e reparação histórica que abordamos no pavilhão são questões que estão na ordem do debate arquitetônico e artístico contemporâneo mundialmente. Considere, por exemplo, todo o debate sobre a restituição de objetos de arte pilhados de territórios colonizados que hoje encontram-se nos museus europeus, ou o debate sobre a reparação memorial que surgiu com o movimento Black Lives Matter, e explodiu em manifestações mundo afora em 2019. O pavilhão fala sobre o Brasil, mas o Brasil também como epicentro deste movimento global antirracista e de-colonial. 

Foto: Rafa Jacinto/Fundação Bienal São Paulo

Quais foram as reações e feedbacks que receberam dos visitantes da exposição? Houve algum ponto de destaque ou surpresa?

Ficamos muito contentes com a conexão do público com a exposição, especialmente o público não especializado em arquitetura. Parece haver uma relação afetiva com a terra e o chão de terra instalado no pavilhão que traz questões mais amplas sobre nosso futuro, através da arquitetura, mas para além de seu nicho disciplinar. Antes da abertura estava muito úmido em Veneza, havia chovido por dias, e a instalação de terra preservou esta umidade, exalando um cheiro de terra batida molhada por todo o edifício. Criou-se uma atmosfera sensível com a terra, não apenas no nível da representação dos projetos expostos, mas da própria experiência espacial imersiva, da experiência arquitetural do pavilhão. Como escrevemos no catálogo, ao fazer uma crítica às narrativas hegemônicas do modernismo, principalmente através de Brasília na primeira sala, não poderíamos deixar de considerar que o edifício do pavilhão brasileiro no Giardini, uma obra do arquiteto modernista Henrique Mindlin, não é um objeto neutro, dissociado das narrativas e ideologias que sua arquitetura carrega. Logo esta instalação site-specific em diálogo crítico com a arquitetura patrimonial do pavilhão no Giardini, que chamamos de “aterramento”, aterrando o edifício sobre o chão de terra batida. 

De que maneira vocês enxergam a interseção entre arquitetura e questões climáticas no contexto da exposição “Terra”?

Existem vários aspectos onde a articulação entre os termos “de-colonizacão” e “de-carbonização” colocada pela curadoria de Lesley Lokko aparece na exposição. Mais explicitamente no reconhecimento de que saberes e tecnologias indígenas e negras, manifestas em espaços como terreiros, territórios indígenas e territórios quilombolas, apontam caminhos para o enfrentamento da crise climática global de maneira igualitária e sustentável. Veja uma coisa interessante: os espaços de terreiros em Salvador tornaram-se verdadeiras “ilhas ecológicas” em meio à expansão urbana predatória e muitas vezes ilegal (este é o atual conflito enfrentado pelo Terreiro da Casa Branca, que faz parte da exposição, que é o primeiro monumento negro tombado no Brasil e está sob constante risco da especulação imobiliária). Aqui encontramos um saber/fazer de espaços — liderados por mulheres negras identificado por Gabriela de Matos como a origem da arquitetura afro-brasileira — que nos parece fundamentalmente atual para lidar com as mais prementes questões urbanas e ecológicas contemporâneas.

Como vocês vêem o reconhecimento do governo brasileiro, representado pela ministra Margareth Menezes, em relação ao prêmio conquistado pelo pavilhão brasileiro? Vocês acreditam que esse reconhecimento reflete uma mudança de postura em relação ao incentivo à cultura no país?

Ficamos honrados com a presença da ministra Margareth Menezes no evento de abertura do pavilhão. Em seu discurso, Margareth Menezes fez uma leitura sobre o significado do projeto curatorial de Terra para o Brasil contemporâneo. Não é coincidência que este prêmio venha neste momento. O Brasil passa por um momento de reconstrução, de reparação, temas centrais do projeto curatorial. De certa maneira, o Leão de Ouro vir para o Brasil neste momento simboliza uma reparação pelo desmonte ao incentivo cultural dos últimos quatros anos.   

Quais desafios vocês enfrentaram, especialmente no período de gênese do projeto, para realizar a exposição Terra em um contexto em que a cultura foi pouco incentivada? Como pensar além e superar desafios para alcançar o reconhecimento internacional?

Os desafios foram muitos e vieram em escalas diversas. Desde a distância entre nós, pois moramos em cidades e estados diferentes; a dificuldade de, institucionalmente, se entender um projeto que estabeleceu pontos de partida propondo outros cânones, isto é, a partir de epistemologias pretas e indígenas; e, por fim, projetar algo que faz reverência a nossa cultura ao mesmo tempo que não tínhamos, no momento que iniciamos o projeto (out 2022), um departamento em âmbito nacional que estivesse apoiando o campo. No entanto, a presença da Ministra Margareth Menezes na abertura do pavilhão em Veneza afirma o compromisso de sua gestão com uma proposta como a nossa.

Foto: Rafa Jacinto/Fundação Bienal São Paulo

Com esse prêmio histórico, joga-se uma luz sobre o desafio de questionar, ou ao menos ampliar, as narrativas canônicas e expandir assim a compreensão sobre a formação do território brasileiro. Em termos práticos, o que mais pode ser feito para chegar lá?

Em termos práticos, a principal questão é política. As narrativas, imagens e imaginários de outras histórias, memórias, patrimônios, arquiteturas. Tudo isso é fundamental, e também fundamentalmente político, mas não é suficiente. No momento em que esse prêmio histórico chega ao Brasil, reconhecendo as práticas espaciais e territorialidades dos povos originários na Bienal de Arquitetura de Veneza, um dos mais importantes fóruns da arquitetura mundial, vemos um retrocesso absurdo, a continuidade da violência colonial por outros meios, através da aprovação, ocorrida hoje, ao tempo desta escrita, da PL490, que adotou a tese do “marco temporal” na demarcação de terras indígenas. 

O Leão de Ouro nos faz refletir sobre uma questão crucial de um Brasil em reconstrução, um Brasil que deve olhar para sua história como horizonte de um outro possível futuro. Como as políticas de reparação serão implementadas para além de uma questão simbólica, mas sim acompanhadas de ações que garantam os direitos dos povos a terra? Em muitos sentidos, o horizonte político de nosso projeto curatorial Terra é sobre isso, através e além da arquitetura. 

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Políticas públicas: como são (ou deveriam ser) feitas

Ao término dos primeiros 100 dias do novo governo Lula, completados no último 10 de abril, é natural que se faça um levantamento mais detalhado do que foi e do

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O hidrogênio verde representa inúmeras oportunidades para o Brasil (e mundo). Por mais incrível que pareça, a despeito do contumaz projeto antiambientalista do governo Bolsonaro, nos vemos de novo como o epicentro de um possível amanhã renovável. Em um momento crucial para o futuro, ou o não-futuro, da humanidade, em tempos que clamam por mudanças reais no mais emergencial dos tons, os olhos sempre parecem se voltar ao país que abriga a maior biodiversidade do planeta.

Foto de Soonthorn Wongsaita | Shutterstock

Fica a questão: conseguimos bancar a responsabilidade? Na verdade, há quem queira bancar isso por nós — ou “nós”, com aspas de ironia, já que sempre existe uma parcela de interesse próprio no jogo da política. 

Hidrogênio verde (e de outras cores)

O hidrogênio é o elemento químico mais abundante e leve, além de possuir o maior valor energético. No entanto, raramente é encontrado de forma isolada na natureza. Pode ser obtido a partir de diversas fontes de matéria-prima, sendo utilizado em diferentes aplicações energéticas e não-energéticas. Se produzido a partir de fontes renováveis de energia, é fundamental para a redução de emissões de gases de efeito estufa, mas nem sempre é assim. Nas denominações por cores, que vão de acordo com as suas fontes primárias de energia, tem-se as seguintes classificações:

Hidrogênio preto: produzido por gaseificação do carvão mineral (antracito), sem CCUS (sigla inglês para Captura, armazenamento e utilização do carbono).

Hidrogênio cinza: produzido por reforma a vapor do gás natural, sem CCUS.

Hidrogênio marrom: produzido por gaseificação do carvão mineral (hulha), sem CCUS.

Hidrogênio branco: produzido por extração de hidrogênio natural ou geológico.

Hidrogênio musgo: produzido por reforma catalíticas, gaseificação de plásticos residuais ou biodigestão anaeróbica de biomassa, com ou sem CCUS.

Hidrogênio turquesa: produzido por pirólise do metano, sem gerar CO2.

Hidrogênio rosa: produzido com fonte de energia nuclear.

Hidrogênio azul: produzido por reforma a vapor do gás natural (eventualmente, também de outros combustíveis fósseis), com CCUS.

Não é necessária uma análise profunda para perceber que, na maioria das vezes, se trata de um processo poluente, tido como “sujo”. 

Além desse arco-íris, que, em seu fim, apresenta um pote de tesouro contaminado, há o hidrogênio verde (H2V), hoje em dia a grande menina dos olhos dos países que se preocupam em cumprir metas de descarbonização. Diante de tantos hidrogênios que não utilizam o processo de captura de carbono antes que ele vá para a atmosfera, não surpreende que o H2V seja tão cobiçado. Produzido a partir da eletrólise da água (processo que utiliza a corrente elétrica para separar o hidrogênio do oxigênio da molécula de água), com baixa ou nula intensidade de carbono, o hidrogênio verde utiliza energias renováveis para a sua produção, como a solar, hídrica ou eólica. Ou seja, ele é obtido sem emissão de CO2 — uma frase simples, mas rara, que faz com que as espinhas de ambientalistas se arrepiem de prazer. Um de seus poréns é a alta demanda de energia, sendo, portanto, mais caro. Por isso, é essencial que a fonte dessa energia seja limpa. 

No Brasil, por exemplo, em regiões com estações tanto de muito sol quanto de muita chuva, existem pontos com grande aberturas para a produção de energia eólica. No contexto da descarbonização do planeta em uma busca por maior sustentabilidade, ele pode ajudar o país a reduzir suas emissões de gases de efeito estufa e atingir suas metas climáticas.

Geopolítica em jogo

É sabido nos quatro cantos do planeta que o Brasil é um dos maiores produtores de energia renovável do mundo, dono de um imenso potencial para produzir hidrogênio verde em larga escala. Sabe-se também que esse hidrogênio pode ser usado como uma fonte de energia para setores como transporte, indústria e geração de energia elétrica, o que impulsionaria em qualquer lugar o desenvolvimento de novas tecnologias e negócios. É por essas e outras que tem ocorrido uma espécie de “corrida por ouro”, sendo o ouro aqui mais verde do que brilhante. E o papel brasileiro nessa história é de suma importância, ficando com uma função ativa central que não se resume à submissão, afinal a produção e a exportação caminham juntos: a exportação de hidrogênio verde para outros países é de grande interesse, pois pode se tornar uma importante fonte de receita para o Brasil, uma vez que há uma crescente demanda global por combustíveis limpos e renováveis.

Um estudo da BloombergNEF projeta a terra brasilis como uma das únicas capazes de oferecer hidrogênio verde a um custo inferior a um-dólar-por-quilo até 2030. E mais: se a leitura for a longo prazo, pensando no ano de 2050, essa cifra pode cair para US$0,55/kg. Para viabilizar esse cenário tão promissor, segundo estimativas, o país precisará investir alto na indústria — algo em torno de 200 bilhões de dólares até 2040. E é aí que a Alemanha entra em cena.

Os europeus como um todo, mas sobretudo a Alemanha, estão de olho na energia limpa que o Brasil tem de sobra. Não por um acaso, o principal motivo da visita ao Brasil do chanceler alemão, Olaf Scholz, foi a viabilização da produção do hidrogênio verde. Essa presença germânica calorosa visa um objetivo claro: ter de quem comprar, com prioridade, o hidrogênio limpo tão importante para o futuro do mundo. Isso porque, por lá, é inviável pensar em uma produção dessas por conta própria. Para além do comprometimento louvável com a descarbonização, outro fator que tem grande influência nessa movimentação alemã é a guerra da Rússia contra a Ucrânia. O conflito, que já ocorre há mais de um ano, virou também uma ameaça à segurança energética alemã, que acelera o processo de transição rumo a fontes renováveis, já que tinha sua economia altamente dependente do gás russo, que, certa feita, foi barato.

A Alemanha desponta como provável solução também na possível problemática do transporte. Para que o Brasil se torne um grande exportador, algumas inovações logísticas ainda são necessárias. Para ser transportado em forma gasosa, o H2V requer muita pressão. Em forma líquida, é preciso resfriá-lo a -253 °C. Uma das alternativas é transformar o combustível limpo em amônia, NH3, pois assim o nitrogênio é capturado do ar, e a amônia pode ser transportada de 12°C a 15°C. Quando chegar ao destino, caso o produto precise ser convertido novamente em hidrogênio verde, mais energia será gasta no local para essa transformação. Por esse motivo, uma das possibilidades em discussão é fazer no Brasil o beneficiamento de matéria-prima que seria exportada e transformada na Alemanha, como minério de ferro. Em vez de consumir a energia alemã para fabricação do aço, o processo ocorreria no Brasil movido a H2V.  

Nordeste: estrela da companhia

Nessa história toda, quem mais tem a oferecer é o Nordeste. No final de 2023 — ou, no mais tardar, no começo de 2024 —, a região sediará a primeira fábrica de hidrogênio verde do Brasil, no Polo Industrial de Camaçari, na Bahia. Nada poderia representar mais o potencial grandioso que o Nordeste tem na cadeia produtiva de hidrogênio verde. O estudo Mapeamento das Cadeias de Mobilidade, sobre o hidrogênio verde no panorama energético do Brasil e do mundo, aponta os caminhos: o perfil de geração elétrica da região do Nordeste — com 84% de fontes renováveis — coloca esses nove estados em posição de vantagem, já que a eletricidade renovável é chave para a produção do H2V. 

Reprodução: Energix Energy

Hoje, cerca de 49% da eletricidade do Nordeste é eólica onshore (cujas turbinas são instaladas em terra). Enquanto os estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Bahia, Pernambuco e Piauí possuem projetos para a instalação de hubs de hidrogênio verde, integrados a projetos de eólicas offshore (turbinas instaladas no mar). De acordo com o estudo, esse cenário geral diminui os custos iniciais do investimento e reduz as possíveis perdas energéticas.

Se é verdade que, como diz o outro, não se consegue escapar da responsabilidade de amanhã esquivando-se dela hoje, presentemente o Brasil tem a faca e o queijo na mão. Se o talher alemão é pontiagudo demais e o alimento, apesar de vistoso, eventualmente dará indigestão, logo saberemos. O que se sabe, ou o que se projeta, é que, de acordo com a Wood Mackenzie, o Brasil responderá por cerca de 6% do suprimento total de H2V do mundo até 2050, com o mercado ganhando escala após 2030. 

Portanto, que se tenha em mente esse verbo estranho, muito mais forte a cada ano que passa: descarbonizar. Esse é o caminho. E o Brasil, ao que tudo indica, se os ventos baterem a favor de um futuro mais verde, levará o mundo até lá.

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O que significa consciência de classe no Brasil?

O termo “consciência de classe” foi cunhado no início do século XIX pelo filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel e posteriormente popularizado pelos pensadores socialistas Karl Marx e Friedrich Engels. Para Hegel, a consciência de classe se referia à compreensão que os indivíduos têm de si mesmos como

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Do que é feita uma democracia participativa?

Tanto Israel quanto a França vêm sendo palco de manifestações populares relevantes, cada semana mais divulgadas pelos noticiários ao redor do mundo. Em Israel, as reivindicações gritam contra a reforma judicial proposta pelo primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu; na França, a voz popular está contra a reforma da Previdência, uma

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O termo low profile ganhou as redes recentemente. Ele se refere àquelas pessoas que fazem poucas publicações e/ou usam as redes sociais com uma baixa frequência por vontade própria. Sabemos que os brasileiros são campeões em passar tempo conectados às redes sociais: a consultoria alemã Statista realizou uma pesquisa que mostrou o Brasil como o segundo país que mais utiliza o TikTok, ficando atrás somente da China, país de origem do aplicativo. Pesquisas mostraram também que a pandemia da covid-19 acelerou a digitalização: várias pessoas passaram a estudar e trabalhar em suas próprias casas.

Analisando esses dados e contextos, parece que todos os brasileiros têm acesso à internet, porém, o estudo do Instituto Locomotiva e da consultoria PwC identificou que 33,9 milhões de pessoas estão desconectadas, e 86,6 milhões não conseguem se conectar todos os dias. Esses grupos são formados principalmente por pessoas negras, que estão nas classes C, D e E e que são menos escolarizadas. Em 2019, cerca de 4,3 milhões de estudantes brasileiros não tinham acesso à internet por diversos motivos, entre eles a falta de dinheiro para contratar uma prestadora de serviço ou até mesmo de comprar um aparelho adequado.

Quando questionamos o fato de uma pessoa não existir pelo fato dela não ter presença online, precisamos questionar o que é a presença online. É compartilhar momentos pessoais? É criar conteúdo? É compartilhar músicas?

Atualmente, tudo está sendo digitalizado ― carteira de identidade digital, cardápio via QR Code, pagamento via PIX ―, trazendo praticidade para o dia a dia, mas é importante entendermos que ter acesso à tecnologia, conseguir pagar uma conta via PIX, ir ao restaurante e conseguir acessar o QR Code não é a realidade de muitos brasileiros. Infelizmente, ter acesso à internet ainda é um privilégio, e a pandemia deixou isso escancarado.

Com a pandemia, as aulas passaram a ser de forma remota. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostrou que dos mais de três milhões e meio de estudantes sem acesso à internet em 2021, quase 95% eram estudantes de escolas públicas, e 193 mil alunos dos alunos sem acesso à internet, ou 5,3%, eram de escolas privadas.

Além disso, é importante ter consciência de que o acesso descontrolado e sem supervisão (dependendo da idade) afeta a saúde mental dos usuários. Em 2019, o Instagram removeu o número de likes das publicações, e até hoje existe a opção de ocultar esses números nos seus posts e vídeos, assim, os usuários não conseguem ver quantas curtidas uma foto teve, o que auxilia no combate à comparação, algo que é muito presente nas redes sociais.

Muitas pessoas passam a viver suas vidas pelas redes sociais, não conseguindo se desconectar por medo de perderem algo, chegando a sofrer crises de ansiedade. Além disso, existe uma cobrança surreal para ter o corpo da influenciadora X, a casa da artista Y e, atualmente, podemos perceber que existem “influenciadores” que são um desserviço à sociedade, pois estão focados apenas em vender produtos e ganhar comissões através dos seus links, e esquecem que atrás de cada número entre os seguidores existe uma pessoa que é influenciada pelo conteúdo postado. Também enfrentamos um movimento forte e destruidor que são os famosos haters, pessoas que não querem apenas apontar os erros e ver a evolução da pessoa que foi cancelada; os haters de plantão querem destruir a vida da pessoa, querem acabar com suas carreiras e fazer de tudo para que a pessoa que está sendo cancelada chegue ao seu limite de sanidade mental.

Quando olhamos para essa prática do cancelamento nas redes sociais, é preciso entender que os cancelamentos de uma pessoa preta e de uma pessoa branca se dão de formas diferentes e desproporcionais. Por que pessoas pretas não podem errar e aprender com os seus erros? Esse privilégio é só dos brancos?

Temos diversos lemas quando falamos sobre a internet e as redes sociais. Temos brasileiros sem acesso à internet e que nem possuem um smartphone, ao mesmo tempo em que temos pessoas que preferem não estar ativas na internet e pessoas que estão sofrendo de forma absurda, que estão dispostas a encerrar a vida por causa de um hater que faz sofrer ou até mesmo por um comentário negativo em uma foto.

Antes de discutirmos se uma pessoa existe ou não por ser ausente nesse universo virtual, temos que garantir que todos tenham acesso a uma internet de qualidade. Temos que incluir todas as pessoas nesse processo de digitalização, precisamos sair das nossas bolhas sociais e perceber que temos muito o que fazer. Precisamos levar informação, tecnologia e oportunidades para as favelas do Brasil. Além disso, é necessário encontrar um equilíbrio entre a utilização da internet e a saúde mental, e conscientizar as pessoas sobre os limites dentro das redes sociais.

Afinal, a solução de uma doença pode estar na mente de um jovem preto, de favela e que não tem acesso à internet.

#44O que me faltaCulturaSociedade

De tanto que sobra, falta

“Se não tem pão, que comam brioches!”

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O descontentamento da população brasileira com a educação do país não é novidade. É desses problemas históricos, tomados quase como aspecto da identidade nacional, que se agravaram nos 4 anos de governo Bolsonaro. Para além das pesquisas que mostram essa insatisfação — como, por exemplo, o estudo Retratos da Sociedade Brasileira – Educação Básica, realizado anualmente desde 2006 pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) em parceria com o Ibope Inteligência —, a descrença nas instituições que cuidam do setor pode ser sentida nos mais distintos contextos sociais, sendo palpável em diálogos rotineiros, dos que acontecem enquanto se chucha o pãozinho ou a bolacha no café. A maioria, mesmo a parcela que desfruta dos privilégios de bancar o ingresso dos filhos em instituições que dispõem de mais recursos, concorda que algo precisa mudar. Mas, no Brasil, o que isso significa? As mudanças, afinal, podem acontecer em diversas frentes. Qual seria a principal ordem do dia? Equipar melhor as escolas, aumentar a segurança, estimular a participação dos pais, melhorar a gestão…? Ou a melhor pedida seria, então, uma reforma dos métodos de ensino?

Nos últimos anos, com a aprovação de um Novo Ensino Médio, essa última abordagem virou motivo de celeuma. 

O que é o novo ensino médio?

A Reforma do Ensino Médio Brasileiro é um conjunto de mudanças para o sistema educacional do país, propostas pelo Governo Federal. Aprovada em 2017, com Michel Temer na presidência, a reforma teria como objetivo modernizar o currículo escolar, tornando-o mais flexível e permitindo que os estudantes pudessem escolher as disciplinas que desejam estudar de acordo com suas preferências e interesses. Entre as principais mudanças propostas, estão a ampliação da carga horária anual, a possibilidade de escolha de itinerários formativos, a inclusão de disciplinas importantes — lê-se Filosofia, Sociologia, Educação Física e Artes — como obrigatórias e a flexibilização dos horários para que os alunos possam estudar em tempo integral.

A Reforma, claro, tem gerado debates e controvérsias desde sua aprovação, com críticos apontando que as mudanças foram implementadas sem a devida discussão com a sociedade e com a comunidade escolar, além de questionarem a falta de recursos para sua implementação efetiva. A implementação tem sido um processo bastante complexo e desafiador, em especial pela adaptação das escolas e dos professores. Muitos deles relatam a falta de formação específica para lidar com algumas mudanças propostas, isso para não falar da falta de recursos para a elaboração de novos materiais didáticos e a realização de atividades extracurriculares.

Alguns estados, como São Paulo, já têm pensado em fazer mudanças. O governo paulista estuda reduzir as opções de formação específica para poder dar mais apoio às escolas. 

O Novo Ensino Médio começou a ser implementado no Brasil a partir de 2019, quando foram definidas as primeiras diretrizes curriculares para as escolas. Desse momento adiante, as escolas começaram a elaborar seus projetos pedagógicos de acordo com as novas orientações curriculares. A implementação é gradual e está sendo feita de forma escalonada, de acordo com as condições de cada escola e rede de ensino. Isso significa que, em alguns casos, a implementação do novo ensino médio leva mais tempo para acontecer completamente.

Milan Puh, docente da Faculdade de Educação (USP), acredita no efeito negativo que isso pode ter:

“Os estados e municípios têm limitações orçamentais e, também, de recursos humanos para oferecer uma gama maior de disciplinas e itinerários formativos, pode se esperar um efeito adverso à expectativa de ter jovens adultos preparados para o mundo altamente mutável e instável, uma vez que lhes pode faltar uma visão panorâmica e estrutural de como o mercado e a sociedade funcionam.”

Faculdade de Educação da USP.

A pandemia trouxe desafios adicionais para a implementação, uma vez que muitas escolas tiveram que adotar o ensino remoto e precisaram adaptar seus projetos pedagógicos às circunstâncias. Mesmo assim, apesar das dificuldades adicionais, as escolas e redes de ensino continuaram trabalhando para implementar as novas diretrizes curriculares e tornar o ensino médio mais adequado às necessidades e interesses dos estudantes.

Uma reforma como essa não acontece da noite para o dia. Ela ainda está em curso e enfrenta muitos desafios. É necessário que sejam tomadas medidas efetivas para garantir que as mudanças propostas sejam implementadas de forma adequada e com qualidade.

OS PRÓS E OS CONTRAS

O caso demonstra toda a complexidade do sistema educacional brasileiro. Há muitas nações dentro do país que chamamos de Brasil, com uma infinidade de realidades e subjetividades. Cada medida de escala nacional, portanto, deve estruturar diretrizes para possibilitar a melhor implementação possível. Ainda que bem intencionada e visando melhorar um problema latente, se não for pensada nos mínimos detalhes, uma reforma pode se virar contra si mesma. O Novo Ensino Médio é uma solução ou um tiro no pé?

Ele, de fato, responde a algumas angústias clássicas. Para começar, ele permite uma maior flexibilidade do currículo, fugindo daquele esquema tão engessado, e possivelmente traumatizante, que conhecemos. Um dos principais objetivos da proposta é dar aos estudantes alguma autonomia para escolher as disciplinas que desejam estudar, indo de acordo com suas preferências e interesses. O processo de aprendizagem, assim, fica bem mais atraente e significativo para eles, podendo até dar uma visão mais abrangente de suas atividades no mercado de trabalho.

Outro ponto é a ampliação da carga horária, com a qual abre-se a porta para um maior aprofundamento nos conteúdos estudados e contribuir para uma formação mais completa dos estudantes e a inclusão de disciplinas importantes, que contribuem para uma formação mais ampla e para o desenvolvimento de habilidades socioemocionais.

Mas, é bem verdade, ela também esbarra em questões que são igualmente clássicas. 

Uma delas, talvez a principal, é a falta de diálogo com a sociedade e a comunidade escolar. A discussão não incluiu os principais partícipes da história, de maneira tal que a elaboração das mudanças acaba sendo consideravelmente menos efetiva do que poderia ser. A ausência quase ingênua de reconhecimento das desigualdades regionais é um exemplo disso. Caso o diálogo fosse tão abrangente quanto deveria, isso logo seria reconhecido e aplicado de maneira prática nas medidas. A flexibilização do currículo, por exemplo — a priori, um ponto de mudança que soa positivo —, pode acabar ampliando a desigualdade social, uma vez que nem todas as escolas possuem a infraestrutura necessária para oferecer as diferentes disciplinas e áreas de concentração. Mais uma vez, reverberando o que já acontece na sociedade de uma maneira geral, a mudança benéfica se restringe principalmente às camadas mais abastadas. 

A implementação da reforma demanda recursos financeiros e formação específica dos professores para lidar com as mudanças propostas, o que nem sempre tem sido garantido pelo poder público.

“O que a discussão sobre o ‘Novo’ Ensino Médio nos lembra”, comenta Milan Puh, “é a dificuldade de implementação de determinadas políticas para o contexto das vastas diferenças e desigualdades brasileiras, fazendo com que a não-implementação seja razão de novas reformas para ‘corrigir’ aquilo que nem chegou a ser efetivamente implementado. Esse tipo de ocorrência não é nova, pois tivemos propostas semelhantes, dentro do seu momento histórico, nos anos 1940 e 1970, sendo essa uma tendência cíclica no nosso país. Querer reformar um sistema que ainda não consegue se consolidar, tende a aprofundar os problemas duplamente, tanto pela dificuldade de ‘resolver’ os problemas antigos quanto por acarretar novas questões que podem se transformar em empecilhos para a efetivação de um bom ensino.” 

“As reformas que se pretendem ‘universais’, ‘atuais’ ou ‘inovadoras’, muitas vezes costumam padecer de dificuldades em entender a particularidade de cada instituição escolar e espaço que atende; circunstâncias históricas que afetam o modo como o novo modo de ensino se concretizará; e reciclagem de ideias já testadas que ocorre ao pensar propostas que se estabelecem em oposição ao que vinha anteriormente.” 

O governo Bolsonaro e o descaso com a educação

Jair Bolsonaro sempre demonstrou que o investimento na educação não era uma de suas prioridades. De acordo com o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em 2021 o gasto público com a educação atingiu o menor patamar desde 2012. Seus esforços, na verdade, pareciam mais direcionados à desvalorização do Magistério Público e da estrutura educacional. As retiradas sistemáticas de dinheiro no ministério desde 2019 reduziram em 80% o gasto federal com a construção de creches e pré-escolas. A lista que explicita o viés anti-educação é longa: escândalos de corrupção, ataques às universidades públicas, cortes de recursos, corrupção no Ministério da Educação (MEC), guerra ideológica nas escolas, abandono da educação do campo, o orçamento secreto… Chega a ser impressionante constatar que esses são apenas alguns dos desastres da política educacional da gestão do ex-presidente. 

E nada poderia representar melhor esse desleixo — algo que, somado ao período de pandemia, levou a educação do Brasil aos piores índices dos últimos anos — do que a troca não de um, não dois, não de três, mas de cinco ministros da educação. Lembra deles? 

  1. Ricardo Vélez Rodríguez (1º de janeiro de 2019 a 8 de abril de 2019) — Filósofo colombiano naturalizado brasileiro, foi o primeiro ministro da educação do governo Bolsonaro. Sua gestão foi marcada por controvérsias e polêmicas, como a tentativa de retirada de trechos sobre ditadura militar nos livros didáticos.
  2. Abraham Weintraub (8 de abril de 2019 a 20 de junho de 2020) — Economista e professor universitário, assumiu a pasta em abril de 2019. Sua gestão também foi conturbada, marcada por declarações polêmicas e críticas a universidades públicas. Ele deixou o cargo para assumir um posto no Banco Mundial.
  3. Carlos Decotelli (25 de junho de 2020 a 30 de junho de 2020, se formos generosos) — Economista e professor universitário, foi nomeado em junho de 2020, mas acabou deixando o cargo antes mesmo de tomar posse. Isso ocorreu após denúncias de que ele teria incluído informações falsas em seu currículo.
  4. Milton Ribeiro (10 de julho de 2020 a 28 de março de 2022) — Teólogo e pastor presbiteriano, buscou implementar medidas voltadas para o ensino técnico e a educação básica, além de ter anunciado a criação de um novo programa de inclusão de estudantes em situação de vulnerabilidade. Em 2022, pediu exoneração após denúncias de envolvimento no esquema de corrupção chamado de “Bolsolão do MEC”.
  5. Victor Godoy (29 de março de 2022 a 31 de dezembro de 2022) — Engenheiro e servidor público, ficou marcado pelos cortes substanciais na verba do MEC.

Contabilizar os cortes somente de 2022, ocorridos sob a batuta de Victor Godoy, é assustador. Com a justificativa de atender ao teto de gastos, o governo federal determinou em maio o corte de 3,2 bilhões do orçamento do MEC, o que afetou 14,5%  das políticas da pasta, universidades, institutos federais e órgãos como o Inep. Em outubro, mais 2,4 bi foram cortados do MEC.

Métodos de ensino ao redor do mundo

Existem diferentes formatos de ensino médio ao redor do mundo, que variam entre si. Em muitos países, o ensino médio é focado na preparação dos estudantes para o ingresso na universidade, com um currículo bastante rigoroso e exigente. Já em outros, ele é voltado para a formação profissional, incluindo disciplinas técnicas e práticas que visam preparar os estudantes para o mercado de trabalho. Mesmo as habilidades socioemocionais também servem de foco para alguns métodos, que trabalham com um currículo que inclui disciplinas como Filosofia, Psicologia e Educação Física, uma combinação que pretende desenvolver a liderança, a empatia e a resolução de problemas. 

Se a tapeçaria político-social de uma nação se voltar para ideias que valorizem a formação humana por meio da arte, o desenvolvimento das habilidades artísticas e culturais dos estudantes será prioridade. Nesses casos, o currículo pode incluir disciplinas como Artes, Dança e Teatro. Em alguns países, o ensino médio é organizado em torno de projetos interdisciplinares, que permitem aos estudantes explorar diferentes áreas do conhecimento de forma integrada. Nesses casos, o currículo é bastante flexível e permite aos estudantes escolher os projetos que desejam desenvolver. É tudo uma questão de abordagem e encaixe. 

E quanto aos cinco maiores PIBs do mundo? Nos Estados Unidos, o currículo é definido pelos governos locais, com estudantes tendo a opção de escolher disciplinas eletivas, que variam de acordo com a oferta da escola. Na China e no Japão, o ensino médio obrigatório dura três anos e tem um currículo bastante rigoroso, mesmo que os estudantes também tenham a opção de escolher algumas disciplinas eletivas, como Música e Arte. Já na Alemanha, o ensino médio é dividido em dois tipos: o Gymnasium, voltado para a preparação dos estudantes para o ensino superior, e a Hauptschule, voltada para a formação profissional dos estudantes. O currículo inclui disciplinas como Matemática, Ciências, Línguas e Estudos Sociais. No Reino Unido, o ensino médio é dividido em duas etapas: o GCSE (General Certificate of Secondary Education), que dura cinco anos e é obrigatório, e o A-level (Advanced Level), que é opcional e prepara os estudantes para o ensino superior. O currículo inclui disciplinas como Matemática, Ciências, Línguas e Estudos Sociais.

É interessante, e importante, notar que cada país segue diretrizes de ensino que vão de acordo com suas próprias tradições e realidades, como aponta Milan pensando sobre o panorama brasileiro.

“Chama-me bastante atenção a falta de uma perspectiva histórica do atributo popular que se deu à reforma educacional, chamando-a de ‘nova’, uma vez que já se fez reformas no passado e que foram amplamente estudadas, mostrando que redução e flexibilização de currículo em escolas brasileiras, principalmente públicas, não costuma resultar em melhorias. Currículo ‘mínimo’ flexível é uma característica de países com políticas chamadas liberais, acreditando que os jovens, isto é, adolescentes são inteiramente capazes de decidirem que caminho profissional-pessoal tomar e em área se especializar, algo a se almejar, porém difícil de se cobrar com quem ainda está longe de se tornar adulto.”

“Essa lacuna na formação geral, considerada ‘clássica’, e até certo ponto antiquada, é o que eu diria que é mais essencial para criar um trabalhador e um cidadão mais proativo e empreendedor da própria vida, o que estudos em historiografia educacional confirmaram, observando a nossa realidade e dialogando com outros países que perceberam que, se não oferecerem amplitude no ensino obrigatório, terão que fazer no complementar.”

E agora, o que fazer?

Em meio à pressão pela revogação do Novo Ensino Médio, o atual ministro da Educação, Camilo Santana, afirmou recentemente que um grupo com representantes de diferentes setores da educação será formado pela pasta para “corrigir” os problemas da reforma criada há alguns anos. A intenção do ministro não é revogar. Ele defende apenas que certos pontos sejam aperfeiçoados, mas, considerando o histórico recente, é difícil não ter ressalvas com o que quer que aconteça daqui adiante.

“Os custos de uma ‘revogação’ de reforma desse porte serão altos provavelmente inviabilizando a sua execução, restando a possibilidade de revisar o que já foi feito, tentando adequar melhor a todos os interesses em jogo, até que uma novíssima reforma aparecer, novamente se apresentando como necessária e urgente para a nossa educação.”

Ao menos, estamos pensando e falando sobre o assunto — e espera-se que Santana faça o mesmo, envolvendo no diálogo pedagogos, professores e alunos. 

Seguimos na empreitada para, quem sabe algum dia, aprendermos a fazer com que se goste de aprender.

Não, a Claudia Raia não recebeu 5 milhões de reais via Lei Rouanet. Temos diante de nós mais um caso de fake news, de quando a informação xis cai em mãos indevidas e a internet responde no auge da ingenuidade, acreditando cegamente no ípsilon-zê que acabou sendo divulgado. No caso, o ípsilon-zê é o dinheiro indo para a atriz — a distorção foi tanta que uma imagem dela, com a legenda “vou ganhar 5 milhões pela Lei Rouanet e você aí esperando picanha com cerveja”, chegou a ser compartilhada nas redes sociais. O xis, por sua vez, na verdade é bem simples: um projeto para montar duas peças de teatro estreladas por ela recebeu autorização para captação do valor. Ou seja, agora o produtor por trás dos espetáculos pode buscar empresas e pessoas físicas para patrocinar as montagens em troca de renúncia fiscal. Nada do valor abastado cair na conta de Raia. E tem mais: quanto maior for a renúncia, maior tem que ser a contrapartida social. Ao fim, o projeto da atriz empregará quase 200 pessoas durante 2 anos.

Cena do filme Central do Brasil, de Walter Salles (1998). Fernanda Montenegro foi a primeira artista latino-americana indicada ao Oscar na categoria Melhor Atriz.

As críticas, claro, vieram principalmente da ala mais conservadora, ávida para criticar o atual governo e se ater às informações mais convenientes às suas personas políticas — como o senador Flávio Bolsonaro e a ex-secretária de Cultura Regina Duarte. O caso todo, a despeito de seu quê kafkiano, traz à baila um assunto importante, sobre o qual as pessoas pouco conhecem: os fomentos culturais no Brasil. O que são? Onde vivem? Do que se alimentam?

A Lei Federal de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei Rouanet, foi criada em 1991 no governo Collor e é até hoje a principal ferramenta de fomento à cultura do Brasil. É por meio dela que empresas e pessoas físicas viabilizam atividades culturais abatendo o valor total ou parcial do Imposto de Renda. Os projetos patrocinados, como no caso dos espetáculos com Claudia Raia, são obrigados a oferecer contrapartida social, distribuindo parte dos ingressos gratuitamente e promovendo ações de formação e capacitação junto às comunidades. É um meio de possibilitar que trabalhadores brasileiros do setor artístico e cultural realizem peças de teatro, música, dança, shows, lançamento de livros, oficinas e tantos outros, que, sem o incentivo, dificilmente veriam a luz do dia. 

Teatro Municipal de São Paulo, construído em 1911..

As empresas tributadas no regime de lucro real podem incentivar até 4% do seu Imposto de Renda e as pessoas físicas podem incentivar com até 6% do seu Imposto de Renda, se declararem no modelo completo. Foi assim que mais de 19 bilhões de reais já foram movimentados em projetos culturais.

O Ministério da Cultura, criado em 1985, é responsável por regulamentar e aplicar a Lei Rouanet. Define os critérios e as regras para a aprovação dos projetos culturais que serão financiados, além de acompanhar e avaliar a execução desses projetos. Se a Lei Rouanet é a mais relevante ferramenta de fomento à cultura no Brasil, o MinC tem um papel fundamental na sua implementação. E o mesmo acontece com outros programas: o ProAC (Programa de Ação Cultural) e o Pro-Mac (Programa Nacional de Apoio à Cultura) são exemplos.

O ProAC é destinado a apoiar projetos culturais em diversas áreas, como artes cênicas, dança, música e literatura. Criado em 2006, é responsável por incentivar projetos culturais no estado de São Paulo e permite que pessoas jurídicas destinem até 3% do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) cobrado para iniciativas aprovadas na lei. Já o Pro-Mac tem como objetivo apoiar a produção e difusão de obras e projetos culturais no interior do país. Assim, a criação do Pro-Mac tinha como foco melhorar a política de incentivos fiscais na cidade de São Paulo. Quem é contribuinte de ISS (Impostos Sobre Serviços) e IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) na cidade de São Paulo pode direcionar até 20% desses impostos para projetos aprovados no Pro-Mac. 

Ambos os programas são importantes e sua interligação com a Lei Rouanet amplia ainda mais as possibilidades de financiamento para os projetos culturais.

Museu Nacional Honestino Guimarães, em Brasília.
Foto de Fabio Szwarcwald.

Como resposta à pandemia, o MinC regula e administra a Lei Aldir Blanc, elaborada pelo Congresso Nacional em 2020. Tem como objetivo apoiar artistas, produtores e espaços culturais que foram afetados com as decorrências da Covid-19. Oferece recursos financeiros para projetos culturais, além de apoio às empresas e entidades culturais. E vem mais por aí: a Lei Paulo Gustavo foi aprovada em julho de 2022 pelo Congresso e estabeleceu o repasse de recursos públicos para o setor cultural também por causa da pandemia. À época, o ex-presidente Jair Bolsonaro chegou a vetá-la, como também fez com a Lei Aldir Blanc, mas o Congresso derrubou os vetos presidenciais e restituiu a obrigação da União repassar 3,86 bilhões do Fundo Nacional de Cultura (FNC) para estados e municípios fomentar atividades culturais.

Os vetos de Bolsonaro, aliás, são representativos dos maus lençóis em que a cultura esteve ao longo de seu mandato.

“Margareth, se prepare, porque nós vamos ter que fazer uma revolução cultural”

Essas foram as palavras do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para Margareth Menezes na primeira reunião com seus ministros. A mensagem direcionada à nova Ministra da Cultura, que recentemente desbloqueou quase 1 bilhão da Lei Rouanet (retido desde o início de 2022), é indicativo de que a névoa nacional da anti-cultura começa a se dissipar.

Ao passo que o antigo governo de Bolsonaro cortava as verbas da cultura a bel prazer, como quem tira da frente algo que lhe dá desprazer, no primeiro mês, o governo Lula aprovou R$ 610 milhões em projetos para a Lei Rouanet. Nos últimos 4 anos, o projeto de país não media esforços para reduzir o papel do Estado na promoção da cultura, ignorando a importância do setor para o desenvolvimento econômico e social, além do impacto negativo que a política de corte teve sobre a liberdade de expressão e a diversidade cultural. Sob a batuta bolsonarista, os ataques à cultura cresceram de maneira alarmante, podendo constituir, inclusive, em um desmonte institucional. 

Não precisamos ir muito longe para ilustrar esse descaso: no mandato de Bolsonaro, o Ministério da Cultura foi simplesmente extinto. Transformou-se na Secretaria Especial da Cultura, dentro do Ministério do Turismo, responsável pelas análises dos projetos da Lei Rouanet.

Quando a perspectiva de um governo é o próprio umbigo e não o progresso de um país, as decisões, invariavelmente, são tomadas por birra e não por qualquer argumento válido. Para efeitos de argumentação, desconsideremos a premissa da valorização da identidade cultural — a que ponto chegamos… — e olhemos para a cultura como uma parte importantíssima da economia. Estamos falando de uma parcela considerável de empregos e de um fator crucial na atração de turismo, além do desenvolvimento do setor criativo, uma ferramenta de mercado que também não deve ser desconsiderada. Bolsonaro optou por desconsiderar uma lógica que vem sendo abraçada e desenvolvida por outras potências. 

Economia da cultura

Sede do Ministério da Cultura junto ao Ministério do Meio Ambiente, em Brasília.

A Economia da Cultura é uma vertente dos estudos econômicos que surgiu na década de 1950, com o crescimento da indústria cultural e o aumento da preocupação com o papel econômico da cultura. A origem desta área de estudo pode ser rastreada de volta ao trabalho de economistas como Thorstein Veblen e Joseph Schumpeter, que se debruçaram sobre a forma como a cultura e a economia se influenciam mutuamente. Desde então, a Economia da Cultura tem evoluído como uma área distinta de pesquisa, com uma abordagem interdisciplinar que incorpora elementos de economia, sociologia, antropologia e estudos culturais.

Na prática, ela se concentra na análise das atividades econômicas relacionadas à produção, distribuição e consumo de bens culturais. Isso inclui a avaliação da produção cultural como um todo (como são criadas e financiadas), da sua distribuição e comercialização (como são vendidos ao público, incluindo a forma como a tecnologia, as políticas governamentais e os mecanismos de mercado influenciam esses aspectos), e o seu consumo (como são apreciados pelo público, incluindo a forma como as preferências culturais dos consumidores são formadas e influenciadas). Aborda questões relacionadas à propriedade intelectual, como direitos autorais, marcas registradas e patentes, e sua importância para a economia global. Sabe bem, ao contrário de alguns, que a indústria criativa pode ser uma fonte importante de emprego e contribuição para o Produto Interno Bruto (PIB).

O Reino Unido talvez seja o melhor exemplo disso.

Reino Unido

Onde a cultura é considerada uma parte importante do Produto Interno Bruto. De acordo com dados oficiais, a indústria criativa — que inclui filmes, música, televisão, teatro, artes visuais, design, arquitetura e outras formas de expressão cultural — cresce em torno de £390 milhões anualmente e agora contribui com £10,8 bilhões por ano para a economia do Reino Unido. Além disso, o turismo cultural é uma indústria importante para o país, sendo um dos principais motores da economia britânica.

A cultura tem sido reconhecida como parte importante do PIB do Reino Unido por muito tempo. Não há uma data específica para quando começou a ser incluída, mas a indústria criativa tem sido uma fonte importante de crescimento econômico e emprego no país há décadas. O reconhecimento formal da cultura como parte do PIB do Reino Unido pode ter começado com a inclusão da indústria criativa nas contas nacionais, o que permitiu uma avaliação mais precisa de sua contribuição para a economia do país.

O PIB britânico é superado apenas por Estados Unidos, China, Japão e Alemanha.

Certo… mas por que a Claudia Raia e não outra pessoal?

É bem verdade que muitas propostas de artistas menos renomadas não acabam sendo contempladas pelos programas de incentivo brasileiros. Segundo o guia de execução dos recursos orçamentários e financeiros do MinC,

“Os critérios de avaliação precisam garantir objetividade, transparência e isonomia do processo seletivo. A unidade gestora da seleção pública definirá no edital, pautada na especificidade do objeto, as notas mínima e máxima para cada critério da avaliação, sendo desclassificados os projetos e iniciativas que não atingirem a pontuação mínima estabelecida.

Os projetos e iniciativas submetidos à avaliação deverão receber uma nota em cada critério de avaliação. A escolha dos critérios deverá propiciar todas as condições para um julgamento que atenue ao máximo o grau de subjetividade inerente aos aspectos culturais.” 

Como um dos propósitos da Lei Rouanet, do ProAC e de outros programas é também fazer com que a economia gire em torno de produtos culturais, é natural que os projetos que envolvem artistas consagrados e conhecidos do grande público sejam contemplados com alguma frequência. Mais pessoas envolvidas, aumento das probabilidades de patrocínio, maior mobilização, ganho de visibilidade para outros artistas envolvidos, expansão na geração de empregos. Isso desconsiderando a possibilidade — no caso de Claudia Raia, essa bola não foi levantada por ninguém — de que o projeto cultural em questão aborde temáticas importantes, como as de inclusão e diversidade.

Nem sempre isso será justificativa. Proponentes que buscam uma entrada a primeira chance também devem receber o devido incentivo. É no balanço que se constrói o panorama ideal.

“Recomeçou a festa da Lei Rouanet”, declarou Jair Bolsonaro, em entrevista nos EUA, depois de Margareth Menezes desbloquear o dinheiro retido. A fala, convenhamos, não surpreende — no máximo, por constatarmos que a palavra “mamata” não foi usada. A falta de sensibilidade é um dos cartões de visita do ex-presidente. É nesse traço de sua personalidade, aliás, que se encontra o porquê de sua luta contra a arte.

Alguns sentem a chuva e outros apenas ficam molhados, é o que nos diz o ditado. Bolsonaro nunca sentiu a chuva transformadora que é a cultura. 

“Revolução cultural” foi o termo usado pelo presidente. Seja muito bem vinda.

#43MiragemCultura

Dois e dois são dois: Suze Piza e Lindener Pareto

Suze Piza é filósofa. Professora da UFABC, pesquisa Ética, Política e Epistemologia.

Lindener Pareto Jr. é historiador, Doutor em História da Arquitetura e do Urbanismo pela USP. Desde 2013, é professor de História Contemporânea na PUC-Campinas. Apresenta o Provocação Histórica, projeto de História Pública e de entrevistas com historiadores e historiadoras do Brasil nos canais do Instituto Conhecimento Liberta.

Suze – Pensar identidade, a meu ver, é uma grande miragem. Eu prefiro falar em processo de identificação ao invés de falar em identidade. Não é um problema com o conceito em si, mas com a maneira como esse conceito foi sendo construído na tradição das humanas, no caso da minha área, da filosofia. Ela é a responsável por esse conceito ter se tornado uma miragem, no sentido mais preciso do que é a miragem. O que a gente tem nesse modo de ser Brasil, ou nesse modo de ser brasileiro, acho que é uma conjugação de uma série de experiências de identificação com uma série de coisas. São processos extremamente complexos que, quando se usa o termo “identidade”, a gente acaba procurando nos lugares errados para tentar responder a uma pergunta que não tem muito uma resposta. Ou seja, tento saber o que seriam características ou traços. Parece-me que, quando uso o termo “identidade”, por conta da carga que essa palavra tem, que o conceito tem, eu começo a tentar responder a coisas que, na verdade, não têm muita utilidade. Eu preferiria pensar em identificação, o que nós somos nesse território, nesses tempos que nos atravessam nesse território, e nos territórios que nos atravessam também, porque a questão não é você delimitar uma fronteira de um estado nacional, mas o nosso território, todos os territórios que nos atravessam. Quais são os processos de identificação que acontecem aqui e não acontecem em outro lugar, ou acontecem em outro lugar de maneira distinta. Com isso, a gente consegue fazer um levantamento e estabelecer algum tipo de delineamento, para a gente falar: isso é Brasil, ou pelo menos é Brasil num dado momento, numa dada fotografia que eu olho. Acho que daria para pensar: bom, Brasil, 2022, aí eu começo a tentar fazer o que é essa identificação “2022”. E acho que até daria para retomar o uso do conceito de identidade, e nisso o Jessé [Souza, sociólogo e editor convidado da Amarello Miragem] tem uma contribuição fantástica, porque ele mobiliza teorias muito ricas para pensar a identidade, que vão fugir de todos os “ismos” que dificultaram muito a compreensão do que nós somos, mas não é uma teoria ainda vencedora, são teorias que estão lutando para serem escutadas. O que ainda domina o imaginário das ciências humanas são concepções bastante restritas e reduzidas do que seria essa identidade do brasileiro.

Lindener – Bom, pensando aqui no métier da ciência da história, impossível não falar como historiador, por dever de ofício. Pensando o que venho fazendo em relação à divulgação de história, com o Provocação Histórica, com aula de história, narrando a história do Brasil, sobretudo a história da formação do estado da nação no Brasil, acho que a maior miragem da história brasileira, que está na teoria social, está em todos os grandes impérios do Brasil, é essa miragem da democracia racial. Ou seja, esse mirar uma ilusão de harmonia racial étnica no Brasil, que reiteradas vezes tem sido ressignificada na nossa história, seja no século XIX pela política da escravidão, seja no século XX, na era Vargas, nesse festejar da miscigenação. Mas que, no fim das contas, como a gente bem viu recentemente na história do Brasil, e vem assistindo tragicamente nesses quatro anos ou mais, foi ressignificada mais uma vez em termos de domínio de uma supremacia branca. Então, essa ilusão, essa miragem, a linha mestra, para lembrar aqui a expressão do Caio Prado Júnior, que ainda nos conduz enquanto identificação, enquanto povo, enquanto característica, inclusive, vinculada ao universo de uma miragem de alegria, de cordialidade, etc. e tal. Esse aspecto é crucial do ponto de vista de uma estrutura histórica formada no período colonial. Estamos falando aqui de colonização, mas reinventada a partir de 1822 na formação de estado nação, que é, no fim das contas, a escravidão, a submissão de um povo inteiro a uma história de brutalidade, de violência, e que foi tragicamente reinventada pela elite lusobrasílica na formação do estado nacional. Não é só uma continuidade da escravidão desde o período colonial, como aponta o [Luiz Felipe de] Alencastro, rompendo com essa ideia de que é só uma continuação. Não, muito pelo contrário, a elite lusobrasílica que forma o estado nacional, a alta cúpula política, o congresso, o império do Brasil e a alta elite proprietária reinventam a escravidão de uma forma inaudita. De todos os africanos vindos para cá, 40% dos que ingressaram deportados no Brasil em todo o período de colonização vieram entre 1808 e 1850, entre a presença da corte portuguesa no Brasil e a Lei Eusébio de Queiroz, que foi a lei que finalmente aboliu o tráfico. Comprar na África seres humanos e vender aqui nos portos do Brasil. Com isso, quero dizer o seguinte: essa miragem da democracia racial, tão discutida e desmontada desde que Gilberto Freyre aponta e concebe a ideia, mas desmontada por Florestan Fernandes, passando por várias figuras, até chegar mais recentemente ao próprio Jessé, é aquela que está vinculada àquilo que é a alma do estado nação do Brasil. Ou seja, a instituição da escravidão por todos os poros da sociedade brasileira, por todas as instituições, pela alta cúpula. Esse é um país montado no tráfico ilegal, na violência da escravidão e na violência do controle dos corpos do colonizado, e, no caso, o colonizado é o africano escravizado de longa data, mas agora numa versão brasileira nacional mesmo, nessa interiorização de dominação brutal que permanece. A gente pode dizer que essa ideia de controle e colonização que envolve os povos da África foi a menos questionada em termos de tentativas de ruptura, há uma continuidade muito maior em termos de tempo e de espaço. Então, essa é a maior miragem, o maior problema do Brasil. 

Suze – Acho interessante também pensar no que faz a gente ver uma miragem, o que faz a gente acreditar que está vendo uma coisa que não existe de fato ou, de repente, até estar olhando para algo que existe, mas vendo essa coisa de uma maneira distinta do que ela é a partir de alguma fantasia, ou mediada por uma imaginação exacerbada. Tem a ver, de várias maneiras, com uma experiência de afastamento do real, em que você coloca alguma coisa no lugar: estou morrendo de sede, ali na frente há um rio onde posso beber água, ou tomar um banho, porque estou com muito calor, mas, na verdade, ali não tem esse rio; então, é só uma miragem. Se for pensar nos processos psíquicos que justificam esse tipo de coisa, e aí pensar na perspectiva que você está trazendo, de um ponto de vista social, como foi feito com a democracia racial, tem tudo a ver com a noção de identidade, porque é a maneira como a gente foi forjando a concepção de identidade brasileira. Apesar de tudo, quando você pensa no que seria a identidade brasileira, por isso falei que é um conceito extremamente problemático, está se falando de um homem branco; portanto, isso, por si só, já é uma miragem, porque você tem uma população que não é essa figura. E aí você está falando de quem? Apesar dessa figura estar aí, ela não é a mais representativa; então, de fato, você está lidando com algo que não é palpável. Mas me interessa pensar em que tipo de condição… A gente fala muito na filosofia de condição de possibilidade, em que tipo de condição de possibilidade faz com que você construa determinada ficção. Eu acho que a gente é muito atravessado por uma concepção de tempo e de espaço que vem do comecinho da modernidade, a gente não se livrou disso ainda. Há uma jovem filósofa que vem trabalhando com isso de maneira bastante interessante, que é a Denise Ferreira da Silva, que despontou nos últimos anos, apesar de estar trabalhando já há bastante tempo com filosofia. Ela discute muito isso, numa perspectiva de pensar o fim do racismo, da organização da luta antirracista. Ela vai dizer que, enquanto a gente não mudar a maneira de conceber o tempo e o espaço, enquanto a gente não mudar a própria forma de conceber a matéria, a gente não tem como superar isso. É impossível, porque existem pressupostos à nossa maneira de pensar. Então, há uma forma de pensar que implica uma visão de tempo linear, numa visão de progresso, numa visão de hierarquia entre os povos, tudo isso passa por essas construções que nós fizemos aqui, de achar que nós, brasileiros, somos isso ou aquilo, que não existe racismo aqui, há todo um conjunto de ideias que foram sendo construídas que têm a ver com coisas muito básicas. Parece-me que a gente, inclusive, nos últimos anos, tem focado muito em multiplicar conteúdos a respeito de tudo isso, mas mexido pouco na forma, e é por isso que a gente cria cada vez mais discursos sobre o tema e muda pouquíssima coisa. Há um colega meu, o Anderson Flor, que fez, pouco tempo atrás, o prefácio do Os condenados da terra (livro de Frantz Fanon), ele fala que não adianta ficar aumentando o cânone o tempo todo, inserindo mais teoria, mais conceito, se a gente não muda a forma de fazer a coisa. É isso praticamente o que a gente tem feito.

Lindner – Fica no modismo decolonial.

Suze – Nós viramos especialistas nisso. Inclusive, porque tem a ver com um ressentimento. Eu estudo o pensamento decolonial há muito tempo, e a grande disputa, há quinze anos, era que a formação acadêmica dos nossos estudantes não fosse predominantemente europeia, porque na África também há pensadores, na América Latina também há pensadoras, há pensadores, e foi uma batalha importante de se lutar, mas hoje a gente percebe que não é só isso, porque a gente continua estudando esses autores e essas autoras da mesma maneira que a gente fazia com os outros. Então existe um limite. E o principal limite é não conseguir ver nada além das miragens, a gente vê a miragem em outras perspectivas, é basicamente isso que se tem feito. Parece-me que há condições formais que precisariam ser modificadas para a gente conseguir escapar, porque o processo de acreditar que está vendo uma coisa quando você não está, ele é muito elaborado, a gente está vivendo isso no Brasil agora em larga escala.

Lindener – Totalmente. E aí a gente pensa no mote do Frantz Fanon, sobretudo nos últimos anos, para pensar textos dos intelectuais e das intelectuais negras do ponto de vista do plano de ensino. Mesmo que você, Suze, o fizesse há tempos, está só agora sendo incorporado nas universidades, e isso pensando nos grandes centros de pesquisa e ensino desse país.

Suze – Há poucos anos.

Lindener – Há poucos anos. A USP, por exemplo. Eu fiz História lá na FFLCH de 2002 a 2006 e lembro que só havia uma disciplina de história da África, ministrada evidentemente por professores que tinham, para usar a expressão dos historiadores do período colonial, um cabedal. Ou seja, geralmente eram de famílias brancas. Era uma disciplina, um semestre só, e todas as divisões das nossas disciplinas eram as grandes divisões da história tradicional europeia, mesmo que dentro delas houvesse professores e professoras questionando essas divisões. Como Norberto Barinel falava: as grandes formas da História precisam ser questionadas.

Suze – Questiona as divisões, mas não muda o projeto pedagógico.

Lindener – Exatamente. 

Suze – História Antiga, História Medieval, História Moderna. Na filosofia é assim: História Antiga, História Medieval, História Moderna e História Contemporânea. Isso é uma maneira de pensar o tempo europeu. Isso é uma miragem.

Lindener – Tem tudo a ver com a continuidade de uma certa identidade, de uma miragem que aponta para um reconhecimento mútuo, uma valorização, mas só isso não basta. Acho que está no cerne de todas as discussões do que, de fato, é a emancipação hoje e do que, de fato, é apenas a oportunidade do neoliberalismo. Mas voltando, então, às percepções do tempo, há um acúmulo de uma série de autores e autoras que falam sobre uma teoria dos tempos históricos, que passa pela ruptura brutal, mas não tão brutal assim, a depender de uma história secular de consolidação, que é essa história da revolução industrial e da mudança da percepção da passagem do tempo, uma História Social do tempo. Sempre foi, obviamente, vinculado às formas que os humanos dão a ele, ou seja, a passagem do tempo depende daquilo que são as tarefas do dia ligado ao mundo natural e das nossas representações e criações a partir do domínio do mundo natural. É dessas percepções da disciplina do trabalho que [Edward Palmer] Thompson fala, o historiador britânico, a partir do século XVIII em função da aceleração do tempo histórico. Então, para pensar nessas miragens, é preciso pensar também nessas teorias dos tempos históricos e pensar que há um grande passado pela frente. Acho que a nossa contribuição, dos historiadores e historiadoras, é sobretudo pensar numa teorização do tempo histórico usando [Reinhart] Koselleck, usando [Fernand] Braudel, usando Thompson. Para mostrar a contemporaneidade do não contemporâneo, acho que para pensar a grande miragem da harmonia racial de um país que supostamente convive bem com suas diferenças, é negar a própria lógica da história. É uma história de conflito, de disputa, de brutalidade. Então, o que a teoria do tempo histórico ou dos tempos históricos pode elucidar ou esclarecer ou ajudar a entender? Que há muito passado no presente, pode parecer básico ou óbvio, mas há um grande passado pela frente no sentido que toda a mobilização de uma estrutura ou de estruturas de passado na história do Brasil permanece de forma implacável no presente. Claro que existem muitos exemplos, mas, certamente, o exemplo do patriarcado no Brasil, e do patriarcalismo, o exemplo do racismo estrutural em todas as suas instituições e em suas sociabilidades são os exemplos mais contundentes. São permanências implacáveis do passado no presente, mas tudo isso tem uma teorização, são camadas de tempo que se vinculam a certos espaços, inclusive segregados, ou não, e que permanecem no presente. Isso serve para entender por que raios a gente assistiu à ascensão do bolsonarismo no Brasil, mobilizando todo o repertório brutal da história brasileira como nunca antes em termos de uma certa coesão, de um fascismo à brasileira, coisa que nem o integralismo conseguiu fazer. Tudo bem, a gente pode estar agora de forma hiperbólica, porque estamos no calor da hora, do início de uma transição, para pensar a transição entre Bolsonaro e o terceiro governo Lula, mas é inacreditável pensar que, pela primeira vez na história do Brasil, a gente conseguiu, ou o Brasil viu, a mobilização de um repertório brutal da história brasileira, mas ressignificado dentro de aspectos cruciais do fascismo histórico mesmo, sem medo de ser feliz, sem medo de ser anacrônico. “Ah, mas eu sou historiador, não vou dizer que isso é fascismo”. Meu Deus, o sujeito mobiliza o repertório do Mussolini, tem características inclusive estéticas, o próprio cabelinho, os comportamentos que os assessores tiveram, o sujeito da Secretaria de Cultura (pois, de Ministério da Cultura, foi rebaixado a Secretaria) imita o discurso do Goebbels.

Suze – Quando o pessoal fala para mim: “dá para chamar de fascismo?” Eu falo: “vocês deviam ter feito essa pergunta quando chamaram o Temer de fascista”. Ninguém fazia a pergunta.

Lindener – Sensacional.

Suze – Era um tal de “fora, fascista”, “não passarão”, e eu falava: “gente, o Temer é uma desgraça, mas qual é o traço?”

Lindener – Chamando o Geraldinho de fascista.

Suze – As pessoas falam tanto as mesmas coisas que você vai tendo as respostas prontas no bolso. Quando a pessoa fala, você já saca a resposta. 

Lindener – Há um manual de respostas filosóficas contundentes, prontas e aterradoras, porque a pessoa é desmontada.

Suze – Eu falo para ler os italianos, que entendem bem de democracia liberal e de fascismo. Se está com alguma dúvida de que o Bolsonaro é fascista, vai ler Umberto Eco.

Lindener – [Palmiro] Togliatti, [Giorgio] Agamben.

Suze – Vai ler o [Antonio] Negri, vai ler Agamben, vai conversar com quem entende bem desse negócio. Lê O fascismo eterno, do Umberto Eco. Mas é curioso isso… que hora boa para ter preocupação com precisão conceitual.

Lindener – Por falar em precisão conceitual, sei que, no fluxo da consciência, fica um tanto misturado aqui na nossa prosa, mas acho que esse é o objetivo. Vamos lá: toda modernidade foi montada na história do mercantilismo, pelo capitalismo, em função do quê, entre outras coisas? Em função do tráfico, em função do início de uma construção de empresas comerciais europeias que se expandem, de CEOs da época. Nem sei o que é o Maurício de Nassau senão um CEO da Companhia das Índias Ocidentais, dominadas pela Holanda, que era inimiga de Espanha e invade aquilo que é a América portuguesa ou Brasil colonial para continuar traficando africanos para cá e plantar cana de açúcar. Então, toda a modernidade é montada em função do tráfico de seres humanos, do tráfico transatlântico de africanos escravizados. São 12 milhões de africanos escravizados ao longo de 350 anos e, desses 12 milhões, para o Brasil vêm mais de 5,5 milhões, para o complexo que vai ser Brasil colonial e depois Brasil independente. Entre 1501 até 1850, esse complexo territorial voltado para o Atlântico Sul, sobretudo na formação com África em função do contato do império ultramarino português, trafica pra cá 5,5 milhões de africanos. Para os Estados Unidos, foram 700 mil; para Cuba, perto disso também. Ou seja, o Brasil foi, de longe, o agregado político colonial independente que mais traficou seres humanos na história de toda a modernidade. Quer coisa mais emblemática apontando o Brasil como o grande laboratório de todas as teorias e práticas do estado de exceção em toda a modernidade? E pior do que isso, além de manter a plantation e reinventar a escravidão, nosso estado nacional trafica ilegalmente, cometendo aquilo que o Alencastro chama de “pecado original da ordem jurídica brasileira” e, portanto, nasce como estado nacional num pacto de sequestradores, de criminosos. Esse é o Brasil de campo de concentração constante e de uma internalização da dominação que nunca foi rompida. Por isso que o bolsonarismo, de uma forma um tanto caótica e às vezes sem muita coesão, apropria-se dessa brutalidade do passado colonial com muitos ressentimentos. Veja, é um imigrante italiano, que nasce ressentido com uma certa elite branca de origem portuguesa na região de Eldorado no interior de São Paulo. Quer dizer, são ressentimentos ressignificados ali com aquilo que é a linha mestra da história brasileira, que é a herança da escravidão. 

Suze – Eu acho que dá para pegar essa reflexão que você faz e voltar a pensar na fragilidade do que é achar que a gente vai ter uma identidade nos termos de que a gente costuma tentar elaborar, pensar no quanto isso é inócuo, porque é tentar se entender como resultado desses processos de identificação com isso que explica o que a gente é. A experiência da plantation, que é o trabalho cotidiano ali na lavoura, a exploração do trabalho, a exposição, tudo isso é formação de pessoa. E isso hoje não é passado para empregada doméstica que trabalha na casa das classes médias? Essa experiência do espaço e do tempo não foi modificada. Então, se eu quero entender o que é ser brasileiro, tenho de entender que essa experiência vai sendo repetida. Uma tese que orienta praticamente todos os pensadores e pensadoras decoloniais é: finalizar um regime econômico político como o colonialismo não significa eliminar da sociedade as práticas coloniais. Você finaliza o colonialismo, mas mantém a colonialidade. Você mantém todas as práticas coloniais, mas com outra roupagem. A edição brasileira de Os condenados da terra tem um prefácio muito bem feito pela Inocência Mata. Ela diz que Fanon é um pensador que se coloca frontalmente contra a metafísica do branco e a metafísica do negro, apresentando uma tese anti-identitária. Mas isso não significa que ele esteja abandonando a causa negra. Essa é a causa dele, mas ele não quer tratar disso de maneira essencialista, assim como vários pensadores e pensadoras negras também não o querem. O que significa você pensar nessa formação do ser brasileiro a partir das identificações, com o espaço das cidades e com a maneira como você experimenta o tempo. O Fanon está falando da Argélia, está descrevendo o que ele está vendo lá, vendo o que é a cidade do colonizado na Argélia. E tem horas que você começa a ler e fala: gente, isso é São Paulo, são muitos outros lugares. Isso é genial.

Lindener – Quando ele está saindo da Martinica, está indo para o mundo europeu e depois para o argelino, sempre fragmentando, mostrando esse mundo cindido, que é o mundo do espaço urbano colonizado ou do espaço colonizado, ele fala: a cidade do colonizador é assim, a cidade do colonizado é assado. Mas aqui na América, ou nas Américas negras ou na África, é uma coisa, lá na Europa é outra, é a cidade do colonizador que tem sapato forte, tem estruturas boas, que tem asfalto. Ele tem uma outra experiência nessa história da totalidade da escravidão nas Américas. Mas o espaço brasileiro é sintomático, porque a gente tem na mesma cidade, no caso de São Paulo, a cidade do colonizador e a cidade do colonizado, e de maneira abrupta, brutal: é Heliópolis no meio do alto do Ipiranga e de São Caetano.

Suze – Literalmente no meio.

Lindener – No meio, a cidade do sol nesse meio do caminho, das sombras todas daquilo que é a cidade do colonizador e da própria supremacia branca, porque São Caetano também é isso, lembremos disso.

Suze – Acho que mais que o Ipiranga.

Lindener – Mais que o Ipiranga, porque o Ipiranga está retalhado. Então, é brutal o exemplo de São Paulo como síntese do Brasil e dessa ideologia do progresso. Um símbolo dessa pátria bandeirante que odeia que diminua a velocidade nas marginais, que é incapaz de eleger um professor, um sujeito da universidade, que não é nada radical, mas sei lá, tem um ódio brutal à classe trabalhadora e à experiência da inclusão dos pobres. Tudo isso remonta ao passado bandeirantista de invasão dos territórios, genocídio contra os indígenas, de destruição do Quilombo dos Palmares… olha a história o que São Paulo sintetiza. É muito sintomático que a gente tenha a cidade do colonizador e do colonizado absolutamente imbricada, mas mantendo a brutalidade que o Fanon aponta. Por exemplo, o caso de Higienópolis e a mulher da casa abandonada é a história inteira do Brasil, é só a ponta de lança desse grande iceberg da escravidão. Higienópolis moderna, cidade da limpeza, da higiene, que expulsa os pobres, que faz seus casarões, seus palacetes, novas noções de conforto e higiene, que continua tendo naqueles palacetes oriundos do pós-abolição gente preta e parda que trabalha para famílias cujas fortunas, em geral, apesar de um imigrante ou outro, foram montadas nas fortunas da escravidão e do café, da produção de café, do tráfico, da escravidão do século XIX. O avô da Margarida Bonetti, Vicente de Azevedo, na verdade é o Barão da Bocaina, um dos maiores barões do Império, do final do Império, uma das maiores fortunas do começo da República, mas que teve sua fortuna montada em costas negras. Então, quando a Margarida Bonetti escraviza a empregada doméstica que ela ganhou da mãe dela, ela “ganhou”, ela usa quase que esse termo, e leva ela para os Estados Unidos e escraviza ela lá também, mostra a conexão entre Brasil e Estados Unidos em termos de uma história de apartheid, de escravidão, de racismo, de segregação. Uma empregada doméstica escravizada e ninguém fazendo nada lá e ninguém fazendo nada aqui, isso até que alguém se sensibiliza por uma casa em pandarecos, caindo aos pedaços. Então está tudo ali no caso da Margarida, neta do Barão da Bocaina, mostra bem a cara dessa terra de barões, que tem até hoje imóveis no concreto armado da pauliceia.

Suze – Esse caso é emblemático, assim como cada vez mais aparecem esses casos em que daria para fazer igual se faz com os livros de psicologia, quando você está estudando uma determinada patologia e aparece uma pessoa que tem todos os traços e você diz: “aqui dá para descrever essa patologia bem”. A gente tem visto isso cada vez mais no que diz respeito à sociedade. Acho que esse caso ilustra muito bem. Sempre penso na maneira como a gente tem uma massa se interessando por isso, pessoas que também não estão livres, muitas vezes, dessas mesmas situações.

Lindener – Isso explica parte desse delito.

Suze – A classe média paulistana muito chocada com a escravidão das empregadas domésticas é algo que…

Lindener – Essa é a miragem da classe, que ficou na frente da casa. Eu falei para um menino que estava lá: “O que você está fazendo aí?”. Ele respondeu: “Tenho um blog, um canal no Youtube, estou filmando”.

Suze – É o mesmo menino que vai brigar com a empregada, porque perdeu o tênis dele. A culpa é dela, porque tem de ser culpa de alguém e não pode ser dele, então deve ser dela. Isso é divertido, no pior sentido do termo. Mas isso não diminui o que acontece ali, é só a gente tentar olhar de outras perspectivas. Eu aprendi muito a olhar a cidade com você nos últimos anos, e isso de olhar para os prédios, saber quando eles foram construídos, que base que tem ali, isso é uma experiência muito rica. As pessoas que habitam aqueles espaços, de alguma maneira, estão atravessando tudo, senão se contaminando. Acho que é muito isso. Eu acho que parar para pensar nisso é entender o que é ser brasileiro. Há uma frase do Marx de que eu gosto muito, e uso à exaustão nas minhas aulas sempre que posso. Está numa notinha de rodapé na Ideologia alemã, e ele diz o seguinte: “A essência do peixe está na água”. Eu gosto muito dessa frase.

Lindener – Está na Ideologia alemã?

Suze – Está na Ideologia alemã, numa nota de rodapé: “A essência do peixe está na água”. Acho que tem muito a ver com o que a gente está discutindo aqui. A gente precisa deslocar a pergunta sobre uma identidade e tentar procurar na pessoa, mesmo que seja numa identidade nacional. Aí eu vou olhar fora, pois, se eu quiser entender do peixe, tenho que entender da água. Por exemplo, se teve um vazamento de óleo…

Lindener – A vida dele será outra.

Suze – É outro peixe. E é assim que eu entendo do peixe, eu entendo pelo vazamento de óleo. Para mim isso é muito…

Lindener – Esse caso é emblemático, o vazamento…

Suze – É sintomático: isso é Brasil.

Lindener – É catarse, tem todos os ressentimentos. Não eram pessoas negras que estavam indo lá para frente observar a Margarida Bonetti, eram os brancos da classe média. Não vou negar que eu quis passar lá na frente umas duas vezes para ver a casa, como historiador de arquitetura e de urbanismo, mas, ao mesmo tempo, sabendo que ela estava lá dentro. Mas que história é essa? Um frenesi. Acho que é essa catarse da miragem brasileira que não vê as suas perversidades do ponto de vista das permanências históricas, do seu preconceito, do seu racismo brutal.

Suze – Tem a ver com a negação também: você nega e olha para outra situação. Mas eu acho que a gente precisa começar a pensar no que nós somos em outros termos, e acho que fugir também do conceito de identidade ajuda a gente a não individualizar tanto, isso também é importante. Acho que, se a gente quiser ter alguma chance de sobrevivência, é necessário começar a se pensar mais como comunidade, como coletivo, mas não um coletivo contra atos específicos, tem de tentar dispersar um pouco, trabalhar um pouco numa lógica de dispersão e não de você tentar encontrar dentro de algo o que aquele grupo tem.

Lindener – Que tem a ver com não essencializar.

Suze – É. O Ernesto Laclau, que foi um grande filósofo político argentino, deu uma contribuição muito importante para as discussões sobre a política contemporânea. Ele trabalha muito com essa perspectiva do Lacan para falar de identificação, ele fala muito que o que une o coletivo, seja um coletivo negro, um coletivo de mulheres, é a pauta. E aí todo mundo que ou sofre o racismo negro, ou está na luta antirracista está nesse coletivo negro, o que significa que se eu, Suze, sou branca e luto contra o racismo, eu tenho que estar nesse coletivo, eu não posso estar fora desse coletivo, porque a pauta nos une, nós todos estamos lutando. Isso não significa que eu sinta o racismo, não tem nada a ver com isso, a gente está falando de outra coisa. E o Jessé discute isso muito bem, não tem nada a ver com sentir o racismo, tem a ver com lutar contra o racismo. Essa identificação, no caso da política pela pauta, tentar entender o que nós somos por meio da relação com a experiência do tempo e do espaço, eu acho que é um caminho. Mas eu insisto na tese que eu trouxe antes, que temos que fazer algumas modificações na maneira como a gente pensa o tempo e o espaço, porque isso é um problema. Parece-me que às vezes a gente vai avançando sem ter mexido numa base.

Lindener – O passado está no presente e estamos enterrados pela metade num cotidiano histórico anterior a nós. E o que a gente faz diante dessas estruturas? Não que a história seja uma redução, porque não é, mas ela pode ser uma ressignificação de permanências implacáveis do passado no presente. São Paulo vendeu essa ideologia da metrópole, essa sinfonia da metrópole, de que tudo mudou a partir do último quartel do século XIX. A cidade virou a cidade de concreto armado, era tida como a síntese da modernidade dos trópicos. Mas, na verdade, mudou coisíssima nenhuma: foi rearranjado no próprio espaço urbano, em termos de exclusão da população preta e parda. As fotos do Militão Augusto de Azevedo mostram essa população no centro que, no final do século XIX, já está desaparecendo. O Bexiga, bairro negro, vira bairro italiano, ou seja, são apagamentos intencionais duma elite política que quer construir São Paulo como grandeza da nação. Enfim, pensei aqui os desdobramentos dessa questão do espaço que se aponta nessas permanências. Está aqui, está no Ipiranga, está por aí.

Suze – Se você disser à uma pessoa que viveu a vida toda, sei lá, na Suíça, “ei, veja que o que a gente chama aqui no Brasil de um passado que não passa, de uma experiência da permanência”, essa pessoa vai se perguntar “que experiência da permanência é essa?” A experiência da nossa permanência é a experiência da relação com a miséria eterna, que, mesmo que você não seja um miserável, você está sendo sustentado por isso todo o tempo. Em determinados lugares, isso deve ser muito diferente, porque, embora você esteja sustentado por um ponto de vista global, essa pessoa não está convivendo diretamente com isso. Ela não precisa, por exemplo, pensar “hoje eu não vou almoçar lá na padaria na esquina com a Augusta, porque eu vou passar por cima de seis famílias com crianças até chegar na padaria”. Ela não precisa fazer isso. Se você pensar num europeu que tem plano de saúde, um estado forte que o protege, atendimento médico de qualidade, a vida é diferente, e quem pensa na Suíça pensa de acordo com a própria experiência. E o Jessé joga muito com isso, colocar a classe média diante do espelho é uma discussão sobre identidade. Só que, veja, já não é identidade de uma nação exatamente, mas é uma posição, e, nesse sentido, classe não é um conceito econômico.

Lindener – É moral.

Suze – É um conceito que tem relação com o modo, com as relações de conhecimento, com a dimensão moral, é a dimensão subjetiva da classe. Lógico que tem uma dimensão forte objetiva também, mas que não é um conceito, talvez a gente possa dizer melhor: é econômico, mas não é economicista, não tem a ver com renda, quanto você tem de dinheiro no fim do mês na conta. Apesar de termos poucas referências que, de fato, enfrentam isso, é uma discussão muito rica, porque pensar em termos de identidade torna a coisa mais possível de ser discutida. Melhor do que falar o que é ser argentino, o que é ser brasileiro, fugir do “não, mas é porque nós somos assim mesmo, nós somos hospitaleiros, o bolsonarista que é violento”.

Lindener – Para lembrar dos 100 anos da Semana de Arte Moderna, evoco Macunaíma, posterior, evidentemente, à Semana, mas que é resultado do encontro. “O que somos os brasileiros?”, diz Macunaíma, um herói, sem nenhum caráter. Não porque ele é mau caráter, mas porque ele tem uma identidade fugidia, provisória. Claro que o Jessé faz a crítica do Sergio Buarque de Holanda, a gente sabe que o conceito de homem cordial é muito sedutor, porque ele pode explicar muitas coisas que nós somos, mas ele essencializa também. O fato é, essa tirania brutal da história brasileira está ali também de alguma maneira nesse homem cordial, traz para o sentimento, mas ele te tiraniza, por isso que a ideia é muito sedutora. Mas está em Macunaíma também, o herói sem nenhum caráter, provisório, fugidio, que tem a ver com a história de toda a subalternidade. Por isso que o Braudel fala claramente: o problema está na história do capitalismo e, antes disso, no mundo pré-capitalista, em entender por que a gente cria tantas hierarquias entre nós em função da vida material, que é o que Jessé fala para pensar a questão moral. Quer dizer, a gente cria hierarquias todo o tempo para mostrar que a gente pode mais que o outro, e cria muitos subterfúgios para construir isso ao longo do nosso cotidiano, vinculado sempre à vida material. A maior miragem essencialista da modernidade, além dessa da escravidão no Brasil, é do estado nacional do século XIX. Estado nacional é uma ficção, é uma invenção de tradição, vai dizer o [Eric] Hobsbawm, vai dizer o próprio Benedict Anderson. Você inventa uma tradição, uma unidade entre as pessoas onde ela não existe, porque as classes delas são diferentes, a vida material delas é diferente, elas comem em casas diferentes, em bairros diferentes, é tudo diferente. Uma ideia de que o cara do Acre e o cara do Rio Grande do Sul são iguais, quando, na verdade, são completamente diferentes, é a ficção do estado nacional que vai levar você, nessas arquiteturas de controle, a acreditar que você é igual ao outro, mas não é, porque suas classes são diferentes.

Suze – A maior miragem é a gente achar que está indo para algum lugar. Essa é a maior miragem, essa ideia de pensar o tempo ainda como flecha, e a gente está bem no meio dela nesse momento. A gente acha que tem que chegar num lugar e, de vez em quando, acha que começou a dar marcha à ré, se prestar atenção nas palavras que a gente usa, a gente fala: regredimos muito nos últimos anos, mas agora vamos avançar. A nossa linguagem é repleta de avanços, atrasos, superações, ou seja, toda a nossa linguagem está lá no XIX, nos textos de filosofia da história, como se tivesse um sentido.

Lindener – Está em Hegel.

Suze – Então, mas aí fica triste, porque a gente já deveria ter passado dessa… Tinha de ter feito uma coisa melhor que isso. A gente fica reproduzindo, repetindo que nem mantra, fazendo tese, pesquisando e repetindo, isso precisa parar. É quase que uma obsessão com linearidade, com flecha, com degrau, é um modo de operar o pensamento que eu acho muito perigoso. Falta imaginação para quebrar isso um pouco.

Lindener – Não à toa a decolonialidade indígena, por exemplo, os krenaks da vida. Para o Brasil é quase uma história, um eterno retorno do Hans Staden, tentando enganar a cosmovisão indígena para não ser devorado por tupinambás.

Suze – Os nossos alunos, as nossas alunas nas universidades que incorporaram todas essas referências talvez consigam pensar de outra forma. Não adianta só aumentar o cânone, estudar um autor e começar a estudar um outro, porque a gente fala a língua do Hegel e não fala a língua ianomâmi. Então é um desafio. 

Lindener – “Quem estará nas trincheiras ao seu lado?”, para usar o Ernest Hemingway.

Suze – A gente faz um papo sobre produção e reprodução do conhecimento para evitar o fim do mundo.

Em 1994, época em que era candidato à presidência, Fernando Henrique Cardoso causou polêmica ao declarar em entrevista: “Tenho um pé na cozinha. Eu não tenho preconceito.” A fala faz referência à origem mulata de Cardoso e foi uma resposta às provocações de que ele governaria com “mãos brancas”. Na lógica da afirmação, dita por alguém que viria a governar o país por dois respeitosos mandatos, cozinha e população negra são praticamente sinônimos. O enraizamento da ideia é tão aprofundado que ultrapassa contextos informais e vira recurso linguístico para quem for. Considerando o emblemático caso, pensemos — o que representa a cozinha na história do trabalho de mulheres negras no Brasil?

Marcel Gauttherot | Instituto Moreira Salles.

No livro Um pé na cozinha: Um olhar sócio-histórico para o trabalho de cozinheiras negras no Brasil, de Taís de Sant’Anna Machado, “a cozinha é uma metáfora para entender o lugar e o papel essencial de mulheres negras na história brasileira e o esforço sistemático de invisibilização de sua importância por parte das elites e de autoridades governamentais”. O fio condutor da obra, analisado às minúcias, é o trabalho culinário doméstico e profissional como um recurso de ação social e política, considerando a criatividade que essas trabalhadoras empregam para construir e manter laços familiares e comunitários em prol da sobrevivência. Adaptado da tese de doutorado da socióloga, Um pé na cozinha é uma impactante investigação dos processos de profissionalização dessas mulheres na cozinha doméstica do pós-abolição até a gastronomia contemporânea. 

É a partir de processos históricos e trajetórias individuais, tendo como base registros documentais e entrevistas que realizou com cozinheiras e chefs negras, que Taís constrói um panorama da resistência de mulheres negras. Ao longo de 400 páginas — lançadas em cuidadosa edição da Editora Fósforo —, expõe as dinâmicas de poder que se estabelecem entre patrões brancos e cozinheiras negras que permitem a manutenção do estilo de vida das classes média e alta do país em detrimento da qualidade de vida de mulheres que trabalham em condições exaustivas, precárias e miseravelmente remuneradas.

“Considero a expressão ‘um pé na cozinha’ elucidativa da naturalização da presença de pessoas negras nesse lugar, bem como da efetividade de narrativas que romantizam as condições desse trabalho e de suas vidas — e de como o racismo antinegritude opera no Brasil.”

Entre os capítulos — divididos em uma parte I e uma parte II —, a autora detalha algumas histórias que, por ilustrar tão bem os pontos do livro com nada mais do que a realidade, chegam a pesar nas entranhas de quem está lendo. São trajetórias arrebatadoras de cozinheiras importantes na construção da culinária brasileira, relatos de feitos que, infelizmente, não figuram com o devido destaque nas narrativas mais consumidas na gastronomia (nem aqui e nem em nenhum lugar). É o caso, por exemplo, de Bené Ricardo, a primeira mulher no Brasil a conseguir se profissionalizar como cozinheira — mulher, e mulher negra. Ao ler as idas e vindas da cozinheira, fica clara a construção de um campo gastronômico brasileiro no século 21 e o (não) lugar reservado às cozinheiras negras. O talento inquestionável de Benê, e o de tantas outras, nunca poderia ser maior do que a narrativa colonial, misógina e racista constantemente ratificada com brutalidade ao longo de nossa história.

Reflexão, dor e provocação — esse é Um pé na cozinha, um livro para lá de necessário.

Confira a nossa conversa com Taís de Sant’Anna Machado.

Em termos de representação do racismo multiestrutural que trespassa, e perfura, toda a história brasileira, poucas coisas são tão palpáveis quanto a figura da cozinha. A gênese dessa tese, agora transformada em livro, vem um pouco daí, dum desejo de apontar aquilo que acontece em cada e de, a partir daí, ampliar a ideia de como isso acontece em cada esquina, de todas as cidades, desde sempre?

Taís de Sant’Anna Machado: Um dos objetivos do livro é exatamente mostrar como a cozinha é um dos espaços mais importantes para entender as hierarquias raciais, de gênero e de classe que estruturam a sociedade brasileira. Assim, uma parte da história é evidenciar, a partir da cozinha, o lugar e o papel essencial de mulheres negras na história brasileira e o esforço sistemático de invisibilização de sua importância por parte das elites e de autoridades governamentais. Ao mesmo tempo, como a manutenção do estilo de vida e da alimentação das classes médias e altas, majoritariamente brancas, depende (e sempre dependeu) do trabalho culinário de mulheres negras em condições primeiramente escravizadas e, mais tarde, precárias, violentas e miseravelmente remuneradas. Nesse sentido, sim, a intenção do livro é utilizar a cozinha para mostrar como o funcionamento da sociedade brasileira se fundamenta na exploração econômica e na violência contra a população negra, como é o caso das cozinheiras negras.

Escrito em meio à pandemia e também, de um jeito ou de outro, sobre a pandemia, já que o livro comenta a amplitude de suas consequências especialmente para as trabalhadoras negras. A intensidade de sensações proveniente de escrever no “calor do momento” e a celeridade dos fatos novos que iam, e vão, aparecendo a cada dia impactaram a sua produção de que jeito? 

TSM: Como socióloga, aprendi desde o começo com outras pesquisadoras negras que o tempo em que vivemos afeta a nossa produção intelectual. No caso de uma pandemia, era algo ainda mais evidente, uma vez que toda a minha existência, durante o processo de escrita, foi impactada por esse momento histórico. Mas isto ia para muito além de mim. Um exemplo disso era que enquanto eu ouvia parte da classe média sugerir que a solução para o contágio era ficar em casa, e pedir a entrega de comida e afins, era inevitável pensar que, para isso, cozinheiras majoritariamente negras teriam de sair de suas casas para atender essa demanda. Ou também o caso de alguns estados e municípios que incluíram o trabalho doméstico no rol de trabalhos essenciais na pandemia, e que recuaram apenas pela pressão da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) sobre o Ministério Público do Trabalho. A pandemia expôs ainda mais as desigualdades raciais, de gênero e de classe da sociedade brasileira, e os dados estatísticos apontam que mulheres negras foram um dos grupos que mais sofreram com suas consequências — estudos têm mostrado como a taxa de mortalidade de trabalhadoras negras por Covid-19 foi maior do que o de qualquer outro grupo em ocupações que exigem menor grau de instrução.

Benê Ricardo, a primeira mulher negra a se profissionalizar cozinheira no Brasil | Reprodução

A expressão que dá nome ao livro — “um pé na cozinha” —, à exemplo de tantas outras, elucida a antinegritude que opera há tempos no Brasil. É o discurso dando forma e propagando preconceitos. No meio das infinitas pautas em prol da quebra das estruturas racistas, símbolos de um país que ainda tem muito a reparar, a correção linguística consegue ter o fôlego que deveria?   

TSM: O título do livro não se propõe a ser uma correção linguística. A intenção é a de mostrar como a expressão reflete muitas camadas de sentido da história. A primeira que destacaria é o uso corriqueiro – e racista – da expressão, que é muito utilizada por pessoas brancas para defender uma ancestralidade negra e negar sua brancura. A segunda camada de sentido, que se articula e em certa medida responde a esse uso cínico da história da presença de mulheres negras na cozinha, é mostrar como essa expressão, usada de maneira leviana, esconde as condições de trabalho exaustivas, precárias, miseravelmente remuneradas e, não raro, marcadas por episódios de violência sexual. Além disso, também parece ignorar a discriminação e exclusão de mulheres negras no mercado de trabalho que, com base em uma política racista de “boa aparência”, confinou essas trabalhadoras à cozinha (e a outras funções do trabalho doméstico e do trabalho informal). E a terceira camada que defendo, e a mais importante, é que, a partir desse confinamento à cozinha, mulheres negras constroem repertórios de conhecimento culinário, redes de sociabilidade, de apoio e de afeto, além de projetos de disrupção de suas condições de vida.

Você fala sobre um “passado irrecuperável” quando explica o porquê de usar a fabulação crítica, expandindo algumas histórias contadas pela metade por falta de documentação. Seria essa uma ferramenta benéfica, até central, para muitas das revisitas históricas que precisamos fazer?

TSM: Uma vez que a história e as perspectivas de cozinheiras negras são consideradas como algo menor, ou mesmo irrelevante, como parte do racismo antinegritude que também afeta as políticas de arquivo e de produção de conhecimento, a fabulação crítica pode ser a única opção possível para parte do trabalho histórico. No entanto, ainda há muitos registros históricos que precisam ser revisitados ou considerados, especialmente a partir de um olhar que considere a agência e a percepção crítica de cozinheiras negras, algo que historiadores negros e/ou antirracistas tem feito nas últimas décadas, tanto no Brasil quanto no exterior.

Pego um gancho de um trecho citado no livro, se não me engano do Robert Kelley, que diz: “A aparência do silêncio e da passividade não só enganou, mas frequentemente teve a intenção de enganar.” Você mesma arrebata e diz que esse “anonimato delas, no entanto, não implica aquiescência”. Nos moldes de hoje, considerando até redes sociais e que tais, como isso se dá? Se é que se dá. Estamos andando para frente?

TSM: Meu trabalho não trata de redes sociais, mas, como eu discuto no livro, penso o racismo como uma tecnologia que se atualiza constantemente, como definido por Ruha Benjamin. E, quando se fala de redes sociais, é preciso considerar que mulheres negras são as principais vítimas do discurso de ódio nestes espaços, como mostra o estudo de Luiz Valério Trindade. Nesse sentido, o que eu diria é que mulheres negras continuam precisando se proteger e se guardar em espaços violentos como a Internet e, assim, que isso continua acontecendo em razão do racismo antinegritude e da misoginia.

As figuras de Dona Benta e Tia Nastácia são particularmente cruéis quando pensamos que estão presentes em obras infanto-juvenis, cujo teor tem o caráter formativo como intrínseco. Ou seja, as ideias de Monteiro Lobato representadas nas duas, de um jeito ou de outro, seguirão sendo passadas adiante através da popularidade do Sítio do Picapau Amarelo. Qual é o melhor jeito de ir contra marés canônicas que carregam ideias ultrapassadas? As “reflexões iniciais” de Um pé na cozinha, para usar o mesmo termo que você, são um caminho?

TSM: Eu diria que o melhor jeito de combater o racismo na literatura é difundir o trabalho de intelectuais negros e negras, que não recebem o mesmo espaço que esse autor e nem ao menos o mesmo destaque que o debate em torno do racismo de sua obra. Quanto a esse autor, por exemplo, são diversas as contribuições críticas de ativistas, pesquisadores e pesquisadoras negras, e Um pé na cozinha é só uma pequena contribuição a essa corrente.

Jacira Sampaio, atriz que interpretou a Tia Anastácia, na adaptação para a TV do “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, série baseada na obra de Monteiro Lobato.

Você permeia os capítulos com interlúdios, como os de Maria de São Pedro e Benê Ricardo,  cozinheiras negras que quebraram todo tipo de barreira, mas que, mesmo assim, viveram sob a vigia constante da violência racial fora e dentro de seus contextos profissionais. Histórias como essas inspiram ou, infelizmente, mais expõem o quão arraigada está a sistemática antinegra? 

TSM: Como eu defendo no livro, não se tratam de histórias meramente inspiradoras ou de mostrar apenas como o racismo antinegritude afeta todas as camadas da vida de mulheres negras, e sim o de entender a complexidade de suas formas de agência e de resistência considerando esse contexto. Nesse sentido, são histórias grandiosas ao mesmo tempo em que expõem as condições impossíveis de sobrevivência a que foram submetidas em razão do racismo e do sexismo. Uma coisa não se dissocia da outra. 

Um aspecto importantíssimo do seu trabalho é ilustrar a continuidade dos problemas com histórias de cozinheiras negras reais. Como foi esse processo de entrevistas e pesquisas?

TSM: A intenção do livro é mostrar como existe uma história de longa duração das condições de trabalho e de vida de cozinheiras negras. Na verdade, esse processo aconteceu de trás pra frente: a tese seria sobre chefs de cozinha negras, então as entrevistas foram o primeiro material produzido para a pesquisa. No entanto, a análise do material descortinou experiências de trabalho que eu não parecia encontrar ferramentas teóricas ou metodológicas adequadas para explicar nos estudos do campo da gastronomia. E, assim, foi necessário voltar um pouco mais no tempo e produzir uma análise sócio-histórica do trabalho culinário feminino e negro no Brasil — algo muito mais ambicioso do que eu havia previsto inicialmente. Sem pensar nessa história criticamente, como um contraponto ao caráter romantizador sobre o papel de cozinheiras negras e de suas condições de trabalho — que ainda é bastante comum em estudos da área de alimentação — não seria possível entender as experiências contemporâneas das chefs de cozinha e cozinheiras profissionais negras que entrevistei. E foi assim que as chefs se tornaram uma parte do trabalho, em uma história de longa duração do trabalho íntimo, invisibilizado e essencial de mulheres negras na cozinha.

O que você acha da ideia — ilusão? — do brasileiro como um povo cordial que celebra a sua miscigenação?

TSM: Essa ideia é parte de um projeto de nação que busca manter a estrutura de exploração econômica e de violência racial contra pessoas não-brancas. A cozinha é um dos espaços utilizados por essa narrativa racista, como discuto no livro.

#43MiragemCulturaSociedade

Religiões, política e o desafio de construção de uma laicidade efetivamente democrática

Um dos fatos relevantes nas eleições ocorridas no Brasil, nesse ano de 2022, foi a emergência de agentes religiosos como protagonistas do jogo político. A participação de líderes, destacadamente pastores e pastoras das igrejas cristãs protestantes neopentecostais, para influenciar e controlar o voto dos fiéis e o alinhamento

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#43MiragemCulturaSociedade

Brasil: “Um enorme passado pela frente”

“Cavalheiros, a vida é muito curta; mas gastar em baixezas esse tempo, fora longo demais, ainda que a vida cavalgasse o ponteiro de um relógio, para extinguir-se dentro de uma hora. Viver, para pisar em reis e príncipes; morrer, mas com bravura, e eles conosco. Quanto à nossa

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Mais do que nunca, qualquer tipo de produção que respeita o seu próprio tempo é algo valioso, digno de admiração. Imagine só, nos dias de hoje, conseguir pôr em prática a habilidade de ir na contramão do imediatismo que nos convoca, sem tato e a toda hora, para a tela do celular. Sentir na mão um tecido ou uma renda parece um nado corajoso na direção oposta à maré da atualidade, mas cada braçada desse exercício de bravura traz como recompensa um emaranhado composto pelos fios da tranquilidade e, num ritmo apaziguado, a vida se torna palpável — pelo menos por ora. 

Helena e Maria.

Como um contraste necessário ao mundo frenético de hoje, eis Ómana, uma coletividade de pesquisa e design que se movimenta em nome da valorização do artesanato brasileiro, sobretudo do trabalho de mestras rendeiras e bordadeiras que dominam os ofícios mais preciosos. O projeto foi idealizado pela antropóloga e designer Helena Kussik, que desde 2010 está envolvida com pesquisas relacionadas ao fazer manual, tendo especial interesse nas expressões têxteis.

São 3 as vias para a realização do seu objetivo: 1 — o registro, que, muitas vezes, acaba se perdendo por falta de recursos e meios, impedindo a construção de catálogos e inviabilizando o alcance de trabalhos; 2 — a difusão de saberes, pois, a partir da irradiação das habilidades dessas artesãs, a luz da inspiração chega nas próximas mãos e o fazer têxtil é passado adiante; e 3 — a experimentação técnica, que dá fôlego ao design participativo e à criação de produtos únicos, oriundos de vivências distintas.

Com isso em mente, dissecar o nome fica mais fácil: “Ómana”, por incrível que pareça, não é a deusa egípcia da costura ou qualquer coisa que o valha. Na verdade, o nome vem da linguagem popular, em que “ó, mana” é usado nos quatro cantos do Brasil como um despretensioso começo de frase, como um vocativo cheio de respeito informal e até como uma exclamação de surpresa. Pois bem, é fato que o nome não é de deidades advindas de outras culturas. No entanto, há alguns anos, desde que o projeto começou a acontecer, ele pode ser tido como a alcunha conferida às divindades brasileiras do artesanato. 

Que fique a dica para os dicionários:

ó.ma.na: nome feminino

1. Deusas brasileiras da construção têxtil e seus adornos;
2. Espaço de pesquisa e design que visa a valorização dos têxteis artesanais brasileiros, suas histórias, territórios e mestras.

Para entrelaçar ainda mais vivências, Amarello & Ómana se juntam para a feira Coma Bem, Viva Melhor. Os belos propósitos de Helena e seu projeto se traduzem aqui numa luminária em renda renascença e vime, criada pelas rendeiras da Associação de São João do Tigre — Cariri Paraibano. 

Luminário Caju & Junco para a Coleção Coma Bem, Viva Melhor

A renascença é uma renda que se forma pela ligação do lacê, fitilho que serve de base para os pontos da linha e da agulha. Comumente, os desenhos que estampam a renda renascença são de cunho pessoal — arabescos, flores e folhas, que são passados às artesãs por suas bisavós, avós, mães e tias. Aqui, um a um, os pontos constroem um tecido cujos detalhes compõem graciosamente cajus e folhas do cajueiro, num desenho delicado elaborado por Aline Vilhena.

Esse fazer artesanal evoca atributos pacatos, avessos à agitação, como a delicadeza, a paciência e a destreza manual. Rendar, no fim, é um jeito de respirar. É a vida feita à mão.

A carreira da cineasta Laís Bodanzky é recheada de incursões bem-sucedidaspor diferentes gêneros e matizes — do comentário social e antimanicomial de “O Bicho de Sete Cabeças” (2000), passou pelo conto de amadurecimento de “As Melhores Coisas do Mundo” (2010) e chegou ao complexo estudo da mulher moderna de “Como Nossos Pais” (2017). Isso para não citar o envolvimento com diversas outras produções, entre elas a animação “Uma História de Amor e Fúria” (2013) e o documentário “Ex-Pajé” (2018), ambas assinadas por Luiz Bolognesi.

Cauã Reymond em A Viagem de Pedro / Foto: divulgação Vitrine Filmes

Agora, explorando a famigerada lacuna de registros acerca dos meses em que se deram o regresso de Dom Pedro I à Europa, pouco depois de abdicar ao trono do Brasil, a realizadora toma a liberdade de, por meio do olhar contemporâneo, falar retroativamente sobre o apagamento histórico da mulher, a masculinidade tóxica e o racismo — problemas que perduram até hoje. Em ritmo de bicentenário da Independência, “A Viagem de Pedro” chega aos cinemas para explicitar as contradições daquele Brasil incipiente de 1831 e refletir sobre este de agora, tão incoerente quanto. 
Não por acaso, encontrando nos paradoxos a sua espinha dorsal, o drama histórico de Bodanzky se passa quase que totalmente dentro de um navio, enquanto o imperador é assombrado pelas memórias do passado. A “viagem” conclamada no título, para além do literal itinerário marítimo, também faz referência às alucinações pelas quais o personagem interpretado por Cauã Reymond passa ao longo do período de confinamento na embarcação. Para que a deterioração do imperador se faça gritante e se manifeste não apenas com recursos superficiais (roupas puídas, olhos esbugalhados, cabelo e barba desgrenhados), os personagens que o circundam representam valores e problemáticas que asfixiam sua imponência e probidade.

Maria Leopoldina (Luise Heyer), primeira esposa de Dom Pedro, morta em 1826, aparece em forma de lembrança para realçar a perspectiva feminina do roteiro. Amélia (Victória Guerra), a segunda esposa — essa, no entanto, totalmente viva na fragata —, joga luz sobre a insegurança do marido, que a trata com rispidez e violência por não conseguir engravidá-la. Lars (Welket Bunguê), o contra-almirante da tripulação, evoca a temática da escravidão a partir da perspectiva de seus “privilégios”, sendo a única pessoa negra que senta à mesa com Pedro. E Dira (Isabél Zuaa), trabalhadora livre e negra da embarcação, faz respingar comentários sobre a mulher e a escravatura, oferecendo com sua forte presença as melhores pinceladas de todo o quadro que é o filme. O elenco também conta com Sergio Laurentino e Francis Magee, além da participação especial de Sofia Marques, filha de Reymond.

Muito embora tenhamos personagens importantes pelos arrabaldes, a personalidade central ainda é a de Dom Pedro I. Por mais que se fuja do ufanismo típico das biopics norte-americanas, evitando a todo custo aquilo que hoje entendemos como “passação de pano”, a perspectiva da história contada é, acima de qualquer outra, a do imperador hegemônico. Mas, às inevitáveis e compreensíveis críticas que surgirão à tal característica, pode-se argumentar que o propósito do longa-metragem é justamente traçar um paralelo entre aquele homem branco europeu e os cacos provenientes de sua figura despedaçada, estilhaços que fustigam o Brasil de hoje

Vemos em “A Viagem de Pedro” uma pessoa que perdeu o controle, inundado em contradições, presa entre duas nações que não possuem o seu coração (o que é irônico, tendo em vista a atual exposição do órgão torácico do imperador, conservado em formol). Bodanzky e Reymond derrubam o herói da Independência de cima do seu cavalo para construir a imagem de um imperador indefeso e sem trono, de alguém que segue à deriva por suas imperfeições e comportamentos erráticos. Todos — de Dom Pedro e Maria Leopoldina à população brasileira, de então e de agora — estão a bordo de uma jornada que, na realidade, nada tem de heróica. O navio se encaminha para uma grande tragédia. 

Em dado momento do filme, o imperador se questiona “Como vou ganhar uma guerra de pau mole?“. Da pior maneira possível, a frase faz coro à esdrúxula reivindicação de Jair Bolsonaro ao título de “imbrochável”, esbravejada em pleno bicentenário da Independência, evidenciando a falência de muito do que foi imaginado para o país. O Brasil contraditório, nem lá nem cá, é tropical mas continental, servil mas opressivo, plural mas desigual. E, ao que tudo indica, também é impotente — mesmo no auge de sua imbrochabilidade. 

Brasil, 2022: os grilhões reluzem à luz do sol e Dom Pedro segue de mãos dadas com a nação que libertou há 200 anos.

#41FagulhaArteArtes VisuaisCinema

A distopia como representação do real no cinema brasileiro atual

O cinema brasileiro pós-Retomada, ou seja, pós-Cidade de Deus (2002), encontrou formas múltiplas de expressão, alcançando uma pluralidade pouco vista até então. Entre as tendências mais significativas do período estavam as dos documentários e aquelas que buscavam o que Beatriz Jaguaribe chamou de choque do real. Nesse contexto,

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