#15TempoArteFotografia

De carne e osso

por Jair Lanes

escuta…
essas sombras da noite eterna
essas cintilações na noite eterna
olhe…
esse rumor do abismo
esse tumulto mudo no abismo

desprotegidos
ah paraíso perdido!!
alienados do céu
exilados no tempo
é sempre aurora
sempre ocaso
tempo labirinto tempo escondido
oculta e desvela

s u s s u r r o s

duram em nós
devaneios das eras
lembranças de protozoário reverberam nos corpos
elevam-se na memória febres vegetais
delírios minerais
devaneios das eras
duram nas coisas

C L A M O R E S

mortais
e essas sombras?!
engendradas pelo descontínuo do tempo…
e esses tumultos mudos?!
perdidos na torrente secular….
e esses sulcos?!
espraiados na superfície do mundo
em persistente metamorfose
eco das coisas nas coisas nos seres
eco dos seres nos seres nas coisas
no limiar
a se perder no invisível
mas guardando ainda, é evidente
inverossímil confiança na promessa de tudo

#13Qual é o seu legado?CulturaSociedade

O que você está fazendo aqui?

por Bruno Pesca

“Não sei”. Respondi uma vez a um oficial de imigração, ao pousar em Houston. Antes que ele completasse seu movimento de pescoço e sobrancelha, passando de meu passaporte em sua mesa aos meus olhos, corrigi imediatamente a brincadeira. Não recomendo reflexões filosóficas em meio a interações com agentes da lei, especialmente se forem da imigração nos EUA. Mas a verdade é que, se levada até os limites de sua implicação, é a pergunta mais importante da vida, e, logo, da filosofia, apesar da filosofia geralmente iniciar suas perguntas com por quês (a mesma pode ser lida como “por que você está aqui?”) e da vida jamais parar para nos fazer perguntas.

Não se trata de entendermos a razão pela qual estamos no mundo. Trata-se de decidirmos a razão pela qual estamos nele. Acredito que a maneira mais eficiente de se chegar a essa resposta seja pensar num legado. O que quero deixar para o mundo? Qual o meu papel nisso tudo que vejo? Meu esforço faria falta para alguém? Para que saio de casa todas as manhãs e por que alguém deveria se importar com isso?

Legado não é exatamente resultado. Por exemplo, empresários brilhantes – aqueles que buscam transformar a vida de seus clientes – falam em legado. Seus analistas e consultores de mercado é que falam em resultado. A razão de uma empresa existir, ou de alguém trabalhar nela, não é lucro ou remuneração. Isso é essencial, mas é resultado. Remuneração é pelo emprego, não pelo trabalho. Trabalho é a missão na vida. Animais trabalham. A natureza trabalha. A questão primordial parece ser o que você acredita e prega com o seu trabalho, e, traduzindo para o mundo prático, porque não escolheu um emprego em outra função. E se em meados do século passado era possível e desejável separarmos vida pessoal de vida profissional, esse não é mais o caso.

Veja novamente o mundo corporativo. Empresas modernas trabalham com o conceito de responsabilidade social, que nada mais é que a compreensão de que, para além de fabricantes de sapatos, de exploradores de minério etc., as pessoas são também membros civis da sociedade e têm a obrigação de realizar suas atividades como tal. Empresas são formadas por pessoas, e ganham dinheiro atendendo as necessidades de outras pessoas. Portanto, a tal responsabilidade social faz parte da evolução humana, e já está constatado que a separação das nossas diferentes facetas sociais (empregado, consumidor, cidadão, chefe de família etc.) é falsa, pois somos, cada um de nós, uma figura só, que, integrada a outros, forma uma outra coisa só.

Menosprezar a função vital do trabalho evocando a felicidade pessoal é conveniente aos que não curtem o que fazem. A teoria aí é que trabalho não é importante, pois, antes dele, importa mais sermos caras legais, isto é, bons pais, bons filhos, bons amigos. Mas pessoas legais não têm uma paixão? Não têm ideais e sonhos? O resultado disso parece ser inexoravelmente frustrante, não importando o quanto a pessoa tente convencer a si mesma de que seja um herói familiar.

Família não deve ser escudo. E não podemos nos esquecer do significado original da palavra “profissão”, nada mais do que aquilo que alguém professa, acredita e escolheu dar ao mundo. Quer mesmo dizer ao seu filho que você veio ao mundo apenas para cuidar dele? E ele veio para quê, então? Para ser o último imperador? Nenhum animal selvagem faz isso – apesar de zelar até as últimas consequências por seus filhotes –, pois existe o resto da floresta e o equilíbrio do ecossistema.

Se queremos mesmo abandonar a separação de nossas horas e misturar tudo, precisamos amar o que fazemos com o mesmo ímpeto que amamos nossas famílias, pois só assim nossos momentos de trabalho valerão tanto quanto os de lazer e abstração. Mas o que consigo fazer por amor e não por um contracheque? A resposta precisa da definição da sua missão na Terra, e a melhor maneira de defini-la é tentar definir que legado gostaria de deixar.

Se você ainda não sabe, dizem que o importante é jamais parar de buscar. Nem sempre é fácil descobrir qual é nossa missão no mundo, e nem sempre é fácil compreender o legado de quem já se foi. Os chineses dizem que ainda é cedo para compreendermos o legado da Revolução Francesa no mundo ocidental. Os brasileiros dizem que é tarde para ainda acreditarmos na nação do futuro. Nem um nem outro importam, pois explicações podem ser tão subjetivas quanto a grandeza de seu legado. Por isso, perseguir algo grandioso é até mais importante que alcançá-lo. Por isso, a melhor unidade métrica para o homem é o legado, que só pode ser medido por quem vem posteriormente, poupando-nos de um juízo final antecipado, enquanto ainda estamos sobre carne e osso e aptos a prosseguir.

Não sei que humilde legado poderia tentar deixar ao leitor a não ser insistir nesse conselho de vida tão óbvio. Procure incansavelmente sua melhor missão e acredite estar construindo seu melhor legado. Poupe suas explicações mais profundas aos poucos a quem as deve, que são os agentes de imigração, os filósofos, seus herdeiros e você mesmo.

Tire-me somente uma pequena curiosidade: o que você está fazendo aqui?

#13Qual é o seu legado?CulturaSociedade

Brasil: amor e progresso

por Emmanuel Rengade

Parece que os dois únicos ângulos possíveis para se falar do Brasil são, de um lado, o de uma perspectiva social, de desenvolvimento, e, de outro, o de uma perspectiva folclórica, quase romântica, de um país assimilado às suas características culturais mais visíveis. Mas será que isso não é uma visão (muito) redutora?

O Brasil é muito maior que a circunstância de viver – por coincidência – um momento econômico favorável e um pouco irreal, que logo deve acabar. Se nos distanciássemos da linguagem midiática dominante, e se déssemos “um tempo” em falar exageradamente de violência, desigualdade social e trânsito – falas essas fortemente influenciadas pela cansada mídia e seus grandes veículos –, daríamos espaço para a grande força – muito esquecida – que existe nesse país: a humanidade do brasileiro.

A tentação é grande em chamar isso de Brasil “puro”. Prefiro falar apenas em uma certa normalidade, uma atitude equilibrada, realista e inteligente do ser humano perante a vida (especialmente fora dos grande centros urbanos), que o país soube conservar ao longo do tempo. Aqui, ainda é muito fácil encontrar simplicidade e autenticidade, duas das coisas mais fundamentais para o ser humano, muito presentes na alma do brasileiro. Me lembro que tínhamos isso na Europa na época de minha infância, mas já parece que não existe mais. Uma forma de ser mais direita, mais presente, ligada. É como se esta convivialidade simples tivesse sido superada progressivamente pelo desenvolvimento econômico, tirando-nos nossa essência.

Talvez esta humanidade, depois de ter saído da França e morado em outros vários países, seja o real motivo pelo qual escolhi morar aqui. Talvez seja também o motivo provável – ainda que inconsciente – de outros muitos estrangeiros que aqui estão. Afinal, como regularmente me interrogam os taxistas, por que morar em São Paulo quando poderia morar em Paris?

Se tivesse a oportunidade de conhecer nossa presidente, gostaria de lhe propor uma pesquisa para saber o que a maioria das pessoas acha do legado francês que orna a bandeira brasileira. Muitas delas nem entenderiam a questão, ok, mas seria muito pertinente – e nada absurdo – atualizar o lema. (“Ordem e progresso” vem do positivismo francês). Para mim, é muito claro que, se pudéssemos definir o Brasil em duas palavras, essas seriam – simplesmente – paz e amor.

Apesar das tentativas constantes da mídia em nos fazer achar que o Brasil é um país violento, a história mostra o contrário. O Brasil é o único país no mundo que passou por três importantes transformações – independência, fim da escravidão e proclamação da República – quase sem maiores danos. Em qualquer outro lugar, um ou mais desses acontecimentos provocariam mortes, guerras e traumas que durariam gerações, e que, no caso das mais recentes, refletiriam até hoje em suas sociedades. A única guerra que o Brasil vagamente tem lembrança é a do Paraguai, de 1864 a 1970. Desde sempre, o país conseguiu manter seu vasto território em paz, respeitando cada estado com suas políticas e particularidades. Sequer uma força armada consistente o país tem, em comparação a seu tamanho e relevância mundial. Mas não precisa. O Brasil parece não ter inimigos fora do campo de futebol.

A arte da paz certamente vem da herança (essa, positiva e quase nunca citada) de Portugal; para ser mais preciso, da coroa portuguesa. Portugal é um país muito pouco falado na história mundial, sobretudo pelo fato de ter sido uma potência notavelmente pacífica. Sempre fui fascinado pela transição de poder entre Dom João VI e Dom Pedro I. Em 1822, quando o Brasil declarou a independência de Portugal, havia uma possibilidade de guerra, mas, como o imperador do novo país era filho da coroa portuguesa, a questão foi resolvida pacificamente. Mais tarde, a abolição da escravidão pela Princesa Isabel, e, pouco depois, a discreta retirada da família real marcam, mais uma vez, outra transição pacífica relevante, que talvez tenha influenciado o povo brasileiro atual, fundamentalmente não violento, sempre disposto, por natureza, a evitar conflitos. Mais uma vez, a mídia pode até nos fazer pensar que somos um povo passivo, mas não; somos pacíficos.

Quando os abusos governamentais passam dos limites, algo que lemos todos os dias nos jornais e que é assunto em conversas de boteco, o país reage pacificamente. Em outros lugares, bem próximos de nós, coisa semelhante seria motivo para revolução. Por mais que a Ditadura Militar constitua ainda memória viva e triste na cabeça do brasileiro, é importante lembrar que, comparada a épocas semelhantes na Argentina e no Chile, nossa realidade foi relativamente muito menos violenta.

O Brasil é puro amor. Talvez não seja a coisa mais óbvia para quem aqui está inserido, mas, para qualquer estrangeiro que chegue, é natural se apaixonar pela cordialidade, pela gentileza, pelo bem querer. O amor está, literalmente, no ar, e em todo lugar. De norte a sul, no ônibus, no centro, na periferia, na natureza mansa, na água quente, no ritmo, na liberdade, na falta de agressividade, na poesia, na canção. Ele faz bem. Desperta a humanidade, traz confiança, é essencial. Essa herança os brasileiros devem espalhar para o mundo, que grita por ajuda nessa época de fim de capitalismo, tempo em que todos estão vivendo isoladamente, individualistas, e em busca de novos valores; acordando de um mundo que não funciona mais.

Vocês, brasileiros, sinceramente, acham que no resto do mundo é igual?

O Brasil é fundamental para o equilíbrio do mundo. Talvez esse momento de baixa que toma o Brasil seja uma grandíssima oportunidade para rever, relacionar e reorganizar o que não está funcionando. A força de amor do Brasil pode mudar o mundo, porque, atrás dela, existe a intenção positiva, e intenção positiva move montanhas.

Quando penso no legado de uma obra de arte, talvez a primeira imagem – bastante crua – que me venha à mente seja a do filme super-8, de uns oito segundos, do artista Chris Burden sendo alvejado no braço por um amigo. A ação durou o tempo de um disparo de rifle. Começa e acaba deixando a sensação de vazio, talvez decepção, em quem esperava ver ali um homem agonizante, cujo sangue jorra. Nada disso. A performance de Burden é asséptica, quase minimalista. É uma cena em preto e branco, instantânea, de um rigor métrico que em nada lembra o horror que ataca como obra de arte.

Era 1974, e Burden sentira que levar uma bala no braço numa galeria de arte na Califórnia teria ressonância especial num momento em que soldados tão jovens quanto ele perdiam a vida em conflitos sangrentos do outro lado do Pacífico – o atoleiro bélico que foi a Guerra do Vietnã. Burden me contou anos atrás que achava que essa seria uma ação pontual, rápida e quase indolor pela adrenalina liberada na hora do disparo e pelos cuidados médicos que receberia logo na sequência. Viu depois que as lágrimas de dor que derramara ali se tornariam crises de choro crônicas e frequentes, e que o tiro no braço o condenaria a anos de análise clínica.

Mesmo quem não sentiu aquela dor na carne entende essa performance como rito de passagem, uma espécie de perda da inocência da arte em relação à realidade agreste do mundo. Não entram em jogo manobras de mercado, o papel do mecenas, as formas vendáveis desse mesmo trabalho. A performance entrou para a história fazendo um rasgo, um tiro surdo nas páginas da crítica institucional, talvez um grito no deserto.

Burden poderia ter construído monumentos perenes, indestrutíveis como quis que fosse seu paliteiro de vigas metálicas fincadas no cimento molhado. Dou esse exemplo porque essa obra, do mesmo artista, uma ação em que vigas de metal eram lançadas de um guindaste numa poça de pedra líquida, fora realizada em Nova York e destruída quando o parque de esculturas foi deslocado pela especulação imobiliária. Mesmo suturado, seu braço, naquele instante em que alvejado pela bala, alcançou uma perenidade inquestionável, que deixaria herança maior que qualquer piscina de concreto ou monolito desajeitado.

Sem dúvida, mitos rondam esse e outros trabalhos que não testemunhamos. Mas, talvez todo artista que pense numa obra efêmera saiba que está nessa fragilidade formal a mais sólida de suas chaves de leitura. Difícil esquecer as pilhas de bombons simbolizando o namorado morto de Felix Gonzalez-Torres, uma obra tragada pelo tempo no mesmo ritmo em que o corpo de um morto desaparece na terra. Ou o filme nunca visto de Andrea Fraser, em que um colecionador pagou por uma noite de sexo com a artista.

Nesse caso, mais do que efêmero, Fraser trabalhou a noção de invisibilidade. Um documento informa que houve entre ela e o comprador uma relação sexual mediada por contrato, mas também estipulou que esse vídeo ficaria entre eles. Ela se torna puta de sua obra, escrava sexual por uma noite que serve de lastro simbólico para toda a arte feminista. Efêmera ou não, deixou um legado sobre o papel do suposto sexo frágil na história da arte. Quantas telas de uma Frida Kahlo ou de uma Georgia O’Keeffe valem uma noite de sexo de Fraser em séculos de arte criada por mulheres?

#13Qual é o seu legado?CulturaSociedade

Um legado

por Luiz Felipe D’ávila

Foto de Tinko Czetwektynski

A palavra legado remete aos feitos e às obras relevantes realizados pelos nossos antepassados e transmitidos aos descendentes e às novas gerações. Soa como uma palavra antiga, utilizada por avós e pais quando nos convocavam a uma conversa séria, destinada a nos lembrar de que chegara a hora de abandonar as molecagens e de agir com responsabilidade. Afinal, tínhamos obrigação de zelar pelo legado da família e das instituições que nossos antecessores construíram na política, nas artes, na filantropia ou nos negócios.

Os pequenos legados são igualmente importantes. A receita de bolo da família, as tradições da escola e da empresa, as viagens anuais para os lugares que nos fazem reencontrar familiares, cultivar tradições e celebrar episódios marcantes. Esses rituais são formas de estimular o convívio de gerações e de reforçar os valores perenes que despertam o senso de pertencimento, de continuidade e de perpetuação. Isso é legado. Mas, numa época dominada por modismos, pelo espírito imediatista e pelos ganhos de curto prazo, legado parece um substantivo arcaico. Legado não é produto, não pode ser adquirido e tampouco gera lucro. Então, por que é importante?

A civilização é formada por meio do lento e gradual lapidar de princípios e valores, que moldam as leis, os costumes e as instituições. Legados são vitais para sedimentar os princípios perenes, o senso de permanência e os valores imortais que determinam os atributos que uma sociedade preza e valoriza. Excelência, mérito, propósito, honra e dever são valores que vêm inspirando muitas gerações, desde a Grécia Antiga, a lutar pela criação da democracia, do Estado de Direito e da economia de mercado. A combinação de regras estáveis, instituições democráticas e prosperidade econômica criou as condições para o florescimento da liberdade, da competição, da inovação e do conhecimento aplicado, que beneficiaram enormemente a humanidade. Surgiram empreendedores, cientistas, artistas e estadistas que nos livraram da Idade da Pedra, da miséria material, do obscurantismo das crenças e ideias e do poder arbitrário dos reis, ditadores e caudilhos.

O exemplo dos Founding Fathers americanos revela como o legado de uma geração de homens extraordinários continua a reverberar na sociedade ao longo dos séculos. Estadistas como George Washington, Thomas Jefferson e John Adams não apenas lutaram pela independência do país como também ajudaram a elaborar a Constituição americana e a governar os Estados Unidos. Suas atitudes e escolhas foram determinantes para institucionalizar os princípios e os valores da Constituição, que vigoram há mais de duzentos anos. Suas atitudes e escolhas inspiraram seus sucessores, serviram de parâmetro e de referência para as futuras gerações, que continuaram a saga dos Founding Fathers, e transformaram uma colônia pobre e insignificante numa potência global.

Legado consiste em traduzir os feitos, exemplos e escolhas dos líderes transformadores em valores institucionais que perduram por várias gerações. Sem o arcabouço dos valores permanentes, as pessoas, as instituições e os países são incapazes de converter crises em oportunidades para promover mudanças transformadoras, reformas institucionais e revisões de crença e de atitudes. Sem o norte dos princípios perenes, sucumbimos aos encantos dos modismos, às palavras sedutoras dos demagogos e à ilusão dos atalhos – as falsas armadilhas que oferecem soluções mágicas e inócuas para problemas recorrentes e desafios institucionais. Sem o senso de legado, não há coragem, resiliência e determinação para se enfrentar os reais problemas e para aguentar os períodos de impopularidade e de frustrações inevitáveis durante o processo de mudanças transformadoras, que geram desconforto nas pessoas, obrigando-as a rever crenças arcaicas e a lidar com perdas de poder, direitos e privilégios.

Legado significa renunciar às pequenas vitórias de curto prazo para assegurar os ganhos e o bem-estar das próximas gerações. Algo difícil de perseguir num mundo no qual se preza bens descartáveis, interesses imediatistas e valores efêmeros. Ainda bem que os grandes e pequenos legados – como a celebração das datas históricas ou a degustação do tradicional doce de leite da casa da avó – fazem-nos lembrar de que há coisas mais importantes e significantes na vida do que a busca irrelevante por quinze minutos de fama.

A arqueologia da perda, de Daisy Xavier, surge como uma operação a um só tempo formal e existencial. Ora, a arte, em geral, seria sempre isso. Sim, mas existem casos nos quais tal vínculo surge de maneira mais evidente. E este é um desses momentos. Toda realizada a partir da apropriação de móveis antigos, espécie de legado, a série de esculturas é fruto do gesto de desmembrar um mobiliário e, a partir destes fragmentos de uma memória que poderia permanecer paralisada, colocar a mesma em movimento, assim instaurando um destino inaudito.

O que vemos são peças simultaneamente fortes e frágeis. Delicadas, mas sólidas na sua fatura. Assimétricas, como que resultado de uma escrita automática, mas cientes de onde querem chegar ou ao menos de onde devem parar. Em algumas delas vidros azuis fazem a vez de elo, aquilo que cria o vínculo, em outras aparecem como apoio. Justo o vidro, elemento que guarda em si a quebra iminente. Cada fragmento – o pé de uma mesa, o braço de uma cadeira – esgueira-se um no outro. Sozinhos não seriam nada. Esta existência que exibe, sem pudores, a sua precariedade de fundo, a necessidade de se esgueirar para ficar de pé, tudo isso é o que doa a insuspeita força na fragilidade do trabalho de Daisy.

Arqueologia, do grego arque, antigo e logos, estudo, é a disciplina que estuda as culturas e os modos de vida do passado a partir de vestígios materiais. A artista tece sua arqueologia a partir de restos que possuem uma conotação familiar, mas que, ao passarem pelas suas mãos, adquirem um registro estranho. Estamos diante de estranhos familiares. Ficção a partir do mais próximo, que evoca justamente o ciclo pelo qual passaram: desconstrução e reconstrução, dinâmica que faz surgir uma potência ativa ali onde habitava perda, falta.

Fazer a arqueologia do que se foi é construir a chance de um novo presente e de um futuro diverso do mesmo. Trata-se de reescrever a memória à sua maneira, recriá-la, ficcioná-la. Realizar tal operação sem cair em uma narrativa ilustrativa ou biográfica, mas sim na pura forma, eis a singular beleza que se dá na obra de Daisy Xavier. Obra que nos endereça um ar de esperança naquilo que nos diz, baixinho, vá lá e desconstrua para reconstruir, a seu modo, aquilo que foi perdido ou ficou pelo caminho.

#13Qual é o seu legado?CulturaLiteratura

Um bilhão de saudades

por Vanessa Agricola

Arqueologia da perda, de Daisy Xavier

Faz dois anos que ele se foi. Dois anos que penso nele todos os dias. Vejo alguém comer geleia, lembro dele tomando café da manhã. Comia sempre uma torrada com geleia de laranja, e pra beber um chá inglês. Se alguém fala da França, lembro dele me mostrando Paris. A gente tomando sopa de cebola no restaurantezinho que ele adorava, ali de frente para a Notre Dame, conversando sobre a vida, tomando vinho da casa, ele me dizendo que eu estava linda com aquela jaqueta. Dali saímos a caminhar pela Champs-Élysées, ele avistou um casaco de pele preto, dizendo que era minha cara. Me fez vestir o casaco, perguntou o preço, se não fosse minha sensatez teria comprado. “É muito caro isso, Gorducho”. Sempre teve essa mania de me comprar tudo, como que para me dizer eu te amo, eu já sabia. Mas ele todos os dias queria me dar uma prova, ou num presente, ou num olhar de admiração e carinho que nunca ninguém além dele me deu.

Quando nos sentávamos juntos para jantar, em casa mesmo ou em um restaurante, eu e ele costumávamos nos cutucar embaixo da mesa, por causa de um comentário da minha mãe ou dos irmãos; éramos cúmplices nas nossas opiniões sobre eles. Éramos comparsas. Bastava uma troca de olhares, uma piscadinha, a tão famosa cotovelada que ele costumava dar, era quase um afago, que acabava com a gente rindo junto, da minha mãe, ou dos irmãos, ou de um assunto.

Minha mãe sempre dizia que não podíamos ser mais parecidos. E quando ela ficava de mau humor, ou com ele ou comigo, nós dois ríamos. Sem ele minhas piadas ficaram de mau gosto. Só ele era tão irônico. Também não faço mais churrasco, porque me lembra dele tanto que me dá vontade de vomitar. Não tomo mais vinho com Fanta, não escuto mais tango, nem Shakira. Foi ele que me fez gostar dela. E de Simon and Garfunkel. E de Van Morrison. E de reality shows de culinária. Tarefas impossíveis, tipo preparar um banquete com entrada, prato principal e sobremesa em menos de uma hora o faziam delirar. E eu deitada em seu colo me divertia, de tanto ver esses programas aprendi a cozinhar. Também por ficar com ele na cozinha, enquanto ele fazia seu macarrão com linguiça tão gostoso… Era um mestre-cuca, meu Gorducho. Um campeão de golf, um gênio da matemática, um homem generoso desses que te preparam o jantar tomando um vinho e ouvindo música.

Sabe qual a minha maior tristeza? Vê-lo moribundo, delirando sobre a minha herança. “Nessinha se va a quedar con la casa de Punta”. Me doeu a vergonha que ele sentiu por não ter podido me deixar nada. E por que eu não te disse que o melhor que a gente deixa é a saudade? Será que eu não sabia? Ou não queria acreditar que daquela vez você iria mesmo embora? Que o dia que a gente brigou seria o nosso último dia. Ah, adonde estás ahora? Daí você me escuta? Será que você me lê? O melhor que a gente deixa é a saudade.

#13Qual é o seu legado?CulturaSociedade

Plano de estado

por Léo Coutinho

Imagem de Daisy Xavier

Quando esta edição de Amarello completar um ano, o Brasil estará em plena campanha eleitoral, próximo às eleições que definirão quem vai nos governar no período seguinte. E, como de costume, muito vai se falar sobre planos de governo, aquele documento raramente lido.

Na maioria das vezes o que acontece é o uso meramente eleitoral do plano de governo: em torno dos candidatos juntam-se especialistas, que se desdobram para divulgar e debater as propostas de gestão para os próximos quatro anos. Finda a eleição, não se toca mais no assunto. Isto é: algo que já seria efêmero se durasse os quatro anos previstos torna-se um instante que, antes da posse, já estará esquecido.

Disponível em tudo na vida, o lado bom neste caso é o engavetamento das bravatas mais esdrúxulas. O lado ruim, ou o pior, é não mostrar aos cidadãos que a maioria das ideias é convergente. Afinal, as pessoas querem basicamente as mesmas coisas: educação, saúde, justiça, equipamentos públicos decentes. Mas, apesar de razoáveis, os temas se tornam controversos quando ambos os lados discutem apaixonadamente.

A polarização entre PT e PSDB serve para mostrar como o debate funciona mal. A marca positiva do governo petista é o Bolsa Família. A rigor, o programa de transferência de renda nada mais é do que a concentração e a expansão de diversos outros programas iniciados no governo tucano, como o Bolsa Escola. Mas, na cabeça dos petistas, o mérito é todo deles, e, na dos tucanos, o princípio foi desvirtuado.

Os programas de transferência de renda só alcançaram esta dimensão porque, na primeira década dos anos 2000, atravessamos um momento econômico raríssimo de tão favorável, e que só pudemos aproveitar por causa da estabilização proporcionada com o sucesso do Plano Real, liderado pelo ex-presidente Fernando Henrique. A ironia é que o PT votou contra o Real, mas Lula só seria eleito depois de assinar a Carta ao Povo Brasileiro, garantindo a manutenção da política econômica. Diante da adesão petista, os tucanos até hoje não souberam afinar o pio, digo, o discurso.

Para encerrar em três exemplos, vamos ao “grande mal” recente sofrido pelo Brasil: privatizações. Elas permitiram avanços tremendos onde aconteceram: mineração, energia, infraestrutura, telecomunicações. Mas os tucanos que as fizeram não as defenderam, e os petistas esticaram a coerência ao ponto da teimosia, ou até encontrar uma saída semântica: agora as privatizações chamam-se concessões.

O que fica de bom desse maniqueísmo é muito pouco. A própria alternância de poder, princípio que todo democrata deveria reconhecer, acaba perdida ante o revanchismo. E os planos de governo acabam seguindo pelo mesmo caminho, um ciclo vicioso que impede a continuidade e, com efeito, o desenvolvimento do país.

Daí a urgência em superar divergências pontuais e ter um olhar mais amplo. Mais do que um plano de governo, um plano de Estado. Mais do que um governante, um estadista. Quem quiser deixar um legado vai ter de ter este espírito. No curso da vida cada um trilha seu caminho. Se for bem feito e capaz de atender a toda gente que vem atrás, será legado. O resto passa.

#13Qual é o seu legado?ArquiteturaDesign

Em construção

por Eduardo Andrade de Carvalho

Não se constrói um edifício de vinte andares em caráter provisório. Não se desenvolve um “bairro planejado” para que seja replanejado duas décadas depois. Não se faz um shopping para que um dia o edifício que o abriga tenha uma finalidade mais adequada. Um prédio, um bairro e um shopping – como praticamente tudo que se inclui em construção civil – são feitos para durar quase para sempre. Mal projetados arquitetonicamente, podem ser uma calamidade urbana muito mais grave do que estética.

Nos últimos dez anos, foram construídos em São Paulo centenas de condomínios-clubes. Esses projetos viram as costas dos prédios para a rua e se fecham num mundo supostamente autossuficiente, seguro e feliz. Mas não abrem espaço para o comércio que todo bairro agradável precisa – padarias, farmácias, bares etc. – e que estimula a circulação de pedestres nas ruas. Ao praticamente obrigar que seu morador use carro para tudo, esvaziam as calçadas – e, portanto, a cidade fica mais triste e mais perigosa.

O menor problema desse tipo de projeto talvez seja a aparência, a questão estética. Com relativamente pouco dinheiro, é possível transformar uma fachada neoclássica numa opção menos cafona. Mas é preciso demolir um edifício inteiro para consertar sua implantação. Projetos radicalmente pensados com muro – quer dizer: com o muro sendo um aspecto fundamental, como é o caso desses condomínios-clubes – nunca vão funcionar sem eles.

O argumento mais comum em defesa de maus projetos é o de que “o cliente quer”. Essa é uma tentativa de transferir uma responsabilidade que é, antes de tudo, de quem faz. E, além disso, não é verdade. Se continuarmos assim – enclausurando a cidade entre grades e exigindo que se use carro para tudo –, vamos afastar cada vez mais São Paulo do modelo de cidade ideal. Vamos abandonar nossas ruas e nos mudar para o subúrbio – porque o condomínio-clube é isso: o subúrbio dentro da cidade. Detroit, que inventou essa ideia, acabou de falir. E Manhattan – organizada com o princípio oposto – continua agradável, interessante e economicamente em ebulição. Onde os clientes que moram num condomínio-clube passam as férias, Detroit ou Nova York?

Na abertura do livro Civilização, que é um passeio pela história da arte desde o Renascimento, Kenneth Clark, que foi diretor do British Museum, tenta responder como é possível reconhecer uma sociedade civilizada. E conclui que talvez a forma mais justa de se avaliar uma sociedade seja pelos seus prédios. Porque é possível que um espírito sofisticado escreva uma obra-prima no meio da barbárie. Mas a arquitetura, para ser executada, exige a combinação de muitos recursos e interesses: capacidade técnica e dinheiro têm de se alinhar com ambiente jurídico e interesse político. Não é possível construir um edifício sozinho. Uma sociedade que é capaz de produzir uma obra-prima arquitetônica, portanto, provavelmente tem certo consenso sobre assuntos fundamentais e um “senso de permanência” que, segundo Clark, é o que caracteriza uma sociedade civilizada. Queremos mesmo ser julgados como uma sociedade que tem medo das ruas de sua cidade, que vive no trânsito, em carro blindado, e que tenta reproduzir em seus prédios um pastiche de uma época que não é a nossa?

Não acho que a solução seja espalhar indiscriminadamente obras-primas da arquitetura por São Paulo. Obras-primas são exceção, claro. Uma cidade com ocupação consistente de prédios com bons projetos arquitetônicos já pode ter uma vida urbana maravilhosa. Para citar apenas vizinhos (ou quase), México, Uruguai, Chile e Colômbia têm uma produção recente de edifícios residenciais com arquitetura de alto nível. E existe hoje, no Brasil, uma nova geração de arquitetos extremamente talentosa, que estudou nas melhores escolas do mundo, trabalhou nos melhores escritórios – e que tem concorrido ombro a ombro com importantes escritórios em concursos internacionais. Quer dizer: a princípio, estamos econômica e tecnicamente preparados para fazer prédios melhores do que os que fazemos hoje.

E parece que é o que a cidade quer. São Paulo está cansada de metrô insuportavelmente lotado, de trânsito na Marginal, de motorista que guia ônibus como se carregasse batatas, de ponto de ônibus com propaganda gigante e sem informação das linhas, de desrespeito ao pedestre e ao ciclista etc. Nossos prédios não podem simplesmente se isolar da cidade e tentar se transformar em mini Shangri-Las. Eles também têm a responsabilidade de melhorá-la: sendo mais generosos, mais bonitos, mais divertidos. Porque os prédios que construímos hoje são em grande parte responsáveis pela cidade em que vamos viver no futuro.

#13Qual é o seu legado?ArteArtes Visuais

Projeto Instagram

por Isay Weinfeld

#13Qual é o seu legado?CulturaSociedade

Por uma vida mais ordinária

por Helena Cunha Di Ciero

Tenho verdadeiro horror a quem se diz realizado. Aquela pessoa que encontramos na rua, com um sorriso plástico no rosto, e que diz: “Estou realizada.” Mas que raio de história é essa? Como é possível estar realizado e ainda assim vivo? Nutro também certo desprezo pelas capas de revistas cujas manchetes anunciam: “Fulana de Tal, realizada no amor e na carreira, celebra a vida no mar”; ou “Fulano de Tal comemora mais um ano com plenitude e sabedoria, realizado.”

Onde a gente acha isso na vida real? Onde, essa plenitude toda? Sim, pois até hoje o que tive foram momentos gostosos, mas também há a rotina, o banco, as contas, as dores, os desencontros e as diversas chatices. E agora existe um tal de glúten, que incha a barriga e que devo evitar.

Realização, no dicionário, também tem a ver com finalização. Enquanto estamos vivos, nada está assim tão sólido, tão seguro. Inevitavelmente, alguma coisa dará errada. Mas ninguém comenta. Acho isso assustador.

Já faz um tempo que a frase “a vida é dura” caiu em desuso. Parece que, na época de nossas avós, havia certa resignação com relação às dificuldades e ante o fato de que se tinha menos opções de “cura” para as possíveis cicatrizes que a vida deixa.

Hoje o que a gente vê são vastas tentativas de solucionar a dureza da vida. São remédios com a finalidade de atenuar a dor ou mascará-la. Há uma necessidade absurda e quase violenta em acelerar o processo de cicatrização das feridas: “Toma um remedinho que a tristeza vai embora”. E, em nossa pele, uma busca frenética por preenchimentos diversos, que tentam anular a passagem do tempo, apagar as rugas que testemunharam o amadurecimento. Nada pode ser revelado: envelhecer é sinal de fracasso.

Somos marcados pela urgência em aplacar as experiências que incomodam. Resolver, disfarçar. Talvez a fim de voltar a ser mais rapidamente produtivo e prontamente alimentar a voracidade do sistema capitalista. Se produzo, logo estou adaptado, causo menos rupturas nesse mundo mascarado de gente que funciona. Será?

Surge, inevitavelmente, uma nova lacuna: a da negação. Tudo que foi difícil, que ficou marcado, pode e deve ser mandado para baixo do tapete. Rápido. Quem sabe assim passe despercebido. Quem sabe assim nem eu mesma me lembre do que vivi. Qual será o preço que pagaremos por toda essa fuga? Ou seria covardia?

Hoje, a palavra da vez é pressa. Para tirar uma foto sorrindo: do prato que comi, do lugar que visitei, dos amigos que encontrei. Parece-me que é preciso que alguém valide minha experiência agradável a fim de comprovar que existiu. Se eu estava lá, nem sei. Mas tive 25 curtidas, o que deve ser um sinal de que, naquela hora, fui feliz.

A felicidade não deve ser vista como um objetivo a ser alcançado e sim como um momento, que nunca é duradouro. É nesse peso todo que mora a encrenca, na necessidade de garantir a durabilidade desse sentimento.

Nessa eterna busca, empobrecemos todo o resto do trajeto. E isso acaba sendo de uma tristeza absurda, pois não é possível viver uma vida de verdade tendo sido só feliz. Não há uma escolha com relação às dificuldades. Elas se colocam, sem pedir licença.

Quando pudermos assumir com tranquilidade que nossa identidade é formada também pelas imperfeições; quando finalmente deixarmos de ficar reféns apenas do pensar positivo ou do sorriso artificial; ou quando lembrarmos que rir de tudo pode, sim, ser sinal de desespero… talvez encontremos um verdadeiro alívio: o de ser quem somos, podendo não viver como atores, em busca de aplausos ou curtidas.

Ser verdadeiro, ser genuíno é sentir tudo que um coração vivo for capaz, em toda sua dimensão. Tanto o bom, quanto o ruim. Tudo isso nos enche de vivência, de experiência e, principalmente, de coragem para saber que podemos contar conosco para ir adiante.

Acho que a questão, vista de longe, pode até ficar confundida com certo conformismo, mas, na verdade, falo de resignação como uma possibilidade de contemplação daquilo que passamos ao longo do caminho. Contemplar é ver a figura como um todo. E a vida é dura mesmo, já diziam nossas avós.

É inútil pensar que dá para construir uma história sem tristeza, rugas, noites em claro e ressaca moral. Tudo isso somado cria uma experiência individual e singular. Viver se enchendo de lacunas é viver esburacado. E isso sim nada tem de realizado.

#13Qual é o seu legado?ArteFotografia

Utopia

por Roberto Vietri

Começou ao acaso, como de fato muitas vezes acontece. Uma viagem despretensiosa para o norte do Brasil. A história caiu no meu ouvido e me deixou curioso: Fordlândia. Sempre me senti atraído pelo cheiro da ambivalência, do desenho do encontro – intenso – entre forças opostas, pelas boas e más vontades umbilicalmente unidas e pelas consequências um tanto irregulares, convidando a curiosidade a uma reflexão e, a partir disso, à descoberta de outros destinos. Aqui, idealismo se depara com fracasso, quem sabe esperança. De acordo com alguns moradores, hoje resta um sentimento de saudade ou então, para outros, a ignorância do que existiu. Na outra ponta da história, na planície do estado de Michigan, nos Estados Unidos, questões locais refletem o mesmo saudosismo ou a preferência por não querer olhar. A alguns, entretanto, o ímpeto de reagir.

Uma cidade inteiramente construída onde nada existia, num continente estranho, para acomodar um interesse estratégico e satisfazer as vontades de um visionário que queria a todo custo ser – e foi – o motor de transformações culturais e econômicas em escala mundial, que acreditava serem as melhores possíveis para todos os envolvidos. O sonho e a persistência de fazer aterrissar uma nova ordem, um novo Estados Unidos. Por que não de um novo Brasil? Ao longo das décadas, (quase) todos os sonhos se transformaram em realidade, com tudo o que têm direito: expectativa, auge, entusiasmo; declínio, desfazimento.

“Uma cidade inteiramente construída
onde nada existia”



No meio do caminho chamei, simplesmente, de “utopia”, e por enquanto se mantém assim. Do Brasil viajei para os Estados Unidos, seguindo minha curiosidade, agora não mais tão ingênua. Deparei-me com alguns lugares, outras situações e a deliciosa sensação de perceber, além de algumas confirmações, a abertura para que novos cenários pudessem ser levantados, deixando-me paradoxalmente menos localizado do que supunha, e mais generoso em admitir, felizmente, que não sei qual o final da história.

No começo, como disse, nada tinha. Depois tive a selva; então, os carros. Agora também tenho Walt Disney! Num movimento não necessariamente coordenado, mas caprichosamente insistente, os fatos consumados e os embriões das mais incipientes ideias começaram a ricochetear de maneira intrigante, desfazendo simbolicamente a existência de fronteiras geográficas e culturais, bagunçando no fim das contas o próprio tempo. Eis que surgiu recentemente um novo local, ligado aos outros apenas por um elo formal, mas que, por enquanto, convido a fazer parte desse quebra-cabeças no qual me meti. Talvez nem venha a usá-lo. De qualquer forma, pode ser que me carregue a novas constatações.

Utopia tem sido uma tentativa de se relacionar com o sonho solitário de um homem, e não tanto uma busca por catalogar suas conquistas ou fracassos. A cidade de Detroit acaba de declarar oficialmente seu estado de falência. Há relatos de lobos retornando aos bairros mais periféricos. O mato anda crescido de maneira absolutamente selvagem. A taxa de desemprego e abandono dos prédios beirando à metade.

A Amazônia, por sua vez, sempre refratária às tentativas de controle, hoje sucumbe a ameaças que, em outras situações, conseguiu suportar. No centro da praça, a casa reformada ainda espera pela prometida visita de Henry Ford, seu criador. Ironicamente, talvez fosse mais do que desejado que essa impossível visita acontecesse agora. Ou que já tivesse acontecido há oitenta anos.

Uma das heranças do idealismo é a possibilidade de se passear pelo sonho original, e aprender com ele. A outra é encarar como algo muito distante ou até indesejado. Provavelmente com as mesmas consequências que fizeram – e fazem, em tantas instâncias contemporâneas – histórias se repetirem. Seja na forma, seja no conteúdo.

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Reconstrutores urbanos

por Sol Camacho

A cidade (em todas suas facetas e ângulos) é um tema de interesse atual, objeto de debates e discussões, questão prioritária na agenda de arquitetos e urbanistas, importante para universidades e pesquisadores em diferentes ramos, de diversas disciplinas. Nós, que nos dedicamos à arquitetura e à estreita relação dela com a forma da cidade, damos-lhe extensivas horas de trabalho, embora o que se discuta a respeito de urbanismo hoje, em escritórios, aulas e congressos, esteja totalmente desconectado da realidade da Cidade do México ou de São Paulo, os dois maiores e mais importantes centros urbanos da América Latina.

A imagem genérica da cidade – as ruas asfaltadas, as calçadas inacabadas, os postes de luz cheios de cabos, a mistura de prédios de diferentes épocas junto a postos de gasolina e paradas de ônibus… – é, aos olhos dos humanos do século XXI, a paisagem mais comum, o ambiente corriqueiro de 75% dos mexicanos e de 85% dos brasileiros.

Não precisamos conhecer as cifras para saber que, mais do que nunca, os humanos estão ligados às cidades. Nunca antes a relação entre homem e arquitetura foi tão próxima – contudo, os arquitetos têm escassa participação no planejamento e na construção das cidades. No caso da Cidade do México, 70% do que é edificado decorre de “autoconstrução”.

O pensamento vanguardista dos arquitetos, que marcou uma época importante do urbanismo na metade do século passado, ficou de fora nas ultimas décadas. Quem tem desenhado, decidido e construído a forma das cidades são a economia e o mercado sem intenção, a visão fragmentada dos governos, e nós, todos nós: com nossas escolhas de transporte, de habitação, de maneira de vida, de relacionamento com o entorno. Com cada escolha “fazemos cidade”. Somos milhões de “urbanistas” sem uma visão clara, sem uma agenda, sem informação.

Os métodos clássicos de planejamento urbano, de projetos top-down de traços livres em territórios vazios, não pertencem à nossa época. A visão do mercado e do governo já se provou insustentável.

Uma das funções mais importantes do arquiteto hoje consiste em gerar uma visão de cidade, em traçar e testar estratégias em longo prazo, em comunicar as possibilidades para forçar a sociedade a mudar de enfoque, a sair do comum, a acreditar em maneiras de vida novas, adequadas às realidades contemporâneas das metrópoles, a participar pró-ativamente na construção do território.

Certamente sabemos que este contexto vai mudar tanto quanto tem mudado nos últimos anos, numa velocidade cada vez maior. Irá mudar fisicamente, irá adaptar-se às novas realidades e às novas necessidades. E, sobretudo, irá mudar a maneira de se viver, de entender e de perceber a cidade, e a maneira de se relacionar com ela.

Há apenas cinquenta anos não havia megacidades, esses terrenos infinitos de construções que hoje formam parte da nossa paisagem cotidiana. Com a velocidade das mudanças nas dinâmicas de vida, é difícil propor (grandes) projetos urbanos em longo prazo. Os projetos feitos há trinta, quarenta ou há apenas dez anos parecem nos incomodar hoje. Ouvimos com frequência a palavra urbanismo ou a expressão urban design junto a termos como revitalização e remediação. Veneram-se, hoje, projetos que “reverteram” os grandes gestos acontecidos/construídos em outras décadas (como o caso do Big Dig, em Boston, ou do rio Cheonggyecheon, em Seoul, para citar alguns).

Os encarregados de manipular a cidade devem deixar de lado a construção de soluções imediatas e focar em construir uma base sólida de trabalho para testar cenários, possibilidades e ideias, e assim definir diretrizes adaptáveis a necessidades que hoje ainda não conhecemos. Arquitetos e urbanistas precisam se preocupar menos em fazer design e mais em desenhar e consolidar estratégias para que outros, num futuro próximo ou mais distante, atuem na cidade de maneira mais responsável; para garantir que os projetos de nossa geração continuem funcionando no futuro e o urbanismo deixe de ser uma ferramenta de conserto ou remediação.

Com estas ideias surgiu a iniciativa de criar uma plataforma de pesquisa para testar cenários de crescimento na megametrópole da Cidade do México: minha cidade natal.

Difícil falar de crescimento em uma cidade que já se expande em todas as direções, para além da linha do horizonte. Uma mancha urbana que já invade todos os rios, lagos e lagoas, toda a bacia geográfica e as montanhas. Só resta a possibilidade de crescer na vertical? Mas, para onde?

Existem, inseridos no “tecido urbano” da cidade, 45 “nós”, ou “centros de transferência multimodal”, mais conhecidos como paraderos.

Esses pontos são mais do que nós na infraestrutura de transporte; são uma mega-aglomeração de todo tipo de veículo, de construções e infraestrutura (a maioria obsoleta), de edifícios, pessoas, comércios; um improviso; um ajuntamento de rotinas, uma concentração de problemas… e de oportunidades.

A oportunidade se dá porque estes nós representam uma rede de áreas já ligadas diretamente às artérias infraestruturais mais importantes da cidade, como também ao transporte público, pelo qual circulam, todos os dias, mais de 25% da população da megalópole.

A proposta do estudo foi analisar a integração total da infraestrutura de transporte público existente com o crescimento da cidade, levando em consideração os paraderos, “terrenos” para a construção de novos tipos de edifícios, novas configurações urbanas, novas maneiras de participação, e a cooperação entre os setores público e privado.

O estudo sugere um tipo de planejamento que é possível realizar ao longo dos anos, algo que deixe diretrizes para futuras gerações integrarem maneiras diferentes de construir, formas inovadoras de morar, trabalhar, divertir-se, projetos pontuais a serem desenvolvidos por diversas pessoas. A viabilidade do estudo precisa da participação ativa e consciente de quem mora nas cidades.

Se estamos certos de que a maioria desta e das futuras gerações – pelo menos até onde conseguimos enxergar – passará grande parte da vida em um contexto urbano, então acredito que estamos ficando sem opções: precisamos tomar consciência, divulgar as ideias, decidir a direção, apoiar projetos além de nossos interesses individuais, tentar deixar de usar carros para a rotina diária, morar e trabalhar perto dos centros de transporte, usar e respeitar o uso de bicicletas, permitir novos usos perto ou dentro dos centros de transporte, investir em pensamento e qualidade de desenho de cidade. Não será fácil, mas será uma solução melhor, mais sustentável e mais barata – em todos sentidos – para as futuras gerações.

#13Qual é o seu legado?CulturaSociedade

O sonho e o gigante

por André Tassinari

O mais famoso discurso da história completa 50 anos: de “I have a dream” a #ogiganteacordou.

“I have a dream that my four little children will one day live in a nation where they will not be judged by the color of their skin but by the content of their character. I have a dream today!”

Essas são as mais famosas palavras do mais famoso discurso da história. Com elas, Martin Luther King simbolizaria o grande momento de virada na luta por direitos civis nos EUA (foram proferidas durante a Marcha sobre Washington, em 28 de agosto de 1963, que reuniu a marca histórica de 250 mil manifestantes e foi fundamental para a aprovação da Lei dos Direitos Civis e da Lei do Direito ao Voto nos dois anos seguintes). Foi um verdadeiro wake-up call para o absurdo que era a disparidade entre o que a Constituição pregava e a realidade dos negros – que eram impedidos de votar e viviam em “apartheid” em alguns estados.

#ogiganteacordou. Cinquenta anos depois, um outro wake-up call aconteceu no Brasil. Em dezenas de cidades, em vários dias de junho, milhões de pessoas saíram às ruas para protestar. A causa inicial era o cancelamento dos aumentos nas tarifas de transporte público (objetivo alcançado), mas a insatisfação latente na população criou uma avalanche de demandas: melhorias na saúde, na educação, na segurança. E parecia claro que para conseguir tudo isso seria necessária uma reforma do sistema político, para combater a corrupção de maneira eficaz e fazer com que os recursos públicos fossem usados de forma adequada, orientados pelos interesses da população, e não dos políticos.

O que um sonho de cinquenta anos pode ensinar a um gigante que acabou de despertar? Com a palavra, o reverendo King:

“There are those who are asking the devotees of civil rights, “When will you be satisfied?”

Assim como nas manifestações de junho, em 1963 havia a crítica de que as demandas eram muito ambiciosas, que os manifestantes nunca ficariam satisfeitos. Os objetivos dos brasileiros foram tachados de difusos; na March over Washington for Jobs and Freedom, havia certa objeção em misturar as demandas por direitos com aquelas por empregos. No fundo, a luta tanto de lá quando de cá era por uma sociedade mais justa, com diversos objetivos complementares. Lá, não adiantava ter a “liberdade” conquistada cem anos antes mas não ter direitos iguais; e também não adiantaria ter apenas direitos, era necessário ter oportunidades. Aqui, não adianta ter liberdade democrática, conquistada há 25 anos, depois de outros tantos sob ditadura, se a democracia não representar o povo e não seguir os princípios da Constituição.

“1963 is not an end, but a beginning.”

O sonho é só o começo. Os resultados vão aparecendo lentamente, ano após ano, década após década. Os pessimistas dirão que a questão da discriminação ainda é grave nos EUA, com a taxa de desemprego dos negros sendo o dobro da dos brancos desde a década de 1960, e com casos de preconceito como o de Trayvon Martin e das revistas preventivas a negros e latinos em Nova York. Mas, além do detalhe de ter um presidente negro reeleito na Casa Branca, se olharmos para alguns números, não dá para negar que a situação de vida dos negros melhorou muito.

Em 1962, 49% dos brancos e 25% dos negros completaram o high school; 10% dos brancos cursaram faculdade contra 4% dos negros. Em 2012, 88% dos brancos e 85% dos negros terminaram a escola, e 31% dos brancos e 21% dos negros, a faculdade.

Há cinquenta anos, a renda média dos negros era de 14 mil dólares (em valores atuais) e a dos brancos, 25 mil. Hoje, enquanto a dos brancos é de cerca de 40 mil dólares, a dos negros é próxima a 30 mil – que é uma renda média comparável a de países como Holanda e Suécia.

Mas o melhor dado não é o que compara brancos e negros de maneira separada, e sim o que os mistura. Até a década de 1960, o casamento inter-racial era proibido em alguns estados americanos, e menos de 1% dos casamentos envolviam pessoas de “raças” diferentes. Esse número cresceu para 7% na década de 1980, e hoje já passa de 15%.

No Brasil, os idos de junho também devem ser encarados como o início de um longo percurso. Poderíamos parafrasear King dizendo que “R$ 0,20 é só o começo”, considerando a redução no preço das passagens uma vitória inédita e simbólica da “voz das ruas”.

“And they have come to realize that their freedom is inextricably bound to our freedom. We cannot walk alone.”

Um dos grandes méritos de King foi sua capacidade de coalizão. Ele conseguiu unir diversos setores da sociedade em torno de uma causa, mesmo tendo foco nos negros. E percebeu que as grandes mudanças são aquelas em que a sociedade toda ganha, e não apenas um grupo. Na Marcha sobre Washington, 25% dos manifestantes eram brancos. Havia pessoas de todas as classes e profissões. Afinal, a luta pelos direitos civis beneficiaria não só os negros, mas também as mulheres e outros grupos discriminados.

Pena que a ideia de perseguir objetivos comuns benéficos à sociedade, a despeito de diferenças pessoais ou políticas, seja uma raridade. Hoje, tanto os EUA como o Brasil apresentam disputas políticas que prejudicam o andamento de projetos do interesse do país. Obama e Clinton salientaram esse problema em seus discursos na celebração dos cinquenta anos da Marcha sobre Washington. E FHC sintetizou em recente artigo: “não dá para perceber que quando o barco afunda vamos todos juntos, governo e oposição, empregados e empregadores, os que estão no leme e os que estão acomodados na popa?”

Para que um país avance é preciso que forças diversas se alinhem em torno de ideias e ideais, e não de interesses pessoais e político-partidários. Nisso o Brasil tem uma vantagem em relação aos EUA: há mais espaço para conciliação já que a bipolarização partidária não é um fato consumado.

“We must not allow our creative protest to degenerate into physical violence.”

King era defensor da não-violência. Por razões ideológicas e estratégicas: sabia que, se o movimento por direitos dos negros se destacasse pela violência, perderia o apoio de grande parte da sociedade e dos políticos, prejudicando o sucesso da causa. Era contra os métodos violentos adotados pelos Black Panthers, e certamente seria contra as ações dos black blocs. A força de um movimento está no seu poder de agregar, e os grupos violentos são desagregadores.

“I am happy to join with you today in what will go down in history as the greatest demonstration for freedom in the history of our nation.”

King tinha sentido histórico, próprio de um líder. Para que movimentos sociais tenham sucesso, é preciso lideranças tanto na sociedade civil como na política. King foi o catalisador, mas, sem a liderança política de Kennedy (e de Johnson, seu vice, que assumiu quando morreu), o movimento teria tido seu impacto reduzido.

Uma das características da manifestação no Brasil, assim como de outras manifestações contemporâneas, é a ausência de lideranças. Assim fica mais difícil traduzir a “voz das ruas”. Apesar disso, a presidente Dilma fez uma boa leitura das demandas – mas as ações que propôs a respeito não têm tido vida fácil.

Um líder é um símbolo, uma voz que representa muitas outras vozes. Nesse sentido, uma liderança importante que surgiu no país foi a do ministro Joaquim Barbosa. Em suas declarações e ações como presidente do STF ele tem mostrado representar grande parte da população, o que o levou a ser bem cotado nas pesquisas de intenção de voto para 2014, apesar de negar que possa concorrer à Presidência.

Mas quem mais cresceu nas pesquisas após as manifestações foi Marina Silva, prestes a tirar sua Rede do papel. A Rede defende um modo diferente de fazer política, que é alinhado com a “voz das ruas” mas visto por muitos como ingênuo. Tanto que seus apoiadores são chamados de “sonháticos”. Bem, o sonho é só o começo – mas é um bom começo.

“And so even though we face the difficulties of today and tomorrow, I still have a dream.”

#13Qual é o seu legado?CulturaSociedade

As manifestações e o desafio da mudança numa cultura avessa ao conflito

por Mariana Barros

Trabalho há quinze anos com estrangeiros e tendo a ver o mundo a partir de perspectivas culturais. Também sou da área de política, e sempre senti falta de uma identidade política para nosso povo.

Fiquei extremamente comovida com as manifestações de junho. E mesmo sabendo que não é característica cultural do brasileiro protestar, acreditei que podia estar vendo um sinal de mudança naqueles dias.

Meu argumento aqui será, no entanto, que até agora, não. Num jogo muito bem jogado, os rapazes do futebol reassumiram suas posições de heróis nacionais e nosso pacifismo cultural característico triunfou sobre a violência de um dos piores sistemas políticos do mundo, para o bem e para o mal do Brasil. E as manifestações não deixaram um legado de construção de identidade política nacional, ainda que possam ter dado um gosto de despertar do gigante.

O Brasil viveu 388 anos de escravidão explícita e ainda vive sob regras culturais implícitas dessa mentalidade. Aqui, ou se é senhor, ou se é servo. A dinâmica das relações no Brasil é das mais violentas do mundo, padrão ditadores africanos. A injustiça impera no país que tolera ser a quinta economia e estar entre as maiores desigualdades sociais do mundo, com aproximadamente 90% de suas terras ainda pertencentes a 10% de sua população e com 40% de sua população universitária considerada analfabeta funcional. Aceitamos uma realidade ‘Bélgica-India’ como quem sai às ruas para manifestar e depois tem um deputado preso, inocentado pela Câmara. Mas não vamos entrar em conflito. Violência, aqui, não. Mas e a guerra civil silenciosa que vivemos no dia a dia brasileiro?

E por isso tudo mesmo, caoticamente, como exige a contemporaneidade, o Brasil é miscigenado, místico, flexível, criativo, esperançoso e, pacífico, a ponto de esperar que os políticos e a elite brasileira acertem suas contas com Deus e não com as armas dos manifestantes.

O desafio se apresenta quando a essa aversão ao conflito se soma a falta de educação formal generalizada da população, e logo, a impossibilidade de pensamento crítico. Os vinte centavos eram apenas a ponta de um iceberg de muita, muita injustiça; nem se sabe quanta, pois perdeu-se há muito o fio da meada da história brasileira. Daí tanta gente meio perdida.

Na maioria dos países, desenvolvidos ou não, cabeças rolaram na construção de consciência política. Mas não somos conflitivos e é pouco provável que cabeças rolem por aqui. Vamos fazendo samba, e elaborando tristeza com música. Mas acho que nossa geração é sim aquela que pode deixar como legado a disseminação da idéia de que negro não é feio, de que pobre não é menos, de que desigualdade não é uma diferença que deve ser aceita como realidade naturalizada.

E que parem os carnavais até que isso se resolva. Mas no Brasil, isso é difícil. Por quê? Eu te devolvo a pergunta. O que não te move a lutar pelos seus direitos ao invés de ceder ao sistema brasileiro?

Em geral, o brasileiro vai colocar os valores familiares antes da instituição política, o Estado, e com isso, vamos sendo uma sociedade com características mais relacionais e de clã, do que institucionais ou políticas. Natural então que as regras escritas façam pouco sentido, que as instituições tenham pouca representatividade, que os partidos não queiram dizer muito. O que importa, são as relações, a família, e as prioridades do país vão sendo definidas a partir desses valores.

Estaria confortável com essa ideia não fosse os números mostrarem que algumas famílias têm sido muito, muito mais privilegiadas que outras. E que no Brasil a dinâmica senhor-escravo é tão forte que as pessoas realmente ainda não se entendem como iguais.

As manifestações ainda poderão ter deixado um legado político, se os brasileiros começarem a se entender como uma nação política, de cidadãos iguais, de iguais oportunidades, direitos e deveres. Para tanto, precisarão priorizar, entre seus valores, a construção dessa nação. E isso, ainda não se verifica.

Assim fala Zizek sobre as manifestações mundo afora: “Não se apaixonem por si mesmos. Carnavais custam muito pouco – o verdadeiro teste de seu valor é o que permanece no dia seguinte, ou a maneira como nossa vida normal e cotidiana será modificada. Apaixone-se pelo trabalho duro e paciente – somos o início, não o fim.”

Tudo bem que as manifestações não tenham sido uma tomada de consciência política por parte da maioria dos brasileiros. Mal falamos delas em nosso dia a dia. Mas oxalá elas venham sendo, no caminhar de alguns, muito mais que apenas mais um carnaval.

#13Qual é o seu legado?ArteCinema

Se você pode sonhar, pode fazer

por Jair Peres

“Seus delírios oníricos ganharam a forma de longa-metragens de sucesso”

Há pouco tempo revi um filme que não teve boa bilheteria quando lançado, em 1995, mas que acho atemporal e divertidíssimo: Marte ataca. Dirigido por Tim Burton, é uma homenagem declarada aos filmes B dos anos 1950 e 1960, presentes em várias filmotecas geeks mundo afora.

A peculiar filmografia de Burton é calcada em uma estranheza quase gótica, em que eventualmente um personagem sente-se deslocado e tenta ser aceito de alguma forma. Suas atmosferas sombrias e surreais e a perene fascinação pelo macabro misturam-se com uma abordagem delicada e doses de humor que definem seu estilo. Tão marcante é sua assinatura cinematográfica que se tornou um adjetivo. Burtonesque já figura em vários dicionários e descreve tudo o que se assemelhe ao estilo característico do diretor.

Perguntado uma vez sobre suas grandes inspirações, citou, ao lado do escritor Edgar Allan Poe, o artista Walt Disney. Burton desenhava desde criança e nunca escondeu que o maior presente de sua vida foi, ao terminar o colegial, ganhar uma bolsa de estudos de animação no Instituto de Artes da Califórnia, ou apenas CalArts. Fundado em 1970, o instituto contou com a doação do terreno e o empenho pessoal de Walt Disney.

Ao graduar-se, Burton foi contratado pelo Walt Disney Studios como animador e teve seus próprios curtas-metragens produzidos pelo estúdio. Impressionados com o talento do jovem e seu tétrico Vincent, deram sinal verde para a produção de seu próximo curta, Frankenweenie, de 1984. Já nas primeiras exibições-teste, segundo avaliação da diretoria do estúdio, o filme não condizia com o padrão da Disney e foi arquivado. Apesar de ter sido demitido porque seus curtas eram sombrios demais para crianças, nos anos seguintes tanto a Disney quanto outros estúdios apostaram em projetos do jovem diretor e, enfim, seus delírios oníricos ganharam a forma de longas-metragens de sucesso.

Assim como Burton, Walt Disney interessou-se por desenho muito cedo e descobriu na animação uma ótima ferramenta para dar vida a seus sonhos. Aperfeiçoou técnicas existentes e criou muitas outras, ousou e conseguiu inovar, sempre seguindo sua imaginação. Além de cativar os corações e mentes de gerações inteiras, Disney elevou a animação ao status de arte. Em sua trajetória de contador de histórias, divertiu-se e nos encantou. Foi um talento único.

Quando Disney começou a fazer animações, nos anos 1920, o ultrapopular gato Felix, criação dos Sullivan Studios, ditava as cartas, e as animações mudas eram direcionadas a um público mais adulto. Todos os demais estúdios tentavam criar o “novo Felix”. Em 1928, Disney lançou Steamboat Willie, que mudou para sempre o modo como as animações eram concebidas. O ratinho Mickey Mouse estrelava a animação, pioneira no uso do som sincronizado com a imagem. A animação sonora com o espevitado Mickey foi revolucionária para a época e a mudança de percepção foi amplamente aprovada pelo público. Disney fez sua audiência sonhar.

O estrondoso sucesso possibilitou ao estúdio de Disney continuar produzindo fábulas para o cinema e, desta vez, a concorrência é que teve de correr atrás. Dez anos depois, ao lançar o primeiro longa-metragem de animação da história, Branca de Neve e os sete anões, Disney cativou de vez seu público. A partir desse marco, poderia fazer o que quisesse, o céu era o limite. Disney adentrara em um processo criativo desenfreado. Criou com sucesso programas de TV para uma audiência infantojuvenil, concebeu um parque-temático e produziu muitos filmes. Então, em 1964, experimentou um novo formato para o filme Mary Poppins, uma mistura de desenho animado com live action, que obteve catorze indicações e ganhou cinco Oscars.

Disney mudou o mundo com seus filmes, animações e parques. O curioso é que tudo realmente começou com um rabisco do que viria a ser Mickey. Mesmo após sua morte, em 1966, a assimilação da filosofia de trabalho de Walt Disney foi determinante no sucesso de longas e curtas-metragens premiados. Em mais de oito décadas, uma galeria de personagens inesquecíveis: Mickey, Donald, Pateta, Dumbo, Bambi, Mogli, Simba, Nemo, Wall-E, Sr. Incrível, Buzz Lightyear e, desde 2012, Luke Skywalker e sua família disfuncional.

Vários destes personagens foram criados pelo atual diretor de criação da Disney, John Lasseter (diretor de Toy Story) e por Brad Bird (diretor de Os Incríveis). Ambos foram colegas de Tim Burton no curso de animação da CalArts.

Em 2013, após o sucesso de Alice no País das Maravilhas, que teve mais de 1 bilhão de dólares de arrecadação, Burton teve liberdade total da Disney Pictures para dirigir Frankenweenie, um remake de seu curta-metragem engavetado de 1984, recriado para ser um longa-metragem de animação stop motion. Apesar de o filme ser infantil, também é dramático e, não por acaso, um dos mais autorais de Burton. O filme faz referências a Bambi, Rei Leão e Branca de Neve e os sete anões, todos de Walt Disney. Segundo Burton: “Estes longas têm em comum elementos assustadores e a morte.” Para ele, “Frankenweenie é um filme clássico da Disney”.

A capacidade de poder realizar um filme adulto e infantil ao mesmo tempo é marcante tanto no trabalho de Tim Burton como no de Walt Disney. Ambos nunca perderam o sentimento de curiosidade e o encantamento da infância.

Muito obrigado, Walt e Tim.

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O contador de histórias

por Simone Rotz

Estação Hofplein antes da Guerra

A identidade de uma cidade é definida por sua história. Isso significa que cada prédio e cada rua têm uma história a contar. Histórias que possuem diferentes graus de apelo, mas que sempre são histórias, parte da herança cultural de uma cidade, e que, portanto, merecem ser traçadas, pois podem ser ponto de partida rumo a um novo futuro. A história pode servir de instrumento para a transformação de edifícios e bairros – não de forma saudosa ou retrospectiva, mas como fonte de informação, que revela as características e a identidade do objeto.

Nosso escritório, o Crimson Architectural Historians, trabalha nos campos de arquitetura e planejamento urbano. Temos uma prática urbana que considera a cidade contemporânea como objeto. Portanto, pesquisamos a cidade, escrevemos sobre ela, montamos exibições, oferecemos conselhos, mas também criamos políticas e as executamos. Somos historiadores, de modo que sempre valorizamos a história em cada projeto, conselho ou palestra que produzimos. Mas não é apenas a história que traçamos; tentamos também traçar como o objeto ou lugar chegou ao estado em que se encontra hoje. Investigamos a origem, a adaptabilidade com o tempo e as possibilidades para o futuro. Tentamos revelar a identidade – e, pois, o legado – de cada objeto, porque, de uma forma ou de outra, é o ponto de partida para planos imediatos ou futuros.

Um dos projetos mais recentes que fizemos foi a transformação de um monumento nacional chamado Hofbogen: um viaduto de dois quilômetros de extensão, construído no começo do século XX, próximo ao centro de Roterdã, na Holanda. Parte do viaduto, a estação Hofplein, era – antes da Segunda Guerra – o lugar mais badalado do país, o centro de lazer, especialmente à noite. As danças mais modernas e vibrantes eram postas à prova nas pistas das casas noturnas e cafés localizados próximos ou na própria estação. Após a guerra, durante a qual foi destruída, ergueu-se outra estação, mas a estrutura de Roterdã havia mudado totalmente, e o centro da cidade foi reposicionado. Ao longo das décadas seguintes, o local seria abandonado.

Estação Hofplein em 2008

Durante a década de 1980, a vida noturna voltaria ao bairro, mas de maneira mais underground. Com o passar do tempo, o ambiente ficou cada vez mais negativo, e, nos anos 90, foi tomado por cassinos e clubes ilegais. Em 2006, quando começamos a trabalhar no projeto, a Estação Hofplein era uma zona proibida. Mesmo assim, podíamos encontrar traços da intensa história do local, não apenas dentro do prédio e nos arquivos comuns, mas também na memória das pessoas. Por ser o ponto central da reabilitação do viaduto, tomamos esse tema da vida noturna como diretriz para a transformação da Estação Hofplein e lá testamos vários eventos culturais e de lazer. Queríamos saber se a estação poderia novamente ser um lugar cheio de vida, com caráter de permanência, e não apenas em momentos pontuais. O teste foi bem sucedido, e graças a estes eventos a estação voltaria a cair nas graças do público. Antes mesmo da reabilitação completa do viaduto, o espaço já estava pronto, novamente integrado à cidade. Hoje, a primeira parte da estação é um pequeno shopping, com várias lojinhas, cafés e um clube de jazz, muito badalado.

Esta é apenas uma das muitas histórias que podemos contar sobre a importância de um legado arquitetônico à cidade. Exemplos ao redor do mundo comprovam que promover a transformação positiva da herança cultural dá força ao valor social, cultural e econômico de uma cidade. As pessoas reconhecem as histórias que os prédios representam, identificam-se com a nova paisagem e passam a cuidar dela, o que leva à valorização da área e atrai novos residentes. Tudo isso pode soar como algo muito fácil de executar, mas, na verdade, é um processo muito complicado.

A estação transformada em pequeno shopping

Uma lição importante que aprendemos é a de ater-se ao conteúdo, ao programa e à transformação. Durante a execução é necessário manter o conteúdo em mente, sempre, porque, ao longo desse processo, há muitas decisões financeiras ou práticas a tomar, muitas vezes à custa do conteúdo ou do programa. Há também o perigo de se usar esse legado histórico para fazer apenas eventos pontuais. Então, construtoras, arquitetos, residentes, a prefeitura e todos os envolvidos em cuidar (da renovação) de uma cidade devem saber qual história querem contar logo no começo, e assim se aterem a ela, para que o legado da cidade faça sua parte.

#13Qual é o seu legado?CulturaSociedade

Tudo que é sólido desmancha no ar

por Daniela Carbognin

Pode parecer estranho, ou minimamente contraditório, usar uma frase do Manifesto Comunista, de Marx e Engels, como ponto de partida para uma reflexão sobre as empresas e os seus legados. Mas, como maravilhosamente trabalhado no livro de título homônimo de Marshall Berman, “ser moderno é viver uma vida de paradoxo e contradição”, onde buscamos continuamente o desenvolvimento e a transformação, enquanto tememos a desintegração de tudo o que somos e do que fizemos – em mundos que são produtos da poeira de mundos anteriormente sólidos. É nesse contexto que as empresas deveriam pensar sobre seu legado.

É inegável o efeito que uma empresa com legado tem nas pessoas. Alguns de nós já devemos ter enfrentado fila razoável para comer no mais antigo restaurante do mundo em funcionamento somente porque está lá desde 1725. Resistir ao tempo, porém, é somente uma das características de um legado. O impacto nas nossas vidas e no mundo é outro. Se pensarmos que legado é algo que transcende a empresa e permanece como valor para a sociedade, podemos refletir sobre como criar empresas que sejam capazes de ultrapassar suas próprias fronteiras e contribuir positivamente para a evolução da vida. Assim, como um autor ou criador se perpetua em sua obra, o que faz o sonho de um indivíduo ou de um grupo manter-se vivo através de uma empresa, em um mundo em transformação, e continuar a transformá-lo (positivamente) ao longo do tempo?

Como o próprio Berman advoga, manter vivos os laços que nos ligam às modernidades do passado é uma forma de nos renovar e nos preparar para os percalços de hoje e de amanhã. Assim, não é à toa que os grandes estudiosos do tema no mundo corporativo – como Jim Collins e Richard Barrett – enfatizam aspectos como propósito, visão, princípios e valores como elementos imutáveis e essenciais para uma empresa construir seu legado.

Em alguns de seus livros, Collins nos fala sobre empresas visionárias – empresas que têm esses elementos em comum e que prosperam independentemente da obsolescência de mercados específicos, de mudanças na liderança e de sucessões. Princípios e valores, por exemplo, não perdem sua essência porque refletem aquilo que é mais importante para os fundadores e orientam a tomada de decisões no decorrer do tempo. Mantêm-se para as gerações futuras, mesmo sob circunstâncias externas diferentes, em momentos de crise e de prosperidade.

A clareza de propósito também é essencial. Para que existe a empresa? O que deixaria de acontecer caso deixasse de existir? Por que isso é importante? O lucro não deveria ser a resposta a essas perguntas, mas, sim, um meio para atingir objetivos amplos, fundamentais e duradouros. Como argumenta Collins, “não vimos a ‘maximização da riqueza dos acionistas’ nem a ‘maximização dos lucros’ como sendo a força impulsionadora dominante ou o objetivo primário ao longo da história da maioria das empresas visionárias”. Junte-se a este propósito uma visão de futuro inspiradora, capaz de engajar e motivar pessoas, e temos aí uma base para começar a construir um legado.

Mas, mesmo sendo condições necessárias, serão suficientes?

Não, não serão. Há outros aspectos que precisam ser pensados sob o risco de nos desmancharmos no ar.

O primeiro é a capacidade de realizar o sonho como imaginado. Engajar pessoas, mobilizar recursos e propagar continuamente a essência da empresa não é tarefa simples. Requer, no mínimo, muita disciplina e criatividade, como atestam os inúmeros casos estudados por Collins e outros autores.

Um segundo aspecto diz respeito ao entendimento sistêmico do papel da empresa. Em uma era onde empresas adquiriram uma importância global, em um mundo cada vez mais conectado e superpopuloso, onde os recursos naturais estão se esgotando rapidamente, não basta olhar isoladamente para o que a empresa produz. Segundo as leis do pensamento sistêmico (Peter Senge, A quinta disciplina), causa e efeito não estão necessariamente próximos no tempo e no espaço. Uma empresa precisa entender diligentemente os impactos de suas ações em várias esferas (social, econômica, ambiental etc.) e se responsabilizar por eles para não gerar um legado negativo e destruidor.

Finalmente, observa-se um ceticismo generalizado e uma falta de confiança crescente das pessoas em governos, empresas e seus líderes. Pesquisas como o Edelman Trust Barometer indicam uma crise de liderança: menos de um quinto das pessoas acredita que esses líderes falem a verdade (impulsionadas talvez por recentes crises e altos índices de corrupção). Mas, em se tratando de legado, aqui fica uma reflexão: como conciliar a responsabilidade cada vez maior das empresas com essa falta de credibilidade?

Afinal, como diria Shakespeare, “nenhum legado é tão rico quanto a honestidade”.

#13Qual é o seu legado?ArteArtes Visuais

Wunderamestal

por Ricardo Rodrigues

Ricardo Rodrigues nasceu em algures da América Latina, em 1992. Em 2005, emigrou para a Europa, onde trabalhou em diversas agências de publicidade. A cada três anos muda de país, procurando uma nova aventura. 

Hoje vive em Londres, onde espera ficar mais que três anos, dividindo seu tempo entre sua arte e suas jornadas pelo mundo.

O que fez? Criei três novas paisagens do projeto Wunderamestal, exclusivamente para a Amarello com postais encontrados  na Benedito Calixto.

O que é legado para você? Legado para mim anda em paralelo com a ética das trilhas; viaje sem provocar dano. Descarte seus resíduos corretamente. Não deixe nenhum rastro. Deixe para trás o que você encontrar. Minimize qualquer impacto. Respeite a natureza. Seja atencioso com os outros

Uma lembrança: Bariloche, 1988: 4°C

#12LiberdadeArteArtes Visuais

Portfólio: Marcelo Gandhi

por Gabriel Brito Nunes

Série Lugares Ingovernáveis (2010 – 2012)

Marcelo Gandhi dá à sua linguagem artística um papel. Literalmente. Superfície por excelência de seu desenho, o papel ganha status de pele sobre a qual Gandhi traça suas experiências, no mundo e em sua produção artística. Suas formas abstratas em cadeia, à primeira vista constituintes de uma só figura, não representam uma realidade vivida a priori, nem estabelecem um programa a seguir-se. A linha de tinta nanquim costura ao mesmo tempo que abre sulcos nos painéis de diferentes dimensões criados por Gandhi, esboçando a possibilidade de diálogo entre sua obra e o observador. A pele, assim, deixa de ser fronteira para se tornar o locus onde desejos e signos se articulam em plena corporeidade.

Do erotismo de seus primeiros desenhos, que o fizeram recipiente da bolsa Rumos Artes Visuais Itaú Cultural em 2006, à hibridez das técnicas que vem adotando, é o aspecto intimista de seu traço que tece o desenvolvimento de sua obra. Com a mudança do artista para São Paulo, onde reside há cinco anos, o corpo particularizado que servia de base para sua obra entra em conflito, com a dissolução do espaço privado no público, na série Sem Estrutura, de 2008. A cartografia do espaço urbano, onde tudo vira homogêneo e superexposto, invade o aspecto lúdico de seu desenho e gera um novo entendimento do indivíduo perante a monumentalidade da arquitetura metropolitana.

Busca aparente de retorno a um universo onírico e a um ideologismo perdido – mas, também, constatação do caráter efêmero das coisas –, surge em 2010 a série intitulada Ukiyoye Night Shot. A partir da identificação da perspectiva sem gravidade de seu desenho com a suspensão inerente ao estilo de pintura japonesa do século XVIII, Gandhi apropria-se da designação Ukiyo-e, “retratos do mundo flutuante”, para submeter seu traço a uma nova experiência. Composições em nanquim prateado sobre papel Fabriano preto, os exemplares dessa série fazem referência à história da arte e à própria materialidade da superfície de seu trabalho. Gandhi destaca, dessa forma, o tempo do evento não-cronológico suscitado por seu desenho.

Tempo suspenso no qual o observador é submergido quando em contato com a obra de Gandhi. Essa nunca se faz na memória de quem a observa, mas no acontecimento que se constitui quando nos encontramos frente à ela. Uma relação de surpresa renovada a cada olhar subsequente, sustentada na memória que se encontra na própria materialidade do papel. O desenho convida o espectador a vestir-se na projeção de seus próprios desejos sobre o universo contingente do trabalho artístico de Gandhi. Influência direta da prática de performance, que este desenvolve paralelamente, a performatividade de sua linha, que se afirma enquanto é traçada, convida nossa visão a testemunhar o processo do caminho – tanto do olho como o da linha – sobre o papel.

Convite do olhar a ser testemunha e dar origem a novos sentidos, quando Gandhi se utiliza de objetos encontrados ou culturalmente estabelecidos, como no caso de Pinball, parte integrante da exposição Jogos de Guerra, de 2011, na Caixa Cultural do Rio de Janeiro. Em cada um dos dez joguetes, Gandhi substitui a cartela de pontuação por seu desenho, subvertendo os objetivos do jogo e tornando sem limites a suspensão do tempo e do espaço em sua obra. O alvo agora são as formas criadas por seu traço e o objetivo, o maior tempo possível que se consegue deixar a bola percorrer o caminho sobre elas e por elas delimitado.

Apropriações outras de diversas fontes permeiam a mais recente série de desenhos de Gandhi, 3×4: símbolos da cultura pop, códigos de barra, palavras, números, campos de cores etc. Dispostas de tal maneira em relação à linguagem do desenho, essas referências não negam que tudo já foi produzido, mediado ou processado de outra forma por outros, outro autor, e, ao mesmo tempo, tomam uma posição crítica perante o material cultural existente. Num desses painéis, desponta a seguinte afirmação: “o performer é seu próprio signo”. Ela parece nos lembrar que, independentemente daquele que traça sua linha de experiência no mundo (da arte), seja ele o autor ou o observador, ambos são a(u)tores de suas respectivas histórias.

série Ukiyoye Night Shot