Durante a gravidez, fatores genéticos influenciam o desenvolvimento do embrião à medida que ele se torna um feto. Uma pessoa XX (menina) desenvolve, usualmente, os ovários. Uma pessoa XY (menino) desenvolve os testículos. Nos indivíduos com cromossomos XY, existe um gene no braço do cromossomo Y chamado SRY. Esse gene assinala o desenvolvimento dos testículos. Quando o SRY não está presente, os ovários se desenvolvem, e assim surge a anatomia feminina. Se os testículos se desenvolvem, eles irão produzir um hormônio masculino chamado testosterona. Esse hormônio instrui o corpo a desenvolver os genitais masculinos. Ele também dita o desenvolvimento de ossos maiores, uma estrutura do cérebro única dos homens, entre outras características físicas.
A biologia básica por trás de como os cromossomos e os genes ditam a anatomia masculina ou feminina do corpo humano é há muito conhecida. Mas os investigadores continuam pesquisando sobre a complexidade da determinação do sexo humano e ainda estão distantes de saber o que determina realmente o gênero.
“Até que eu saiba, nenhum estudo foi conclusivo sobre de onde a nossa identidade sexual vem” – diz Kristina Olson, da Universidade de Washington em Seattle.
Como psicóloga de desenvolvimento, Olson estuda como as pessoas se desenvolvem e mudam à medida que crescem, da infância ao estado adulto. Algumas pessoas especularam que os genes, o ambiente ou o nível de hormônios podem desempenhar um papel importante na determinação do gênero. Olson, por sua vez, fala: “Eu não conheço nenhum estudo que mostre um ou outro, ou a combinação de hormônios que determina o gênero”.
Por muitos anos, cuidadosos observadores identificaram que crianças em fase inicial começam a expressar fortemente sua preferência por determinados brinquedos, cores e roupas. No mesmo momento, as crianças começam a expressar sua identidade de gênero.
“O que nós sabemos sobre o desenvolvimento típico do gênero é que crianças de 2 ou 3 anos sabem se são meninas ou meninos”, diz Olson.
Na mesma idade, muitas crianças transgênero irão também expressar sua identidade. Porém, nesses casos, será diferente do esperado. Olson fala: “A maioria das pessoas acha chocante que uma criança transgênero possa saber que é de um determinado gênero tão cedo.” No estudo de Olson, fica claro que a identidade de gênero aparece na mesma idade para crianças transgênero e cisgênero.
Paywall
Minha ideia sobre o Feminino é muito pessoal e delicada, pois faz parte da minha vivência como mulher. Ainda que não tenha nascido mulher, me tornei mulher.
Tenho certo cuidado em não contextualizar de forma errônea o campo lexical da palavra Feminino: feminismo, feminilidade, feminicídio, feromônio, e por aí vai…
Como a maioria das mulheres trans, a tendência ao feminino e o descobrimento do universo feminino são fortes desde criança e marcados por ações positivas e negativas. Sempre sonhei em ser mulher, em viver como mulher. Hoje, sou realizada em um mundo que ainda não vê isso com bons olhos. Mas vivo, e agradeço a Deus por ter conquistado meu lugar ao sol.
Acredito que, sendo uma professora com 23 anos de magistério, só tenho a contribuir, valorizando o universo feminino, que aos poucos vem ganhando um espaço merecido – e tomara que melhore.
Para muita gente, hoje em dia, o universo do feminino não se limita apenas a mulheres heterossexuais. Vejo, já por algum tempo, homens héteros femininos, lésbicas femininas, gays andróginos, travestis e trans. Sinto na pele a dor e a delícia de ser o que é uma trans – sim, uma trans feminina, que adoro ser no meu dia a dia.
Feminino, para alguns, ainda remete ao sexo frágil. Não no meu caso. Para ser quem sou, batalho todo dia, para mostrar que estereótipos negativos são de pessoas de pensamento fraco. Biologicamente, não tenho cromossomos XX, mas, na prática, meu modo de ser mostra o quanto sou feminina.
Adoro ver o lado feminino do ser; todo mundo tem um lado feminino. O melhor de tudo é quando você faz uso da feminilidade, e, quando o resultado dá certo, fico em êxtase. Tão em voga atualmente, o feminismo segue sempre lutando pelos direitos das mulheres e sendo interpretado de várias maneiras.
Particularmente, sou mais o feromônio, usado tantas vezes, de várias formas. A minha fica nos cinco sentidos, literalmente: tato, audição, visão, paladar e olfato. O melhor jargão ou frase de impacto para resumir minha vida: “Aceita que dói menos”.
As pessoas tendem a descrever materiais flexíveis e facilmente transformáveis como o plásticos. A maioria desses materiais é feita de polímeros, geralmente criados a partir de combustíveis fósseis. Mas até mesmo comportamentos podem ser flexíveis e mutáveis. Nesse sentido, eles também podem ser considerados plásticos.
Paul Vasey trabalha na Universidade de Lethbridge, em Alberta, no Canadá. Como psicólogo comparativo, ele estuda os comportamentos dos animais, e percebeu que, em termos de sexo biológico, estes geralmente não são rígidos ou imutáveis. Alguns comportamentos parecem ser plásticos.
Ao fazer comparações entre as espécies, é importante levar em consideração algumas diferenças importantes, Vasey observa. Por exemplo: “Quando você tem uma identidade, você precisa ter um conceito de si mesmo”. Na verdade, a identidade e o gênero estão intimamente conectados nas pessoas. Pode ser quase impossível desligar um do outro.
Porém, com exceção talvez dos grandes primatas, diz Vasey, há muito pouca evidência de um conceito de “si mesmo” nos animais. Isso significa que eles não sabem que estão agindo como machos ou fêmeas. Eles simplesmente manifestam seus comportamentos típicos – e às vezes não típicos – do sexo ao qual pertencem. Apesar disso, há muitos exemplos de condições de intersexualidade no reino animal. Esses sinais de ambos os sexos podem aparecer tanto nos comportamentos como nos traços físicos.
Por exemplo, o livro Biological Exuberance, de 1999, aponta que mais de 50 espécies de peixes de recifes são capazes de inverter seu órgão sexual (ovários que produzem óvulos e testículos que produzem espermatozoides). Isso se chama transexualidade. Ela pode afetar bodiões, garoupas, peixes-papagaio, peixes-anjo e outros. Os peixes que começam a vida como fêmeas, com ovários em pleno funcionamento, podem sofrer uma mudança radical e, voilà, passam a ter um sistema reprodutor masculino. Mesmo com a mudança de sexo, os machos e as fêmeas continuam capazes de se reproduzir.
Diversos tipos de aves, como parulídeos e avestruzes, também podem exibir um mosaico de características masculinas e femininas. As cores, a plumagem, o canto e outras características de um sexo podem aparecer em membros do sexo oposto.
Pesquisadores já documentaram condições de intersexualidade em ursos pardos, negros e polares. Em certas populações, uma pequena percentagem de fêmeas tem genitálias que se assemelham às masculinas. Algumas delas têm filhotes, apesar de parecerem machos. A intersexualidade também apareceu em babuínos, cervos, alces, búfalos e cangurus. Ninguém sabe bem por que, mas, ao menos em alguns casos, poluentes na água – como pesticidas – criaram condições claramente anormais. Por exemplo, biólogos encontraram óvulos nos testículos de alguns jacarés e peixes machos que haviam sido expostos a certos pesticidas.
O que são disruptores endócrinos?
Em alguns experimentos, a exposição a pesticidas chegou a transformar sapos geneticamente machos no que pareciam ser fêmeas. Estas eram capazes de ter uma ninhada saudável – embora sempre composta só por machos (como eram ambos seus pais originalmente). Em outros casos, condições de intersexualidade surgiram em cenários completamente naturais.
Talvez um dos melhores exemplos da plasticidade sexual venha de um novo estudo sobre rãs europeias. Uma única espécie – Rana temporaria – vive nas florestas entre a Espanha e a Noruega. Uma quantidade aproximadamente igual de machos e fêmeas se desenvolve a partir dos girinos na “raça” norte. Porém, na região sul, outra raça dessa espécie somente gera fêmeas. Todas têm ovários, o órgão que produz os óvulos, mas nem todas permanecem fêmeas. Cerca de metade dessas rãs eventualmente perde seus ovários e desenvolve testículos, tornando-se machos também capazes de se reproduzir.
A raça que inicialmente tem ovários depende de estímulos ambientais para desencadear sua mudança de fêmea para macho. Pesquisadores registraram essas diferenças nas rãs na edição de 7 de maio de 2008 do periódico Proceedings of the Royal Society B.
O espelho
por Nuria Basker
No meu quarto tem um espelho. Eu olho de frente e, em vez de uma, são duzentas, duzentas e vinte imagens. Vejo as vencedoras e as perdedoras, as belas e as cegas, as certezas e o futuro. Vejo quem eu nem reconheceria. Uma senhora de noventa e sete anos tenta pegar um copo d’água, as mãos finas mal alcançam. As mãos finas são as minhas. Vejo ainda uma criança, loira. Espera. O que meu nariz está fazendo na cara dela? Ai, se eu pego essa menina. E de pensar que uma das duzentas, duzentas e vinte, a pior delas, seria capaz de maltratar uma criança.
Lá no fundo estão a enfermeira, a policial, a louca e a assistente social. Todas conversam com a que queria maltratar uma criança. Facilmente a dissuadem. A executiva politicamente correta, bem na frente, aplaude. Eu tenho medo de tanta gente. Eu tenho medo das que duvidam de mim. Eu tenho medo das que me incentivam com segundas intenções. Eu tenho medo de mim. Preciso saber falar tantas línguas que até do código masculino preciso entender (umas quarenta, quarenta e cinco imagens são de homens). Eu olho no espelho todo santo dia e nenhuma delas parece morrer. Pelo contrário, algumas acreditam em espíritos, o que só multiplica a multidão multidisciplinar. Duas ou três rainhas (sendo uma africana), guerreiros, Mata Hari, um médico chinês, camponeses, Cleópatra e uma etrusca sonhadora usando brinco de ouro. Tento buscar a escritora, o guru, o anjo decaído, a centrada, a dançarina, a deusa do prazer. Eu tenho medo de não agradar os que tanto gosto. Sei que todos estão lá e mando mensagens. Um beijo, uma piscada, uma oração, um poema, uma dúvida. À noite, apago a luz e meus sonhos continuam conversando com o bendito especulador. O que me vê. O espelho. O que me dá medo.
Medo
por Léo Coutinho
Em 2002, a atriz Regina Duarte provocou polêmica ao aparecer no programa eleitoral do então candidato José Serra dizendo que sentia medo diante da possibilidade de ver o Lula lá e o Brasil tragado por um turbulento retrocesso econômico. Assim como ela, a parcela da sociedade que pode distinguir impressão de estabilidade com estabilidade de fato sofria a mesma sensação. Em função de cinco ou seis crises estrangeiras, o Brasil estava economicamente triste, enfermo, mas, diante do quadro internacional, todos seus índices estavam melhorando. Quer dizer, o remédio amargo que é o tripé do Plano Real estava funcionando: câmbio flutuante, metas de inflação e responsabilidade fiscal.
Levando em consideração que o PT votou contra o Plano Real e contra a Lei de Responsabilidade Fiscal, qualquer um sentiria medo, e notadamente o mercado financeiro, que, apavorado com a iminente vitória da oposição, sacava seus investimentos brasileiros, agravando a situação. Mas então veio a Carta aos Brasileiros, na qual o ora postulante Lula procurava tranquilizar os esclarecidos, assumindo que muito do que dizia não passava de bravatas e que não mexeria na economia.
Cumpriu o que disse, mas daquele jeito que é possível aos bravateiros. Digo, como nunca foi de oposição, mas sempre “do contra”, quando virou situação ele não sabia apontar um norte para o Brasil. Simples: quem é contra tudo, não é a favor de nada. Assim, uma vez lá lhe restou chamar um tucano banqueiro para o Banco Central e determinar que tudo continuasse como antes.
O resultado é sabido e, depois de oito anos, está refletido na estratosférica popularidade do presidente. Quem disser que a economia está ruim vai arranjar briga com o povo brasileiro, que se transformou em classe C, trocou a geladeira, comprou o primeiro carro e até foi dar um passeio de navio. Porém, com estaleiro construído pelo Plano Real, e com o mundo navegando em mar de golfo (para usar figuras náuticas em homenagem a tantos cruzeiros turísticos), o governo poderia ter colaborado na armação de um transatlântico; porém, tudo o que conseguiu foi entregar uma lancha. Branquinha, bonitinha, satisfatória, mas apenas uma lancha, sem autonomia nem capacidade para nos levar adiante.
Para continuar em termos marinheiros, é só olhar para os portos para ver que não vamos longe: um navio que chega em Santos espera, em média, cinco dias para atracar. Por terra, as estradas do país estão se esfarelando, e a malha ferroviária foi comida pelas traças. Os aeroportos mais parecem arenas do escárnio, sem a menor capacidade de acompanhar o crescimento econômico como está. E, por falar em arenas, é bom sempre lembrar que ainda há quem comemore a vinda da Copa do Mundo e das Olimpíadas. A indústria regrediu um século e se contenta com o papel de fornecedor de matéria-prima para o resto do mundo.
Hoje, às vésperas de outra decisão política, se perguntarem à Namoradinha do Brasil se ela continua com medo, imagino que a resposta seja afirmativa, ainda que a raiz tenha mudado. Assim como todos nós, ela deve querer um Brasil maior e melhor, mas não teme um retrocesso econômico para já. Até porque, quando começam a brincar com a democracia, defendendo controle da mídia, osculando ditadores nos sertões e alhures, forjando dossiês, quebrando sigilos financeiros, debochando das leis vigentes, os mais experientes se apavoram e se distraem de medos menores, porque já viram o filme e sabem que ele não é bonito. Ela própria experimentou a patrulha ideológica de muitos colegas, que depois tiveram que se redimir – mas não se redimiram – quando dos escândalos do mensalão, dos dólares da cueca, dos aloprados, dos churrasqueiros.
O mundo gira, e quem antes se fingia de vítima de preconceito agora semeia o medo para impressionar os mais humildes. Como tudo que há de bom por aí é coisa nova, “nunca antes na história deste país” experimentada, o Bolsa Família não é mais filho do Bolsa Escola, e foi inventado pelo governo atual. Assim sendo, pode acabar de uma hora para outra caso o povo não vote em quem o Lula mandar. Mas, afinal, quem tem medo… do lobo mau?
Vestir-se da vida
por Nuria Basker
Aos seis anos de idade, ainda não nos vestimos da vida. Nossa pele fresca não aceita o que é tecido por olhos cansados, o que é costurado por linhas retas ou bordado em ponto cruz. As roupas são feitas para sujar, os shorts para molhar, os chapéus para perder e as meias para encardir. Se é para cobrir a pele, banho de esguicho cai como uma luva; banho de piscina, como um cobertor. Só banho de chuveiro que… Bem… fica para depois.
Aos seis anos, a roupa é apenas a expectativa quebrada do presente de Natal. É apenas o que pinica no piquenique. A roupa rouba tempo da criança rouca: tem de colocar cachecol, tem de se encapotar. Mas não é toda roupa que cai mal aos seis anos. A menina desta história, por exemplo, foi inspirada por motivo nobre: entre o jantar e a hora de dormir, resolveu se vestir de princesa. Na falta de uma fada madrinha, se virou com toalhas e panos de prato. Até um lençol pequeno, velhinho dos seus tempos de bebê, virou fazenda de renda. Ela estava de frente para o espelho e ia segurando todos os tecidos juntos longitudinalmente no seu corpo. As camadas iam engordando a saia, que já se parecia com aquelas ilustradas nos livros dos irmãos Grimm. Para segurar? O cinto da mamãe, claro. Deu um pouco de trabalho para colocar, mas ficou lindo. Em cima, sua blusinha de manga bufante, a mesma que odiava na hora das festas. Nem a madrasta, nem a Branca de Neve, nem qualquer outra concorrente da vizinhança viram alguém mais bela do que ela.
A satisfação pelo recém-criado traje a encorajou a mostrar a obra nos salões reais. Bastava descer as escadarias e encontrar o rei, a rainha e o bobo da corte, ou seja, o amigo chato que o pai insistia em levar para jantar (não, pensando bem, acho que os bobos, em sua sã inconsciência, jamais seriam coniventes com atos indelicados). Ela, a herdeira do trono. Ela, tocada pelo condão de sua própria imaginação. Ela que, em estado de graça, após finalmente encontrar algum prazer na vestimenta, flutuava pelos degraus, pé ante pé. Os sons dos talheres e das risadas empilhavam-se pesadamente como as paredes das muralhas. Mas, ainda assim, a corajosa infanta prosseguiu.
Ao vislumbrarem a figura ao pé da escada, os nobres se espantaram, minimizaram as euforias, demonstraram até uma certa admiração. Nem o monarca se furtou de elogiar a plenos pulmões. Na face norte da mesa, foi a vez da rainha pedir: “Uma voltinha, por favor”. Uma voltinha? Claro, por que não? Uma voltinha e… Ó, meu Deus! Som abafado. Reviraram-se os olhos. Reviravolta. Quebrou-se o encantamento. Era a maldição da bruxa que esqueceram de lhe avisar. A voltinha. Depois da pausa, risadas estrondosas, desrespeitosas, e, de princesa mais bela, ela passou à gata borralheira, antes mesmo da meia-noite.
O movimento revelou que sua saia não tinha parte de trás. Nem uma toalha, nem um pano de prato. Nada. Esqueceu do seu verso. O único tecido ali era o da calcinha de algodão com desenho de maçã. A princesa exposta. A princesa deposta em sua inocência. Dura lição aos seis anos. O lado desnudo, despojado, desprotegido pode bem se transformar em motivo de chacota. Ainda ao som dos comentários, os últimos antes de outro assunto qualquer, ela tirou rapidamente os panos e toalhas e se descobriu sozinha. Nua perante a vida, parada e perplexa no reverso de sua devoção.
Azul e vermelho
por Léo Coutinho
Muito embora pelados não sejamos iguais, vestidos somos mais diferentes. Mais do que proteger, a roupa serve para distinguir cultura, estilo, estado de espírito, religião, posição social e até política. Como nos antigos clãs ingleses, nos Estados Unidos os membros do partido democrata são identificados pelas gravatas desenhadas, enquanto os republicanos preferem as listradas, chamadas regimentais. Aqui no Brasil, as militâncias dos principais partidos procuram repetir as cores de suas bandeiras nas camisas que vestem no dia a dia: petistas em vermelho, tucanos em azul.
Mas, se no vestir eles nunca combinam, o mesmo não se confirma na hora de despirem-se. Acalme-se o leitor da Amarello: este cronista não tem pendores voyeurísticos, ou pelo menos não em relação a uma classe fisicamente tão pouco atraente. Quero antes é tentar uma metáfora para a transparência, visto que a única unanimidade recente do cenário político nacional é a preferência pelas doações ocultas para campanhas políticas.
O raciocínio mais óbvio que vem com essa notícia é que são todos uns sem-vergonhas, corruptos, bandidos. Porém, como a gente sabe que em qualquer classe haverá pelo menos um membro decente, fica a dúvida de por que a unanimidade ocorre justamente quando é este o assunto.
A verdade, quem dizer que sabe, estará mentindo. No máximo temos palpites, e o meu é óbvio: nem só de ideologia se faz política, e a dose de pragmatismo necessária para enfrentar uma campanha eleitoral dentro do sistema vigente inclui os tortuosos caminhos do caixa dois. É claro que um ou outro candidato a cargo legislativo consegue fazer tudo direito e cumprir a lei, mas, numa campanha majoritária, isso seria impossível. Se alguém acredita que é possível alcançar o segundo turno de uma eleição presidencial gastando menos de cem milhões de reais, como declaram os que chegaram lá, é porque um número tão alto passa a ser abstrato e comportar qualquer coisa, feito prêmio de loteria.
Uma vez diante da realidade de custos financeiros de uma disputa eleitoral, algumas dúvidas suscitam no eleitor: de onde vem/para onde vai essa dinheirama? Comparado ao salário do cargo, o “investimento se justifica”? Quer dizer, dá retorno? Essas são as perguntas mais comuns, que estabelecem a enfermidade, mas não contribuem para o tratamento. O que deveríamos nos perguntar é como fazer para extinguir a doença.
Uma das faces mais conhecidas da nudez é a vizinhança. Muitas das vezes, mal sabemos o nome de um vizinho, mas temos noções sobre seu padrão de vida, hábitos sociais, atividade profissional, preferências alimentares e até frequência sexual, e vice-versa. Isto é: os vizinhos têm as mesmas noções sobre as nossas vidas. Ninguém pode fugir. Pior: quanto mais se tentar fugir, esconder, disfarçar, agachar para não ser percebido, mais a bunda aparece e, com efeito, mais vão reparar. É como ir vestido a uma praia de nudismo.
Não seria esta a chave para a nossa representação parlamentar? Digo: conhecer os políticos como conhecemos os vizinhos, de longe e de perto, com ou sem intimidade, mas acesso fácil garantido na esquina, na banca, praça, padaria ou pela janela? Assim poderíamos acompanhar e fiscalizar o trabalho deles, cobrar ações e propor ideias, aumentando a participação popular na vida política.
É o que querem os defensores do voto distrital, sistema em que os políticos candidatos ao legislativo se conteriam em fazer campanha respeitando os limites do distrito onde moram e são conhecidos, portanto mais sensíveis aos anseios e carências das pessoas. Se quiser saber da Lapa, não pergunte a um moqueiro. Como pregava o governador Franco Montoro, que a história posicionou acima das picuinhas politiqueiras, “ninguém vive na União ou nos estados: as pessoas moram nos municípios”. Numa megalópole como São Paulo, as pessoas vivem em seus bairros, e é deles que podem saber; portanto, é neles e por eles que devem votar.
E alguém há de perguntar: mas o que tem isso com o financiamento de campanhas políticas? Ora, é só fazer a conta: quanto vai custar um café na padaria da esquina, na cidade vizinha e do outro lado do estado. Pior: de tão alto, esse custo só se justifica na hora da colheita dos votos, de modo que representante e representado serão ilustres desconhecidos que só se encontram a cada quatro anos, anulando a participação popular e enfraquecendo a democracia – que, assim como os naturalistas, precisa estar nua para estar plena. Para ela, um boné já é disfarce.
Manifesto
por Rose Klabin
Se a globalização vem afetando, de modo crescente, todas as áreas da vida moderna, na esfera da arte não poderia ser diferente. Hoje, a economia sem fronteiras está para a arte contemporânea assim como o nu, a paisagem e o mito estiveram, um dia, para o neoclassicismo, o impressionismo e a vanguarda.
Sempre vista como a antítese da “coisa banal”, arte era algo que não podia ser pensada apenas para o comércio ou o consumo comuns, mas se até há pouco tempo o envolvimento das empresas com esse mundo era um tanto obscuro, a ascensão de uma cultura cada vez mais movida a commodities mudou completamente esse cenário.
É claro que isso não se deu de uma hora para outra. As empresas atentaram para o fato de que associar sua marca a produtos culturais e produtores de cultura poderia ser um negócio lucrativo. Essa mudança aconteceu em todo o mundo, a começar pelo fato de que museus, que antes eram sustentados com verba pública, passaram a ser patrocinados por empresas privadas. É evidente que isso altera os critérios de seleção da coleção e das exposições e influi no modo como os artistas vão desenvolver seu trabalho. E além disso, aqui e no resto do mundo, as instituições passam a ser também uma opção de entretenimento público, com suas lojas, restaurantes etc.
MUDANÇA CONCEITUAL
Através dos tempos, a arte vem sendo considerada pela maioria dos colecionadores e artistas como um bem de consumo de luxo que está acima das preocupações meramente comerciais, e, até as duas últimas décadas, poucos artistas adotavam diretamente o dinheiro como tema.
Marcel Duchamp foi um dos primeiros artistas a discutir a validade financeira da obra de arte. O artista pagava seu dentista com cheques que desenhava de próprio punho, ou emitia títulos financeiros igualmente produzidos a mão, que seriam descontados para uso do dinheiro num esquema de jogo em cassino.
Outro que abordou o tema do significado da arte foi Yves Klein. Artista conceitual do pós-guerra, Klein expôs, em 1957, pinturas idênticas a preços totalmente diversos para ridicularizar a ideia da arte como algo que pode ser vendido.
Já o influente artista alemão Joseph Beuys criou uma mitologia em torno de si mesmo, lançando o artista no papel de xamã. Extremamente politizado, Beuys acreditava que o artista-xamã seria capaz de amplas transformações sociais. Em seus desenhos, performances e instalações escultóricas, ele utilizou materiais diversos, como banha, feltro, mel, folha de ouro e carcaça de animal. Beuys insistia em apresentar a teoria “Kunst=Kapital” (arte = capital), ou seja, a arte com seu próprio poder de persuasão e valor.
Nos Estados Unidos do pós-guerra, críticos como Clement Greenberg observaram o deslocamento inevitável dos artistas em direção ao comércio e à fama e das crescentes quantias de dinheiro e atenção dadas à arte contemporânea: mesmo a mais contestadora das artes era vendável.
Nos anos 1960, os artistas da Pop Art se aproveitavam do furor consumista e dos valores fúteis da sociedade como inspiração para transformar em arte a banalidade do cotidiano e os artigos de consumo. O maior exemplo de todos foi, sem dúvida, o artista e cineasta norte-americano Andy Warhol, e suas imagens mecanicamente repetidas que ficaram conhecidas mundialmente como sua marca. A importância da contracultura para o design e a embalagem de novos produtos começou a ser percebida ao final da década, mas foi nos anos 1970 que a arte começou a ser vista como negócio pelos próprios artistas, que usavam suas obras para contestar museus, galerias e outras instituições de arte.
No boom do mercado de arte dos anos 1980, os artistas se livraram da obrigação de escolher entre ignorar ou criticar o mercado de arte. Até um objeto industrializado, como um aspirador de pó, podia ser recontextualizado e ir parar nos museus como obra de arte. Foi também por este período que as grandes empresas começaram a perceber a vantagem comercial de se aliarem às artes. O apoio às artes se tornou um instrumento para o desenvolvimento de identidades, tanto corporativas como de mercado.
Só para dar um exemplo, a Philip Morris inovou em suas campanhas de marketing, organizando e patrocinando exposições com obras de Roy Lichtenstein, Jasper Johns e James Rosenquist. E outras empresas, como a Louis Vuitton e a Selfridges, estão entre as principais responsáveis pelo lançamento de uma tendência de marketing que remodelou a arte criada e consumida a partir dos anos 1990.
Já no início da década de 1990, o interesse em patrocinar cultura fazia parte da identidade corporativa, das comunicações de marketing e dos assuntos de interesse público visando lucro e retorno sobre o investimento. As empresas passaram a querer associar suas marcas a projetos que iriam interessar a um público de alto poder aquisitivo. A conclusão é a de que, se uma marca está ligada a outra, este fato promove as duas, o que nem sempre acontece somente com publicidade. Mais do que ser ocasionalmente patrocinadoras, o objetivo das empresas hoje é ser parceira, tanto em relação às instituições de arte quanto aos próprios artistas.
ABSOLUT VODKA: UM ESTUDO DE CASO
O caso da sueca Absolut Vodka, nos Estados Unidos, sob a direção de Michael Roux, ilustra os interesses da política cultural corporativa em estruturar as relações sociais em torno do consumo. Ao aliar o patronato das artes, a publicidade e a promoção do estilo de vida, Roux conseguiu transformar a Absolut Vodka em líder das vodcas importadas nos Estados Unidos nos anos 1980 e início da década de 1990. Segundo Richard W. Lewis, em seu livro Absolut Book – The Absolut Vodka Advertising Story, foi Andy Warhol quem sugeriu, em 1985, o emprego de artistas contemporâneos e suas obras em peças publicitárias da Absolut. Por sua pintura de uma garrafa dessa vodca, Warhol recebeu US$ 65 mil, e a empresa teria os direitos de reprodução da obra por um período de cinco anos. Outros artistas, sugeridos pelo próprio Warhol, como Keith Haring, Ed Ruscha e Armand Arman, deram continuidade ao projeto.
Embora uma corrente de artistas bem-sucedidos pense que, em algum ponto de sua carreira, terá que lidar com as forças influentes do poder corporativo e que o investimento de dinheiro para fazer mais dinheiro é um ethos dominante na sociedade moderna, nem todos os artistas contemporâneos estão engajados na criação de obras diretamente relacionadas com a cultura movida a dinheiro. Alguns criam obras que criticam diretamente o sistema corporativo global da atualidade. Afinal, as inadequações de nossa sociedade eternamente vão estimular projetos, fantasias ou simples investidas na direção de outros modos de interação social.
ARTE RELACIONAL
Se nos anos 1990 a arte se caracterizou principalmente por obras que transformavam a interação social em arena estética, um movimento nasceu para, a um só tempo, estimular a relação entre os espectadores e criticar abertamente uma tendência do ser humano a se isolar em casa na companhia da mídia e não de outras pessoas.
Sem medo, alguns artistas adotaram, em seu fazer artístico, uma abordagem do tipo “faça você mesmo”, que dá origem à arte relacional, tendo como principais representantes artistas como Carey Young, Rikrit Tiravanija e Liam Gillick. Sua obra depende de interação social e requer certa presença por parte do usuário. É como se as relações sociais fossem tratadas como um outro meio de expressão artística a ser acrescentado à fotografia, ao vídeo e às instalações.
O argentino Rikrit Tiravanija é considerado um artista relacional. Sua primeira performance, em parceria com Douglas Gordon, foi o Cinema Liberté: Bar Lounge, um projeto realizado no FRAC Languedoc-Roussillon – um centro de arte contemporânea localizado em Montpellier. A instalação consistiu na construção de uma sala temporária de projeção para vídeos antigos censurados e um bar/cafeteria, por onde o público forçosamente passava a caminho da instalação, sem questionar a função do bar como parte da obra de arte ou a da instalação cumprindo uma função de bar.
Através de sua obra, ele queria que o público questionasse a linha que o separa da produção do artista. Na verdade, desde seu tamanho e formato até suas medidas e seus materiais, “tudo havia sido projetado para ser arte”, nas palavras do curador da exposição. A proposta era derrubar barreiras e convencer que a esfera de atividade da arte podia ser facilmente ampliada.
Escultura, instalação, desenho gráfico, curadoria, crítica de arte e contos. Assim como em Tiravanija, o tema que prevalece na obra de Liam Gillick é o desenvolvimento de relações por meio do ambiente. Suas mostras implicam a participação do público em estruturas coletivas abertas. Desde meados da década de 1990, Gillick ganhou fama por seu trabalho de design tridimensional: telas de projeção e plataformas suspensas montadas junto a textos e formas geométricas pintadas diretamente sobre a parede.
Gillick usava materiais como plexiglas, aço, cabos, madeira tratada e alumínio colorido, derivados da arquitetura corporativa. Em sua prática artística, a obra representa o lugar de uma negociação entre realidade e ficção, narrativa e comentário. Além disso, seus trabalhos representam lugares nos quais se deve renunciar, discutir, projetar imagens, falar, legislar, negociar, pedir conselhos, dirigir, preparar algo, e aí por diante.
Para alguns estudiosos do assunto, as grandes empresas regularmente lançam mão do conceito de inovação para associar seus valores aos dos artistas, até mesmo nos casos em que artistas veem suas próprias inovações como antagônicas ao ethos corporativo.
Apesar de sua natureza controversa e radical, a arte criada com base na crítica social pode ser usada tanto pelos artistas como pelas instituições para angariar capital cultural, a credibilidade ou o prestígio que advém de aspirações teóricas ou políticas mais elevadas, e a aura da rebelião vanguardista ou da seriedade intelectual.
Como alternativa à arte que critica o atual cenário socioeconômico que prevalece na sociedade moderna, o uso da interação do público reabilita a presença orgânica e irrefutável da arte que ameaça tornar-se um jogo vazio de signos e objetos pré-fabricados.
A participação do público na obra de arte, temporariamente acolhido pelo crescimento de um ideal democrático que acata seus pensamentos e ações, e valorizando seu potencial de engajamento criativo, minimiza o conceito do artista-gênio. Nas palavras de Rikrit Taravanija, “parece mais premente inventar relações possíveis com nossos vizinhos no presente do que apostar em amanhãs mais felizes”.
Encarando a abstração econômica que torna irreal a vida cotidiana – ou uma arma absoluta de poder do mercado techno –, artistas reativam formas ao habitá-las, transformando propriedades privadas, direitos autorais, marcas e produtos em formas destinadas a museus e assinaturas.
Se a reapropriação de tais formas é tão relevante hoje, é porque esses símbolos nos levam a considerar a cultura global como uma caixa de ferramentas. Ao invés de nos prostrarmos diante de obras do passado, podemos tirar vantagem delas e trazer à luz essas novas relações.
Ao se modificarem arte e artista, bem como de certo modo o público, pode-se dizer que a cultura corporativa traz duplo benefício para a sociedade global, além, é claro, de representar mais um nicho de mercado para as empresas: a ampliação do papel da arte na sociedade e a participação do artista no lucro gerado pelo produto dessa mesma arte.
Rose Klabin é artista plástica.
Mudança
por Léo Coutinho
Mudança é a palavra que ganhou as eleições mais importantes do mundo no ano passado. O presidente Barack Obama seria eleito em qualquer parte do globo com bilhões de votos de gente que, quiçá, nem saberia apontar os Estados Unidos no mapa-múndi.
Mudança é mesmo uma palavra muito forte. Tem o poder de despertar o lado progressista do reacionário fundamental, o desenvolvimentista adormecido no conservador absoluto. Porque mesmo quem está de barriga cheia terá apetite diante de um pudim de leite. O problema é a contrapartida; é entregar o doce a quem o desejou e acreditou que receberia.
Por maior que seja a boa vontade de um político, por melhor que seja seu caráter, prometer uma torta de limão a um povo que amargou oito anos de limão puro tem seu lado doloso: se ele não sabe que é muito difícil, não merece o cargo que pretende; se sabe e não conta, procede mal. Por outro lado, se contar tudo, dificilmente será eleito.
Há muitos anos, São Paulo, que é a maior cidade do Hemisfério Sul, teve um prefeito que era banqueiro, não político. Chamava-se Olavo Setúbal. E este senhor, perguntado sobre a questão das enchentes que até hoje afligem os paulistanos, respondeu que o problema só seria resolvido em vinte anos, e com a condição de que os futuros prefeitos trabalhassem direito e em continuidade aos antecessores, investindo um dinheiro que não existia nos cofres públicos. Nunca mais ocupou um cargo político.
Dizer a verdade é muito difícil. Ou, no mínimo, muito arriscado. Mas acredito que nós estamos todos carentes de gente honesta não só na conduta, mas também nas palavras. É cada vez mais raro um artista que produza exatamente o que acredita e consiga alcançar um público razoável. Dentro do negócio de vender arte, tudo deve ser experimentado em pesquisas antes de ser levado adiante. Daí que ficamos com a impressão de pasteurização artística, sentindo a falta de um gênio contemporâneo para chamar de nosso.
Com a política, o mesmo fenômeno nos assola. Aqui no Brasil, entre os políticos de primeiro time – isto é, entre aqueles que podem chegar a Presidente da República –, tecnicamente falando, talvez nenhum esteja tão preparado quanto José Serra, governador do Estado de São Paulo. Porém, mesmo nele, de quem esperávamos ouvir “a palavra” ou o caminho a ser seguido, identificamos a lanterna apontada para o resultado das pesquisas.
Tome como exemplo a Lei Antifumo: é o que existe de mais em voga em termos de administração pública em todo o mundo. Salvo em casos pontuais, ninguém mais poderá ser contra. Porém, a justificativa principal por parte do próprio governo é o apoio de oitenta e tantos por cento da população à proposta. Por outra, se a saúde pública como um todo fosse um princípio do governante, ou um compromisso de seu plano de governo, o mesmo governador teria acatado a Lei Anticoxinha, que quer impor alimentação saudável nas escolas e que foi aprovada por unanimidade na Assembleia Legislativa. No mesmo caminho, com uma canetada igual à que criou a Lei Antifumo, o Palácio dos Bandeirantes proibiria a circulação de veículos queimando óleo diesel com concentração subdesenvolvida de enxofre em todo território paulista. É a vitória do marketing em todas as instâncias. Está refletida na arte, na moda, na arquitetura, na gastronomia, na produção industrial. Com a política não poderia ser diferente. O fenômeno de consumo em massa e a globalização não dão margem de erro para ninguém. Tudo deve ser aceito por todos e em qualquer lugar. De maneira que a exclusividade, seja de uma peça de roupa ou de uma ideia, passa a custar cada vez mais caro.
Resta descobrir como permitir que um artista, um intelectual ou um político viva da mesma maneira que vive um alfaiate, um chefe de cozinha ou um arquiteto. Os primeiros pertencem a um grupo que depende de um público maior para seu trabalho. Quem pretender sobreviver vendendo opinião a um pequeno grupo de pessoas morrerá de fome ou estará condenado à academia. Inverso e proporcionalmente tão grave quanto a morte por inanição é o futuro reservado para a humanidade que prescindir de pensadores independentes.
Os jornais de todo o planeta estão morrendo. Ninguém mais tem tempo e paciência para ler com calma e profundidade na manhã seguinte a mesma notícia que chegou ontem em duas linhas pelo telefone celular. Logo, como alguém já identificou, a opinião está tão desvalorizada que nós aceitamos pagar para enviar mensagens de texto para outra pessoa, mas nem cogitamos desembolsar algum para ler um texto bem escrito e fundamentado e, a partir dele e de outros, formar uma opinião.
Sem opinião, estaremos cada vez mais assumindo nossa vocação para rebanho; estaremos mais parecidos com gado, nos sujeitando aos princípios tangenciais de qualquer profeta mais sem-vergonha do que nós mesmos. E gado, se pudesse escolher mudar seu destino, seria da panela para o forno ou, no máximo, para a grelha. O destino inexorável de quem não tem opinião é arder no fogo.
Curto-circuito
por Roberto Vietri
Dessa vez, não começou ao mero acaso.
Ao contrário do recurso do clichê com que iniciei meu relato naquela edição de 2013 da Amarello (Qual é o seu legado?), quando mostrei fotografias feitas na Fordlândia (no Pará) e, posteriormente, em Detroit, fruto de uma viagem por impulso anos antes para o Norte do Brasil, fui seduzido a começar esta nova história anunciando que a arte do acaso esteve presente apenas como manifestação inescapável da natureza que circunda a floresta – não como justificativa de falta de intenção.
Sendo agora um pouco mais versado na região da Amazônia, sei bem que nada é assim “tão mais por acaso” depois que você a visita pela primeira vez. Começam a surgir chamados cada vez mais focalizados e audíveis. São como sinais que você captura e reconhece como destinos incontornáveis.
Daquelas ambiguidades sadias ao processo, não lembrava mais qual referência sobre o local era mais marcante: o trabalho de Cildo, “aumentando” a altura do Brasil a partir de sua montanha mais alta, a mítica Yaripo (Pico da Neblina); a capa da revista Realidade de 1971, fotografada por Claudia Andujar, com o célebre retrato de uma criança indígena naquela mesma aldeia; ou algum Globo Repórter que assisti quando era criança, no rescaldo do final da ditadura. Naquele período, intensificava-se a campanha política pelo reconhecimento e demarcação da área indígena yanomami.
Sem acaso qualquer, decidimos que tentaríamos terminar nossa viagem nas aldeias de Ariabú e Maturacá, estado do Amazonas, perto da fronteira com a Venezuela, no pé da montanha mais alta do Brasil. Fazia todo sentido. Nosso plano era subir o Rio Negro a partir de Manaus até a longínqua São Gabriel da Cachoeira e, de lá, alcançar algo a mais. No fundo, alimentados mais pelo ímpeto expedicionário típico dos homens brancos – com todos os problemas que isso pode carregar –, e não pela pesquisa antropológica, visual e política mais madura de Claudia ou Cildo, arriscamos encarnar naquela empreitada uma mistura subjetiva e potencialmente confusa de papéis entre o visitante e o estrangeiro.
Percebemos, acima de tudo, que, dada a proximidade da viagem, não teríamos tempo hábil para planejar e executar a difícil chegada em Ariabú-Maturacá. Destinos incontornáveis, entretanto, movimentam seus pauzinhos. Alguns dias intensos de pesquisa e um curioso encadeamento de interlocutores e telefonemas depois, tínhamos, a princípio, descoberto uma oportunidade de alcançar a aldeia. Nosso recado era o mais despretensioso possível: gostaríamos de ficar entre 3 e 4 dias, éramos oito pessoas, e nosso único interesse era conhecê-los.
[…]
Um corte abrupto no tempo, e estamos em São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro, município com a maior população de origem indígena do Brasil. Uma chuva forte havia caído na noite anterior, o que me fez dar um sorriso irônico e resignado sobre o dia seguinte. O primeiro capítulo seria vencer um punhado de horas de barro melado e crateras, em algumas seções apenas transitável mediante ajuda de troncos e cordas, dentro de uma boa e velha Toyota Bandeirante – condições que, por óbvio, desceram ao nível do absolutamente incerto depois daquele temporal. Em cima da Toyota, havíamos acoplado uma lancha “voadeira” de alumínio para 10 pessoas, numa amarração de volumes desproporcional que lembrava cenas antigas do Camel Trophy, o motor alugado no porta-malas, um amontoado de mochilas e, claro, suprimento para alguns dias.
Atravessamos a linha do Equador, e uma onça escura nos atravessa segundos depois, para simbolizar mais uma vez que estávamos em território alheio e relembrar que os sons do silêncio amazônico são essencialmente atravessados por rompantes visuais, algumas vezes táteis. De um ponto inóspito na BR-307, abruptamente saltamos para as águas ainda rasas e densamente cobertas pela floresta do Rio Cauaburis. Daquele ponto até a aldeia, a depender do rio e da destreza do nosso piloteiro, o segundo capítulo renderia outras 6 a 8 horas de viagem.
Enfim, chegou a boca da noite para virar a página de uma navegação empreendida no ritmo mais intenso possível, em meio a corredeiras, pedras traiçoeiras e pássaros em revoada, nos forçando a desacelerar os ânimos e o volume do som do motor. A aterrissagem do breu absoluto na última hora rio adentro envolveu e abafou a atuação como visitantes a que nos prestáramos até então para substituí-la, como protagonista, pelo papel de estrangeiros. As cenas finais da chegada, já no Rio Maturacá, renderiam um plano contínuo: os raios de luz de nossas lanternas tateiam cada metro à frente, enquanto rompantes de vozes da floresta ressoam de margem a margem como que para torcer nossa posição ainda mais. Se havia alguma coisa de real naquele instante, era menos o fato de que conseguíamos identificar a presença de alguns animais, sentir o deslocamento da água e, no fim, ouvir vozes bem ao longe e mais o fato de que, acima de tudo, era a floresta, ela sim, que nos ouvia.
Encostamos na margem direita, em pretenso silêncio, numa área íngreme mas plana de terreno; aos poucos, cada um desce, tenta identificar sua própria mochila, começa a subir na terra firme em busca de nossos anfitriões. Há uma certa dificuldade em caminhar pelo mato crescido misturada à exaustão de um longo dia de viagem. Tínhamos, no entanto, alcançado o algo a mais que nossa expedição se propusera. Um sentimento de satisfação amainava a tensão e a dificuldade daqueles últimos passos. Havíamos conseguido!
Deparamos, de repente, com um homem altivo e que nos aborda com a postura de quem já percebera há algum tempo nossa chegada. Antes que exercêssemos nossa vontade ou satisfação, tratou de colocar em seu devido lugar as coisas, em tom grave: “Quem são vocês e o que vieram fazer na nossa terra?” Dali em diante, a narrativa ganharia novos contornos – nosso recado simplesmente não chegara a eles como deveria.
Tomando a liberdade de reservar para bate-papos descontraídos e conversas de bar o charme ou curiosidade de cenas e situações ímpares que vivemos nas 24 horas seguintes à (não) recepção na noite de chegada nas aldeias de Ariabú e Maturacá – até porque, para Rancière, o “real precisa ser ficcionado para ser pensado” e eu gosto de mudar detalhes de entonação a cada interlocutor –, ou porque não quero me estender demais e sofrer com cortes do editor nas minhas fotografias, pulo para a segunda noite na aldeia, depois do cancelamento inesperado da reunião de líderes yanomamis, representantes políticos das duas aldeias, xamãs, caciques e o nosso grupo, cuja única e tensa pauta era discutir a nossa presença lá.
Preparamos o jantar, esticamos nossas redes e conversamos longamente a respeito do encontro que ficara para a manhã do dia seguinte, nosso terceiro dia na aldeia, numa mediação que colocaria a nu o choque que causáramos pela visita onde a ponta de lá não recebeu adequadamente o sinal vindo de cá, transformando-nos em estrangeiros, inesperados, estranhos, nem mesmo donos da fineza em bater à porta antes do anoitecer. Decidiu-se que eu seria o “cabeça” do grupo, fato cobrado pelos yanomami (“Quem é o cabeça de vocês?”), falaria por todos e concentraria as intervenções espontâneas e improvisos de fala em momentos que julgasse necessários. A luz da lua, quando despontava, contribuía para denunciar o jogo misterioso de entrelaçamento entre as nuvens e o pico de arestas marcadamente irregulares da Serra do Padre, num vaivém que parecia ter também dominado o clima de tensão daquelas duas primeiras noites.
Se pudesse escolher um aspecto que se evidenciou e chamou atenção a partir da nossa presença, eu diria que foi a percepção de que uma aldeia indígena (e, no caso, eram duas) contém as mesmas complexidades, contradições, choques geracionais e de pontos de vista que qualquer outra organização em sociedade.
No entanto, concomitante com o desanuviar dessa constatação, nossa condição de estrangeiros não convidados influenciou para que, ao contrário da sorrateira luz da lua da noite anterior, a luz do sol daquela manhã deixasse clara, evidente, e estridente a necessidade de que a coerência e a unidade se impusessem nas quase quatro horas de intensa sabatina que reuniram, de um lado, mais de cinquenta yanomamis de diferentes idades e posições e, de outro, nosso grupo de oito aventureiros, além do experiente piloteiro, que, mesmo conhecendo o local e muitos daqueles índios, também fora colocado, ao nosso lado, na posição de estrangeiro, quiçá invasor, essa mudança de categoria nosso receio maior.
Posso afirmar, com convicção, que aquele encontro foi um dos maiores aprendizados da minha vida, ou, por outro lado, uma verdadeira prova de fogo em que cada um teve de trazer para a mesa seus prévios aprendizados. Um microfone com caixa de som foi trazido para que as falas pudessem ser registradas por todos, com a pitada Lost in Translation que as traduções do português para o yanomami, e vice-versa, adicionava na rodada de entendimentos, explicações e negociações. No final daquele dia, quando a tarde caiu, o sol morreu e de repente escureceu, emergiu um céu estrelado a proteger os cantos noturnos das mulheres como preparativos para a Festa da Pupunha, cujo privilégio de espectadores, e agora visitantes, pudemos experimentar. Estava, no fim, tudo bem. Na cosmologia indígena, totalmente ao contrário da ideia que carregamos intrinsecamente a partir de nossa estrutura como civilização, parece existir apenas uma cultura, e muitas naturezas – a cultura humana.
Em meio a mais um novo ciclo que se reiniciou agora em 2019, com a volta requentada de propostas para a Amazônia nos moldes da ideologia geopolítica e de desenvolvimento regional ambientalmente pouco sustentáveis dos anos 70, características do período da ditadura militar e cuja ineficácia é simbolizada pela célebre fotografia de Claudia de um yanomami convertido em malfadado operário da Odebrecht durante a construção da Perimetral Norte, escrevo este texto no afã de difundir um pensamento para nós, o “Povo das Mercadorias”: antes de divagarmos sobre os índios e sobre o que acreditamos ser melhor para eles, em suas próprias terras ancestrais, devemos exercitar, em primeiro lugar, o dever da escuta. Os sons que atravessam o silêncio amazônico, afinal, são também e principalmente os sons do Povo da Floresta.
Texto originalmente publicado na edição O Estrangeiro
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O nu em Lucian Freud
A inquietude do nu é um dos aspectos mais marcantes no estilo do pintor alemão
O nu é um tema explorado na arte fazem muitos séculos. De fato, a descrição do “corpo sem ornamentos” pode ser percebida desde a antiguidade. Porém, ao pensar o nu na arte moderna e contemporânea, existe um artista plástico que se destaca pela forma peculiar e intensa de sua representação – Lucian Freud. O artista, falecido em 2011, foi reconhecido como um dos maiores pintores figurativos em vida e sua notoriedade é proveniente, em grande parte, da composição inquietante e da vulnerabilidade humana desenvolvida nas suas telas, compostas de corpos nus.
Nascido em Berlim no período entre guerras e refugiado em Londres logo após a subida de Hitler ao poder, em 1934, Lucian Freud passou a maior parte de sua vida na Inglaterra. Neto de Sigmund Freud, fundador da psicanálise, o pintor buscava escapar de qualquer relação direta de sua obra a seu avô. Porém, é difícil não relacionar a forma como Sigmund Freud buscava quebrar a barreira emocional e o sofrimento do paciente à forma com que Lucian despiu seu muso-modelo da censura social e transmitiu através da pintura a verdade crua e animal dos seres humanos, moldados pela sua consciência e pelo seu olhar de pintor.
Enquanto jovem, Freud era um desenhista muito preciso e pintor minucioso. Sua maturidade se desenvolve a partir da década de 60 quando o artista, influenciado pelo então amigo Francis Bacon, adota um estilo de pintura livre e intenso, atingido através da utilização da técnica de impasto e aplicando gradações de cores, similares aos “Old Masters”.
A partir de então, Freud passa a pintar principalmente retratos nus e a trabalhar apenas de seu ateliê, que se torna cenário importante da composição de sua obra e crucial na relação de intimidade entre pintor e modelo, acentuada pela lentidão do seu processo de pintura.
Produzindo em média cinco quadros por ano, cada tela sua podia levar anos para ser concluída. Tal lentidão requeria do modelo uma dedicação e determinação de permanecer na mesma pose perante o pintor por um longo período de tempo, uma tarefa árdua e quase cruel. Dessa mesma forma, Freud desenvolvia uma relação de intimidade com o modelo, criando uma curiosa relação entre o retrato, a pintura, o tempo e o corpo humano.
São corpos distorcidos, sofridos, vivos e desgastados com o tempo, cuja pele e a carne humana estão expostas na cara do observador, tornando a pintura de Freud singular e intensa, e muitas vezes repelente.
Os sujeitos ou os corpos de suas pinturas não são escolhidos de forma arbitrária, são normalmente familiares, amigos, amantes ou pessoas que ele acha interessantes. Suas filhas foram representadas em várias telas, como Naked Girl Laughing (1963) e Large Interior Paddington (1968/69), assim como sua mãe, The Painter’s Mother (1982).
Existe também um foco em corpos prósperos, mulheres grávidas ou gordas. Na busca de captar o real, o pintor se autodenominava um biólogo, isto é, um pintor do corpo humano cuja arte é autobiográfica. Barrigas flácidas, marcas de rosto, bolsa embaixo do olhos, rugas, a imperfeição de seus modelos não passam despercebidos ao seu olhar, ao escrutínio do tempo e das posições que o pintor escolhia para seus modelos em suas telas.
Um grande exemplo disso é a tela Leigh Under the Skylight (1994). Nesta obra de tamanho monumental, Leigh Bowery, um artista performático e amigo do pintor, é retratado nu através de um ângulo baixo e inconvencional. Usando como temática um homem corpulento, grande e impressionante, com suas partes íntimas nitidamente expostas, Freud retrata um nu clássico com uma grosseira textura que é atingida através da pincelada e da luz que o artista projeta na tela.
Além disso, a posição de Leigh nos revela o processo desconfortável e a tarefa árdua pelos quais passou. Nesse retrato, assim como em outros do período mais recente, como em Benefits Supervisor Sleeping (1995), um retrato da gerente Sue Tyller, fica evidente a capacidade do pintor de transcrever em sua tela a sensibilidade, a emoção, assim como a dissipação de tudo o que está envolvido na ocupação de um corpo abundante.
Assim como Nietzsche, Freud situa a essência da identidade humana no corpo e não na alma. Ele desnuda seus sujeitos, colocando em evidência a verdade humana nua e crua.
Freud despe o homem da sua armadura social e de seus artifícios psicológicos através de árduas sessões de pintura. Seus retratos mais recentes incluem Queen Elizabeth II (2000/01) e Kate Moss, retratada em Naked Portrait (2002).
O olhar cruel de Freud em seus retratos solidifica seu estilo progressista, transgressor e libertador diante dos cânones de beleza que caracterizam as imagens do corpo humano ao longo da história, assim como estabelece seu poder de emoção e projeção da realidade vista através dos olhos do pintor ao observador.
Dissimilitudes à parte, a inquietude do nu de Lucian Freud reavaliou o corpo humano na mesma profundidade em que seu avô remapeou a mente. Porém, apesar da homogeneização percebida no mundo contemporâneo, o ser humano permanece um mistério a ser desvendado e a nudez, mais um elemento nessa descoberta. A força da personalidade da pincelada nas pinturas de Freud expõe em sua plenitude o frescor da carne humana e as limitações da fisicalidade do ser humano.
A regra deste jogo é adivinhar
por Léo Coutinho
A regra deste jogo é adivinhar quais regras existem e, então, colocá-las em ordem cronológica, segundo a legislação brasileira. Por exemplo: proibição do casamento infantil, casamento sem exigência de virgindade, casamento com a pessoa escolhida, proibição do parto com algemas, extinção da pena por estupro caso a vítima se case com o estuprador, pensão alimentícia.
Não sei se ajuda ou atrapalha, mas pingo algumas datas para você pensar: 1603, 2002, 2005, 2013, 2016. Notou que faltou uma? Sinal de que prestou atenção. Se percebeu que um dos exemplos ainda não é lei, ponto para você. Mas se este é um dado que te surpreende, ponto para o jogo. A ideia é essa: provocar e esclarecer o pensamento político.
O nome do jogo é Molho Especial, parte do cardápio da Fast Food da Política, uma organização criada e gerida por mulheres que, sobre as receitas clássicas da teoria dos jogos, quer ampliar e melhorar a noção política da sociedade.
Em 2015, a designer Júlia Carvalho embarcou no Ônibus Hacker, trupe que roda o Brasil instigando curiosidade e participação política. A primeira escala foi numa cidade de quatro mil habitantes. Depois, saltaram para uma de quatrocentos mil. Até que chegaram a Brasília.
Num alumbramento de João de Santo Cristo, Júlia ficou bestificada. Mas não com as luzes de Natal. Era agosto de 2015, auge das manifestações pró e contra o impeachment de Dilma Rousseff, com direito a muro separando os grupos.
O ônibus estacionou e os ativistas abriram os trabalhos. Brasília, capital federal do Brasil, em um aspecto não era diferente das cidades de quatro ou quatrocentos mil habitantes. Em plena Praça dos Três Poderes, os manifestantes revelavam desconhecimento sobre o que se passava nos salões e gabinetes dos prédios ao redor. “Se a Dilma cair o Aécio assume?”
Na lógica de uma designer, se há culpa na incompreensão do que está exposto, ela é daquele que comunica. O princípio da profissão que Júlia escolheu é traduzir qualquer mensagem, para qualquer pessoa, em qualquer lugar.
Olhando para o Congresso Nacional, ela viu nas cúpulas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal as metades de um pão de hambúrguer, que recheou com as torres de gabinetes e, assim, decidiu que a compreensão básica do processo político, fundamental para o debate político, seria universalizada e digerida na velocidade e na dimensão alcançadas pela rede mundial de sanduíches. Nascia a Fast Food da Política.
O cardápio é vasto e lúdico. Três Poderes é um quebra-cabeça que se completa quando Legislativo, Executivo e Judiciário se encaixam com seus respectivos órgãos e atribuições. Três Esferas é um jogo de basquete onde as bolas são os políticos e os cestos são as esferas municipal, estadual e federal. Ganha quem acertar quem está em qual e quais são suas competências. Em Monte Seu Governo, o desafio é colocar as pessoas mais indicadas nos postos correspondentes a fim de alcançar o objetivo escolhido, considerando o perfil político-ideológico de cada um.
Na forma, meu predileto é o Queda do Patriarcado. Inspirado no Jenga, aquele jogo da torre que não pode desabar, a proposta é construir a transformação desejada com atenção às camadas culturais estabelecidas ao longo da história. Claro que você pode ir direto à peça que te incomoda num tapa, demolindo a torre. Mas a história prova que quem fez esta opção acabou perdendo o jogo.
Se abri seu apetite, aceite uma sugestão. Como esta crônica, comece pelo Molho Especial. Indo direto ao Queda do Patriarcado, você corre o risco de achar que a torre não é assim tão feia. O atavismo faz a gente olhar com naturalidade para coisas horríveis. E o Molho Especial, com a sutileza dos temperos simples, é capaz de mudar sua nota. Quer ver?
Até 2002, o casamento podia ser anulado pelo marido caso a não virgindade pré-nupcial fosse comprovada. Só em 2005 foi revogada a possibilidade de extinção da pena de estupro caso a vítima se casasse com o estuprador. O direito de casar com a pessoa escolhida veio em 2013, quando o Judiciário equiparou a união homossexual à heterossexual. Ainda no ano passado, era legal manter algemada uma mulher durante o trabalho de parto.
Em 2017, não há lei que impeça o casamento infantil no Brasil, ao contrário de outros 24 países na América Latina. Segundo a ONU, somos a quarta Nação em quantidade de casamentos precoces, prática que atinge 36% da população feminina brasileira e é responsável por 30% da evasão escolar no mundo. Por aqui, o limite de idade é definido pelo organismo da mulher, não pela lei. Isto é, aceitamos que, se uma menina pode engravidar, também pode se casar.
Entre os homens, a pensão alimentícia chega a ser mais aceita do que entre as mulheres. Não é raro encontrar uma mulher que se negue a processar o pai que descumpre as obrigações legais perante os filhos. Ao passo que, nas cadeias masculinas, os chamados “ladrões de leite” chegam a ser isolados para a proteção da integridade física, assim como os estupradores.
A lei que estabeleceu a pensão alimentícia é parte das ordenações filipinas, baixadas pelos reis Filipe I e Filipe II, datada de 1603. Meu palpite é que 414 anos contribuíram para a digestão social. Mesmo assim, não duvido que, levada hoje a uma comissão especial da Câmara dos Deputados, composta por dezoito homens e uma mulher, acabaria revogada.
Então vamos em frente. E fast. O tempo urge.
Que Mário?
por Vanessa Agricola
Eu choro com o silêncio da Vivi e do Mario*, o silêncio que dividiram juntos, Mario contando: “Quando o sol esquentou, nos olhamos, os mais novos velhos amigos. Perguntei seu nome. Vilma, ela respondeu. Vilma, repeti.”
A Glória e seu Cortejo de Horrores… Na ocasião da polêmica do feminismo versus Fernanda Torres, me irritei demais que a criticassem. Senti a mesma coisa quando chamaram Caetano de pedófilo, agora. Cheguei a me posicionar em defesa da Fernanda, mas por Caetano contive meus impulsos após ter engolido as minhas próprias palavras junto com o mea-culpa.
Eu não entendia. Com quem estávamos falando quando falávamos de feminismo? Porque, aqui em casa, ele queria a barraca azul; ela, a vermelha. Adivinha qual cor de barraca compraram? Ela queria passar a Páscoa em Trancoso; ele, no Rio. Adivinha para onde foram?
Mas é óbvio que o Brasil não é a minha casa. A mulher, no Brasil, não manda em tudo, nem vai para Trancoso. Estamos a falar com um mercado que paga menos, uma sociedade que enxerga a mulher como um buraco, um homem doente que bate no corpo frágil.
Mais alguma coisa na mulher, além do corpo, é mais frágil?
Foi um homem que me falou que é científico (médico de renome, não qualquer um): o homem não consegue pensar em duas coisas ao mesmo tempo.
Tem um lado superior nisso, único: homens conseguem manter hobbies. O futebol de quarta à noite, o pôquer de terça. Pode parecer bobagem, mas o hobby é uma atividade fundamental para desestressar. Como uma meditação. E não, a mulher não consegue manter o compromisso de esvaziar os pensamentos. O baralho com as amigas vai para as cucuias se houver um problema em casa. Se o filho chegar triste da escola, cancela. Se existe alguma tristeza, fica para a semana que vem.
Um homem não cancela o pôquer, ele vai. Desliga a notícia do câncer de próstata do melhor amigo (porque o bichinho não comporta dois pensamentos ao mesmo tempo, como já falamos, e que é científico), e liga o botão: jogar bola.
É motivo de inveja para todas nós, mulheres, aqui na manicure, manicure nova (a Nelma está de licença), das unhas muito compridas. Ela tende a limpar as sobras do esmalte na minha cutícula utilizando as próprias unhas, o que me causa um nojo absoluto e me faz voltar a Mario.
“O matutino campeão de assinaturas foi testemunha do flagelo. Um crítico deveria ter a compaixão de não aparecer na noite do patrocinador, mas aquele não teve. Nenhum tem.”
Mario me faz pensar em mim. A mesa de seis jurados me olhando, a plateia em silêncio, todos assistindo minha apresentação de “Nada Tanto Assim”, do Kid Abelha, no palco.
Só tenho tempo pras manchetes no metrô /
Abri um jornal e escorei o corpo numa cadeira que quase caiu.
E o que acontece nas novelas /
Sentei na cadeira e apertei o botão do controle remoto que levei no bolso.
Alguém me conta no elevador /
Levantei da cadeira e apertei outro botão, imaginário, do elevador.
No refrão: Eu tenho pressa e tanta coisa me interessa mas nada tanto assim/
Corri no lugar quando cantei “eu tenho pressa”. Em “tanta coisa” gesticulei muito com os dedos. “Me interessa”, apontei para o meu cérebro… Uma exaustão. Para mim, para a plateia, para os jurados.
No fim, era notícia boa que ninguém da minha família estava vendo. A música terminou, o silêncio permaneceu. Meia dúzia de educados bateu palmas, pessoas com coração. O primeiro jurado desligou o botão do microfone e cochichou com o outro. Os dois riram. A família da Bianca foi em peso. Bianca tinha se apresentado um pouco antes, dublou “Pintinho Amarelinho”, do Gugu, trajada com uma fantasia idêntica à do passarinho, que a mãe dela costurou. Fingi ter visto alguém no meio da plateia e dei um tchau. As pessoas que estavam na direção dessa pessoa que não existia trocaram olhares, para quem ela está dando tchau? Joguei um beijo. A voz do jurado interrompeu o delírio:
– Bom, eu ia te dar um sete, mas vou dar um seis.
Ele desligou calmamente o microfone e colocou em cima da mesa. Ligou calmamente o microfone em seguida: – Você não merece, mas vou dar uma justificativa. Você não estava nem olhando para esta banca quando eu ia te dar a nota. Seis.
Os outros jurados também deram seis, sem tecer justificativas. Ninguém falou da roupa, meu vestido vermelho idêntico ao da Paula Toller na capa do disco. Foi a Lu que mandou fazer o vestido. No meu sonho. Na real eu fui de calça jeans porque era rock’n’roll, camiseta branca porque eu não tinha uma vermelha, e o cabelo molhado de New Wave.
Mas foi a Lu, realmente, que me deu a dica de cantar “Nada Tanto Assim”, porque a letra era boa para fazer mímicas; eu podia levar um jornal, um controle remoto…
*Mario Cardoso, personagem principal de A Glória e seu Cortejo de Horrores, esse livraço de Fernanda Torres, que, apesar de masculino, me lembrou do feminismo, do feminino e dos meus fracassos.
Pensar sobre o humano e seu comportamento coletivo tem sido meu interesse há alguns anos. As relações entre os seres que pensam e se reconhecem estão cada vez mais afastadas do que os fazem iguais, mesmo que diferentes.
Quando escolho uma figura de mulher ou símbolos femininos para fazer perguntas e instigar reflexões, o que me estimula em primeiro é a relação social na qual estão inseridos.
As meninas em “Rosa Púrpura”, em rosa e branco, estão ali pela posição de fragilidade, de vulnerabilidade, ao serem colocadas como possível objeto de abuso pela posição que ocupam e pelas roupas que vestem. A mulher de véu, com olhos vedados pela mão do homem, apresenta uma situação de violação. Em grande parte do mundo oriental, o sexo masculino é o que dita as regras do ver, e, nesse mundo, a mulher não é visível.
A mulher que luta no vazio em “Vã” briga por uma igualdade, é inconformada, não aceita regras de castidade, não aceita títulos nem obrigações, luta em pé em cima do ferro já retorcido pela trama de tantas disputas, onde o adversário, de tantos nomes, já não tem rosto.
O corpo no gelo é quase invisível em “A Frio”. Os abafadores de som talvez sejam para não escutar que por ser diferente, se é visto menor. O corpo ali não tem sexo e o que o faz menor? A cor? A ausência de pelo?
Em “Número Repetido”, onde aludo ao torturante trabalho ao qual o chineses são submetidos, ou em “Palomo”, quando tento provocar a reflexão sobre a tortura e o abuso de poder , entre tantos outros trabalhos que fiz, não existe a figura da mulher, não existe o símbolo do feminino visível, mas, de alguma forma, estão ali também, de algum modo frequentam aquela realidade.
Antes de pensar no feminino, me pergunto onde perdemos a capacidade de ver o outro como igual, seres da mesma espécie, onde perdemos o respeito pelo que é humano?
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As performances de Berna Reale aqui reunidas – estejam elas registradas em vídeo ou fotografia – foram realizadas entre 2011 e 2015, ou seja, antes de dois eventos que escancararam uma há muito preparada mudança de paradigma civilizacional no Ocidente: na Europa, o Brexit; nos Estados Unidos, a eleição de Donald Trump. Esses acontecimentos, como sabemos, são ilustrativos de câmbios e deslocamentos maiores, que envolvem fatores como a geopolítica do Oriente Médio e a chamada “crise de refugiados” na Europa, o crescimento e recrudescimento da extrema-direita em países de tradição esquerdista, o tão discutido conceito da “pós-verdade”, entre outros.
Esse panorama, complexo demais para ser propriamente apresentado (e quanto mais discutido) neste pequeno texto, é aqui lembrado brevemente com o intuito de contextualizar a produção desta artista e apontar como as obras de arte de fato sensíveis ao seu tempo são capazes de não apenas se sintonizar com o zeitgeist, mas até mesmo de antecipá-lo.
Em sua prática, a artista transfigura-se em diversos personagens – fantásticos, estranhos, irônicos – para trazer suas performances à realidade, conferindo ao mundo de todo dia um caráter onírico, transformando-o em um sonho limítrofe ou um pesadelo do qual, mesmo que queiramos, não conseguimos acordar.
Se isso era particularmente claro nas performances de rua realizadas em Belém, esse poder transfigurador se mostrou em toda sua potência nas performances fotográficas realizadas para o projeto “Precisa-se do Presente”. Nele, a artista viajou aos países integrantes do BRICS, onde, por não ter a estrutura necessária para uma produção complexa ou por se deparar com políticas públicas de censura, deu vida a alguns de seus personagens em locais privados e depois, por meio de fotomontagem, inseriu-os em ambientes públicos – sem que o artifício acarretasse qualquer perda ao efeito final.
As obras de Berna Reale parecem ter o dom de retirar seu observador do real, transportá-lo para o universo da fantasia. No entanto, adentrar o universo performativo de Berna Reale significa imediatamente ser expulso de volta à realidade, agora ressignificada: basta o espectador entregar-se à magia da ficção para perceber o mundo que se esconde por trás da arte, para absorver a imagem da barbárie como alegoria da civilização (imagem esta que finalmente, em 2016, perdeu seu caráter especular e tornou-se realidade aos olhos de agentes sociais que até então haviam escolhido não ver).
Com suas performances, suas imagens misteriosas, marchas oníricas rumo a lugar nenhum senão o mesmo, Berna Reale cria uma disrupção da realidade apenas para permitir que, dela, essa mesma realidade irrompa com mais força do que antes. A presença se reafirma pela ruptura, mais potente do que nunca – irrupção esta que significa, também, que sua crítica nunca foi tão necessária.
Em algum momento do século XVII, o padre Guilherme Pompeu de Almeida colocou no papel as seguintes ideias que estavam em sua cabeça:
“João Ramalho, filho do Reino, teve uma filha que se casou com Bartolomeu Camacho; este teve uma filha que se casou com Jerônimo Dias Cortes; este teve outra filha que se casou com Domingos Luiz, o Carvoeiro; este teve uma filha que se casou com João da Costa; este teve uma filha Maria de Lima que se casou com João Pedroso; estes tiveram a filha Ana Lima, casada com o capitão-mor Guilherme Pompeu de Almeida” .
Esse modo de expressar a cadeia de ancestrais mostra estruturas que parecem estranhas aos costumes ocidentais: revela apenas os nomes de homens por quatro gerações, enquanto omite aqueles das mulheres. Nas mesmas gerações, aparece apenas a nomeação “filha”. Apesar do silêncio sobre o nome, a genealogia segue de mãe para filha – e não, como no Ocidente europeu, de pai para filho. Apenas na quinta geração aparece um nome feminino, o de Maria de Lima – e a sequência continua a estrutura feminina, agora com homens e mulheres sendo designados como genitores.
O que levava um paulista do século XVII a pensar assim sobre seus ascendentes? Toda a estranheza, todo o ruído, desaparece quando se conhece o modo de conceber família dos Tupi-Guarani. Para esses povos, a filha era só do pai, pois acreditavam que o útero da mulher era apenas o local onde crescia o feto a partir do sêmen – o que explica a primeira diferença da genealogia, de citar apenas os nomes dos pais.
Já a estrutura que passa de mãe para filha é facilmente inteligível quando se conhece a organização dos grupos. Em todos eles, as mulheres eram as habitantes permanentes da casa. Passada a puberdade, na hora do casamento, os homens eram obrigados a procurar noiva em outra oca – ou, na via inversa, as filhas recebiam um noivo vindo de outra oca. Com isso, as mulheres se tornavam as habitantes permanentes, as mantenedoras da tradição. Avó, filhas, netas ficavam, cada qual com seu noivo vindo de fora e os filhos ainda não casados.
Com as duas informações, se entende muito melhor a genealogia feita pelo padre Guilherme Pompeu de Almeida. Em linguagem técnica da antropologia, trata-se de uma linhagem patrilinear (daí os nomes de homens) mas matrifocal (daqui a descendência pela linha feminina) por quatro gerações. Apenas na quinta aparece uma fusão parcial com o modo ocidental de pensar, com as filhas sendo atribuídas a pai e mãe, como no Ocidente, além de serem nomeadas. Só aqui a mulher que estrutura a sequência deixa de ser invisível.
Esse modo de pensar tupi, uma vez que se conhece sua estrutura, pode ajudar a entender a vida da família de um modo bem menos ortodoxo do que o registro desse viver que aparece nas genealogias paulistanas que a descrevem. O pai do padre, o capitão-mor Guilherme Pompeu de Almeida, embora filho de letrado, casou-se com uma mulher pobre e mestiça. Ao modo dos tupi, mudou-se, em 1630, para a recém-fundada vila de Santana de Parnaíba – a casa de sua mulher. Foi viver ao lado de seu sogro bastante indianizado, cujo apelido era “Terror dos Índios”. Comprou uma área de mineração de ferro abandonada, montou uma pequena oficina e passou a fornecer ferro para os parentes de sua mulher que circulavam pelo sertão, recebendo como pagamento parte das mercadorias que traziam na volta.
Ficou rico depressa e soube investir. Na segunda metade do século, era dono de uma grande manufatura com cinco oficinas especializadas na qual trabalhavam ao menos 200 artesãos, em grande maioria escravos nativos, mas com alguns mestiços e europeus (bem pagos, apesar de formalmente escravos) nas funções mais técnicas. Juntou dinheiro suficiente para financiar negócios de alto coturno e grande amplitude espacial, como a instalação de parentes mineradores em Curitiba, a transferência de cinco mil moradores de uma vila espanhola do atual território da Bolívia para São Paulo (faziam parte do grupo artesãos especializados que construíram os grandes tesouros artísticos e arquitetônicos paulistas da época) e a construção da Colônia de Sacramento, um ponto de contrabando bem em frente a Buenos Aires.
A quase totalidade desses negócios, apesar do volume crescente de dinheiro, era fundada apenas no costume, com os créditos sendo fornecidos e os débitos liquidados sem contratos – o fiado era a forma dominante de investimento de capital no sertão. Nos tempos do capitão, a única forma de registro encontrável para tais negócios eram as menções de dívidas nos inventários e testamentos de pessoas que morriam em meio ao andamento deles ou em esporádicas menções de atas das câmaras municipais. Já o filho letrado tinha o hábito de registrar as transações que fazia em cadernos – e um deles sobreviveu, tornando-se um dos raríssimos registros escritos dos negócios feitos segundo o costume no sertão.
Esses registros são, aparentemente, puro costume ocidental de comprar e vender, mas, se colocados num banco de dados, as referências aos negócios de pai e filho mostram pouca lógica quando cruzadas com uma genealogia construída no molde ocidental, que é patrifocal. Já quando as referências são cruzadas com uma genealogia tupi, construída com as mesmas categorias que definem família que o padre emprega para fazer a sua, todos os investimentos de capital se encaixam. Os créditos de negócio fluíam pelas linhagens matrifocais, pela casa feminina: os maridos das sobrinhas que vinham para ela recebiam bastante, os sobrinhos que casavam fora, bem menos. Em outras palavras, os investimentos de capital acumulado em padrão ocidental eram alocados segundo a lógica de um menor risco de inadimplência no parentesco tupi.
É um singelo exemplo que mostra como os modos de pensar e os costumes tupi operavam, em São Paulo, em camadas bem mais fundas que as formas legais de molde ocidental, inclusive no que se refere ao enriquecimento, à aplicação de capitais e ao financiamento de uma economia cada vez mais mercantil. O fato de que o padre-empresário respeitado por todos vivia com uma índia e tinha um filho com ela era apenas um detalhe.
E, nesta singeleza, o papel central da mulher como estruturadora de toda a vida do grupo – algo que vale para toda a sociedade colonial brasileira e toda a formação posterior do país – é, propriamente falando, a espinha dorsal invisível e ainda desconhecida da formação do Brasil.
Fora do Brasil há alguns anos, eu nunca deixo de me surpreender com a recente valorização do feminismo pelas internautas brasileiras. Quando eu deixei o país em 2009, pouco se ouvia falar sobre o tema.
Na conclusão do meu bacharelado, por exemplo, apresentei uma monografia sobre a influência do pensamento de Hegel na obra de Simone de Beauvoir, e muita gente se mostrou surpresa com a minha escolha. Na época, em conversa com uma colega, ouvi o seguinte comentário: “mas você acha mesmo que ainda vale a pena discutir aquela escritora?”.
Na Europa, o clima era outro. No Brasil, Simone de Beauvoir só virou polêmica em 2015, por conta de uma questão do ENEM. Aqui, já desde muito tempo se comentava um renascimento do interesse acadêmico em Simone de Beauvoir, especialmente a importância das suas contribuições para a fenomenologia, a moral existencialista e a literatura.
Discutia-se não apenas sua contribuição para o feminismo e seu envolvimento político com movimentos da esquerda francesa, mas, acima de tudo, seu lugar na tradição filosófica ocidental.
Em outra ocasião mais recente, durante uma viagem ao Nordeste do Brasil, participei de um jantar na casa de um professor universitário. À mesa, homens e mulheres conversavam sobre planejamento familiar. Indagada sobre filhos, respondi que, se possível, gostaria de ter uma filha. Causei espanto, nem tanto entre os homens da mesa, mas, principalmente, entre as mulheres. Como se todas à mesa se sentissem obrigadas a defender o ideal de primogenitura masculina.
Hoje, nas redes sociais, essas mesmas mulheres compartilham fotos e citações sobre luta feminista e empoderamento. Mas até que ponto esse interesse pelo feminismo expressa uma preocupação legítima com o bem-estar da mulher na sociedade, e a partir de que momento ele se transforma num sintoma de ansiedade coletiva?
Na década de setenta, a escritora Anaïs Nin concedeu uma série de entrevistas e palestras sobre o processo criativo em relação ao sexo feminino, fazendo questão de destacar a importância da saúde emocional do indivíduo na implementação de mudanças dos costumes sociais. Considerada uma das criadoras do romance memorialista feminino, Nin explicou aos seus leitores como transformou a ideia do diário íntimo numa forma de arte através da qual ela acreditava ter sido capaz de encontrar sua própria voz – não apenas como escritora, mas sobretudo como indivíduo e como mulher.
Havendo atuado como psicanalista e tradutora de Otto Rank para a língua inglesa, Nin descreve, em ensaios e palestras da última década de sua vida, seus diários como uma peça-chave no processo de sua formação pessoal.
Longe de acreditar na infalibilidade de soluções políticas e ideológicas, ou na ideia de que é possível mudar tanto o mundo quanto a natureza humana, ela desenvolveu, através de seus diários, um feminismo de viés psicológico que resgataria o impulso criativo da mulher para que esta passasse a exercer sua vontade sem necessariamente sentir-se dilacerada pela culpa: “eu peço que a mulher assuma responsabilidade pelo seu desenvolvimento. Eu não exonero os agentes que impediram essa evolução, mas eu quero que cada mulher perceba que ela pode ser senhora do seu próprio destino”.
Assim, antes de agir em grupo e reproduzir bordões políticos, cada mulher deveria conhecer a si mesma e aprender a identificar seus problemas e obstáculos individuais. Ora, refrões não são suficientes para nos fortalecer como mulheres e indivíduos.
Dito isto, já na década de setenta, Anaïs Nin percebeu que o movimento feminista corria o risco de entrar em pane caso as mulheres insistissem em encontrar soluções para problemas íntimos e pessoais unicamente através da mobilização coletiva e do ativismo político, disso gerando nova dependência. De acordo com a autora, as influências negativas das lealdades de classe, raça e religião atuariam como obstáculos emocionais para o desenvolvimento da mulher como indivíduo e jamais conseguiriam ser exclusivamente resolvidas mediante a politização.
Em um ensaio chamado Notas sobre o Feminismo, ela ressalta que, enquanto generalização, todo bordão comunica apenas uma inverdade e que, por isso mesmo: “muitas mulheres inteligentes e muitos homens potencialmente colaborativos, sentem-se alienados por generalizações (sic) … a coletividade nem sempre nos empresta força porque ela apenas funciona através de um mínimo denominador comum”.
Assim, apesar de todos os compartilhamentos online de bordões e mensagens feministas, parece-me inacreditável que, em menos de uma década, as mulheres da classe média brasileira tenham superado preconceitos ancestrais. Certamente, algumas dirão que ainda não os superaram, que estão buscando se conhecer melhor e reconhecer os próprios limites. Mas a maioria das mulheres que eu conheço, quando indagadas sobre o feminismo, sentem-se agredidas, como se o exercício do debate ameaçasse a legitimidade de suas crenças.
Ora, em um país como o nosso – em que a cultura do machismo ainda prevalece e que o feminismo se tornou uma ferramenta importante para questionar os valores e costumes que ameaçam a segurança física e a integridade emocional da mulher –, faz-se cada vez mais necessário questionar a adesão repentina ao feminismo como profissão de fé.
Afinal, mudanças drásticas de comportamento, sejam individuais ou coletivas, nem sempre indicam saúde e progresso. Pelo contrário, tais mudanças, exatamente por serem repentinas, escondem motivações ainda desconhecidas. Carecem de fundamentação e correm o risco de serem revertidas com maior facilidade.
Se, por um lado, iniciativas como os projetos “Deixe Ela em Paz”, “Futuras Líderes” (UP[W]IT) e “Leia Mulheres” são fundamentais para desfazer mitos e afirmar o protagonismo de mulheres na nossa sociedade; por outro lado, o entrincheiramento político-ideológico da militância feminista ameaça comprometer o alcance e a estabilidade das conquistas do próprio movimento.
Anaïs Nin explica que esse entrincheiramento ideológico seria caracterizado por uma maneira obsessiva de pensar problemas que poderiam ser resolvidos individualmente caso suas integrantes fossem capazes de enfrentar e adotar uma postura inteligente e responsável sobre suas próprias hostilidades e fracassos pessoais.
Em vez de focar aspectos práticos, econômicos e sociais relativos à situação da mulher, Nin escolheu, durante as suas palestras, dar ênfase à dinâmica dos conflitos interiores e à ideia de que a robustez de todo e qualquer indivíduo reside no exercício da confrontação de si próprio.
Acreditando ser possível libertar-se independentemente das circunstâncias, Nin escreve que sua principal contribuição ao movimento de libertação da mulher teria sido fazer notar, em seu diário, que nenhuma outra opção surtiria efeito mais prolongado do que uma reforma íntima das atitudes e das crenças pessoais de cada uma de nós.
A raiva e o ressentimento que permeiam a linguagem do feminismo cibernético, com suas acusações gratuitas e transferências de responsabilidade pessoal, devem ser combatidas pelo bem das conquistas do próprio movimento. Afinal, como assevera Anaïs Nin, a raiva faz com que exageremos nossos problemas e impede que alcancemos o apoio e o reconhecimento necessários para evoluir e seguir adiante.
Ao contrário do feminismo acadêmico convencional baseado em formulações intelectuais sobre as circunstâncias da mulher na sociedade, os diários de Anaïs Nin nos oferecem uma versão do feminismo guiado tanto pela sua sensibilidade estética quanto pela sua sensibilidade psicológica.
Enquanto, por exemplo, o pensamento feminista de Simone de Beauvoir é marcado por ideias políticas, influenciadas principalmente por Hegel e Marx, as influências que informam o feminismo proposto por Anaïs Nin são outras, como, por exemplo, Freud e Proust. Ao enfatizar o papel da arte e do processo criativo no desenvolvimento psicológico, Anaïs Nin diz-nos: “o que eu mais gostei na psicologia foi a ideia de que o destino é interior e está em nossas mãos. Enquanto nós aguardarmos pela salvação através dos outros, nós jamais desenvolveremos a força que nós precisamos para nos salvarmos a nós mesmos”.
Assim, em sua peroração, Anaïs Nin permite-nos concluir que a liberação da mulher na sociedade envolve não apenas lutas políticas, mas, sobretudo, a superação de obstáculos emocionais particulares.
É justamente este apreço pelas circunstâncias e pelas peculiaridades de cada indivíduo que falta ao discurso de cunho feminista amplamente compartilhado nas redes sociais Brasil afora.
Ora, a mentalidade de grupo por si só não é capaz de fortalecer e libertar o indivíduo dos seus próprios preconceitos e amarras afetivas. Pelo contrário, oprime, aliena e enfraquece a vontade individual. Atira quem mais precisa de ajuda numa passividade e num discurso de vitimização que arriscam perpetuar uma dependência emocional e causar prejuízo a toda uma comunidade.
Na conclusão de Notas sobre o Feminismo, Anaïs Nin assevera que: “o pensamento majoritário é opressivo porque ele inibe o desenvolvimento individual e busca uma fórmula para todos. O crescimento individual empresta maior qualidade à vida em comunidade. Uma mulher desenvolvida saberá como cumprir com as suas obrigações sociais e como agir de maneira efetiva”. Escritas em 1972, essas palavras permanecem tão vitais e desafiadoras quanto elas soaram no momento de sua publicação.
Homens Flores
por Bruno Cosentino
A canção “Homens Flores”, de Luís Capucho e Marcos Sacramento, que gravei no disco Babies, é uma pequena obra-prima. Ela canta:
os mundos são mais belos
quando olhados pela janela
e as colinas estão repletas de homens fortes
e eu olho pra elas
porque elas são o mundo inteiro
e eu olho pra eles
porque eles são o mundo inteiro
e eu olho pra elas
porque elas são meu terreno
e eu olho pra eles
porque eles são meu terreno
onde eu vou plantar
onde eu vou plantar
flores homens
homens flores
flores homens
homens flores
A letra e a melodia juntas passam uma sensação de profunda leveza, um feito que (não) se explica no mistério que pode ser alcançado pela intuição do compositor quando cria uma canção — um empenho do corpo inteiro, da memória, dos desejos, no passadopresentefuturo, integração cósmica da pessoa no espaço-tempo. Tento penetrar o mistério e entender de que ele é feito; os picos de alegria, onde estão.
A primeira coisa que me vem são os homens nas colinas, uma imagem que me remete à beleza clássica da Grécia Antiga, de exibição e celebração do corpo (me lembro também de Walt Whitman, que cantou a saúde dos corpos servindo de enfermeiro aos feridos da Guerra de Secessão dos Estados Unidos).
Na sequência, já aparece uma surpresa, porque justo depois de “e as colinas estão repletas de homens fortes”, é dito “e eu olho pra elas”. Sempre fiquei sem entender direito, mas o que me vinha, antes, era que se falava de homens como o gênero humano, que inclui os homens e as mulheres. Mas quando fui ao texto, a correção gramatical (que, para a canção, não vale lá grande coisa, pois está regida mais pelas sugestões sensuais do que pelo entendimento racional) me levou às “colinas”, ao “elas” e “eles”, aos “homens fortes”; assim, os homens são mesmo homens do sexo masculino. Mas, no fundo, é a beleza que se insinua no “mal-entendido” sintático que a deixa mais bonita. Depois de homens fortes, quando seria esperado “eles”, se diz “elas”; esse estranhamento faz unir o masculino ao feminino. Reforçado pela sequência de paralelismos, “e eu olho pra elas”, “e eu olho pra eles”, tanto elas como eles passam a ser a mesma coisa, “o mundo inteiro”, “meu terreno”, tornando indistintos os gêneros.
É nesse terreno que o cantor vai plantar os homens flores. Assim como todos nascemos do ventre da mulher, eles vão nascer do ventre da mãe terra. Uma dinâmica de diferenciação (na oposição repetitiva de “elas” e “eles”) e de conciliação dos contrários, que remete à unidade primordial anterior à criação.
E, ao fim, tudo retorna à primeira imagem: ali, nas colinas, onde estão apinhados sob o sol (quem diz do sol é a melodia) os homens flores — resplandecendo.
—
A palavra “misoginia” significa ódio ou aversão às mulheres, mas, seguindo a sugestão de Camille Paglia, ela adquire uma conotação mais complexa, que tem origem no medo das mulheres. Sendo assim, o sentido mais comum atribuído à palavra — o ódio às mulheres — seria, antes, uma consequência do medo. O escritor Jean Delumeau, no livro História do medo no Ocidente, dedica um longo capítulo, denominado “Os agentes de satã”, a três figuras párias da civilização ocidental: o muçulmano, o judeu e a mulher. Ele descreve o processo de diabolização da mulher pelo discurso católico oficial e pela literatura. Se o medo está na origem do ódio às mulheres, outro efeito desse medo pode ser também a adoração religiosa à mulher. Vinicius de Moraes é um exemplo desse último caso.
Percebe-se claramente, nos seus dois primeiros livros, em poemas como “A legião dos úrias”, o terror à mulher implantado pela formação católica do escritor:
(…) dizem os camponeses ouvir os uivos tétricos e distantes
dos cavaleiros úrias que pingam sangue das partes amaldiçoadas.
são os escravos da lua. vieram também de ventres brancos e puros
tiveram também olhos azuis e cachos louros sobre a fronte…
mas um dia a grande princesa os fez enlouquecidos, e eles foram escurecendo
em muitos ventres que eram também brancos mas que eram impuros.
e desde então nas noites claras eles aparecem
sobre cavalos lívidos que conhecem todos os caminhos
e vão pelas fazendas arrancando o sexo das meninas e das mães sozinhas
e das éguas e das vacas que dormem afastadas dos machos fortes (…)
De sua “desconversão”, na obra posterior, podemos tirar os versos mais apaixonados de veneração à mulher, que, embora de carne e osso, guarda a aura da mulher total, da santa Virgem Maria.
Se o medo está na origem, todo homem é misógino. A alteridade feminina se mostra ao homem por demais misteriosa (e ameaçadora). Uma coisa fundamental torna muito diferente a experiência de estar no mundo do homem e da mulher: a maternidade. O fato de poder gerar uma vida dentro de si faz com que a mulher esteja conectada com as forças da natureza de um modo que o homem é incapaz de estar. Mesmo para as mulheres que não são mães, o ciclo menstrual as põe em compasso com o movimento da lua. Não consigo imaginar uma experiência mais telúrica do que sentir crescer um ser humano dentro da barriga — a posição de cócoras utilizada por muitas mulheres no momento de parir faz os pés parecerem raízes fincadas no solo. O grito de dor é grito que invoca toda nossa ancestralidade de bicho.
(O grito da maior dor, a do parto, é o mesmo grito do maior prazer, o do orgasmo. O grito que dá a vida é o mesmo que emitimos quando morremos no momento do prazer extremo, que Georges Bataille chamou de “pequena morte”. Essa similaridade perturbadora também só pode (não) ser compreendida na dimensão mítica
obs.
perdi a razão
querer entrar por onde saí
que quer dizer
essa louca intenção
tudo é circular
morrer morrer morrer
morrer onde nasci
morrer entrar nascer sair
querer entrar por onde saí
morrer entrar nascer sair
querer entrar entrar
de novo sair
perdi a razão)
O mundo é concreto para as mulheres; acho que daí vem o gosto muito natural pelas coisas, pela aparência, que vai dar no clichê do consumismo. Daí também um tipo de intelectualidade muito diferente da do homem, este mais inclinado ao conceito e à abstração — me lembro da Hannah Arendt dizendo, numa entrevista, que não gostava de ser chamada de filósofa, mas de cientista política; de fato, seus textos têm uma inteligência com sabor de terra. Não à toa, a condição humana, para ela, é o estar entre seus pares, ou seja, a política. É claro, as mulheres têm seu jeito de estar com a cabeça nas nuvens, assim como os homens também têm o seu, mas estes parecem ter mais do que a cabeça, o corpo todo nas nuvens, inábeis para lidar com a beleza diária das coisas práticas, enquanto a mulher parece se relacionar com isso de forma mais espontânea e bem resolvida. E a imaginação feminina vai para outros lugares, não sei bem dizer quais; talvez para uma fantasia de totalidade, porém conectada com o chão.
Assim, o estar no mundo feminino, com sua lógica conciliatória — deveríamos sempre pensar na hipótese de que, se não fossem os homens, não haveria a guerra; uma mulher que sabe e sente e possui o poder de dar a vida não é capaz, enquanto coletivo, de criar a instituição que a extingue. A noção de progresso, calcada numa posição declarada de rivalidade contra a natureza, da criação do artifício, é necessária, masculina, antifeminina — ainda como diz a dissidente feminista (inteligente e controversa) Camille Paglia, o homem quer se separar da mãe e, por isso, sai a vagar e buscar proteção na arquitetura, na arte etc.
—
O homem não deixa a mulher falar porque ela representa o perigo ao modelo masculino de civilização. Ele tem medo dela.
—
Interessante notar que justamente hoje, quando muitos intelectuais estão refletindo sobre a ruína do norte racionalista — que tem seu maior e mais brutal exemplo no utilitarismo capitalista, justificativa inconteste para as maiores atrocidades humanas —, retornando ao frescor da ciência prenhe de fantasia do medievo, o que se deseja é mais irracionalidade. Em outras palavras, mais corpo, intuição, contribuições dos sentidos para as formas de convivência. O corpo é o contradiscurso — ele é do império feminino.
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Uma amiga, outro dia, no café (quando perguntei se concordava com o que Françoise Dolto dizia, que a sexualidade feminina está culturalmente menos localizada no órgão genital e que isso era resultado de uma sublimação na obra, ou seja, filhos, família etc., o que me tinha parecido um discurso anacrônico com o debate feminista atual), me disse que a própria estrutura do canal da vagina faz o prazer sexual irradiar para dentro do corpo e imantá-lo de um jeito difuso, que a maioria dos homens não entende isso e que, por esse motivo, ela (assim como outras) passou também a buscar satisfação sexual com outras mulheres. Uma outra amiga, para quem pus a mesma questão, me disse que concordava com Dolto, ainda que o lugar do prazer estivesse recolocado nos dias de hoje — o direito ao prazer sem o julgamento moral de origem, notadamente, masculina.
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Segundo o mito, o andrógino está na origem. Desafiamos os deuses, e Zeus nos separou em homem e mulher. A partir de então, não paramos mais de buscar a metade perdida. Reproduzimos para tentar nos fundir novamente.
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Meu filho de três anos me disse que queria ser menina porque queria ser igual à mamãe. Outro dia, vendo minha filha, tive o entendimento claro de que nela eu me tornei menina — de verdade, com fundamento biológico.
Lixo eletrônico tóxico
Os adolescentes denunciam, atualmente, na clínica psicanalítica, algumas contradições importantes da nossa sociedade atual. Ao trazerem questões a serem valorizadas, algumas merecem que nos debrucemos com mais cuidado.
Explico. Em primeiro lugar, hoje em dia, ser homofóbico é tido como um defeito inadmissível. Existe um respeito por aquilo que é diferente. Ponto para a nova geração. Nos anos 90, ninguém sabia que essa palavra existia, e hoje ela é repetida inúmeras vezes como uma falha que deve ser levada a sério: “Não falo mais com fulano, ele é homofóbico, você acredita? Que absurdo”. Escuto essa frase com frequência no consultório e recebo com animação a geração que está chegando. Talvez o futuro possa ter um horizonte mais tolerante, com mais respeito e mais compreensão.
É também muito rico esse movimento das meninas que lutam pelo feminismo, se questionando sobre ser mulher. Brigam para serem ouvidas na escola, enfrentando, a seu modo, uma sociedade que emoldura e enfraquece as mulheres. Às vezes, elas até exageram, achando que qualquer gentileza é sinal de machismo: “Ele abriu a porta do carro no primeiro encontro, que machismo!”.
Adolescente costuma exagerar no tom, para se fazer ser visto e ouvido, para tentar compreender e ser compreendido. Tudo nessa fase da vida é grande, em CAPS LOCK. Mas, de maneira geral, é bastante esperançoso ver meninas de 13 anos pensando sobre isso durante suas sessões de análise. Parece-me que esse questionamento tem aparecido antes de sentirem-se acuadas no papel de mulher. Percebo que hoje a feminilidade é construída junto dessa reflexão.
Por outro lado, alguns temas merecem mais cautela: a propagação de letras de funk que são absolutamente misóginas é um deles. Essas mesmas meninas que brigam para serem respeitadas pelas suas escolhas sexuais, por outro lado, entoam mantras de funkeiros que são absolutamente desrespeitosos com a figura feminina e até violentos. Às vezes, penso que essas jovens que cantam essas canções não compreendem de fato o que estão propagando. Será que gostariam de ser tratadas pelos parceiros como as personagens que vivem em suas playlists? É só ouvir Mc Jhon Jhon. Mc Princesa ou Baile de Favela para saber do que estou falando. A velha Tati Quebra-Barraco fica no chinelo.
O fato é que o que toca hoje nas ondas do rádio e no YouTube dos funkeiros tem um tom de violência e de desqualificação da mulher. Os tais “proibidões” são a antítese desse discurso feminista; colocam a mulher num contexto que banaliza não apenas a sexualidade, mas também as drogas.
A sexualidade na adolescência é assunto sério. O desabrochar dessa fase marca toda uma relação eu-corpo que dura por toda a vida. A intimidade não pode ser excluída desse período, como se fosse algo sem valor. Não é peça de antiguidade; é um espaço importante da construção do psiquismo, impossível de ser deletado.
Recentemente, assisti ao documentário Hot Girls Wanted, que investiga a entrada de jovens meninas para o mercado pornográfico. Todas por volta de 18 anos, em busca de dias de glória e glamour. “Já que vou transar, por que não filmar? Já que o nude pode vazar, melhor eu mesma me expor, por vontade própria” – afirma uma atriz. São meninas que entram nesse mercado em busca de fama e sucesso às custas de uma exposição violenta, precoce. Uma decisão impulsiva, um acting out em busca de independência.
A maneira como o filme se desenrola é bastante respeitosa. O olhar do diretor não se aproveita do corpo das moças – o que é raro, em geral, pois sempre se tira uma casquinha das atrizes. No caso, embora o documentário fale de sexo, não exibe nudez. O assunto é manuseado com o cuidado necessário – cuidado este que as mesmas atrizes não têm consigo mesmas, muitas vezes descartando o uso de preservativo para ganhar mais. Uma das meninas conta que fez uma cena de sexo e recebeu cem dólares a mais, mas, como teve que comprar a pílula do dia seguinte, lucrou apenas oitenta.
É muito triste para o espectador ver a falta de intimidade dessas meninas consigo mesmas, com seus sentimentos, a falta amor pelo próprio corpo; o olhar por vezes assustado, por vezes opaco, que elas trocam com os parceiros-atores, a violência à qual se submetem.
Fiquei surpresa ao saber que muitas delas se dispõem a um tipo de filmagem de uma categoria chamada Facial, na qual são humilhadas na frente das câmeras, sofrem violência física, fazem sexo forçado até vomitar, dentre outras coisas tão chocantes que considero de mau gosto redigir. Essa categoria do pornô está disponível para quem quiser ver num simples clique. O filme é uma denúncia triste. Vale assistir para refletir sobre o fato de que toda uma geração formará sua sexualidade assistindo vídeos na internet, esbarrando em conteúdos como esses, ouvindo canções repletas de violência e promiscuidade, que podem vir a ser as canções tema de uma noite especial.
O fantasiar, hoje, foi substituído pelo Google; porém, muitas vezes, o conteúdo digital é assustador. A internet oferece possibilidades diversas, sem que o jovem tenha um aparelho digestivo psíquico suficientemente forte.
Devemos pensar cuidadosamente sobre como as mídias podem ser invasivas, sobre o que é informação e o que é lixo eletrônico tóxico, cujos resíduos ficam marcados permanentemente na mente em formação.
For_Eva
Terça-feira é dia de comprar flores e acender uma vela para Nossa Senhora Aparecida.
Estes eram os únicos motivos que me faziam sair da cama no primeiro mês após o falecimento da minha mãe, numa terça-feira de maio do ano passado.
Era inaceitável, para mim, que uma pessoa de 66 anos, tão amável, fosse embora após 6 meses de tanto sofrimento. Dona Eva, mulher forte, guerreira, de fibra!
Comprar e fotografar flores nunca foi uma novidade para mim, mas, após esse momento, por algum motivo, isso passou a ter outro significado.
Dona Eva sempre gostou de flores, principalmente de “amor-perfeito” – em francês, “Pensée”, que significa “pensamento” e que os amantes davam como presente antes de se ausentarem durante tempo indefinido, como garantia de que o seu amor nunca cairia no esquecimento.
O amor-perfeito está associado ao amor de mãe. É a mensagem simbólica de um amor que não se acaba. É infinito.
Esse hábito virou uma obsessão.
Começaram a ser frequentes as madrugadas no CEAGESP, assim como as madrugadas fotografando essas flores; uma maneira de ocupar minha insônia.
Passei horas atrás de uma câmera 4×5”, fotografando uma única flor, nos mais variados formatos de filmes e polaroides que eu vinha guardando desde 2010.
Mais que uma obsessão, esse hábito se tornou uma maneira de, em cada foto, eu estar conectado em silêncio com minha mãe.
For_Eva, uma sutil brincadeira com forever, algo que não se acaba, infinito.
O tempo passou, e o meu luto se acalmou, mas o hábito de fotografar flores e dedicar à Dona Eva vai continuar por toda a minha vida.
O Feminino
Início, mansamente incisivo, chamando a atenção para o artigo definido masculino, “o”, para se referir ao “feminino”.
O que significaria um título como “A Feminina”?
Quem entenderia, e comentaria o que a respeito?
Seria o início da história de uma “mulher feminina”?!
O nome de uma loja? A marca de uma nova lingerie?
Uma cultura constrói uma linguagem – uma linguagem reflete uma cultura – em que conceitos e valores, conscientes e inconscientes, se sucedem no discurso, tanto erudito e estruturado quanto cotidiano e coloquial.
Falando, fixamos… Fixando, falamos…
É um contrato… Ele desenha um círculo…
Quebrar esse contrato gera medo, irritação, pode chegar ao ódio, construir ideologias, fazer aflorar revoltas justas, vingar antigas prepotências. Revela o quanto a reversibilidade – ou a irreversibilidade – da linguagem significa arejamento, inclusão, revisão e, portanto, inteligência, e o quanto a rigidez dos seus fraseados gera ilusão, exclusão e preconceito.
Diriam os linguistas de intenções culturalistas:
— Se já cabe nas palavras, um dia caberá nos costumes e valores, transformando os hábitos. Se ainda cabe convicta e veementemente nas palavras, é sinal do quanto a rigidez da tradição se defende das mudanças com as palavras.
Ou seja, as mudanças se mostram nas palavras.
Daí a importância do discurso.
Daí, para quem os tem em alta consideração, a importância dos poetas.
Mas nem todos assim creem. Talvez porque não vejam, talvez porque vejam a partir de pontos de vista cujas história e origem sejam tão alheias que não lhes cabe considerar.
Dentre esses outros – dos que não enxergam as palavras e o frasear como espelhos da cultura, considerando que é possível estudar uma cultura, sua rigidez e suas mudanças, a partir das suas palavras –, dentre esses muitos, podemos arbitrar alguns conjuntos.
(i) Aqueles que consideram “o feminino e o masculino” – notem que não escrevo “a feminina e o masculino” – o produto evolutivo de um processo darwinista milenar, em que o acaso e a determinação interagiram de maneira a criar poderes associados a papéis sociais e papéis associados a poderes. Musculosos machos caçadores, ancestrais e seminais, servindo e protegendo cuidadosas fêmeas maternais receptivas, e vice-versa, num contrato arqueo-antropológico capaz de oferecer as fundações de um certo tipo de discurso para os milênios sucedentes.
(ii) Aqueles que creem firmemente, conforme fixa a Escritura, que “(…) macho e fêmea os criou (…)”, descartando a fé na pretensa ciência evolutiva em nome da religiosa fé criacionista.
(iii) Aqueles que se dedicam a engendrar mil sutilezas, na tentativa de integrar tais abordagens, buscar outras e inovar.
Aqui, no entanto – mesmo atento, respeitoso, e incluindo tais hipóteses –, eu escolho o caminho das palavras. Elas refletem a realidade – ao menos algumas realidades – e podem mudar a realidade – ao menos algumas realidades. Consideremos uma declaração:
Assim como a alimentação humana não é um ato biológico cujo objetivo é a sobrevivência – ela é um ato social cujo objetivo é o compartilhamento e a celebração das relações sociais e do alimento –, também a sexualidade humana não é um ato biológico cujo objetivo é a reprodução – ela é um ato social cujo objetivo é o prazer, incluindo o compartilhamento e a celebração dos corpos.
Pois bem, nesses maravilhosos tempos bicudos, nos quais discutimos intensa e apaixonadamente, há décadas, muito daquilo que imaginamos – ilusoriamente – ter estabilizado por séculos, qualquer tema se torna rapidamente polêmico, gerando disputas e polarizações cujas latitudes vão de estudos acadêmicos e reportagens de improviso a passeatas inflamadas e rupturas de amizades, afetando fortemente as expressões, as relações e, certamente, a literatura, a arte e a educação.
O “feminino” – com sua inexplicavelmente obrigatória contraparte, o “masculino” – não ficaria de fora do elenco dessas discussões centrais. Que seja!
Natural ou cultural?
A resposta, a meu ver, integradora, é “culturalmente natural e naturalmente cultural”, principalmente via discursos, cujas intenções devem ser interpretadas não apenas nas maravilhas que tais antigas falas procuraram evidenciar, mas nos horrores que sempre procuraram ocultar e disfarçar.
Um desses horrores, hoje em evidência transformadora e corajosa, é a opressiva prepotência da tal “estabilidade bem assentada dos papéis sociais dos gêneros”, ao ver de muitos “consolidadora de uma sociocultura contratada, e funcionando muito bem”, com suas barbaridades escondidas.
Do lado analítico, sempre usando as palavras, esse discurso por milênios ocultou a intenção de submissão via opressão, a atribuição dos papéis “chatos”, na milenar exploração, usando o gênero.
Gerou consciência da evidência, gerou revolta, gerou novos discursos, e hoje interdita frases e expressões no curioso mecanismo histórico segundo o qual “o (novo) discurso proíbe o (velho) discurso” e se estende para além “do feminino”, procurando “a feminina” – que, como vimos de saída, ainda não existe na linguagem –, mas já dá sinais como “conceito” e, portanto, existirá.
No entanto, há mais.
Como é usual em tais (r)evoluções, as ousadias vão além!
Entre “a feminina”, “o feminino”, “a masculina” e “o masculino”, o que encontramos?
A masculina e o feminino poderiam se dar bem?
Também a feminina e a masculina?
E que tal a masculina e a masculina?
Ou, quem sabe, o feminino e o feminino?
Ou, até, haveria ainda espaço para o masculino e a feminina?
Consideremos as frases “essa homem é um mulher”, ou “esse mulher é uma homem”, e, até mesmo – que arcaico! –, “esse homem é um homem” e “essa mulher é uma mulher”, ou “esse homem é masculino”, “essa mulher é feminina”, ou “esse homem é feminino”, “essa mulher é masculina”.
Esperta e ágil, a cultura criou novas palavras: masculinizada e afeminado.
Atentem às terminações, masculinizada e afeminado, dando um sentido de “processo”: (…) ela foi se masculinizando, ele foi se afeminando, um dia se encontraram no éden das oposições reversas, e foram felizes para sempre (…)
Descartando as ironias que tangenciam o mau gosto – necessariamente ilustrativo e ilustrativamente necessário –, um dia, faz tempo, a linguagem aconteceu para os humanos de maneira tão estruturada, estruturante e refinada que se tornou “Grande Senhora”, construtora de contratos e cultura, assim como de ardil, cinismo, exclusão, prepotência, mentira, preconceito, opressão e traição.
Os humanos desenvolveram competências especiais – fazer, falar, pensar, sentir – e se tornaram capazes de fraturar essas instâncias “fazendo o que não sentem ou que não pensam”, “sentindo e pensando o que não fazem” e, até mesmo, “fazendo e falando o que pensam e sentem” – que perigo! –, num jogo social e cultural, também sexual, também oral, anal e genital, ético e erótico, prático e político, cuja complexidade simplesmente ri das nossas precárias categorizações e dos nossos ridículos esforços de “fixar nossos costumes”, abrindo mão da única possível maravilha da nossa humana condição: transformar, procurando aprimorar, a cultura via linguagem.
A cognição funciona por categorização, está no meio.
Antes dela, a intuição nasce integrada.
Depois dela, a imaginação planta o futuro.
Quando os humanos descobriram os substantivos – dando nomes, via fala, a pessoas e objetos –, houve um avanço.
Quando os humanos conseguiram elencar tais pessoas e objetos em conjuntos, dando nomes aos conjuntos, isso dependeu de adjetivos, e houve um grande avanço.
No entanto, foi quando os humanos descobriram que todos os adjetivos poderiam, boiando sobre eles, colorir todos os substantivos que se iniciou o grande salto da imaginação. Nasceu a poética.
Então, todas as representações mentais do mundo podiam se superpor umas às outras, e essa intimidade poderia projetar-se sobre o mundo natural, criar mundos culturais e, até mesmo, emular culturalmente os mundos naturais originais. A natureza da cultura e a cultura da natureza nasceram integradas, até que uma cultura as separou.
Nós não conhecemos a história das culturas que não se apartaram da natureza porque nós não apenas as destruímos como também destruímos seus registros e vestígios. Ao que parece, dos poucos registros que ficaram, essas culturas não tinham um sentido de “inclusão” ou de “exclusão”, tais como temos hoje, por não terem suas categorizações tão rígidas. Talvez já tivessem a capacidade de superpor quaisquer adjetivos a quaisquer substantivos, o que lhes conferia suficiente imaginação para criarem o pensamento mágico – na verdade, uma poética. Não se tratava de categorizar uma homem como afeminado ou um mulher como masculinizada, porque os fatos são os fatos, os sentimentos e as ideias são os sentimentos e as ideias, porque as falas são as falas, os desejos os desejos, integrados num potente todo arcaico. Foi o desdobramento, a atualização – no sentido de uma potência virar ato – dessa ancestral integridade que, (i) categorizando, permitiu cognição; (ii) adjetivando, galgou falar das qualidades; e (iii) colorindo certas coisas com qualidades improváveis, criou o imaginário. Daí a poética estar acima da razão – e acima da política, da estética, da ética, da prática e da erótica. Daí a poética se manter pelos milênios, em qualquer que seja o tempo, como a fonte das nossas esperanças mais potentes.
Assim, é pela poética, e não por outra via contratual, que eu aqui escolho ilustrar as infinitas gradações que se estendem do masculino ao feminino, do feminino ao submisso e ao maternal, do masculino ao heroico e provedor – e vice-versa, tergiversa essa conversa… –, fazendo a esse mundo cultural uma pergunta natural: Por que não cabe? Por que não cabem as evidências existentes, as gradações e as sutilezas que individualizam os indivíduos? Por que não cabem as singularidades singulares que constroem a abstração do universal? …O feminino? …Assim tão masculino?!
O que a floresta tem a dizer sobre o que cabe na floresta?
Sobre o que nasce na floresta, vive e morre na floresta?!
E o oceano sobre o oceano? As estrelas sobre o céu?
Por que a dignidade não é devida pela simples evidência da existência?
Por que a dificuldade de respeitar o direito a ser, só porque nasceu e é?
Por que a dificuldade de acolher aquilo que a vida manifesta?
Observando, estudando e meditando, ofereço uma resposta.
É porque os humanos odeiam os humanos por espaço. Porque esse espaço não é só físico. Ele é mental, é social, é cultural. Porque os humanos desejam e almejam as semelhanças que os façam se sentir espelhados e seguros. Porque os humanos temem as diferenças como potencialmente destrutivas das suas identidades tão precárias e medrosas.
No entanto, alguns humanos – que se consideram, a meu ver erroneamente, mais humanos do que outros – apreciam e são capazes de integrar a cultura e a natureza, acolher o que aparece como vida manifesta, e mostram-se afáveis e curiosos antes de apedrejar sem saber quem. Porque alguns humanos aprenderam que ninguém deve ser julgado, condenado ou excluído por ser aquilo que é inerente ao seu ser próprio, aquilo que ele ou ela não poderia deixar de ser: elea, ou elae, se caso for. Aqui, porém, ao dizer “se for o caso”, eu conduzo a presente caminhada ao seu final.
Da mesma forma que devemos acolher, culturalmente, a natureza que se mostra tão evidente, que devemos evitar os preconceitos – e os preceitos, que intencionam, infantilmente, fixar nossos valores além do que a história das mentalidades autoriza –, não devemos permitir que tais (r)evoluções forcem humanos a desejar o que não desejam, a fazer o que não aceitam, ou a ser o que não são.
Cuidado, portanto, com a sombra semelhante que, reversa, via revolta, via deboche, via anarquismo, deseja apenas destilar, como ódio, as velhas mágoas.
Incentivemos nas pessoas a coragem para olhar dentro de si, saber quem são, e achar no mundo seus justos espaços singulares. Evitemos permitir (e, pior ainda, incentivar) que os humanos cometam os mesmos erros, ao reverso, que hoje pretendem denunciar e corrigir.
É verdade, integradora, que os gêneros evoluíram em processos bioquímicos, que a reprodução sexuada, que a mitose, que a meiose, geraram endocrinologias que influem nos psiquismos e nas disposições afetivas e sociais.
É verdade, integradora, que os humanos, via linguagem, criam e contratam – desejando, ou à violenta revelia – culturas que mudam com o tempo, construindo a história das mentalidades.
É verdade, integradora, que as categorias que criamos para pensar e conhecer a natureza são invariavelmente pobres e precárias face à imensa variedade com que a natureza “não dá saltos” mas, ao contrário, é toda feita de gradientes ante os quais a linguagem está sempre aquém.
É verdade, integradora, que não vivemos hoje, como sempre, apenas mais uma época de transição. Estamos diante da transição de uma época. Tal transição redefine “o feminino” e, com o tempo, criará novas palavras refletindo tal conceito.
Esse “Novo Feminino” é uma “Nova Feminina” para a qual nossas palavras são ainda inconsistentes. Tradicionais adjetivos já não cobrem os predicados que hoje surgem, e os que ressurgem dos milênios soterrados, quando as mães lideravam as divisões e criança alguma era esquecida; quando o mênstruo, o sêmen, o gozo e a gravidez, cada qual com a sua lógica, ainda não eram associados; quando os afetos não censuravam os carinhos, nem os corpos discriminavam as carícias. Essas memórias – naturais?! – constituem o alicerce do que veio, a linguagem ampliou as possibilidades culturais
E aqui chegamos a esse assunto atualmente tão falado.
Não há por que apartar o que foi junto nem deixar de unir o fraturado.