Quando eu ainda ensaiava tornar-me antiquário, um amigo, à época grande comerciante de arte antiga, apresentou-me a Cerâmica Saramenha. Eu nunca esqueço o modo descrito por ele para defini-la: “Veja bem, estamos diante da Companhia das Índias Brasileira”. A referência foi potente e magnética, uma vez que acendeu em mim a memória dos objetos e produtos que circulavam a partir das rotas das tradicionais companhias ocidentais e orientais, historicamente responsáveis pelo comércio de bens tanto dos holandeses, no caso da Ocidental, quanto dos ingleses, no caso da Oriental.

Essa imagem majestosa, imponente e deslumbrante — um deslumbramento diante da beleza quando a conhecemos pela primeira vez — impôs-se em meu inconsciente assim que o editor da Amarello comentou qual seria o tema dessa edição: Miragem. 

A magia por trás das descobertas que vinham do Oriente e do Novo Mundo tinha algo de ilusão ao olhar dos europeus. Da mesma forma, a Cerâmica Saramenha produz um maravilhamento que nos leva ao passado, especialmente ao Oriente, uma vez que seu tom de ancestralidade nos remete às cerâmicas oriundas da península ibérica e, que, por sua vez, têm o embrião nas cerâmicas árabes e mouras. 

Esse encanto, no entanto, não vem do Oriente, mas das terras mineiras, em um processo de produção artesanal que teve início em meados do século XIX, vindo a receber seu nome por conta do terreno em que o ateliê estava localizado, uma chácara, na cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais.

#43MiragemCulturaSociedade

Olhar para fora e desmontar miragens

Independência do Brasil, de Pedro Américo.

Caipira de Batatais, fui jovenzinha ser intercambista na casa de uma família no interior da França. Como fazia parte do programa do Rotary, era minha missão fazer palestras para os franceses sobre meu país.

Saí de um Brasil tropicalista, imbuída de Bossa Nova, Doces Bárbaros, Primeiras Histórias, Havaianas, e um – descobri mais tarde –alto padrão de higiene pessoal. Tive como resposta perguntas bem diretas sobre desigualdade social, escravidão. E esse foi o início de minha trajetória na desconstrução e reelaboração de meus ideais e minhas ideias de Brasil.

Hoje trabalho com o desenvolvimento de inteligência cultural, a habilidade de gerenciar diferenças culturais, sejam elas culturas de gênero, de gerações, de raças ou de orientação sexual, mas sou especialista em gerenciamento de culturas nacionais. Por isso, há mais de vinte anos sou cotidianamente exposta ao e confrontada pelo olhar de não-brasileiros. 

No entender de minha área, tratamos cultura como um viés: hábitos, costumes, valores, crenças que aprendemos ao longo da vida e acabam por se tornar a lente pela qual vemos o mundo. Meu desafio é a conscientização sobre cultura como uma perspectiva dentre várias possíveis. Minha meta é que, através da tomada de consciência, mudanças possam ser provocadas e operacionalizadas. Meu objeto maior sempre foi o Brasil, aquele para não-amadores.

Alguns dizem que Brasil vem de pau-Brasil, das brasas que fazem os brasis. Outros dizem que Brasil vem de mitologia celta, apropriada pelos portugueses, de uma lenda de uma ilha de extrema abundância, onde povos nativos andavam nus integrados harmonicamente com a natureza. Deus é brasileiro desde antes da colonização.

A ideia de ilha me é muito cara. Demorei a entender o que chamam de “sentido de excepcionalidade do brasileiro”, que hoje se me traduz principalmente no isolamento geográfico, populacional e econômico de nossa cultura. Quantos nos damos conta que ainda que gigante com estatura de continente, temos grande parte de nossa população ocupando a costa leste? Olhando para o Atlântico, nos isolamos seja margeados pelas águas do oceano, seja pelos nossos interiores de floresta ou latifúndios quase inabitados. Fato é que convivemos bem pouco com fronteiras ou pessoas de outras culturas e, ainda que normalmente se destaquem nossos regionalismos, o que me chama atenção é falarmos português de norte a sul, comermos arroz, feijão e farofa, até, há alguns anos, assistirmos a um único canal de televisão e termos nenhum conhecimento do sistema mundo.

Miragem 1: país da imigração? Sim, tivemos alguns importantes fluxos de estrangeiros para cá; o primeiro, raramente reconhecido, ainda que fundador, foi o dos africanos escravizados (1500-1888), depois, bem depois, italianos e japoneses (1880-1950) e hoje, nada. Apenas 0,3% da mão de obra no Brasil é imigrante. Enquanto a Colômbia acolheu 3 milhões de Venezuelanos desde o início da crise na Venezuela, nós recebemos algo como 300 mil. Somos um povo isolado. Nada expostos ao diferente. Uma ilha.

Economicamente fica ainda mais fácil falar sobre isso. De acordo com o Banco Mundial, apenas 12 países são mais fechados que o Brasil (tarifas de importação das mais altas do mundo). São eles: Chade, Camarões, Etiópia, Nepal, Bangladesh, Paquistão, Benin, Venezuela, Togo, Senegal, Quênia e Congo . Alguma vez na vida você se imaginou nesse grupo?

Ainda segundo o Banco Mundial, em seu ranqueamento de países mais fáceis para negócios no mundo, o Brasil está desde sempre numa posição muito ruim. No ano de 2020 aparecemos como o 124º, entre 190 países. Uma pequena amostra da lista segue abaixo para comparações:

Nova Zelândia: 1
EUA: 6
Alemanha: 22
China: 31
Índia: 63
Rússia: 28
México: 60
Brasil: 124 

Importante chamar atenção para o fato de que esse ranking não mede performance. Figuramos, e, segundo o mesmo Banco, figuraremos pelas próximas duas décadas, pelo menos, entre as 15 maiores economias do mundo. Mas desse seleto grupo das grandes economias mundiais, somos a única economia posicionada abaixo da linha dos 100. Somos potentes, mas nada abertos nem globais.

Miragem 2: somos abertos e acolhedores. No entender do Banco Mundial, nosso isolamento se deve a um sistema burocrático extremamente complexo, dinâmico e sem transparência. No meu entender, a burocracia brasileira é ferramenta histórica que usamos para manutenção de uma economia formalmente escravagista até 1888 – economia de desigualdade a partir de lá, em que, sem paralelos no mundo, conseguimos figurar entre as 15 maiores potências, mas sermos a 7ª maior desigualdade social. 

Sabemos que somos mais desiguais que a Índia? Porque a Índia é mais pobre, mas desigualdade se mede não só pela pobreza, mas também pela riqueza. Sabemos que somos a segunda maior concentração de renda do mundo? Só perdemos para o Catar. Não há o estrangeiro que não saiba que a maior frota de helicópteros do mundo fica na cidade de São Paulo e que a maior frota de jatos privados é brasileira. Não, não são frotas americanas, russas, chinesas ou alemãs, mas brasileiras. A grande jaboticaba brasileira no meu entender é conseguirmos manter a 12ª economia do mundo nas mãos de 1% de uma população de 220 milhões de habitantes. Genial. Genialidade do mal.

É muito comum ouvir desses estrangeiros duas grandes sugestões para o Brasil.

Primeira sugestão: educação. E aí cabe a mim explicar que nossas melhores universidades são públicas, mas que, para chegar a elas, é preciso ter tido acesso à educação privada de custo tamanho que só 1% das famílias brasileiras podem pagar. E que como uma espécie de reação ou retaliação a instituição do sistema de cotas, vem havendo um desmonte do ensino superior público e uma debandada de alunos economicamente privilegiados rumo ao ensino privado, o que me parece mais uma sofisticada manobra nossa e de nossa elite em direção à não-mistura de classes e raças. 

Segunda sugestão: revolução. E aí preciso contar uma característica não confrontacional nossa. Certamente não real quando de um olhar mais profundo sobre nossos movimentos históricos. De maneira alguma, tenho a intenção de contribuir para perspectivas sobre o brasileiro pacífico. Mas nossa narrativa identitária evita o reconhecimento de guerreiros e oprimidos, e nossa bandeira exalta exuberâncias naturais mais do que o sangue nunca derramado em proporções cívicas, ou que configurassem uma guerra civil por exemplo, ou qualquer ideia institucional. Ainda que a História da própria bandeira não seja essa e tenha mais a ver com as cores dos Habsburgos. 

Mas concordo que, como povo, identificamo-nos mais com a natureza e com o futebol do que com a instituição Brasil e que jamais aprendemos no passado que a luta ganha, porque a violência contra os oprimidos sempre foi institucionalizada e brutal. Parece-me natural que o povo – na maior parte de nossa História, percebido como inimigo interno pelas elites econômicas e políticas – tenda a ser menos engajado e esperançoso sobre processos de construção de cidadania se essa sempre lhes foi repetida e violentamente negada. Até no já consentido polêmico quadro oficial da suposta independência do Brasil, o lugar do povo é de espectador. E isso não gera vergonha na instituição.

Existe uma piada que os argentinos contam sobre si e que é do conhecimento de muitos: “argentinos são italianos que falam espanhol e se acham ingleses”. Trabalhando com os “hermanos”, descobri que eles têm a mesma piada sobre os brasileiros, que “seriam africanos, que falam português e acham que são americanos”. Feitas as ressalvas sobre a generalização dos africanos, seria bom reconhecermos que temos bem mais de Luanda do que de Lisboa por aqui. E o fato desse reconhecimento ser tão difícil já diz da mais importante miragem que não queremos nos desfazer.

Cultura é um viés que perpetuamos. Um teórico de minha área (Johan Galtung, 1930) vai inclusive dizer que é mais fácil mudar o DNA de um indivíduo do que mudar padrões culturais. Uma polonesa que trabalhou comigo sempre me contava que na Polônia existe uma “piada” sobre como um polonês não consegue ficar duas horas no carro com um amigo sem que comecem a falar da guerra. Sempre me pergunto quando falaremos da escravidão. 

Para mentalidades culturais mais direcionadas pela lógica e pela razão, se nosso maior destaque é a grotesca desigualdade econômico-social na 12ª maior economia do mundo e se, de cada quatro pessoas pobres no Brasil, três são negras, logo estamos definitivamente distantes de qualquer ideia de democracia racial. Estamos seguramente falando do pior racismo estrutural existente. Sem chances para miragens. 

Confesso que talvez meu maior desafio intelectual seja tentar entender por que é tão difícil para nossa elite, que frequenta Harvard, Oxford ou Science Po, ou , nas férias, Paris e Nova Iorque, responsabilizar-se por isso. E a única resposta que me vem é cultural: nascemos assim, uma economia de desigualdade é também uma economia de privilégio, e como é difícil renunciar a privilégios. Alguns me pedem soluções práticas. Já fiz uma conta de que, se destinássemos o montante de uma garrafa dos vinhos que tomamos nos finais de semana a um de nossos funcionários domésticos, aumentaríamos a renda deles em, pelo menos, 10% a 20%, o que representa um aumento de renda de 40% a 80% mês. Talvez já fosse muito arrumar nossas camas e lavar a louça vez ou outra para minimizar o abuso dos corpos. Não acho que a elite seja uma mesa de conspiradores reunidos tramando o domínio do mundo. Mas nossa inabilidade para lutarmos por uma reforma tributária que seja pró-distribuição de renda nos coloca bem próximos a sociedades com as quais jamais gostaríamos de parecer, como a Guiné Equatorial, por exemplo.

Lévi-Strauss traz em seus Tristes Trópicos a ideia de que tendemos a pegar mais pesado com nossa própria cultura e, como já provável e claro aqui, sou um tanto inconformada com as auto-imagens que perpetuamos de Brasil. Mas não acho que somos piores que a maioria e que haja solução em algum lugar lá fora. Também admiro um tanto a sabedoria dos que não querem ter razão, mas sim serem felizes. 

Tem oásis por aqui. De extrema complexidade, somos frutos de violência afetuosa, que o diga a Luzia que, há mais de 30 anos é parte da família, e que depois dos beijos e abraços nas crianças após a novela, aconchega-se para o descanso nos seus 2m². Por gambiarras que não caberão aqui, identifico-me sim, também, com o homem cordial, aquele que, para além da educação polida, por falta de oportunidade de institucionalização de seus sentimentos e profissionalização de suas relações, é dirigido majoritariamente por suas emoções e relações. Afinal, apesar de tudo, há muito coração no Brasil.

#43MiragemArteCinema

Madalena e o ato de sentir o inominável

por Noá Bonoba

Nesse texto, irei me deter apenas à última parte do filme Madalena (2021), de Madiano Marcheti. Escolho esse recorte não por acreditar que o restante do filme não interesse, mas opto por aquilo que me convocou: atuantes dissidentes em cena e coletividade transcentrada.  

Enquanto pesquisadora das questões da transgeneridade e da travestilidade dentro do cinema, e também enquanto atriz travesti, já faz um tempo que venho me debruçando sobre o pensamento em torno da representatividade transvestigênere dentro das narrativas cinematográficas 

O primeiro ponto a destacar é a importância da inclusão de profissionais trans e travestis no mercado de trabalho cinematográfico. Não apenas em produções que se propõem a trazer nossas questões de vida, mas principalmente nelas. Para além da tecla bastante repetida sobre a contratação de atores e atrizes trans e travestis no campo da interpretação, precisamos ampliar esse pensamento para a equipe e para o cerne da criação. Somente dessa maneira é que conseguiremos produzir filmes que ampliem os universos desgastados das narrativas trans no cinema. Em Madalena, é inegável a importância da presença da pesquisadora e artista Helena Vieira no cerne da obra. Em conversa com o realizador, ele me confessou que o filme seria outro sem a presença dessa profissional. E, sim, nós sabemos disso. A atividade de pesquisa e consultoria não é nenhuma novidade dentro da indústria cinematográfica. Historicamente, o cinema sempre abordou alteridades. O mundo do outro sempre interessou à ficção, mas o cinema cisgênero sempre tratou com bastante irresponsabilidade e falta de tato o nosso universo. É ele, inclusive, um dos grandes responsáveis pela criação de um imaginário coletivo deturpado sobre as nossas existências, juntamente à mídia sensacionalista e despreocupada.  

É impossível dizer que Madalena escapa de todos os clichês. O que interessa a mim, no entanto, é debater a consciência de que há uma limitação cognitiva dos corpos cisgêneros na abordagem das nossas vidas, por mais implicado, engajado e aliado que os corpos cisgêneros sejam. Infelizmente, ainda vivemos um panorama no qual mais da metade das produções cisgêneras que optam por narrativas trans, cometem deslizes na construção fílmica e acabam por reforçar uma série de estereótipos que não contribuem em nada na luta de desconstrução do imaginário sobre nós. O salvacionismo cisgênero geralmente se confunde com aliança. É preciso, então, uma consciência da própria limitação cognitiva para que sejam alçados novos voos – e aprendizados a partir da diferença, não da assimilação. É necessário que o filme se coloque enquanto um filme pensado de forma cisgênera, sem a tentativa de apagar os arquivos do choque que o encontro provoca. E acredito que Madalena faz isso muito bem. O filme se autoanuncia em seu fracasso na busca por uma subjetividade da ausência. Parece-me uma autodeclaração da limitação em entender o universo que se quer abordar. E acredito na positividade desse turvamento, pois a dúvida está presente. Em vários momentos, não sabemos ao certo com o que estamos lidando, ou melhor, em vários momentos a cinematografia de Madalena assume não saber lidar de uma forma tão certa sobre o que está sendo lidado. Ver isso assumido, posto em jogo, nos traz o olhar da dúvida que contrapõe desde já uma série de realizações cisgêneras que parecem querer explicar de forma bastante didática o que somos e como lidamos com o mundo, mas fazem isso de forma arrogante e sensacionalista, utilizando a falsa empatia como moeda de apropriação das nossas histórias de vida e do que acreditam ser a interpretação da nossa realidade. Isso tudo a partir de um realismo cisgênero inventado por eles mesmos para legitimar o que seria, então, o cinema. Existe muito em jogo. As camadas são profundas, e as feridas também.    

É por isso que, ao me deparar com Madalena, o núcleo transcentrado é o que me chama a atenção. Observar a maneira como o cuidado, o afeto e as relações se constroem dentro da singularidade de cada personagem do que vou chamar de terceiro ato.  

O banho de rio me traz acalento. Sabemos que nós, pessoas trans e travestis, historicamente tivemos o afeto negado. O que recebemos em troca, por sermos quem somos, são olhares de repressão, censura ou ridicularização. Essas abordagens também estão presentes na narrativa. O olhar da cinematografia ao nos filmar, na maioria das vezes, também reforça esse caráter pejorativo. O olhar de uma cisgeneridade curiosa esteve muito presente na nossa história. Durante muito tempo, os diretores cisgêneros trataram nossas narrativas como se estivessem em zoológico. Essas grades invisíveis estavam lá, protegendo o contato, nos desnudando e jamais pondo em risco a elaboração transfóbica dos sujeitos que nos filmaram. Por isso que, em Madalena, o banho de rio me toca em outro lugar. Sinto que posso tomar banho com o filme. Não há vontade de expor, de explorar ou de aproveitar-se das condições dissidentes. Apenas estamos ali, vivendo o momento presente, com os personagens, acompanhando a condição da diversão, o direito ao sorriso e ao descanso, presenciando uma rede de afetos e amparo coletivo.  

O direito de corpos trans à sociabilidade é algo bonito de se ver num filme. O que já vimos bastante foram personagens sendo mostrados como excluídos da sociedade, personagens solitários e sem saída narrativa nenhuma. Esse dado da exclusão não é inverídico. Quando falamos de corpos trans na sociedade, estamos sim lidando com os dados reais das vivências da exclusão e da marginalidade, mas, se essas narrativas já foram bastante expostas no mundo da cinematografia, por que não as contrapor?  

Lendo Bel Hooks e seus escritos sobre o amor, em Tudo sobre o amor, encontro a seguinte citação: “Há ainda os que dizem que essa força é o que é porque não pode ser nomeada”. Ao me deparar com esse pensamento, reflito sobre como o inominável esteve para além do que fomos representados no ato de sentir os acontecimentos narrativos. A criação de personagens trans na cinematografia nos deu pouco direito ao ato de sentir. A representação do ato de sentir nos colocou, na maioria das vezes, no campo da rasura. A necessidade cisgênera de redução das nossas singularidades foi responsável por um repertório ainda pouquíssimo explorado do ato de sentir o mundo a partir do que não se pode nomear.  

 A constituição de novas famílias a partir da criação de espaços onde a cisgeneridade não pode entrar e nos violentar nos direciona para o ato de transcentrar em Madalena. Desde quando o carro não funciona mais e a tentativa de resolução do problema em coletividade, por mais difícil que seja criar uma coletividade com todos os traumas coloniais que a cisgeneridade nos causou.  

Escrever cenas nas quais pessoas trans e travestis estão juntas, contracenam, vivem e conversam sobre situações que estão para além da transfobia estrutural que nos sufoca é um ato político. Em momento algum, isso pode ser lido como um ato de negligência ou falta de responsabilidade com relação ao contexto violento em que vivemos. A criação de cenas, como o banho de rio, confabulam com a expansão de um repertório da transgeneridade e o ato de sentir o inominável.   

Voltando à cena do banho de rio, acredito que o inominável esteja ali. Presentificar o inominável através de contraposições narrativas é o que desejo para uma cinematografia responsável e engajada com o debate em torno da figuração de personagens trans e travestis no cinema. Contrapor é “escovar a história a contrapelo”, para citar Walter Benjamin.  

Ter contato com o que já foi feito na cinematografia sobre personagens trans e fazer um mapeamento dos estereótipos é uma tarefa de qualquer cineasta implicado com o mundo. É uma maneira potente de se engajar numa luta contra a transfobia estrutural. É possível, sim, inventar outro imaginário coletivo para nossas existências.  

A Proclamação da República, de Benedito Calixto (detalhe)

No dia de Natal de 1919, o Hospício Nacional do Rio de Janeiro recebeu Afonso Henriques de Lima Barreto, o homem que, post mortem, foi reconhecido como um dos mais importantes escritores do Brasil. Munido de um olhar atento e ácido, o período em que esteve internado na mais importante instituição asilar do país foi registrado no livro publicado décadas depois pelo sugestivo nome de Cemitério dos Vivos (1954).

Ali, nas suas anotações iniciais, Lima Barreto parecia estar munido de uma lucidez doentia, quando disse:

“Não me incomodo muito com o hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão da polícia na minha vida. De mim para mim, tenho certeza que não sou louco, mas devido ao álcool, misturado com toda a espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material há 6 anos me assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura: deliro.”

Para aqueles que conhecem as dinâmicas do Rio de Janeiro durante a Primeira República (1889-1930) para além dos aforismos da Belle Époque, a afirmação de Lima Barreto é uma aula de história. De uma história do Brasil que foi sistematicamente silenciada, e que até hoje luta a duras penas para se fazer ouvir. Um Brasil que adoecia e que dava sinais de loucura. Mas as motivações para tanto não estavam em nenhuma bactéria, vírus ou falta de enzima específica. A razão para o delírio que acometia parte da população brasileira era o próprio Brasil.

O Brasil foi o país que mais recebeu africanos escravizados em todo o mundo, fazendo da escravidão não só uma escolha política (sobretudo a partir de 1822), mas uma instituição que organizou o funcionamento de toda a nação, arregimentando identidades e definindo sentidos de liberdade e possibilidades de exercício de cidadania. Arguta como poucas, as elites brasileiras foram sagazes na elaboração de uma ideia de Brasil que era, ao mesmo tempo, “combinada e desigual”. Quando foi decidido que uma história do Brasil precisava ser construída, o projeto vencedor foi aquele que imaginava o Brasil como um grande rio branco (e português), que era atravessado por dois rios menos caudalosos: o rio indígena e o rio negro. 

Em meados do século XIX, já havia sido lançada a pedra fundamental do mito de fundação nacional. Um mito que não só reconhecia a diversidade racial do país, como a hierarquizava impondo um silêncio travestido de harmonia e passividade, num país parido pela violência.

No entanto, naquele Natal de 1919, Lima Barreto já anunciava que essa harmonia e passividade eram, se muito, “para inglês ver”. O literato genial, sabia que estava visitando novamente uma instituição asilar por ser um homem negro, de situação modesta, que sofria de alcoolismo em um país que fazia uso deliberado da violência policial para lidar com homens como ele. Porque era assim que o Estado brasileiro republicano encarava a população negra e mestiça: como um caso de polícia. 

A escravidão não mais existia. O próprio Lima Barreto teve seu 7º aniversário eclipsado pela abolição da escravidão no Brasil, um feito que seu pai e muita gente próxima a ele comemoraram muito, por muito tempo. Uma abolição que reforçou que negros e mestiços (muitos deles filhos e netos de ex-escravizados, quando eles mesmos não eram egressos do cativeiro) não eram bem-vindos, justamente por serem negros e mestiços. O legado que a República brasileira optou em herdar foi o de pensar a si mesma como uma nação branca, movendo céus, terras e milhares de imigrantes europeus para tentar alcançar esse objetivo. Um objetivo falho desde o início, mas que nem por isso deixou de ser constitutivo da elaboração da brasilidade.

Quase um século depois, na década de 1930, aquele Brasil de rios mais e menos caudalosos foi atualizado para um Brasil igualmente desigual e combinado. Um país que, num delírio meticulosamente traçado, passava a entender a si mesmo como uma democracia na qual homens e mulheres de diferentes pertenças raciais viviam como irmãos. Herdeiro da ardilosa perspicácia da elite escravocrata brasileira, em 1933, Gilberto Freyre descreveu um país que lhe parecia ideal, no qual as tantas raças humanas conviviam muito bem, contanto que cada uma soubesse seu lugar e até onde poderia chegar. 

Não era mais a pele do povo brasileiro que deveria ser branca, mas a ideia imaginada de Brasil. Um delírio que, para se manter de pé, precisou e ainda precisa contar com a mesma polícia truculenta se intrometendo a torto e a direto na casa dessa gente preta. Um país que reservou o alcoolismo, as drogas ilícitas e o encarceramento em massa como o horizonte de expectativas mais certeiro para a juventude negra. Um delírio que faz da falaciosa democracia racial um dos principais ingredientes para levar muitos brasileiros à loucura.

Vivemos num país que ainda se imagina uma democracia racial, mas que não passa de uma nação democraticamente racista.

1. 

Antes de sair da academia, eu entrei, passei pelo pórtico do Campus do Vale, UFRGS, dentro da mochila a Filosofia do Direito, G. W. F. Hegel, Professor de Berlim do século XIX, cujas ideias alcançaram o século XXI e o bairro da Agronomia, grande Porto Alegre. Lá ia eu, com o Espírito Objetivo nas costas, história da razão impressa e apresentada em páginas hoje ameaçadas por traças e por estudos pós-coloniais. Eu entrei na Academia procurando saber. Comecei por saber que nada sei. E tropecei em livros, conceitos, fatos, lendas. 

2. 

Tales de Mileto, conta a lenda, olhou as estrelas e tropeçou num buraco. Alguém riu, chamou-o de lunático: não adianta contemplar os astros e esquecer o chão onde se pisa. Num fato mais prosaico e recente, lembro um Professor de Metafísica esperando, inerte, a metros do meio-fio da calçada, os carros pararem na faixa de segurança. Os carros não paravam. O professor, em indecisão comovente, não atravessava. Nada acontecia. Era como se o Professor estivesse transmutado do plano físico ao transcendente. Eu segui, arrastado pelo tempo. Fui a um Congresso de Filosofia. No hotel, um colega abriu a mala e mostrou o que trouxera: rolo de papel higiênico. Eu disse que o hotel provinha papel higiênico. “Nunca se sabe”, ele respondeu.  

A tradição filosófica começa com o desajeito do intelectual nas ruas da realidade (ele que diz entender a realidade) e culmina nos versos de Heinrich Heine sobre o Professor alemão, que, “com touca de dormir / (…) tapa os buracos do mundo”.  

Tropeçante, paralisado frente à rua a ser atravessada, papel higiênico e pijama, seria o intelectual, assim, apto a tapar os buracos do mundo?  

“O pensador reconciliado com a realidade não tapa buracos – ele suja as mãos para estudá-los.”

3. 

Na Crítica da Razão Acadêmica, deve constar defesa da excentricidade intelectual. O pensador deve, isso mesmo, ser “ex-cêntrico”, “fora do centro”, posicionado nas margens, de onde olha e medita.  

Um passo atrás, antes de Tales cair no buraco: só um lunático compreende a lua. O passo atrás, longe do centro, significa olhar deslocado do imediato ao mediado por realidades esquecidas no passado, no abstrato, no céu, no microscópio, em fórmulas matemáticas, categorias sociais, princípios políticos. Hegel diria a Heine: mesmo um mundo esburacado precisa de conceitos (o conceito de “buraco”). O pensador reconciliado com a realidade não tapa buracos – ele suja as mãos para estudá-los.     

Um passo adiante, depois de Tales, não encontramos filósofos apenas em buracos e em cavernas. Sócrates está no centro da praça. Ele pede respostas consistentes aos concidadãos. O que é justiça? O que é virtude? Sócrates evita cair no buraco de opiniões sem fundamento. Ele está na realidade. Quer pensá-la com outros. Mas a cidade não quer pensar com ele – e condena o fazedor de perguntas à morte.   

4. 

Das colinas quentes de Atenas, a Academia, em gêneses histórico-sociais, metamorfoseou-se nas universidades de hoje, departamentos e comitês multidisciplinares, que poderiam ser imaginados como:    

Castelo, e digo como elogio, castelo protegido por muros e arqueiros conscientes de sua tarefa: defender a pesquisa contra pressões sociais, humores coletivos, lobbies econômicos, contra o que vem “do centro” e ameaça a autonomia universitária.  

Armazém, com depósitos, prateleiras, potes e caixas, limpas ou empoeiradas, onde se estocam objetos do saber em várias formas temporais, geopolíticas, metodológicas.     

Fábrica, onde ideias são produzidas. Deixemos para depois a pergunta: produzidas por quem, para quem, por quê?  

5. 

Na pólis pós-moderna, a Fábrica ameaça o Castelo, sobretudo se pensarmos na linha de montagem da fábrica. Os arqueiros viraram mecânicos com funções específicas, em disciplinas e subdisciplinas. O Castelo se desencantou. Dentro dele, se instalou complexo de racionalizações e sistemas de explicação (ou “discurso”) interminável. São tantos saberes, que se volta a saber que nada se sabe, ou se produz conceito para a nova realidade: alienação. O professor tem título, tem crachá, tem sala compartimentada de conhecimento específico. Da sala, ele sai quando tem conferência com outros técnicos que sabem tanto quanto ele – muito sobre pouco.    

6. 

A Fábrica significa, ainda, entrada do capital e metamorfose do “padre, poeta, intelectual…em seu trabalhador remunerado”. Estudantes de pós-graduação imaginam entrar num Castelo protegido contra as forças do mercado. Mas então descobrem que tem pouca bolsa, pouca vaga, tem competição, carreirismo e burnout. Professores recém-ingressados em universidades privadas descobrem que tem pouca turma com muito aluno. O desempenho pedagógico é medido em consumer ratings. É preciso muito mérito para criticar o mérito.  

7. 

Se a universidade for Armazém abastecido por atualidades brasileiras, a pergunta é como ter espaço para tanta autoimagem, conceito, conceito defasado, interpretações, sons, como dar conta de tanta “bagunça transcendente”, “mestiçagem”, “bovarismo”, elitismo, racismo, tanto “carnaval sem nenhuma alegria”, cordialidade e violência, tanta mistura e tanta área VIP, tropicalismo e meridionalismo, Gonçalves Dias e Jojo Todynho, tanto Deus, tantos falsos Messias, tanta dúvida? Seriam vastas prateleiras brasileiras em vastíssimos departamentos de estudos culturais humanos.  

A filósofa Hannah Arendt, na Universidade de Wesleyan (1961-62).

“não é contraditório que falem em empiria e entreguem ficção?”

8. 

Na pós-graduação, estudei a obra de Hannah Arendt. Pensadora no limite de uma tradição arrasada, Arendt se confrontou com o fato de o “povo mais teórico da Europa” (palavras de Engels) vestir a “camisa-de-força” da lógica totalitária, apoiando projeto de destruição e autodestruição, porque “assim deve ser” (palavras de um oficia da SS, em carta, à esposa). Não, não devia ser, não podia ter acontecido, Arendt respondeu. Ela defendeu o pensar – “fora de ordem” – como antídoto contra ideologias, teorias, ideias que funcionam como “escudos contra a realidade”. E recomendou pensar “com outros”, pensar condicionado por people, na ambiguidade do inglês – “pessoas”, personalidades únicas, e “povo”, entidade política em formação. 

9. 

People, not concepts”, Fred Dewey repetia no grupo Portable Polis, em Berlim, 2017, meu pós-doutorado pós-acadêmico. Todo sábado, sempre em lugar diferente (livraria, jardim coletivo, centro de refugiados, sala de estar privada), líamos Arendt sem pré-requisitos técnicos. Escutávamos o que as frases e pensamentos nos diziam, e o que dizíamos uns aos outros. Pensávamos juntos, concordando, discordando, mas no mesmo “mundo”, na mesa e no texto compartilhados. Como “desafiar, responder, refazer”? Como governar nossas vidas, sobretudo vidas públicas? A resposta de Fred Dewey era sentar, ler, falar e escutar. Essa “universidade”, chamada por ele de Escola da Vida Pública, não era castelo, nem fábrica, mas assembleia democrática informal. 

10. 

Certa vez, lendo a crítica de Arendt às ciências humanas de métodos estatísticos, uniformidade “sem desvios”, e “tipos puros” sem impurezas individuais, Dewey me perguntou: “não é contraditório que falem em empiria e entreguem ficção?” Ler Arendt com Dewey era, como ela dissera na abertura de Origens do Totalitarismo, compreender e resistir à realidade que se compreende. 

E era recolocar a questão do bisavô, John Dewey, em Experiência e Educação. Como educar para emancipar? Como demarcar disciplinas preservadoras, voltadas ao passado, das orientadas ao futuro? A resposta do bisneto havia se emancipado da resposta do bisavô, e, buscado nas categorias políticas de Arendt – pensar, julgar, agir – princípios constituintes de uma pólis em miniatura, atualizada a cada sábado, por três horas, no verão berlinense.   

E era, ainda, volta à questão entre “interpretar” ou “mudar” a realidade, cravada no peito da tradição filosófica pelo intelectual (jornalista, agitador, orador) de Trier. No debate sobre o papel do intelectual frente ao “povo”, Rosa Luxemburgo falaria depois em “escola da vida”, sem, contudo, resolver a tensão entre dogmatismo e “oportunismo” solto, sem princípios. O debate permanece aberto: cabe ao intelectual dirigir as massas a um fim ou, quase o contrário, deve a teoria se abrir mais ao “espontâneo” e aos buracos dos acontecimentos humanos e naturais?   

11. 

Essas perguntas nos levam a outra, mais elementar. Como falar com o “povo”? Para afirmar o valor do pensamento conceitual, o acadêmico precisa comunicar e, em sentido socrático, entrar no espaço público. Mas como falar em público de “traços putativos” e “modalidades enunciatórias”? Como evitar a fuga do leigo, assustado com substantivos zumbis e com linguagem em que “knowhow” e pensamento se estranharam? Eu, acadêmico ex-acadêmico, não proporia síntese, muito menos solução, aos problemas da universidade atual. Mas, pensando em Sócrates, Arendt, Dewey, em castelos e em assembleias, proponho que se ensine, junto com Método Científico e Introdução à Pesquisa, dois cursos básicos – Escrita e Oratória. Para interpretar, ou para mudar, é preciso se fazer entender.   

#43MiragemArteCultura

Miríades, miragens, metamorfoses: uma história concisa do teatro de grupo no Brasil

por Mariana Ferraz

Breve gênese do teatro de grupo no Brasil

O chamado teatro de grupo caracteriza modos de fazer associativos entre artistas e operários das artes do palco cuja prática reivindica, para além de uma condução de processos essencialmente colaborativa, a relevância da constituição de linguagens e identidades qualificadoras de uma epistemologia própria. Sobretudo, destaca-se a importância da preposição de, que articula os termos mobilizados para designar o referido fazer teatral – uma vez que um teatro (feito) por grupo não necessariamente assinala um teatro de grupo, na medida em que o exercício daquele não prescinde, apesar de também grupal, do empenho arquitetônico de entidades criadoras e colaborativas, bem como promulgadoras de narrativas que lhes sejam inerentes. 

No Brasil, a placenta de tais ressignificações reside principalmente na fundação de grupos como o Teatro de Arena (1953) – que emergiu, segundo Maria Silvia Betti, também “como alternativa para o enfrentamento de pressões econômicas que pesavam sobre a esfera de produção no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC)” –, e o Teatro Oficina (1958), uma das companhias mais longevas em atividade no país, que, sob a égide de José Celso Martinez Corrêa, conjurava, desde sua formação, a concepção de um teatro radical, ritual e multitudinário. Tanto o Arena como o Oficina, cada qual com suas particularidades de operação, despontaram enquanto arquétipos do que viria a ser o chamado teatro de grupo, especialmente pela primazia, em ambos os conjuntos, da consideração do teatro como ofício comunitário de invocação intrínseco aos debates, subjetividades e demandas políticas, econômicas e identitárias apresentadas – o que se revelava, é claro, também nos procedimentos artísticos e métodos de organização que anunciavam o estabelecimento de uma operação pertencente ao e definidora do agrupamento teatral executor, sempre em diálogo com o contexto que lhes compreendia.

Tal marco, ainda que poroso e flexível, não pressupõe que as tantas erupções artísticas precedentes – do teatro jesuítico ao teatro de revista da primeira metade do século XX – não fossem operadas por comunidades de artistas, ou que o teatro feito anteriormente não denotasse um fazer de conjunto – inferência absolutamente antagônica à gênese do empreendimento teatral. O que aqui se salienta, contudo, é a sensível transformação anunciada principalmente pelo Arena e pelo Oficina, dado que a inauguração desses espaços de experiência – pela terminologia koselleckiana – acarretaria também na conclamação de outros horizontes de expectativa, portadores de insólitos rumos, sinas, possibilidades e propósitos para um teatro firmado num impulso de operação consubstancialmente coletivo.

Augusto Boal em 1975

“Diante da desarticulação de movimentos populares, cordões de militância e organizações de luta, igualmente o fazer cênico teve de mobilizar-se pela resistência e pela sobrevivência diante das diversas medidas de cerceamento e silenciamento impostas no cenário ditatorial.”

O golpe de 64 e o postulado cultural de resistência

A conjuntura do golpe militar de 1964, que suspendeu o regime democrático brasileiro e instaurou um período de truculência, perseguição e censura, também reverberou no contexto teatral. Diante da desarticulação de movimentos populares, cordões de militância e organizações de luta, igualmente o fazer cênico teve de mobilizar-se pela resistência e pela sobrevivência diante das diversas medidas de cerceamento e silenciamento impostas no cenário ditatorial.

Do referido período, enfatiza-se a realização do show Opinião, no RJ, evento considerado a primeira resposta cultural à deflagração do golpe. No Arena, o espetáculo Arena conta Zumbi, dirigido por Augusto Boal e livremente inspirado na linguagem brechtiana, rebentou como a concretização do chamado “sistema coringa”, experimento/procedimento prestado pelo Teatro de Arena que, dois anos mais tarde, se manifestaria também em Arena conta Tiradentes. Tal centelha, dentre outras interpretações, apresentava a crença de Augusto Boal no formato como a solução para um teatro em crise estética, econômica e política. 

Como postulado cultural medular de resistência do período, a Tropicália eclodira também do entremeado de estímulos oferecidos pela encenação de O Rei da Vela, do Teatro Oficina, trabalho caracterizador dos códigos cênicos que passaram a ser, nas palavras do próprio Zé Celso, responsáveis pelo grande momento de “descolonização” da companhia. Mas se O Rei da Vela foi uma das grandes molas propulsoras para a alvorada do movimento tropicalista, bem como para a reconfiguração dos brados políticos do Oficina, foi sobretudo com Roda Viva – texto de Chico Buarque encenado no RJ em 1968 – que essa nova semântica da resistência efetivamente se confirmou: pela figura de Ben Silver, um anti-herói macunaímico, a peça rogava interações de constante provocação e zombaria quanto à plateia, afirmando-se em metáforas grotescas e signos de escárnio e profanação. Concomitantemente, Boal e o Arena realizavam a Feira Paulista de Opinião, evento que almejava dar voz aos artistas da cena que pretendiam posicionar-se acerca do panorama político da época.

Com a imposição do AI-5, em dezembro de 1968, o terror repressivo e a censura passaram a ser cometidos com ainda mais vigor. O Teatro de Arena, o Teatro Oficina e o Opinião, que se vinham plasmando como importantes referências de inovação e combate ao longo da década de sessenta foram, então, constrangidos a um estado de grave retraimento e reclusão – minimamente matizado pelo advento das vertentes contraculturais disseminadas a partir dos EUA, bem como pela ocorrência dos movimentos de Maio de 1968, em Paris.

Se bem Augusto Boal apresentou seu último trabalho junto ao Arena em 1971, antes de sua prisão, tortura e exílio – Teatro Jornal – 1ª edição, que veio a ser um dos principais laboratórios para a composição do chamado Teatro do Oprimido –, células de rebeldia e ineditismo resplandeciam em diversas outras regiões do país naquele então. Do contexto, destacam-se as montagens de Macbeth segundo Ariman, na Bahia, em 1970; bem como A casa de Bernarda Alba e Tito Andrônico, de José Possi Netto, em 1973, e as de Língua de Fogo e Decamerão, de Luiz Marfuz, em seguida. Em Manaus, evidenciou-se a condução de Márcio de Souza, a partir de 1974, da encenação de A Paixão de Ajuricaba – que antecedeu outras três que também exaltavam temas indígenas e amazonenses: Dessana Dessana e A Maravilhosa História do Sapo Tarô Beque, ambas de 1975, e As Folias do Látex, de 1976.

O teatro de grupo contemporâneo

Com o prenúncio do outono da ditadura militar em 1985, tiveram início as experiências que caracterizaram a etapa contemporânea do teatro de grupo – uma vez que, com a paulatina erradicação das políticas de contenção e censura a partir do governo de João Baptista Figueiredo (1979 – 1985), bem como com o gradativo processo de redemocratização do país, “a cena teatral que até então estivera, de forma predominante, marcada pelas bandeiras de resistência democrática, começou a ganhar novos contornos”, como indicam J. Ginsburg e Rosangela Patriota.

Avultam-se, dentre os tantos traços tipificadores do teatro de grupo contemporâneo, um postulado novidadeiro, experimental e permanentemente autobiográfico por parte das companhias, sem que houvesse abdicação de sua condição estrutural de sujeito histórico. Daí, então, cintilam nomes como Gerald Thomas, Antunes Filho, Gabriel Villela e Bia Lessa – para indicar alguns encenadores –, bem como grupos tais como a Cia. do Latão (1977) e o XPTO (1984) em SP; o Tá na Rua (1980) no RJ; o Galpão (1982) em MG; o Imbuaça (1977) no SE; a Carroça de Mamulengos no CE (1982); a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveis (1977) no RS; o Teatro Sim… Por que não?!!! (1984) em SC; o Ventoforte (1974) entre Buenos Aires, RJ e SP, dentre outros. 

Considerando-se a abrangência do fenômeno e o enrobustecimento da coletivização do fazer teatral, o final da década de 1980 e o transcurso da década de 1990 abarcaram o nascimento de uma série de formações colaborativas, que objetivavam “impor-se por seus projetos artísticos e modos próprios de criação compartilhada”, de acordo com Silvana Garcia, e que foram responsáveis pelo eloquente fenômeno de reinvenção operativa que vigora até o presente momento. Alguns dos agrupamentos que emergiram a partir do referido período foram Os Satyros (1989), os Parlapatões, Patifes e Paspalhões (1991), o Teatro da Vertigem (1992), a Sutil Cia. de Teatro (1993), a Cia. Ensaio Aberto (1993), o Grupo Folias d’Arte (1997), a Cia. da Revista (1997), a Cia. do Feijão (1998), a Cia. São Jorge de Variedades (1998), o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos (1999) e a Cia. de Teatro Balagan (1999) em SP; a Cia. dos Atores (1987) e a Péssima Companhia (1999) no RJ; o grupo Clowns de Shakespeare (1993) no RN; o Grupo Totem (1988) em PE; o Cemitério de Automóveis (1982) – companhia criada no PR e radicada em SP a partir de 1997; e o Armazém Cia. de Teatro (1987) – criada no PR e radicada no RJ a partir de 1999.

Dos que surgiram a partir dos anos 2000, já num contexto em que o exercício teatral havia se consolidado enquanto “estética poético-militante a (en)cantar a história, as cidades e as gentes”, nas palavras de Alexandre Mate, encarnam particular importância o grupo Os Fofos Encenam (2001), o Coletivo Negro (2007), a Cia. do Tijolo (2008), a Cia. Mungunzá de Teatro (2008) e o Coletivo Legítima Defesa (2015) em SP; o Grupo Magiluth (2004) e o Coletivo Caverna (concebido em 2014 e fundado enquanto grupo em 2017) em PE; o Grupo Carmin (2007) no RN; o Ateliê de Criação Teatral (2000) no PR, e tantos mais.

É necessário mencionar, particularmente no que se refere à ampliação da articulação e à politização desses conjuntos, o advento do chamado Movimento Arte contra a Barbárie, em 1999, que se posicionava contra a mercantilização da cultura – especialmente em SP – a partir do descontentamento quanto aos critérios e prerrogativas demandados para a obtenção de recursos provenientes da Lei Federal de Incentivo à Cultura/Lei Rouanet. Foram publicados três manifestos entre 1999 e 2000, assinados por diversos artistas e operários das artes do palco, que lograram no ano de 2002 a aprovação da Lei de Fomento Municipal de SP, bem como a criação do jornal O Sarrafo – Teatro em Debate, em 2003. Tanto o Movimento Arte contra a Barbárie como outras manifestações coletivas decorrentes da referida organização – tais como a Roda de Fomento, o Movimento 27 de Março, o Movimento Teatro de Grupo e a Rede Teatro da Floresta – contribuíram com a criação, organização e tonificação de um arcabouço pelejante pela ampliação de subsídios para a cultura.

Montagem original da peça O Rei da Vela, no Teatro Oficina (1967).

“faz-se imprescindível tanto reconhecer como celebrar a contribuição dessa multiplicidade de companhias que amanheceu dos anos 1960 em diante para o estabelecimento de uma vigorosa resistência das artes, da cultura, das liberdades e da democracia brasileira.”

Epistemologias coletivas e identidade nacional: apontamentos conclusivos.

Das preponderantes características que constituem a experiência do teatro de grupo no Brasil, é mister considerar que a elaboração de epistemologias coletivas se apresenta como aspecto cardinal dessas abordagens: sobretudo, porque é no vislumbre e na edificação de premissas comuns, caracterizadoras de projetos e narrativas de cada coletivo, companhia, grupo ou núcleo teatral, que o referido fenômeno se revela em sua tipicidade e autenticidade histórica. Entretanto, como foi apresentado ao longo deste ensaio, é certo que, para além das narrativas próprias, o espírito associativo do teatro de grupo também congrega uma série de demandas e proposições que tangenciaram, circundaram e atravessaram querelas e discussões acerca da identidade nacional brasileira – disposições que seguem ressoando no tempo presente.

Tal processo histórico, como relatado, condicionou que os conjuntos que ascenderam, a partir da década de 1960, desempenhassem contundentes interações e participações nas inúmeras contendas políticas e epistêmicas que, desde então, se deram – do contexto prévio à ditadura militar aos desdobramentos da contemporaneidade. Primordialmente, porque o engendramento das tantas cartografias de si por parte desses coletivos teatrais passou a ser, impreterível e fundamentalmente, também uma revelação profunda de seu posicionamento frente aos impasses, dilemas e urgências deste “tempo que nos toca viver” – expressão de autoria da dramaturga e encenadora Cláudia Schapira, do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos.

Isso posto, faz-se imprescindível tanto reconhecer como celebrar a contribuição dessa multiplicidade de companhias que amanheceu dos anos 1960 em diante para o estabelecimento de uma vigorosa resistência das artes, da cultura, das liberdades e da democracia brasileira. Em particular, porque, apesar das múltiplas medidas persecutórias e obliterantes promovidas pelo regime militar e a despeito do desamparo e da precariedade que tem assolado novamente o país também nos anos mais recentes, o fortalecimento dessa miríade de conjuntos, assentiu a consolidação de novos preceitos, meios e miragens para a realização do teatro brasileiro – garantindo, por sua adaptabilidade e eficácia metamórfica, a consumação, legitimação e preservação de suas agendas políticas e estéticas – sempre imbricadas e indissociáveis em seu cerne. 

#43MiragemCultura

Mirar retomada

por Jéssica Hipólito

Crista da região de Cross River, na Nigéria.

Há uns anos escrevi um texto sobre a primeira vez em que fui a um museu, ainda criança, com uns dez anos de idade. Agora lembro da última vez, poucas semanas atrás, em que estive em um. Vinte anos de diferença entre uma experiência e outra, e a sensação que tenho é que nesse período houve séculos, isso mesmo, séculos de mudanças e que, ainda assim, muitos outros precisam estar por vir.

Tenho o costume de pensar que museus me atraíram, numa primeira vez, pela falta. Seguem me atraindo mais pelas lacunas e entremeios. Tenho a suspeita de que isso provavelmente não vá mudar. Procurei e procuro por rachaduras nas paredes, tintas descascadas, quadros tortos e tacos soltos no chão. Procurei e procuro por quaisquer pistas que gritem que os chamados “Templo da Memória”, estes espaços dedicados à contemplação e fruição das artes, ciências e histórias, lugar-testemunho da história vivida do homem, escondiam, em seus vazios e silêncios, aquilo que mais queria ver.

Os primeiros museus brasileiros foram criados em meados do século XVIII, no contexto da vinda da Família Real Portuguesa, que, fugindo de Napoleão Bonaparte, traz consigo, para a então colônia, a biblioteca real, objetos raros, obras de arte, documentos e artefatos que darão origem à Biblioteca Nacional e ao Museu Real, posteriormente renomeado por Museu Nacional. Enquanto o Louvre, um dos primeiros museus modernos públicos data de 1793, o Museu Nacional tem sua fundação, ainda como Museu Real, em 1818. Assim, o primeiro museu brasileiro, não só é contemporâneo do museu mais conhecido do mundo, como teve em sua gênese a responsabilidade de ser o pilar da memória e da história de duas nações: uma consolidada como um dos maiores impérios marítimos da Europa; e a então colônia, elevada pelas circunstâncias, à sede monárquica de Portugal. 

Myrian Santos aponta, em Museus brasileiros e política cultural, que os primeiros museus brasileiros têm o caráter de serem instituições responsáveis pela preservação e disseminação da memória e identidade nacionais, mas que, ainda assim, muitos deles, deixam a desejar no que diz respeito ao compartilhamento da origem de seus acervos e coleções. Explicita ainda que, por anos, as críticas aos museus estavam pautadas na percepção desse espaço cultural como meio para disseminação de narrativas das elites e de histórias e memórias oficiais. 

O museu é elaborado como um espaço onde são materializados e reforçados, através de objetos, símbolos e narrativas, os ideais nacionais. Os acervos expostos são testemunhas materiais de uma história a ser contada sobre um passado nacional comum, em que se cria a ideia de uma unidade nacional na qual território, língua, simbologias e narrativas constroem a perspectiva identitária de uma nação. Quais objetos, narrativa e símbolos foram os selecionados como representativos dessa identidade nacional? Que elementos foram exaltados e quais foram suprimidos? Que ideia de nação e quais memórias foram selecionadas para construção narrativa do que era, ou mesmo deveria ser, o Brasil?

Todo processo de elaboração de museu é uma seleção, o mesmo ocorre com todo processo de elaboração da memória. Para além, vale deixar evidente que rememorar, lembrar, ou mesmo que a noção de memória esteja restrita a uma reelaboração ou revisita a um passado genuíno e que a memória seja compreendida apenas inserida numa perspectiva que se estabelece entre o lembrar e o esquecer. A memória é elaborada sob a lógica do lembrar e do esquecer no presente, em que o que lembramos e esquecemos está intrinsecamente relacionado às nossas vivências individuais e coletivas, aos meios sociais a que pertencemos e de que fazemos parte e, consequentemente, está intrinsecamente imbuída de parcialidades diversas. 

Por muito tempo, a noção de uma identidade nacional brasileira disseminada pelo espaço museal e no tecido social era baseada na perspectiva da formação de uma nação miscigenada e multicultural. Essa mesma ideia da miscigenação ainda é bastante presente nos discursos cotidianos, mas esconde toda a violência e a hierarquização orquestradas desde a colonização. Os diversos elementos indígenas e negros foram ou completamente apartados, ou incorporados à lógica nacional. Optou-se por abrasileirar aquilo que se convinha e a, propositadamente, esquecer o que não se convinha. Já as aproximações com as culturas europeias passam a ser exaltadas e difundidas. 

É preciso, então, que percebamos o espaço museal inserido num processo repleto de  construções discursivas selecionadas, que refletem determinadas realidades, evidentemente parciais, e que para servir também como espaço de reconhecimento, identificação e problematizações, precisa se colocar como passível de reflexões e contestações. 

A quem serve determinados esquecimentos? Quais construções narrativas foram e são elaboradas sobre história, memória, arte e cultura? É possível vermos hoje um movimento de retomada no espaço museal que possibilita sua reformulação, a insurgência de museus de cunho comunitário e socialmente engajados. A perspectiva decolonial, por exemplo, tem sido amplamente colocada como reflexão crítica-integrante em alguns espaços, muito devido a artistas contemporâneos indígenas e negros e na ocupação desse lugar de poder que são os museus, por equipes mais diversas e politicamente comprometidas com a transformação narrativa e estrutural desses espaços. Movimentos de repatriação de artefatos, obras de arte e objetos são cada vez mais frequentes, contestação de discursos cristalizados e monumentos históricos dedicados a colonizadores e demais opressores estão cada vez mais sendo colocados em cheque.

Achille Mbembe, em Políticas da Inimizade, dedica uma das suas reflexões à necessidade de pensarmos um Antimuseu, que rompa com os pressupostos eurocentrados, hegemônicos e racistas, que não comportam racialidades outras que não a branquidade; que, para existirem em completude nesse espaço e não como simulacro de si mesmas, memórias, histórias e narrativas historicamente marginalizadas, precisam de que o museu se torne o seu reverso.  Pensar antimuseu é utopia, aquilo que nos faz mover e movimentar. Antimuseu é miragem, é desejo. É preencher as lacunas, os vazios e trazer à tona os escondidos.

Autorretrato com Máscara Africana e Bandeirinhas (Volpi), de Rosana Paulino (1998)

Retornar ao passado para ressignificar o presente com futuros possíveis, assim nos diz o ideograma Sankofa, oriundo dos povos Akan, o qual sabiamente se tornou uma ética que versa a recuperação da ancestralidade e do protagonismos pelas quais Abdias Nascimento apresenta em suas obras. Artista, pensador, filósofo, político e uma série de outras pluralidades que transbordaram na busca incessante da libertação e da liberdade de si e do seu povo, através da visão africana que foi deflagrada pela colonização.  

A transmissão de valores e tradições da história cultural africana e diaspóricas são o fio condutor das produções de Abdias Nascimento, centradas nas raízes africanas, em especial, a cultura Ioruba, na qual os Orixás são as bases de referências pictóricas, reflexão direta e experiencial – estética de si como homem, no sentido mais humano da palavra, e como continuidade africana. O legado deixado por Abdias nos convoca a um devir coletivo de rompimento da brancura imposta nas produções artísticas contemporâneas que renegam a erudição, o caráter plástico e de comunicação que essas referências transbordam para além do lugar de uma única universalidade.  

A partir dos caminhos abertos por Abdias e Beatriz Nascimento, o conceito de quilombo torna-se uma prática para a manutenção existencial enquanto povo e como proposta para autoafirmação e sistema alternativo para correção de diferenças para além de um lugar utópico e distante.  Num contexto racial artístico embebido de tantas limitações e amarras coloniais, defender um revisionismo de diferenças e defender o direito de pertença aos vários níveis de saber, decisão e criação nos campos das artes, tornam-se fundamentais e urgentes.  

Nos últimos anos, vemos um determinado aumento de artistas, pretos e pretas, compondo exposições e espaços mercadológicos da arte. Muito desse movimento é oriundo de proposições construídas pelos movimentos raciais e sociais do século passado que abriram caminhos nas políticas públicas de inserção racial e cultural em várias ramificações da sociedade.   

Dentro dessa perspectiva e desse posicionamento político, o meu vir a ser existencial coloca-se páreo ao axioma profissional nas quais meu lugar hoje, de atuação, versa. Propor uma equidade artístico-visual dentro dos projetos curatoriais de que faço parte – a partir das duas últimas exposições do Museu de Arte do Rio: Crônicas Cariocas, em 2021, e Um defeito de cor, em 2022, onde componho a equipe curatorial que contou com percentual majoritariamente de pesquisadores e curadores pretos, liderados pelo curador – chefe Marcelo Campos – é essencial para que nossas histórias sejam contadas, pesquisadas e protagonizadas a partir de novas perspectivas. 

Em Um defeito de cor, exposição homônima ao livro da autora Ana Maria Gonçalves, que também foi uma das curadoras da mostra. É válido apresentar que foi um projeto que contou com mais de 95% de obras expostas de pessoas pretas, em especial mulheres negras, que historicamente são apagadas da história da arte brasileira. Tendo também um marco, atrasado por sinal, de obras comissionadas e produzidas por mulheres negras transgêneros dentro do espaço museal. 

Simbiose Africana n.3, de Abdias Nascimento (1973).

Voltando a Abdias Nascimento, que nos últimos quatro anos tem figurado com suas obras, tardiamente, instituições tradicionais de arte como Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC – Niterói), Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio),  Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) e Instituto Inhotim (MG), em exposições individuais e com determinada visibilidade social e artística em exposições que contam, em sua maioria, com a curadoria ou a composição curatorial de profissionais pretos que fazem parte dessas instituições, como a diretora artística do MAM-Rio Keyna Eleison; Amanda Carneiro, curadora assistente do MASP; Deri Andrade, curador assistente no Instituto Inhotim.  

Vale salientar a construção histórica e de imensa relevância do acervo do 

Museu de Arte Negra, hoje sob tutela do Ipeafro, ambos criados por Abdias Nascimento e sua visão curatorial que se opõe ao conceito cunhado pelo ocidente. Trata de coletivizar e resgatar a memória visual e artística do legado afro-brasileiro, dentro das várias possibilidades de criação. A curadoria de Abdias não propõe uma separação, uma escolha, na ideia superficial do que poderia ser ou não ser arte. 

O Museu de Arte Negra teve sua primeira e única exposição no Museu da Imagem e do Som, curada por Abdias em 1968, data que marcou os 80 anos da abolição da escravatura e também seu exílio de treze anos dentro do contexto da ditadura militar. É interessante também observar que essa data marca o início da sua produção pictórica que se transformou em mais um pilar de conexão com sua ancestralidade e suas raízes afro-brasileiras.  

Aquilombar e trazer novas possibilidades e espaços a pessoas pretas são as premissas que mantêm a minha humanidade vívida, nítida e presente. 

Telas, performances, curadorias, pesquisas, ações, objetos, visualidades de corpos e corpas, nascidos em gerações diversas, comungam e bailam sob o arcabouço construído pelas mãos e voz desse Griot, chamado Abdias Nascimento, que, mesmo dentro das contradições e dualidades de si, demarcou África como berço civilizatório e como o lugar a ser centrado e revisitado. 

Afinal, como diz a filósofa Katiúscia Ribeiro, “O futuro é ancestral.”

Um dos fatos relevantes nas eleições ocorridas no Brasil, nesse ano de 2022, foi a emergência de agentes religiosos como protagonistas do jogo político. A participação de líderes, destacadamente pastores e pastoras das igrejas cristãs protestantes neopentecostais, para influenciar e controlar o voto dos fiéis e o alinhamento quase automático da maior parte desses cidadãos à candidatura de extrema direita tornou-os definitivamente protagonistas do jogo e da disputa eleitorais. Esse estado de coisas foi alvo de críticas por parte dos que se incomodaram com a instrumentalização da religião, da Bíblia e do cristianismo na luta política. No entanto, o envolvimento de religiosos e da religião com os jogos do poder no Brasil não é fato novo da história desse país, nem estranho da sociedade brasileira.

A chegada dos portugueses às terras que viriam a ser nomeadas de Brasil é ilustrada, entre outros caracteres, pela cena da missa celebrada por Henrique Coimbra, padre e bispo português. A tela, produzida em 1860, foi inspirada na Carta de Pero Vaz de Caminha, elaborada mais de três séculos antes, enriquece a iconografia da presença religiosa católica como aliada inseparável do projeto político de conquista, desbravamento e introdução da civilização europeia em terras do novo mundo. A formação das cidades, a construção das instituições e das estruturas de poder político no Brasil não podem ser compreendidas sem a influência que sobre todas elas exerceu a Igreja Católica, seja no período do Brasil Colônia, seja no do Império e na República. Recordemos que, na abertura de nossa primeira Constituição, de 1824, a do Império do “Brazil”, anuncia-se o texto em nome da Santíssima Trindade e, no Artigo 5°, está escrito: “A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio”. 

Isso não queria dizer, contudo, que outras religiões, também de matriz europeia, não tivessem já deitado suas raízes sobre essas terras. O reconhecimento de sua presença na Constituição do Império se afirmava com a restrição de sua atuação pública, fora dos templos e do culto doméstico. 

O caminho de ingerência sobre os assuntos do poder e de controle das instituições políticas segundo os interesses religiosos esteve franqueado à Igreja Católica no Brasil, pelo menos até a Proclamação da República. A instauração da Constituição liberal de 1891 marcou a intenção de distanciamento entre religião e Estado. Nela se proibiu tanto aos Estados quanto à União “Estabelecer, subvencionar, ou embaraçar o exercício de cultos religiosos”. Em 1926, na mesma Constituição, o Estado permitiu que “Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim adquirindo bens”. O reconhecimento do exercício público da religiosidade legitimava a pluralidade, embora estivesse quase limitada ao universo do cristianismo. 

As religiões de matriz africana, como o Candomblé, e as originadas do sincretismo afro-brasileiro, como a Umbanda, mantiveram-se em posições sociais e políticas marginais ainda ao longo do século XX. Pelo fato de serem reconhecidas em comunidades onde predominava a população negra, a sua visibilidade pública se tornou mais presente quando líderes e instituições religiosos se aliaram aos movimentos de luta pela defesa dos direitos civis da negritude. Apenas no início do século XXI, o preconceito nas instituições políticas e civis em relação aos cultos e à predominância de cidadãos negros começou a ceder espaço às demandas por maior participação pública e político-institucional desses grupos.

Pode-se considerar a Constituição de 1988 o marco legitimador dessa emergência de uma religiosidade mais plural e pública. Embora não esteja dito com todas as letras que o Estado brasileiro é laico, nela está escrito no artigo 5° que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. O fato de que outros direitos civis estejam afirmados na mesma Carta legitimou a participação secular, civil, política e pública como um elemento inerente e inquestionável à condição do cidadão identificado aos princípios, dogmas, regras e tradições religiosos, quaisquer que sejam eles.

A laicidade, ainda que tenha sido um princípio norteador do espírito dessa Carta Constitucional, não implicou o afastamento das religiões da visibilidade e do envolvimento com os temas de interesse público. Se a religião católica tomou parte nas articulações e na vida política do país desde a chegada dos portugueses, por que não as demais denominações cristãs, aquelas tradicionais de matriz africana, entre outras, não poderiam se fazer vistas e ouvidas em pleno século XXI?

De fato, a separação rígida da religião como um fator de influência sobre a vida pública e civil, as instituições e os poderes políticos das sociedades tem se mostrado menos efetiva, mesmo em sociedades nas quais a laicidade constituiu um princípio fundante e estruturante do Estado. A França, em razão da Revolução de 1789, fez da separação entre Igreja e Estado, religião e poderes políticos, um princípio inarredável para a construção da República. Outros países de tradição protestante, como a Inglaterra, optam por entender a laicidade do Estado atribuindo à autoridade política suprema a primazia sobre a autoridade religiosa. 

No Brasil, a laicidade do Estado é uma noção ainda pouco enraizada social e politicamente. A construção de uma experiência singular da laicidade em sintonia com a história do país, de sua sociedade e de suas instituições é um processo complexo. Ele envolve a manifestação pública da imparcialidade do Estado em face de conflitos do campo religioso. Da mesma forma, ao Estado não caberia se inclinar em suas decisões, formulações políticas e atuação públicas em favor desta ou daquela orientação religiosa. Em face dessa noção, como entender o processo político que se deu nas eleições dos governos estaduais e federal no Brasil de 2022?

A junção entre interesses religiosos e objetivos políticos evidenciou não apenas que a religião pode ser utilizada como instrumento de luta pelo poder político, mas também a intenção de colonização do poder e das instituições públicas foi e é um propósito divulgado à luz do dia por autoridades e representantes religiosos de vários matizes. Inúmeros eventos houve em igrejas católicas e protestantes nos quais os líderes religiosos orientavam, quando não determinavam, o voto dos fiéis em favor de candidaturas específicas. De outro lado, se viram fiéis recriminando padres e religiosos que se manifestavam em favor de certas posições políticas inaceitáveis como: a defesa do armamentismo como fator de pacificação da sociedade, a leniência dos poderes públicos em face da fome dos cidadãos, o silêncio das autoridades governamentais em relação ao massacre de populações indígenas e à devastação ambiental em curso no país. Pregações lastreadas em passagens bíblicas país afora evocaram o mais rasteiro maniqueísmo, que dividiu partidos, grupos políticos, autoridades e lideranças públicas em geral entre aqueles que encarnavam o bem e aqueles que exprimiam as forças do mal. Divisões no interior do catolicismo trouxeram à luz tanto a revitalização do integralismo e do tradicionalismo conservadores ancorados na Igreja do século XIX, assim como no seio do protestantismo se viram manifestar aliados do fundamentalismo original Norte-americano, do início do século XX. 

Aos religiosos identificados ao cristianismo que se alia aos pobres e denuncia os falsos tementes a Deus, àqueles que, piedosos, perdoam as ofensas e recriminam os ultrajes, aos que consolam os aflitos e não zombam da fragilidade e da miséria chocou a adesão explícita de pastores, padres e bispos ao bolsonarismo nu e cru. Nem mesmo a violação de direitos dos indígenas, dos quilombolas, das mulheres estimulada pelo governo Bolsonaro, nem a insensibilidade do presidente em relação aos mortos na pandemia ou a inoperância estatal nos momentos críticos dos hospitais abarrotados de cidadãos em desespero, nada disso demoveu tais religiosos do apoio insuspeito. Não se incomodaram, inclusive, com a identificação dessa autoridade – desacreditada mundo afora – ao Messias, o salvador, o escolhido.

Nos momentos mais tensos da campanha política, sobrepôs-se às propostas e aos debates políticos uma retórica de combate ao inimigo ancorada na linguagem bíblica. Uma plataforma muito suspeita de defesa da família tradicional foi divulgada por políticos atolados em episódios incontáveis que denunciavam a própria hipocrisia moral. Manifestações irascíveis contra a educação sexual nas escolas públicas, o ódio em relação às posições legítimas em defesa de direitos das mulheres, às questões de gênero, às demandas por igualdade de grupos LGBTQIA+ passaram incólumes às autoridades do judiciário responsáveis por julgar o preconceito e a ofensa. Houve até religiosos desejando a morte de cidadãos, fossem os empobrecidos vítimas da violência nas periferias das cidades, fossem as autoridades do Supremo Tribunal Federal de Justiça, fosse o candidato Lula.

Que interesses poderiam conduzir tais práticas tão flagrantemente ofensivas do cristianismo original? A adesão explícita protestante, inclusive de grupos tradicionais outrora zelosos para defender a decência moral, a esse bolsonarismo irascível se explica pela abertura de uma janela de oportunidade. Esteve, e ainda está, em jogo a disputa pela obtenção da hegemonia religiosa que, uma vez conquistada, poderá colonizar de vez as instituições do Estado, assim como as próprias noções de comum e de público, que balizam a percepção dos cidadãos acerca do que diz respeito ao Estado como instância estruturante do todo social e o que é próprio à esfera da vida privada.

Entre os fatores mais elementares da civilidade abalados nessa experiência de instrumentalização da religião no vale tudo pelo poder, está um dos pilares mais fundos que sustentam as democracias: a convivência respeitosa, equânime e paciente entre os diferentes cidadãos. O enraizamento e a sedimentação de uma experiência da laicidade são desafios inadiáveis que se apresentam à sociedade brasileira. Será inútil buscarmos uma noção essencialista que estabeleça uma forma para a sociedade no interior da qual ninguém se localize.  Para que a liberdade política, de pensamento e de manifestação da opinião sejam a pré-condição e os sustentáculos da liberdade religiosa, será necessário recuperarmos os exemplos vários em nossa história nos quais as religiões serviram de instrumentos em favor da exclusão: de homens e mulheres simplesmente identificados aos diferentes desalmados, aos inimigos, aos hereges, aos ímpios, aos indesejáveis. Apenas a experiência da laicidade vigilante face às intenções de colonização das instituições públicas por orientações religiosas específicas a favor da exclusão de outras orientações politicamente legítimas será capaz de nos recolocar nos trilhos da construção de uma sociedade democrática. Façamos por onde a fim de responder a esse tremendo desafio.

Podemos considerar que existem três tempos. Passado, presente e futuro. Estes três tempos nos ajudam a fazer leituras sobre a realidade, as relações sociais e os acontecimentos históricos. Nos deslocamos nestes tempos que estão interligados e que fazem a roda do mundo girar. Um tempo influencia diretamente o outro e nós, seres humanos, muitas vezes nos perdemos neles, visto que o véu metafórico que os divide é quase invisível.

Assim, temos um futuro que só será o que será a partir do que está sendo construído no tempo presente. Bem como agora nos alimentamos do passado, para desenhar o presente e vislumbrar o futuro.

O ideograma adinkra Sankofa nos ajuda a pensar estes tempos. Sankofa é um pássaro. Na origem da palavra, o termo Sankofa pode ser traduzido como “volte e pegue”: san – “voltar”, “retornar”; ko – “ir”; fa – “olhar”, “buscar” e “pegar”. Porém, com o intelectual negro Abdias do Nascimento, a palavra-conceito teve interpretações ainda mais profundas, podendo ser lida como “retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro”.

O movimento proposto por Sankofa nos é muito útil para ler o mundo, especialmente os espaços geopolíticos marcados pela colonização e pela construção de diásporas negras, como é o caso do Brasil.

Quando pensamos em nosso país, muitas vezes somos remetidos aos símbolos nacionais, às paisagens, à cultura. Mas é essencial que politicamente não percamos de vista que o Brasil, enquanto nação, foi formado num contexto bastante específico.

Entre o fim do século XVIII e meados do século XIX, chegaram às terras do que hoje chamamos de Brasil cerca de um milhão de africanos escravizados. Dentro desse período, a primeira metade do século XIX registrou o fluxo mais intenso do tráfico atlântico, em que os africanos representavam cerca de 80% dos habitantes em fase adulta nas fazendas de café e açúcar nos atuais estados do Rio de Janeiro e de São Paulo. Este sistema estruturou relações econômicas, políticas, sociais, culturais e principalmente relações de poder. A crença na supremacia branca versus a inferioridade negra foi plantada na mentalidade nacional e nas estruturas do país.

Desta forma, o racismo foi construído em nosso país como um “crime perfeito”. Algo que baseia as nossas relações, está presente em nosso cotidiano e na construção da sociedade, mas que, ao mesmo tempo, algo em que não se pode tocar e que é veementemente negado quando falamos de indivíduos. O Brasil é um país construído sobre bases explicitamente racistas, mas onde ninguém comete racismo.

É importante salientar que o racismo faz parte de um projeto político amplo, produzido racionalmente, e não por acaso, como se pode pensar. Durante o século XX, pseudocientistas e estudiosos aparelhados pelo sistema racista desenvolveram estudos com a finalidade de comprovar a inferioridade da população negra e estimar em quanto tempo pessoas pretas e pardas desapareceriam do Brasil. Nesse sentido, as teorias de “democracia racial” também foram importantes mecanismos no movimento de mascarar o racismo, a partir da crença na harmonia entre as raças no Brasil e apresentava a miscigenação como um processo de evolução da população negra, mediante embranquecimento.

O intelectual Silvio de Almeida escreve o livro O que é racismo estrutural, em 2018, onde observa a formação do racismo e das teorias raciais no Brasil e no mundo, estando inserido na Teoria Social e estruturado nas formas de organização da sociedade. O autor aponta que: 

“Em um país desigual como o Brasil, a meritocracia avaliza a desigualdade, a miséria e a violência, pois dificulta a tomada de posições políticas efetivas contra a discriminação racial, especialmente por parte do poder estatal” (ALMEIDA, 2018: 63).

Assim, o acesso à educação apresenta-se como uma importante pauta para os movimentos negros de todo o país. A possibilidade de gerar impactos positivos e desenhar outros contornos para trajetórias marcadas pelo racismo e pelas desigualdades, bem como a articulação entre saberes acadêmicos e práticos aproximam juventudes negras de uma reflexão na qual a educação seria um passo acertado. Porém, nos espaços de educação, também é possível perceber e ser vitimado pelas estruturas racistas de nossa sociedade. Não estamos imunes, nem em espaços educativos, e isso foi percebido e discutido firmemente por pesquisadores e ativistas negros.

A entrada de estudantes negros nas instituições de ensino passa a ser pauta prioritária nos movimentos negros. Um importante momento nesse contexto é a Marcha Zumbi dos Palmares contra o racismo, pela cidadania e pela vida, na qual é desenvolvido um plano para a superação do racismo, denominado como Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade Racial. Neste programa, a educação é apresentada como um possível ponto de partida para a caminhada rumo à superação do racismo. Nele, havia propostas como a implementação da Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial no Ensino, monitoramento dos livros didáticos e programas educativos. Algumas dessas demandas foram atendidas pelo poder público, marcando a capacidade de incidência política dos movimentos negros organizados.

Podemos perceber que, graças a pressões, propostas e investimentos políticos dos movimentos negros, a partir da década de 1990, começam a ocorrer mudanças consideráveis no que diz respeito à educação, ao antirracismo e ao acesso. Um exemplo disto é a LDB – Lei de Diretrizes e Bases e as leis municipais acerca da educação. Em 2003 o presidente Luiz Inácio Lula da Silva realizou a alteração na Lei Nº 9.934, de 1996 (que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional), implementando a Lei 10.639/2003, que prevê a obrigatoriedade do ensino de História da África, dos africanos e história da cultura afro-brasileira. Ainda assim, é importante destacar que a fiscalização a fim de verificar a real implementação dessas diretrizes ainda precisa avançar muito.

Ainda pensando ações afirmativas, a Lei das Cotas (Nº 12.711) foi aprovada em agosto de 2012, como política pública de ação afirmativa na Educação Superior no Brasil. A lei previa que as universidades reservassem 50% das vagas para estudantes vindos das redes públicas de ensino. E, dentro desta porcentagem, haveria reserva de um percentual específico para estudantes negros (pretos e pardos) e indígenas. A porcentagem varia de acordo com o percentual dessas populações em cada território, de acordo com o IBGE.

Em 2022, temos o marco dos dez anos da Lei de Cotas. Em  2011 – um ano antes de minha entrada na universidade -, do total de 8 milhões de matrículas, 11% foram feitas por alunos pretos ou pardos em universidades federais. Em 2016, o percentual de negros matriculados já havia subido para 30%. Não podemos afirmar que todos estes estudantes ingressaram no ensino superior através de ações afirmativas, mas o incremento nos números é expressivo e pode ser entendido como uma possibilidade de ascensão social e econômica quando falamos de populações historicamente empobrecidas e vitimadas pelo racismo estrutural. A escritora nigeriana Chimamanda Adichie afirma:

“Histórias importam. Muitas histórias importam. Histórias têm sido usadas para expropriar e ressaltar o mal. Mas histórias podem também ser usadas para capacitar e humanizar. Histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade perdida. A escritora americana Alice Walker escreveu isto sobre seus parentes do sul que haviam se mudado para o norte. Ela os apresentou a um livro sobre a vida sulista que eles tinham deixado para trás. ‘Eles sentaram-se em volta, lendo o livro por si próprios, ouvindo-me ler o livro e um tipo de paraíso foi reconquistado.’ Eu gostaria de finalizar com esse pensamento: Quando nós rejeitamos uma única história, quando percebemos que nunca há apenas uma história sobre nenhum lugar, nós reconquistamos um tipo de paraíso.” 

Para tentarmos superar o passado racista, é necessário seguirmos Sankofa e apanhar o que ficou para trás. É essencial recuperarmos as narrativas, epistemologias e dignidade dos povos negros, subjugados pelo racismo e pelas desigualdades.


Em 2018, escrevi o artigo Sereias: do mito à realidade a convite de duas organizações asiáticas das quais a Acqua Mater é parceira desde 2017: o “ADEX”, ou Asian Dive Expo, baseado em Cingapura, e a Mermaid Federation International (MFI), uma escola profissional de sereias com sede em Hong Kong. Ambos desenvolvem atividades por toda a Ásia e incentivam o engajamento de seus públicos em múltiplas causas de conservação marinha.

Ulisses amarrado no mastro do navio. Detalhe de vaso ático de figuras negras, de 480-470 a.C. Acervo do Museu Britânico

O artigo, que foi capa da revista Scuba Diver, tem ampla referência às sereias asiáticas, porque foi publicada na Ásia e porque se encontram menos informações sobre elas do que sobre sereias do mundo ocidental.

Quando os editores da Amarello souberam desse artigo, convidaram-me para resumi-lo para esta publicação, somando referências ao universo das sereias no Brasil. Portanto, após esse primeiro texto, o leitor encontrará outro, Iara e Iemanjá: “Mães d’Água” do Brasil, que conta brevemente como elas nasceram e se consolidaram no imaginário popular brasileiro.

Ambos contêm pistas que ajudam os curiosos a mergulhar no labiríntico universo de encantados, entidades, espíritos, mitos, divindades, lendas ou superstições aquáticas que habitam nosso planeta. Notem como algumas histórias parecem se sobrepor. E é muito difícil, na maioria dos casos, indicar a origem exata de cada criatura aquática que aparece nas várias culturas do mundo. Ainda que haja arquétipos que se repitam, os seres que os incorporam são como máscaras ou personagens que vão se fundindo e se transformando de acordo com o contexto histórico, social e cultural que os acolhe ou gera. E somamos aqui as inúmeras interpretações pessoais de cada um que viu essas criaturas, ou delas ouviu falar, num telefone sem fio capaz de criar povos inteiros.

Nem todas as bibliotecas, cinemas ou museus do mundo conseguiriam abrigar todos esses seres. Nem a internet pode dar conta de tudo isso, porque nossa imaginação não se deixa aprisionar.

E você? Acredita em sereias?

Sereias: do mito à realidade

Por que, há tantos séculos, as sereias despertam imenso fascínio no ser humano, independentemente das tradições culturais às quais pertencem? Por que nos sentimos atraídos por essas criaturas aquáticas? Por que buscamos saber de onde elas vêm, quem são, o que querem de nós? Por que desejamos vê-las e, eventualmente, segui-las? Por que gostaríamos de nadar como elas lá no fundo do mar?  

O chamado das águas

Não há mitologia ou religião no mundo que não conte histórias sobre a origem da vida na Terra. Na maioria das vezes, há referências ao “oceano primordial”, ambiente no qual nasceram as primeiras formas de vida, e à água, como apontam as simbologias que transbordam das mais variadas narrativas. Com isso, não é de se espantar que, entre as muitas figuras mitológicas ou provenientes de folclores e lendas, a sereia seja uma das que mais despertam curiosidade e atração. É como se ela pudesse nos levar de volta ao passado, colocando-nos em contato com nossas origens. Mesmo que de forma inconsciente, todos nós temos uma forte ligação com as águas. Afinal, nascemos na água: como espécie e como indivíduo – basta pensar nos meses em que ficamos mergulhados no útero aquoso do ventre de nossas mães.

Sim, todos nós já fomos sereias e tritões um dia!

Sirenas e Sereias

Aríbalo grego.

Sereias (Mermaids) e Sirenas (Sirens) não são a mesma criatura, embora muitos usem ambos os termos para indicar o mesmo ser.

A etimologia de Sirena (Siren) é incerta. Alguns estudiosos afirmam que a palavra vem do grego seirína, relacionada a seirá, que significa corda, atar, ligar. Daí o sentido de alguém que enlaça, que prende. No caso das sirenas, isso acontece por meio de seu canto mágico.

Na mitologia grega, as Sirenas eram três ninfas servidoras de Perséfone, que foi raptada por Hades. Deméter transformou-as em seres alados, metade mulher e metade pássaro, para que pudessem localizar sua filha mais facilmente. Como não a encontraram, Deméter não retirou o feitiço. Elas acabaram habitando a Ilha de Antemoessa e atraindo, com seu canto sedutor, os marinheiros que por lá passavam, fazendo-os naufragar e morrer. Por isso, diz-se que espalhavam morte e destruição. São figuras da mitologia grega que não devem ser confundidas com as Hárpias, devido à semelhança física entre as duas, como aconteceu na época helenístico-romana. As Sirenas são citadas na Odisséia, de Homero, e no mito de Jasão e os Argonautas, mas não são descritas fisicamente nessas obras. Parece que o público da época as conhecia por meio de outras narrativas míticas, onde eram descritas como seres metade mulher e metade pássaro, como surgem em certas obras de arte vasculares.

Na arte grega antiga, eram representadas como pássaros, inclusive pelo lindo canto. Tinham grandes cabeças femininas, penas, pés e pernas com escamas de aves. Depois, viraram figuras femininas com pernas de pássaros, com ou sem asas, tocando vários instrumentos musicais, como as harpas. Em alguns casos, eram representadas com barba, como seres masculinos.

Sereia em bronze. Arte Grega antiga ou Etrusca.

A palavra Sereia deriva do grego seiren. Mermaid vem do inglês antigo mere (sea) + maid (jovem mulher). São lendárias criaturas aquáticas que aparecem, desde a antiguidade, em diferentes tradições folclóricas e mitológicas do mundo, normalmente representadas como seres metade mulher e metade peixe. Podem ser confundidas com as Nereidas da mitologia grega, ninfas ou divindades aquáticas que também podem ter o corpo metade mulher e metade peixe, além de cavalgar golfinhos. Por isso, alguns estudiosos afirmam que foram elas que deram origem às sereias.

Hoje, quando se fala em sereia, pensamos logo numa mulher bonita, de cabelos longos, seios fartos e comportamento sensual. A cauda de peixe – ou de um cetáceo – finaliza a imagem sedutora dessa criatura que convidaria os humanos a atravessarem o espelho d’água e a deixarem-se levar por seu lindo e doce canto.

Como a história não se desenha de forma matemática, em algum momento, na literatura, ambas as figuras se fundiram na mesma criatura. E foi essa fusão que permitiu que suas histórias, com suas inúmeras variantes, durassem ao longo dos séculos. Ainda hoje, Sirenas e Sereias são confundidas ao seduzirem marinheiros com seu canto. Mas enquanto a Sirena é uma criatura alada vista como traiçoeira e perigosa, a Sereia é um ser aquático atraente e encantador, embora também possa provocar mortes.

Atargatis: a primeira sereia

A mitologia e a cultura mesopotâmica estão cheias de seres antropomórficos, representados em relevos, histórias e moedas. São os primeiros registros de criaturas que tinham características humanas e de peixes, como o deus da água sumério Enki, que passou a ser conhecido como Ea na Babilônia e que, mais tarde, foi chamado de Oannes pelos gregos. Era um ser humano anfíbio retratado das mais diversas maneiras.

No entanto, a figura que mais nos interessa é Atagartis, a Deusa Sereia. Sua figura anfíbia parece surgir por volta de 1000 a.C. e possui diferentes representações: peixe da cintura para baixo e mulher da cintura para cima; corpo de peixe com cabeça de mulher; corpo de mulher com a cauda de peixe. Deusa protetora e da fertilidade, possuía diferentes santuários em sua homenagem, construídos com piscinas repletas de carpas, peixe considerado sagrado.

Representação de Oannes para os gregos.

Para alguns, Atargatis é a continuação de outras deusas da Idade do Bronze, como Atirat, Anat, e Attart, conhecida pelos fenícios como Ashtart.

Atargatis (ou Ataratheh) é um nome aramaico pronunciado de várias maneiras. Primeiro, foi cultuada no norte da Síria, depois, em todo o país e na Mesopotâmia setentrional. Ganhou notoriedade na Grécia, onde chegou no final do século IV a.C. e foi chamada de Derketo ou Derceto. Os comerciantes sírios, que carregavam suas estatuetas para trazer sorte, acabaram por popularizá-la. Tornou-se importante em todo o Império Romano, passando a ser conhecida como a Deusa Síria, inclusive no Egito.

Com o tempo, certas divindades de cultos e mitologias independentes se fundiram. Atargatis foi confundida com outras deusas, como Afrodite. Foi então chamada de Deusa da Natureza e da Fertilidade, assumindo os aspectos da proteção que a água exercita.

Sereias após o século IV

Sereia em representação na França no século XIII.

Figuras de “sereias” iam aparecendo em obras de arte do mundo todo com diferentes características.

No Ocidente, a figura anfíbia ganha força contra a figura alada grega, consequência da substituição das crenças pagãs pelo Cristianismo, que enxerga essas criaturas sedutoras como perigosas e amorais, comparando-as até a prostitutas. Se fossem criaturas aladas, estariam muito perto de Deus. Então perdem suas asas, saem do paraíso celeste e são lançadas às águas, ganhando sua cauda de peixe.

Mas continuamos a ver figuras híbridas que misturam Sirenas e Sereias:

A partir do século XVI, as sereias passam a ser representadas segurando um pente e um espelho, indicando sua natureza vaidosa e sedutora. O espelho era considerado um objeto mágico atribuído a uma mulher impura, pois era útil para que contemplassem a face da morte, ou para adorar o diabo.

Bestiário de Anne, séc. XV

Mas é após o século XIX que a figura da sereia volta com força total, principalmente após a publicação do conto A Pequena Sereia, de Hans Christian Andersen, em 1837. Em 1891, Oscar Wilde publica livro O Pescador e sua Alma, sobre um pescador que se apaixona pela sereia que pescou.

Em 1947, o Weeki Wachee Springs Park, da Flórida, EUA, faz seu primeiro show de sereias: um balé sincronizado apresentado num teatro submerso. Após 1950, chegam turistas do mundo todo para ver suas sereias, que também fazem fotografias e filmagens subaquáticas. Em 1960, as japonesas vão lá para aprenderem a ser sereias. Os shows são um sucesso até hoje.

Mas é em 1984 que as sereias ganham força na cultura de massa internacional com o lançamento do filme Splash: uma sereia em minha vida. Em 1989, a Walt Disney lança o filme A Pequena Sereia, baseado no conto de Andersen. A partir daí, surgem outros livros e filmes sobre elas, no Ocidente e no Oriente. Escolas e shows de sereia crescem particularmente em todo o continente asiático, onde chamam atenção para o lixo nos mares.

Sereias na Ásia

Figuras aquáticas também aparecem em mitologias e lendas asiáticas: algumas vezes, representadas como as sereias ocidentais, outras, como seres monstruosos e assustadores.

Japão

O Japão possui um ser híbrido metade humano e metade peixe chamado Ningyo, com dedos longos, garras afiadas, escamas douradas, cabeças deformadas, chifres e dentes grandes. Sua aparência é demoníaca, e não sedutora. Suas lágrimas transformam-se em pérolas e sua carne, quando consumida, traz a juventude eterna a quem a ingeriu. Também pode cantar lindamente.

Esses seres inspiraram a confecção de esqueletos e criaturas mumificadas que pareciam restos mortais de sereias de verdade, pois não se notavam as junções entre as partes. Essas “sereias japonesas” eram apresentadas em “circos dos horrores” (freak shows) do século XIX, principalmente nos EUA e na Inglaterra. O público, já habituado com a “noiva sereia” do conto de Andersen, ficava horrorizado ao ver uma criatura cuja parte inferior do corpo era de um peixe e a parte superior tinha a cabeça e o torso de um macaco.

Índia

Lá encontramos Matsya, o avatar de Vishnu da mitologia hindu, que pode ser visto saindo da boca de um peixe ou ser descrito como metade homem e metade peixe. Não é uma criatura anfíbia como as semidivindades Naga ou Nagini, seres antropomórficos metade homem e metade serpente (ou metade dragão) que representam o “espírito da água”. Os Naga costumam ser descritos como demônios, e as Nagini como figuras sensuais, associadas à água, à fertilidade e à proteção, como as sereias ocidentais.

China

As sereias são mencionadas em algumas obras chinesas, como no Shan Hai Jing, uma compilação de geografia e mitologia chinesas do século IV a.C., que menciona vários tipos de sereia.  Podiam ter quatro pés e emitir um som semelhante ao de um bebê chorando, ou ressuscitar após a morte. Um livro escrito na Dinastia Ming (1368–1644), Sou Shen Ji, refere-se a sereias que eram excelentes artesãs que confeccionavam tecidos que nunca se molhavam. Sereias hermafroditas com pele negra, cabelos amarelos, olhos humanos, asas vermelhas e mãos e pés palmados são mencionadas no Hai Cuo Tu, livro escrito pelo biólogo Nie Huang da dinastia Qing (1644-1911). Podiam ser representadas como figuras solitárias e trágicas que sofriam ao se sacrificarem por amor. Suas lágrimas também se transformavam em pérolas.

Malásia

As sereias da Malásia, ou “Senhoras do Mar”, são chamadas de Duyung, de onde deriva a palavra dugongo, os mamíferos marinhos da ordem Sirenia que vivem na região do Indo-Pacífico. Há desenhos de dugongos gravados na Caverna Gua Tambum que provavelmente foram feitos entre 2.000 e 5.000 anos atrás. Há quem diga que inspiraram contos de marinheiros sobre sereias e sirenas, devido à  sua importância cultural e às características físicas que têm em comum.

Indonésia

As sereias indonésias são chamadas de putri duyung (putri: princesa). Muitos indonésios acreditam numa lenda que fala do poder de cura das lágrimas das sereias. Por isso, criaram o milagroso “óleo de sereia”, feito com lágrimas de dugongo coletadas em condições ritualísticas que, supostamente, ajuda as pessoas a se apaixonarem. Tanto a mitologia malasiana quanto à indonésia afirmam que “suas sereias” têm origem na deusa assíria Atagartis, que deixou a Síria chorando após sofrer por amor. Os indonésios afirmam que ela nadou até o país deles, os malaios acreditam que ela tenha nadado até o seu.

Tailândia

Podemos encontrar Suvannamaccha, a “Sereia Dourada”, na versão tailandesa do Ramayana – peça famosa na literatura indiana. Filha do rei dos demônios Tosakanth, ou Ravana, essa “princesa-sereia” se apaixona por Hanuman, um dos personagens centrais do épico. É provável que seu personagem tenha inspirado o poeta Sunthorn Phu, que criou outra “Sereia Dourada” para seu livro Phra Aphai Mani, muito popular no país desde o século XIX. É uma figura muito popular do folclore tailandês, tanto que se encontram estátuas de sereias douradas sobre casas, lojas e até em praias da região.

Filipinas

Dependendo do contexto e do lugar, as sereias filipinas são chamadas de magindara, sirena ou engkanto (do espanhol “sirena” e “encanto”). São aparições sobrenaturais ou espíritos ambientais míticos que podem aparecer sob a forma humana. Os Engkanto são um dos Bantay Tubig, os guardiões míticos da água, semelhantes às belas sereias ocidentais, embora descritos como cruéis com os humanos. Há também os assustadores siyokoy, com fendas branquiais, pele e pernas escamosas, e pés palmados como se fossem a cauda de um peixe.

Sereias Vivas & Meio Ambiente

Inspiradas nos mitos e lendas das sereias e estimuladas pelo crescimento do mercado, muitas artistas e mergulhadoras se tornam “sereias profissionais”, participando de fotos e filmagens e se apresentando em shows subaquáticos realizados em aquários, piscinas e cassinos.

 Em diversos “Festivais do Oceano”, como os do ADEX, participam de competições e mesas-redondas, tornam-se “Embaixadoras do Mar” e se engajam em ações voltadas à Conservação e à Sustentabilidade do Oceano. O mermaiding, ou o sereísmo, cresce internacionalmente, como profissão e como hobby, sendo praticado, inclusive, por crianças.

Iara & Iemanjá: as “mães d’água”do Brasil

O imaginário popular de nosso país é povoado de sereias, sobretudo como as conhecemos no Ocidente a partir da Idade Média. O universo das religiões afro-brasileiras também abriga uma grande variedade delas, mas aqui focaremos nas duas mais conhecidas: Iara, que em tupi significa “senhora das águas”, e Iemanjá, que em yorubá é “a mãe cujos filhos são peixes”.

Não existe uma explicação única sobre como apareceram por aqui, embora os estudiosos associem Iara a mitos de origem europeia e Iemanjá a mitologias de raiz africana.

Segundo Câmara Cascudo, em seu livro Geografia dos Mitos Brasileiros, antes da colonização portuguesa não havia aqui nenhuma lenda que remetesse a uma sereia ou algo parecido. E, apesar de cronistas e viajantes terem documentado, após o século XVII, diversos mitos indígenas que indicavam as “mães de todas as coisas”, uma figura como a “Mãe d’Água” – como a conhecemos hoje – só surgiu no século XVII.

Alguns dos seres que integravam o ciclo dos mitos da água indígenas eram: o Boto, que se transforma em homem ao sair da água para atrair e engravidar mulheres; a Boiuna, uma cobra preta gigantesca que vive no fundo de rios e mangues, mas pode adquirir outras formas; o Ipupiara, um monstro marinho, inimigo de índios e pescadores, que vira embarcações, afoga e mata, mas que também era representado como um homem-peixe na mitologia dos tupis que habitavam o litoral brasileiro. Há muitas variantes para cada uma dessas figuras. Diz-se, inclusive, que a Boiuna e o Ipupiara às vezes se fundem um com o outro.

Iara

Ele também acreditava que, ao adentrar a floresta amazônica, os portugueses teriam amalgamado essas criaturas da cultura indígena brasileira, sobretudo o Ipupiara, às “sereias” de seu imaginário, uma mistura das criaturas aladas gregas com as “mouras encantadas”: espíritos ou entidades fantásticas dos folclores português e galego, representadas por jovens e lindas donzelas sedutoras que apareciam cantando e penteando seus longos cabelos junto a nascentes, fontes, rios, poços ou cavernas, enquanto guardavam tesouros escondidos ou passagens para o interior da terra – o que teria favorecido o nascimento da Iara.

Há também outra versão: ela pode resultar da fusão das mesmas “sereias portuguesas” com a Boiuna, que às vezes era representada por uma mulher bonita que seduzia pescadores e ribeirinhos atraindo-os para o fundo das águas, umas vezes totalmente nua, outras, tendo metade do seu corpo na forma de um boto, ou até mesmo de um sapo.

Iara é mais conhecida na região norte do Brasil. Reza a lenda que era uma guerreira, filha de um pajé, que teria sido lançada por ele entre o Rio Negro e o Solimões após matar seus irmãos, que antes a tentaram matar. Salva pelos peixes, foi transformada em sereia numa noite de lua cheia.

Considerando a transmissão oral das muitas lendas e superstições indígenas, cada uma ganha muitas versões. Mas, curiosamente, as lendas da Iara não se diferenciam muito entre si.

E foi assim que sereias europeias, que antes habitavam os mares, passam a ocupar fundos e beiras de rios amazônicos.

Iemanjá

Embora seja amplamente conhecida em nosso país como a “Rainha do Mar”, Iemanjá começa a ser cultuada na África, entre Nigéria e Benin, como deidade da água doce. Ainda que fosse filha de Olokun, Rei do Oceano, não era vista como deusa do mar, e muito menos como sereia!

Inicialmente, as divindades iorubás eram figuras abstratas, reconhecidas por meio de máscaras, danças e objetos que levavam consigo. Só depois se tornam figuras antropomórficas, representadas através dos sacerdotes que elas possuíam.

Seu culto cresce, e ela passa a ser celebrada como “Grande Mãe Ancestral” em diversas cidades yorubás. Símbolo de fertilidade e da água, torna-se referência para temas de gravidez ou ligados ao trabalho nas lavouras que beiram os rios.

 Chega ao Brasil através da diáspora africana, que favorece a fusão de saberes e tradições de povos distantes naquele continente. Mitologias ligadas aos orixás são recriadas, inclusive devido à transmissão oral das histórias. Iemanjá passa a ser, primeiro, uma deusa de todas as águas, depois, protetora de quem trabalha com o mar ou vive perto dele.

Entre 1920 e 1924, pescadores baianos da Praia do Rio Vermelho, de Salvador, oferecem perfume e flores à “Mãe d’Água”, pedindo mais peixe em suas redes. Uma oferenda pontual se torna um verdadeiro ritual do candomblé que entra para o calendário festivo da cidade, ocupando o lugar da antiga celebração católica de Sant’Ana. Antes, devido à sua relação com a água doce, era cultuada num manancial da cidade chamado Dique do Tororó, onde acreditavam que ela residisse. Quem também nos confirma isso é Jorge Amado, em seu romance Mar Morto, publicado em 1936.

A forma de sereia parece ter vindo mais ou menos junto da figura da mulher branca que sai das águas do mar vestindo uma túnica azul. Isso se deve ao sincretismo das sereias europeias, indígenas e africanas, assim como à mistura de diversas tradições, lendas e mitos que forjaram a figura que temos hoje em nosso imaginário comum.

Em sua dissertação Deusa, Sereia, Rainha do Mar: representações artísticas de Iemanjá, Suzana Salomão nos conta que um mito de bantos angoleses, posteriormente incorporado pelos iorubanos, faz referência a sereias de mares, rios e lagos. Ela também diz que, segundo Cascudo, “essas entidades locais podem ter sido aculturadas com o mito das sereias mediterrâneas e essa aculturação pode ter sido trazida com os africanos durante a diáspora e contribuído para a associação da imagem de Iemanjá com a imagem da sereia”.

Iara e Iemanjá

Já sabemos que íamos misturando elementos de mitologias, criando novos seres imaginários, fundindo antigos ou favorecendo reencontros entre eles nas espirais do tempo e do espaço. E dentro de nossa própria cultura, na mistura de águas doces e salgadas, Iara às vezes se encontra e se confunde com Iemanjá, principalmente quando as duas são vistas sob a tradicional forma da sereia. Mas, enquanto Iara se admira vendo o próprio reflexo no espelho das águas, Iemanjá se envaidece mirando um espelho que segura nas mãos. Estão inexoravelmente ligadas aos mistérios inacessíveis das águas profundas.

As culturas e os personagens que as habitam são como as águas: deslocam-se, fundem-se, adaptam-se; contornam os obstáculos para não deixar de fluir. Nascem, morrem e renascem. Ganham novos rostos e novos corpos, assumem novas naturezas segundo o contexto em que ressurgem, de acordo com as figuras e as paisagens com os quais se relacionam. Mantêm-se vivos ao se reciclarem, ao reencarnarem em novas geografias e ao ocuparem novos e distantes calendários. Precisam do movimento para continuar a existir.

Entre ninfas, ondinas, náiades, nereides, limnátides, oceânidas e uma vastidão global de sereias e outros seres aquáticos, Iara e Iemanjá nos são próximas: falam nossa língua, maternam e protegem nosso povo, nossos mares e nossos rios. Podem nos inspirar e nos guiar pelas mãos rumo à misteriosa e vasta imensidão das Águas de todas as nossas origens.


Detalhe de Execução de Frei Caneca, de Murillo de La Greca. Coleção Murillo de La Greca, Recife

“Cavalheiros, a vida é muito curta; mas gastar em baixezas esse tempo, fora longo demais, ainda que a vida cavalgasse o ponteiro de um relógio, para extinguir-se dentro de uma hora. Viver, para pisar em reis e príncipes; morrer, mas com bravura, e eles conosco. Quanto à nossa consciência, belas sempre são as armas, se o espírito for justo.”

(“Henrique IV”, W. Shakespeare)

No palheiro virtual que é a internet, onde o passado muitas vezes se dissolve, centenas de frases de efeito, de grandes narradoras e narradores, são jogadas ao sabor das discussões e, para além de serem erroneamente identificadas, são ressignificadas constantemente. Uma delas é da trama de Henrique IV, uma das clássicas peças de William Shakespeare (1564-1616). Especificamente um diálogo de Hotspur, o “ardente”, ou Henry Percy, um jovem nobre que ataca a frivolidade dos cortesãos de Henrique IV, rei que ele apoia, mas que não hesita em confrontar as opiniões a respeito da guerra e da honra. A frase foi sendo recortada ao longo dos séculos e hoje aparece aqui e acolá para justificar a fúria dos oprimidos de todo tipo.  

Ora, o absolutamente clássico dramaturgo não viveria o suficiente para ver as ideias revolucionárias literalmente pisarem e ceifarem as cabeças de reis e príncipes no mundo europeu a partir da segunda metade do século XVII, a começar pelo Rei Charles I (1600-1649), decapitado em 1649 pelas forças da Revolução Puritana, liderada por Oliver Cromwell. Daí em diante, na dialética dos tempos históricos e no imaginário Iluminista, o tempo da revolução seria uma constante a solapar as bases do Absolutismo Monárquico e a derrubar as estruturas do Antigo Regime. Lembremos aqui da Revolução Francesa (1789-1799) e das “virtudes” do terror jacobino, guilhotinando Luís XVI e outras milhares de cabeças na revolução que mudou os termos e conceitos que designavam a subversão de uma ordem política, esconjurando os privilégios e colocando na berlinda a vontade popular. 

Porém, a essa altura, a leitora ou o leitor deve estar se perguntando qual a relação dos fatos e processos acima com a História do Brasil e com a ideia de uma certa “revolução brasileira”. O historiador atento responde: uma relação histórica e estrutural. Não foi a Europa moderna aquela a alavancar a economia de mercado que se constituiu no Capitalismo mercantil? Mesmo Capitalismo cuja acumulação primitiva se deu também em função do tráfico transatlântico de africanos escravizados, que forjaram em “costas negras” as estruturas materiais e simbólicas do Brasil Colônia e do Brasil Império. Vale dizer, foi na dialética da relação metrópole-colônia que se deu a “formação do Brasil no Atlântico Sul”, no termo/conceito de Luiz Felipe de Alencastro, ao apontar não apenas a lógica europeia, mas a relação visceral do território luso-brasílico com o continente e os povos africanos. De fato, no mesmo momento em que as ideias iluministas contestavam a tirania dos reis, o capitalismo ensejava o aumento brutal de africanos escravizados para os portos das Américas. 

Com efeito, tal é o quadro geral que envolve o imaginário de “revolução” também nos territórios portugueses, não diferindo ademais dos fluxos gerais do ideário das revoluções atlânticas. Contudo, como ponto de partida fundamental, é preciso considerar que a palavra “revolução” é polissêmica, ao mesmo tempo significa – no mínimo desde o século XVIII – “reiteração”/“repetição”, mas também “inovação”. A palavra é também um conceito, seja ele, por exemplo, astronômico (voltas dos astros ao redor do sol), seja ele político, ganhando novas derivações principalmente em função dos desdobramentos da Revolução Francesa, cujos “ecos da Marselhesa” serão expandidos e ressignificados, seja na Revolução do Haiti, em 1791 (uma revolução preta!), na Comuna de Paris, de 1871, seja na Revolução Russa, de 1917, revoluções emblemáticas que colocam em questão a própria ideia de revolução burguesa. 

Contudo, aqui o ponto crucial é como o conceito de “revolução” será tomada pelos projetos políticos em disputa nos espaços luso-brasílicos (entre 1789 e 1822) e como será disputado em função da formação do Estado Nacional brasileiro, processo que começa com a Monarquia (entre 1822-1889) e prossegue no período republicano (1889-2022). Não se trata aqui de aprofundar cada um desses complexos momentos da trajetória política brasileira, mas apontar o que vai prevalecer: a noção e ação – por parte das elites políticas vencedoras – de uma “revolução conservadora”. O que prevalece na formação do Estado Nacional brasileiro, a partir de 1822, não é a ideia de uma emancipação republicana, como reivindicavam os inconfidentes das Minas Gerais em 1789, muito menos uma revolução democrática mais popular que envolve um projeto republicano radical, emancipacionista e abolicionista, como reivindicavam os líderes da Conjuração Baiana de 1798. O que vai prevalecer é um projeto monárquico e escravocrata do centro-sul do país, centralizado no Rio de Janeiro, que não apenas mantém o tráfico e a escravização de africanos, mas reinventa a escravidão numa escala nunca antes vista. Nunca é demais lembrar que dos 12 milhões de africanos escravizados ao longo de mais de 350 anos para o continente americano, mais de 5 milhões vieram para o território que se configurará como Brasil, e mais de 40% desses 5 milhões entraram no território entre 1808 e 1856. Vale dizer que o projeto de Independência do Brasil se valeu sim do ideário liberal moderno, com constituição, congresso bicameral e toda a indumentária da justiça (burguesa), mas o fez na chave mais conservadora possível, na medida em que suas elites apostaram na escravidão, escravizaram o maior número e por mais tempo (até 1888), nas Américas, a população de origem africana. Em outras palavras, o Império do Brasil (1822-1889) foi o Império da escravidão. Lembrando mais uma vez Alencastro, a elite nacional em construção se unifica com o projeto escravocrata e, a partir dele, sequestra ilegalmente mais de 760 mil africanos livres entre 1831 e 1850, num “pacto de sequestradores”. Pacto que, à revelia de certas tábulas rasas na análise da história do Capitalismo, não via incompatibilidade entre liberalismo econômico e política da escravidão. Fomos e somos o “liberalismo escravocrata” por excelência. 

É nesse sentido que a elite nacional escravocrata constrói um Estado Nacional cuja razão de Estado é o terror, mas não aquele das virtudes jacobinas – que “pisa nas cabeças de reis e príncipes” – e sim o terror que explora, massacra e chacina pretos, pardos e indígenas. Tal é o DNA histórico e social da elite brasileira. Uma elite que, mesmo diante da República, não hesitou em reivindicar o termo/conceito “revolução” como parte de seu projeto de manutenção, nos termos de Jessé Souza, de uma ralé brasileira, sempre subalternizada e submetida aos desígnios da “revolução conservadora”. Revolução sintomaticamente reivindicada pelos militares em 1889, 1930, 1937, 1964 e em 2016-2022, tanto como golpe de Estado articulado nas altas cúpulas políticas, quanto nas redes sociais e nos bastidores, insuflando as classes médias de todo tipo e sorte a contestarem os resultados das urnas. 

Diante de tal quadro, como considerar as possibilidades de revolução no Brasil? Ora, o primeiro passo é considerar que é na dialética dos tempos históricos e na relação entre os agentes e classes que se dão as tensões e disputas que resultam em vitórias e derrotas no quadro geral das revoluções liberais e seus desdobramentos. A despeito da consagração do termo “revolução” por parte dos movimentos de esquerda (desde os jacobinos de 1789), é patente a disputa histórica do uso do termo, sobretudo por parte da elite brasileira, que logrou, na prática e nas suas diversas vitórias-massacres, garantir o uso do termo para si, sempre no intuito de garantir “ordem e progresso”.

Porém, a luta por uma revolução efetivamente libertadora é uma constante na história nacional. Narrar a História do Brasil é perceber o jogo dinâmico, violento e trágico entre elites reacionárias e acomodadoras de tensões e a tentativa permanente de uma revolução popular. Em outras palavras, é preciso narrar a “tradição dos oprimidos”, nos termos de Walter Benjamin, ou as estratégias de resistência “from below” (na perspectiva dos de baixo, dos historicamente excluídos), nos métodos do historiador Edward P. Thompson. Principalmente, e para além do eurocentrismo, reivindicar a tradição dos oprimidos no Brasil e narrar a partir da experiência de um Frei Caneca (1779-1825), que ousou desafiar os desígnios autoritários de Pedro I; de um Luís Gama (1830-1882), que desafiou os poderosos da escravidão nos tribunais; de um João Cândido (o Almirante Negro, 1880-1969), que contestou uma marinha escravocrata nas “águas da Guanabara”; de um Luís Carlos Prestes (1898-1990), o Cavaleiro da Esperança, que ousou destoar da maioria dos militares e lutar uma vida inteira pela revolução social no Brasil; de uma Patrícia Galvão, a Pagu (1910-1962), na luta pelos direitos das mulheres; de uma Laudelina de Campos Melo (1904-1991), defensora incansável dos direitos das trabalhadoras domésticas; de um Ailton Krenak (1953 – ), guerreiro incansável por um outra semântica dos povos originários na sociedade brasileira; de um Carlos Marighella (1911-1969), valente guerrilheiro urbano pela causa da liberdade. Em suma, exemplos incontestes de que outros projetos de país e de sociedade sempre estiveram no horizonte. Exemplos impressionantes de homens e mulheres que, cada um à sua maneira e inseridos na sua própria época, ousaram lutar e desafiar a implacável e criminosa elite brasileira. 

Alguns podem minimizar suas atuações, ponderar seus ganhos reais, mas suas figuras estão aí e configuram – num enorme passado que se anuncia pela frente (na frase de Millôr Fernandes) e para o futuro – uma poderosa ação, material e simbólica, da revolução brasileira que se anuncia, e ela é feminista, preta e indígena! Fizemos 200 anos, trata-se agora de vencermos nos próximos 200. Façamos! Antes que, mais uma vez, os nada aventureiros de uma nova/velha revolução conservadora o façam. Last but not least, para que a leitora ou o leitor não rotule o narrador de shakespeariano elitista (já temos muitos por aí), terminemos com os novos bardos da cultura nacional, porque Revolução no Brasil tem um nome:

“Quem samba fica
Quem não samba, camba
Chegou, salve geral da mansão dos bamba
Não se faz revolução sem um fura na mão
Sem justiça não há paz, é escravidão
Revolução no Brasil tem um nome
A postos para o seu general
Mil faces de um homem leal
A postos para o seu general
Mil faces de um homem leal
Nessa noite em São Paulo um anjo vai morrer
Por mim e por você, por ter coragem de dizer”

(Mil Faces de um Homem Leal, Marighella – Racionais MC’s)

#43MiragemCulturaLiteratura

Poesia: Sara Ramos por Natasha Felix

por Natasha Felix

12.199
(Sara Ramos)

para Carreira Comprida, 
a praia submersa 

navego desde pequena
nomes de barcos são sempre femininos 
nomes de barcos são sempre nomes de mães
mas a voadeira é sempre uma voadeira
rasa fina fatal

os prazeres: 
não resta corpo intocado pelo vento
só fala o motor 
só falam as águas

navego de voadeira desde pequena
as mães falam delas 
como falam dos homens
uma voadeira é sempre uma voadeira
tenha medo, não faça graça
não se distraia, prenda os cabelos

na pilantragem, Lázaro
esse é o jeito de te dizer adeus

(Natasha Felix)

Lázaro suas feridas são as minhas feridas
a pele descansando na pedra
mera distração
detalhe que se esquece 
a história que vamos contar não é essa
uma chaga só pode reconhecer outra chaga 
uma imagem só pode reconhecer outra imagem
no escuro
estendo minha mão esquerda em direção a Lázaro
o que alcanço não tem nome
não é Lázaro              e é feliz por isso
vai embora 
me leva junto enquanto fico
as garras polidas 
cravadas no asfalto
o sol é bom o sol é justo e queima comigo


Sara Ramos por Natasha Felix:

Enquanto peço para Lázaro me levar para esse lugar ainda sem nome, algo acontece em outro lugar. Um alerta. Imagino duas mulheres embarcando, uma delas ampara a outra pelo quadril à beira do Rio Tocantins. Lembro de Lázaro na catraia, a travessia entre Santos e Guarujá, contando as moedas. Sempre pela madrugada. Em Santos não dizemos voadeira, dizemos barquinha. Tem o mesmo fim, por isso os mesmos medos.

#43MiragemCulturaLiteratura

Poesia: Miriam Alves por Heleine Fernandes

Parto
(Miriam Alves)

Uma batida surda
dói ouvir
Viver viver
presa na gaiola
pássara
Já vi o infinito
fui constelação
Agora asteroide vagando
estrela cadente
dividi-me em duas
Dividida para não ser subtraída
fiquei inteira amolgada em cada pedaço
Chorei por que eu nascia.

cordão umbilical
(heleine fernandes)

para entrar
no mar
derramar-se

é preciso tomar um caldo
uma lapada
ser arrastada

pelo redemoinho
dos cabelos
da vulva
de mamãe

gargalhar
e chorar
como uma criança parida.


Miriam Alves por Heleine Fernandes:

Miriam Alves é uma poeta contemporânea mais velha por quem tenho muita admiração. Ela é da geração dos Cadernos Negros, assim como Conceição Evaristo, e fez parte do grupo Quilombhoje, junto a Cuti e Esmeralda Ribeiro. Conheci a poesia da Miriam através de poemas esparsos presentes em antologias de literatura negra. Sua linguagem e estilo me chamaram a atenção desde a primeira leitura, seus versos me tocaram de um jeito muito contundente, e fiquei me perguntando como podia uma poeta tão expressiva e singular não ter seus livros acessíveis. Meu sonho era ler a poesia reunida de Miriam Alves. Lancei esse desejo para o universo em meu livro “A poesia negra-feminina de Conceição Evaristo, Lívia Natália e Tatiana Nascimento” (Malê, 2020), e ele se concretizou neste ano de 2022, graças ao trabalho cuidadoso de Leonardo Gandolfi e de Marília Garcia, da editora Luna Parque, que, junto à editora Fósforo organizaram os Poemas Reunidos, de Miriam Alves. Tive o prazer de fazer a orelha desta reunião e também fazer a preparação da obra. Vou aprendendo com a Miriam como trazer a oralidade e o corpo para a escrita, assim como a tradição de saberes afro-diaspóricos, com sua mitologia, filosofia e ritmos para os versos. Miriam foge dos estereótipos criados para aprisionar a literatura negra em uma forma única, o que também busco fazer. O tema do nascimento é muito caro para mim, e, por isso, escolhi o poema “Parto”, de Miriam, que nos conduz a um percurso antes do nascimento, de uma existência mergulhada no cosmo e na natureza, para além do humano e da racionalidade heterocispatriarcal eurocentrada. Uma trilha para fertilizar futuros.

Sergio Lucena nasceu em João Pessoa, em 1963. Ingressou e abandonou os cursos de Física e Psicologia, na Universidade Federal da Paraíba. Em 1982, estudou desenho e pintura com o artista Flávio Tavares. Em 1988, o ideário do Movimento Armorial, de Ariano Suassuna, fez da cultura popular influência para os primeiros anos de sua produção. É nessa fase que começou a pintar a óleo.

Trabalhos de Sergio Lucena são capa da Amarello Miragem.

O ponto de partida de seu trabalho residia na representação de seres fantasiosos, oriundos do imaginário nordestino, no qual é possível identificar um interesse presente durante toda a sua obra: a misteriosa relação entre luz e sombra. Ao mudar-se para São Paulo, em 2003, começou a pintar deuses, seres híbridos e quimeras, que foram dando espaço à pesquisa luminosa que tem tomado conta de sua produção por quase duas décadas.

Desde então, a pintura de Lucena faz referência às paisagens do sertão, resgatadas das memórias de infância, em telas geralmente de grande formato que apresentam um horizonte a perder de vista. Como um verdadeiro convite à contemplação da imensidão, suas pinturas são construídas com acúmulo de matéria, carregando um peso de tinta que parece contradizer a leveza das pinceladas e velaturas que aplica sobre as telas.

Ao longo da carreira, participou de exposições no Brasil e no exterior. Dentre as publicações, destacam-se o catálogo raisonné (1999) e o livro Projeto Deuses (2007). Em 2012, recebeu o Prêmio Mário Pedrosa, na categoria Artista Contemporâneo, pela Associação Brasileira de Críticos de Arte.

Capas do artista Sergio Lucena.
Revista

Amarello Miragem — número 43

A Amarello Miragem inspira-se no fenômeno ótico para receber o sociólogo Jessé Souza como editor convidado e pensar a realidade do país, apresentando um panorama das principais miragens brasileiras.

Garanta a sua aqui

Miragem tem origem no vocábulo francês mirage, que provém do latim popular mirare para significar “olhar com espanto, admirar-se”. Mirar-se, em português, frente a um espelho.

As miragens se formam a partir de um fenômeno físicos chamado de refração – que nada mais é do que o desvio dos raios de luz. Ao contrário do que acreditam muitas pessoas, as miragens não são uma alucinação provocada pelo forte calor. Elas são um fenômeno ótico real que ocorre na atmosfera e que pode ser fotografado.

Fenômeno ótico esse construído em nossa memória através de uma história deturpada, violenta e torta. Forjada e interceptada de maneira que os interesses de domínio se mantivessem. Bibliotecas, indústrias, comércio, faculdades, jornais, revistas. A miragem brasileira, vista através do escudo racista, foi construída por intelectuais e perpetuada pelas elites.

Hoje, as redes sociais amplificam o papel que foi da elite até então. O algoritmo racial perpetua os interesses escravistas, e a cultura do politicamente correto isenta o racismo estrutural de ser olhado. Ao mesmo tempo, elas dão voz e empoderam nomes até então marginalizados, mudando o eixo do fenômeno ótico. Será que estou vendo uma miragem?

No pico do capitalismo em que vivemos, necessitamos nos olhar no espelho. A indústria cria subterfúgios como ferramenta de bem-estar, e nos anestesia para se apropriar de pessoas, vidas e identidades, a fim de manter a máquina girando. Tudo vira produto. Todos viramos produtos. Será que estou vendo uma miragem?

O viajante cansado e com sede já não corre mais em direção àquele Oásis tropical. O lago rodeado de palmeiras secou.

Dizem que o pior cego é aquele que não quer ver.

De uma família cristã palestina, a fotógrafa Gabriela Hasbun nasceu em 1976, na fronteira com Honduras e Guatemala, em El Salvador. Enquanto crescia, foi forçada a se deparar, e a viver, com diferentes realidades, algumas bem sofridas e outras nem tanto. Por causa da Guerra Civil de seu país, ocorrida em meados dos anos 1980, a menina foi migrando entre os Estados Unidos e El Salvador, tendo contato tanto com a miséria causada pelo conflito quanto com a calmaria relativa — “falsa”, diriam alguns — da maior potência global que, apesar de se portar olímpica diante dos problemas, também vivia as suas próprias tensões bélicas.

Com esses anos de formação tão intensos e chocantes — capazes de moldar o espírito de qualquer pessoa —, Hasbun logo desenvolveu um olhar perspicaz para as especificidades que formam cada situação, com a clara noção de que um mínimo detalhe pode mudar o panorama geral de qualquer objeto de estudo. Assim, extraindo o que pôde de um contexto atribulado, aprendeu o quão indispensável é a documentação da humanidade daqueles tão costumeiramente ignorados. Sua veia tão dada a empatias se manifesta com clareza, inclusive, quando a artista fala sobre como expandiu o seu arcabouço técnico, dizendo que “embora tenha estudado fotografia, algumas das lições mais valiosas que aprendi foram ajudando outros fotógrafos”. 

Especializada em retratos, o trabalho de Gabriela Hasbun joga luz sobre as comunidades marginalizadas e espaços inexplorados ao seu redor, declarando a plenos pulmões que, para a boa fotografia existir, nem sempre você precisa atravessar o mundo: com a devida atenção e sensibilidade, os temas podem estar na porta de casa. Sua crença no poder radical e pessoal da narrativa a levou a produzir séries que representam uma lufada de ar renovada, justamente pelas histórias pouco alardeadas que conta — já deu voz, por exemplo, para ativistas com sobrepeso, skatistas queer e pessoas do distrito de Mission em São Francisco. Ou seja, no centro de sua fotografia está a celebração das complexidades da identidade e do espírito humano.

O destaque de toda a sua produção são os seus registros de um rodeio de pessoas negras nos EUA, lançados, inclusive, em coletânea no livro The New Black West: Photographs From America’s Only Touring Black Rodeo. O importante trabalho nos convida a repensar tudo aquilo que entendemos por cowboy e, consequentemente, reconsiderar toda e qualquer verdade absoluta. Livremo-nos dos Marlboro Men e dos Johnwaynes que nos tomam a mente: por que essas figuras antiquadas seguem sendo arquétipos, fazendo com que não valorizemos, por vezes até esqueçamos, da existência dessas outras vivências? E, mais do que isso, de tão sensíveis e interessadas, as fotos de Hasbun evocam um autoquestionamento — como podemos abrir nosso leque de possibilidades, aceitações e perspectivas? Homenagear as prósperas realizações históricas dos cowboys negros e a cultura vibrante que ainda existe hoje, como faz a fotógrafa, com certeza é um começo. 

Black Cowboy Parade, de Gabriela Hasbun.

O rodeio em questão, esmiuçado com paixão pela fotógrafa, é o Bill Picket Invitational Rodeo de Oakland, o único rodeio negro em turnê no mundo. Em 2007, Hasbun participou de seu primeiro Bill Picket e rapidamente se encantou pelas majestosas exibições de esporte, estilo, cultura e orgulho. Entre visitas e mais visitas, construiu o corpo de trabalho que se apresenta no livro The New Black West, um conjunto que, ao capturar as nuances culturais e olhar profundamente para a vibração cativante daquela comunidade, vai bem além de apenas documentar.

Rodeio em Castro Valley, na California.

Sobre a experiência, ela diz: “De certa forma eu esperava que os cowboys fossem durões e atrevidos e essas pessoas eram o oposto. Elegantes e carinhosos com seus animais, a maioria fala sobre o quanto cresceu montando desde os 2 anos de idade. Ensinados pelos avós. Eles realmente quebraram os estereótipos que eu tinha sobre a aparência dos cowboys e como eles se comportavam.”

Podemos pensar no macrocosmo: no mundo, esse nosso de literalmente bilhões de vidas, cada uma delas tem uma aura própria e, mesmo num mar sem fim de respiros, não merece ser deixada de lado. Mas podemos, muito bem, ir para o relacionável microcosmo: nossa casa, nossa rua, nosso bairro, todo canto que se vê está lotado de causos, ideias, costumes, momentos, alegrias, tristezas — e, por uma questão de lógica, nenhuma, nem mesmo aquela que se apresenta com a maior banalidade, nenhuma dessas individualidades pode ser substituída com total equivalência. Essa é a magia.

Histórias para serem ouvidas e contadas não faltam. Se depender de Gabriela Hasbun, vamos ouvi-las.

Sem histórias e sem pessoas, simplesmente não há arquitetura — é dessa máxima que nascem os programas do diretor Alberto Renault e da designer Baba Vacaro. A dupla, que já é conhecida de outras parcerias, agora une forças em uma minissérie disponibilizada no YouTube. “De Casa Em Casa”, diferentemente de propostas anteriores, traz uma revolução serena e contemplativa em seu gene: cada um de seus episódios é dedicado às minúcias de somente uma casa. É a partir desse olhar mais demorado sobre detalhes e escolhas arquitetônicas, refletidas com tanta intensidade no cotidiano, que o programa perscruta a vida das pessoas que fazem aquele lar, convocando quem quer que esteja vendo a respirar fundo e a fazer com que silêncios íntimos ecoem ainda mais alto. 

Casa de João Carrascosa e Gabriela Figueiredo

No final das contas, Renault e Vacaro estão à cata de uma certa beleza, mas engana-se quem acredita que exista um conceito único e incontestável para essa ideia. Esqueça os arquétipos, largue mão do conceito único que tenta nos impor o que é ou não é bonito — a beleza que salvará o mundo é a que tem a coragem de se proclamar na superfície da subjetividade, presente no arcabouço exclusivo e pessoal de cada pessoa. “De Casa Em Casa”, então, celebra a singularidade, buscando a beleza particular, profunda e intensa que está nos olhos de cada um — no caso, que está não só nos olhos, mas também na casa de cada um. 

João Carrascosa, Marina Linhares e Vik Muniz são apenas alguns dos convidados dos primeiros seis episódios. 

E o que Alberto Renault tem a nos dizer sobre o seu “De Casa Em Casa”? Leia abaixo.  

Seu novo programa, o De Casa Em Casa, vê as casas como espaços que potencializam a experiência humana de cada um de seus moradores. Dá para dizer que essa é uma visão primordial para o seu trabalho?

Sim, vejo a casa como uma personagem e um espaço narrado pelas emoções e sentimentos do morador e/ou do arquiteto. Tento mostrar a casa como um elemento de uma dramaturgia cenográfica e afetiva. 

O processo de seleção de todos os seus programas sobre casas brasileiras sempre foi volumoso e chegou a render até um livro de fotografias Fotos Caseiras, lançado pela editora Capivara em 2022 , com imagens de residências que você visitou (muitas que acabaram não sendo usadas). Qual é o processo do novo programa?

Essa série que desenvolvi para o YouTube (junto com a Baba Vacaro), conta apenas com 6 episódios e cada um deles mostra uma casa diferentemente das séries para TV, que mostram várias casas por episódio. Quis fazer cada episódio como um pequeno filme. Selecionamos estilos e modos de vida bem distintos, cujo elo entre eles, talvez, seja o rigor estético na concepção desses lares.

“Celebrar a arte de morar”. O que isso significa para você?

A arte de morar está muito próxima da arte de viver. Aliás,“viver” e “morar” são verbos usados muitas vezes com o mesmo sentido. Podemos perfeitamente, em vez de “eu moro nessa casa”, dizer  “eu vivo nessa casa”. Com isso, quero dizer que, se morar é viver, cabe ao morador buscar e criar encantamentos na construção do seu espaço e, logo, da sua vida.  

Ao longo da vida, nosso protótipo de moradia ideal vai se alternando conforme os anos passam e as nossas necessidades/prioridades vão se transformando. A proposta do De Casa Em Casa é um reflexo do que é esse protótipo hoje para você?

Tento ver a beleza que cada um cria para si, no seu entorno guiado sempre por Dostoiévski, que dizia que “a beleza salvará o mundo”. Tanto na vida quanto nas moradias que documento, o que me interessa é a busca pela beleza que aquele morador ou arquiteto empreende na criação daquela casa. Não importa o resultado. 

Casa de Marina Linhares

Muito se fala na ideia de pessoas como lugares para aportar. O que você acha disso? 

Vejo cada pessoa como um país. Visito uma casa com a curiosidade de um viajante que chega a um país pela primeira vez. Pessoas e lugares têm aura, alma e personalidade. As casas são extensões das pessoas — elas te acolhem, abraçam, confortam. Uma casa é uma pessoa e um lugar por essência, ideal para se aportar. Não à toa, é comum referir-se à própria casa, assim como à pessoa amada, dizendo: “ela é meu porto seguro, para onde sempre quero voltar.” 

No mundo atual, em que o movimento parece cada vez mais vir ao nosso encontro, qual é a importância do respiro?

Apesar de eu não ser minimalista, minha casa tem poucos quadros e muitos espaços vazios. Essa estética me ajuda a respirar, a ver meu espaço no mundo como um respiro. E se a minha casa me traduz, gosto de pensá-la justamente como uma pausa e um pouso. 

O que esperar dos próximos episódios? 

Cada episódio é bem diferente um do outro, apesar de ser sempre o meu olhar que conduz a captação e a edição das imagens. A diferença está nas casas em si. Temos na série uma casa construída pelo próprio morador e também uma casa assinada por um arquiteto como Arthur Casas. Temos um projeto de jardim e um sobrado do século XIX, casa urbana e no campo. Ou seja, temos variedade estética embalada por histórias de vida. 

Teremos novas temporadas?

Tomara que sim! 

Foto de Niculai Constantinescu
Design de Buki Akomolafe
Alemanha/Nigéria

Sem baixar a guarda por sequer um momento, perpetuamente atenta aos movimentos socioculturais e suas evoluções — onde quer que estejam —, a holandesa Lidewij Edelkoort é considerada uma guru das tendências. Já foi eleita pela revista Time como uma das 25 pessoas mais influentes no mundo da moda e também já figurou na lista da i-D como uma das pessoas mais relevantes do design. Sua trajetória de sucesso é toda marcada pela habilidade de captar movimentos quando eles ainda estão em processo de formação, antes de atingirem a palpabilidade para serem notados por olhos menos treinados. Com sua atinada antevisão, em 1986 fundou a Trend Union, um bureau internacional de tendências de design, moda, beleza e arquitetura, que segue na ativa e atende diversos clientes, como Nissan, Coca-Cola, Gucci e Lacoste

El Sussurro, de Cecilia Paredes | Peru
Foto de B S Kameshwari
Design de Deeksha B
Índia

Aos 72 anos de idade, mostra ainda hoje que está com fôlego de sobra para seguir antenada ao que será do futuro próximo. Presentemente, é considerada uma importante ativista, defensora da mudança, e, como resultado, virou embaixadora do World Hope Forum, uma plataforma dedicada a espalhar esperança em todo o mundo por meio do design em uma paisagem pós-pandemia.

No meio disso tudo, surge o recente e ambicioso livro Proud South, organizado em parceria com a brasileira Lili Tedde, também consultora de tendências — ou, trend forecaster, se você preferir o termo mais usado tanto aqui quanto acolá —, e transformado em livro-objeto por Mariola Lopez Mariño, fundadora do estúdio de design LopezLab. A partir principalmente do estímulo visual, a obra celebra as forças criativas das regiões ao sul do planeta: moda, fotografia, estilo, arte, todo um corpo de produções contemporâneas “sulistas” que já ditam caminhos e que, daqui para frente, em especial com a benção da holandesa, ditarão ainda mais. Edelkoort e Tedde compilam com maestria talentos emergentes e estabelecidos, das origens mais distintas, de maneira tal que quem folheia o livro vê provas e mais provas de que o eixo da criatividade global de fato se modificou drasticamente.

Foto de Sandra Blow
Design de Carla Fernandez
México

Mas o que entender, exatamente, por “Sul”? De algum jeito, os temas apresentados no livro conectam talentos da América Latina e da África, assim como do Sul e do Sudeste da Ásia. Ou seja, o “Sul” sobre o qual Edelkoort tanto se debruçou é um que representa um movimento internacional de emancipação de encher os olhos, bastante condizente com a visão de desconstrução que tanto começa a crescer na pós-modernidade. O que torna as previsões do livro ainda mais interessantes é logo reconhecer nessas manifestações artístico-culturais novas realidades e abordagens: as imagens de PROUD SOUTH soam com vigor mais renovado do que o trabalho, vamos dizer, de um artista vanguardista do norte europeu, porque elas partem de vivências que muitas vezes, no mundo de ontem, não receberam a devida atenção.

Lakin Ogunbanwo | Nigéria
Foto de Travys Owen
Design de Lukhanyo Mdingi
África do Sul
Foto de Jacobus Snyman
Design de Chu Suwannapha
África do Sul

“Uma geração de criativos do Sul está se erguendo, expressando a artesania local, adotando materiais regionais, reconhecendo práticas ancestrais e cultivando valores nativos”, diz a própria Li Edelkoort. “Cada roupa tem uma alma, e cada foto sabe como capturá-la, alçando a moda a outro tipo de domínio de força totêmica e empática, sendo tanto únicos quanto universais. Esses poderes estranhos gravitam ao redor um do outro como átomos de uma bomba estética criativa, esperando para explodir no palco central da moda, capturada por estilistas talentosos e marcas inteligentes.”

Kristin-Lee Moolman | África do Sul

Entre os artistas selecionados pelo livro, temos nomes como Jackie Nickerson, Kristin-Lee Moolman e Lakin Ogunbanwo, além de ensaios que ajudam a reforçar as previsões e a esmiuçar os trabalhos que estampam o vistoso Proud South. Com mais de 400 páginas de imagens inspiradoras que nos levam em uma viagem visual deslumbrante, esse extenso estudo é um instrumento envolvente para descobrir as tendências que se firmarão entre nós nos próximos anos. 

Foto de Arka Patra | Índia
Foto de Ramiro Chaves & Dorian Ulises López
Design de Carla Fernandez
México

Pela lei da gravidade, o que pesa no norte cai no sul, certo? Disso, o Newton já sabia — e, ao que tudo indica, Lidewij Edelkoort também sabe bem.