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Existe solução para o preço dos livros?

A discussão sobre o tabelamento dos preços de livros no Brasil tem gerado debates acalorados, dividindo opiniões entre defensores e críticos. O Projeto de Lei 49/2015, conhecido como Lei Cortez, busca regular o preço dos livros no

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Sociedade

E se aprendermos a desistir?

Você já se emocionou com essa cena: diante das maiores adversidades, que variam entre vilões superpoderosos que querem dominar o mundo e questões familiares/financeiras/societárias, os protagonistas não desistem de sua missão. Se a partida está cinco a zero faltando poucos minutos para o apito final,

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Sociedade

Geração ansiedade e a crise do mundo adulto

Os Millennials e a Geração Z carregam um título que ninguém gostaria de carregar: são a geração mais ansiosa da história. Antes, a expectativa que perdurava no ar era a de que, com avanços médicos e tecnológicos, cada próxima geração se sairia mais completa, mais

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Obra de Yasmin Guimarães, artista publicada na edição Amarello Sonho. Foto de Julia Thompson.

Quem é Fabio de Souza e o que, como e por que você sonha?

Sou um artista carioca, cenógrafo, diretor de arte stylist e produtor cultural. Sou formado em comunicação social e, durante vinte anos, trabalhei como tour manager de artistas e bandas brasileiras. Quando me mudei pra São Paulo, fui selecionado para entrar na Universidade Antropófaga do Teatro Oficina como ator e cantor, e ali eu reiniciei o contato com a arte. Eu cuidava da arte dos outros, e então passei a me reconectar com a minha própria. Foi nesse momento que despertei para minhas investigações artísticas.

Fafá de Belem por Rafael Catarcione.

A minha questão com o sonho é interessante, porque percebi que eu sonho pouco, fisicamente. Sonho muito mais acordado do que dormindo, e sonhar acordado, pra mim, é como uma investigação das possibilidades de voo. Quando eu estou sendo eu mesmo, quando estou criando narrativas e possibilidades artísticas, estou sonhando. Então eu sonho pra transformar a minha existência em algo iluminado, em uma vida em que me conecto com minhas raízes, com belezas que me façam acreditar em uma vida boa.

Você fez cenografias para artistas como Fafá de Belém, Geraldo Azevedo, Rita Benneditto. Conta um pouco sobre seu processo criativo, sobre criar cenografias e figurinos tão diversos e ao mesmo tempo tão únicos?

O meu processo criativo vem de muita pesquisa e respeito a quem, pra quem ou para o quê estou criando, como uma pesquisa do real propósito. Através da arte, eu busco o encantamento, eu quero dar asas a quem vem ao encontro como um bordado de afetos, um artesanato de encontros. Eu me inspiro na natureza humana, na poesia dos sentidos, em todas as coisas do mundo. Como diz Paulinho da Viola, as coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender. Eu busco ver beleza na simplicidade. Em um mundo tão tecnológico, imerso em telas de LED, celulares e máquinas. Quero despertar sinestesias, desejos e o que é onírico em cada pessoa.

Ana Cañas canta Belchior por Iara Marinho.

O sonho, num sentido científico, costuma ser percebido como um processo inconsciente de imaginação. Porém, podemos ter sonhos conscientes também. E podemos, através da arte, propor universos mágicos e de sonhos, como suas cenografias, por exemplo. Qual é o papel do sonho no seu processo de criação?

O papel do sonho no meu processo de criação entra em um lugar de me dar asas pra que eu veja o mundo e as pessoas com os olhos livres, sem julgamento. Tudo é possível no tempo das coisas, no respeito à natureza e nesse lugar de efemeridade da vida.

Então, quando eu estou pensando numa cenografia, quando estou num processo criativo, o sonho vem muito como um aliado. Muitas vezes eu penso que, quando tenho uma caixa cênica, estou vestindo espaços, estou buscando narrativas para novos voos.

Agora pensando nos figurinos: você acha que é possível vestir um sonho? (Porque, quando vejo seu trabalho, sinto que sim)

Quando penso em figurino, eu imagino dar mãos e asas a quem estou criando. Acredito que o figurino tem um poder imenso de consagração a quem estamos vestindo. Então, procuro criar possibilidades para que a pessoa se autocoroe, para que ela se sinta forte, como um escudo. É como a pessoa fechar os olhos e ela se autoencantar. Me interessa que a pessoa se sinta absolutamente à vontade com o que ela está vestindo. Esse é um propósito. Não é o que eu penso como o melhor pra ela, eu quero que ela, nesse lugar de se vestir, se veja em outras possibilidades.

Chico Chico por Michelle Castilho.

Recentemente, você participou de um debate que pensava moda, figurino e cenografia, num caminho entre os resíduos e a criação. Mano Brown diz que “até do lixão nasce flor”. Você acha possível criar essas peças e cenografias a partir de materiais que, num primeiro olhar, poderiam ter sido descartados?

Sim, eu não apenas acho possível criar como acredito que também seja um preceito de divisão pra um mundo em que a gente vê cada vez mais a natureza dando sinais de que a gente precisa ter essa consciência na escolha. Amplificar visões de novas possibilidades de materiais e resíduos visando a sustentabilidade é de extrema importância. E ver beleza no que é visto como lixo, dar novos significados, dar importância a materiais não vistos como belos e possíveis muito me interessa. Há alguns anos, eu utilizo materiais que vão pro lixo e os transformo em arte, caixas de papelão, jornal, plástico, são matérias-primas muito interessantes. Já criei alguns cenários que foram muito especiais nesse sentido. Uma vez, no lançamento de um disco do cantor Chico Chico, me veio a ideia de criar um baobá de cinco metros de altura, todo feito de caixas de papelão. Pensando na trajetória dele, pensando na Cássia Eller e pensando nessa árvore frondosa da arte. E foi muito interessante, ficou muito bonito, aquela árvore toda feita de folhas, caixas de papelão transformadas em folhas de uma árvore frondosa. Outro cenário, que eu criei em 2023 pro cantor Geraldo Azevedo, era um arraial, me veio à cabeça uma obra do Matisse que se chama A dança, que são cinco pessoas dançando em roda. Como era um arraial, e eu fiquei pensando numa ciranda, me vieram vários artistas à cabeça. Eu transformei caixas de papelão e jornal em cinco pessoas de mais ou menos dois metros, que ficavam em cima do Geraldo e da banda, com o mesmo bailado da obra do Matisse, e essas pessoas vestidas com roupas juninas. E isso me despertou um lugar de muita consciência pelos materiais que eu estava usando, dando novas possibilidades a eles. A natureza agradece. E eu me lembro muito de um desfile, Do luxo ao lixo, do Joãosinho Trinta [oficialmente Ratos e Urubus, larguem a minha fantasia]. O carnaval é uma fonte grande de pesquisa pra mim, nele a gente vê o encantamento que se dá através de muitos materiais que são descartáveis também.

Fabio de Souza por Ana Alexadrino.
Nada é perfeito nem mesmo o céu, 2021.

Sob as inofensivas camadas de cor e traçados que compõem as paisagens produzidas pela arte ocidental, complexos emaranhados de construções simbólicas foram construídos e atualizados ao longo do tempo. Opondo-se à indomável e imponente desmesura da natureza, o gênero paisagem promove a domesticação do natural mediante sua ordenação. O enquadramento da imagem, por vezes bucólica, romântica ou mesmo voraz, pressupõe, no extraquadro, a continuação de uma beleza sublime, tornada tangível ao humano por meio de um enunciado cultural. Seja pela perspectiva renascentista, pela construção simbólica bizantina ou pela transposição fugaz modernista, tal vontade de representação refaz, pela ordem do sensível, um desejo de controle do Ocidente típico ao antropoceno. Ergue para si a máxima: “tudo fazer ver para dominar”.

Sem título, 2022.
Sem título, 2022.

Promovendo a perturbação de tais constructos visuais, a artista Yasmin Guimarães constrói paisagens que ora flutuam por horizontes instáveis e movediços, ora fazem pouco caso de uma verossimilhança com o natural. Mais interessada no aspecto fenomenológico da impressão retiniana da cor em um relevo imaginário, Yasmin faz da dureza da luz tropical o tônus de sua pintura. Refletindo sobre as cores que banham os trópicos em que vive e por onde habitam suas primeiras lembranças de paisagem, a paulistana substitui os tons alaranjados e quentes por uma paleta de cores fria, e assim estabelece com o espectador um encontro honesto, indispensável para a sua obra. Indispensável, sim, pois qualquer imposição de uma outra imagem referencial que se sobreponha às suas telas é um contratempo. É preciso aceitar o tom despretensioso, quase inocente, da cena para se deixar conduzir pela leveza de suas pinceladas.

Vento, 2021.

Das maneiras com as quais Yasmin tece novos horizontes, há três procedimentos que eu gostaria de explorar neste ensaio crítico, pois não denotam necessariamente fases de sua jovem produção pictórica ou escolhas conscientes, mas modos de encarar o vazio que podem ou não coexistir em uma mesma obra. Na primeira delas, a cena se constrói por camadas de tintas que adensam a tela em gradações que variam sutilmente entre tons. Formam uma espécie de nevoeiro cujos movimentos de cor circulam pela superfície em ritmos por vezes serenos (quando funcionam como fundo ou como objeto de reflexão), por vezes enérgicos (ao serem delimitados por bordas acachapantes). Nessas ações, a artista contempla o horizonte pelo acúmulo de sensações retinianas que apreendem, como metonímia, a parte pelo todo — a impressão de um conjunto de cores em tênue variação para aludir à elaboração de uma cena. Cena-paisagem, decerto, mas apenas ancorada à vaga lembrança subjetiva daquele que a vê, pois nenhuma das telas carrega, nem em seu título, nem nas anedotas de sua criadora, a referência a um externo.

Sem título, 2024.

Em outro gesto, Yasmin representa uma divagação poética das qualidades imateriais da natureza por meio de um trabalho de subtração. Nessas pinturas, um certo pontilhismo solto é utilizado, de modo a criar rastros de cor que ora se concentram em partes da cena, ora deslizam pela superfície, podendo ou não extrapolar os limites da tela. Em pontos de cor, raramente sobrepostos de maneira direta, a artista ambiciona representar o vento, a fina camada de cor que recobre as bordas de montanhas e vales, gotículas de chuva ou até formações de nuvens — estas últimas feitas em gestos rápidos de tinta molhada ou em fricções do pincel encharcado em óleo quase seco. A coreografia das partículas varre a pintura de forma enérgica, condensando fenômenos naturais complexos em zonas de cor que fluem pelo espaço pictórico. Dão a ver o fundo cru do suporte, geralmente em linho de cores variáveis, sobre o qual Yasmin propõe uma interação entre a fibra vegetal e os motivos de suas cenas.

Beira do mar, 2022.

Há, ainda, um terceiro procedimento da artista, que, não contente com a dureza do linho, suspende suas pinceladas em delicadas tramas de voil que exibem o seu próprio chassi. Aqui, a construção simbólica da cena como paisagem se desconstrói em alegres e rápidos traços de tons pastel, desvelando àquele que vê o intrínseco artifício da ilusão. Curiosa dicotomia, já que faz desmantelar a qualidade ilusória oriunda de uma tradição pictórica realista comum ao gênero de paisagem, tornando-o opaco como materialidade e enunciado cultural mediante o uso de um anteparo translúcido que revela a sua estrutura. É em um gesto tão sutil e repleto de beleza que, com ele, Yasmin atesta não se atrelar a uma herança ocidental que buscava o domínio do seu entorno pela apreensão visual do mundo, mas em sua experiência estética sensível. Tão modesto quanto espirituoso, o óleo se despe de sua seriedade e flui como o vento, embarcando na onda de sua criadora.

Sem título, 2024.

Nesses gestos, a artista revela, pouco a pouco, que seu interesse pela matéria das coisas que envolvem o mundo é menor do que pelas suas lacunas e bordas. Atraída pelo vazio, suas elaborações pictóricas parecem mais afeitas à construção da natureza sob um cânone visual oriental que, sob a influência do taoísmo, reflete sobre o entorno com a representação da vitalidade das formas e seu movimento rítmico demarcado pelo contorno do pincel, na busca por abstrações que sugiram o extrafísico. A criação surge como possibilidade de revelar o vazio. Contrasta, assim, com os ideais ocidentais, cuja perseguição por uma forma plástica orgânica ainda retém vestígios em nossa maneira de vivenciar o mundo, tanto na pintura como no regime de imagens técnicas, em um completo horror ao vazio. Em sua prática, Yasmin transforma a árdua tarefa diante do vazio em regozijo vital. Amiúde, suas composições mais espirituosas são aquelas em que os lampejos de tinta encontram campo livre para navegar, deleitando-se na fluidez eterna que revolve a placidez.

— Texto originalmente publicado para a exposição da artista na galeria Quadra.

Far above the Moon
The planet Earth is blue
And there’s nothing I can do

— David Bowie

Na ocasião da morte de David Bowie, um artigo publicado na revista Frieze direcionava ao público a seguinte pergunta: “Você se lembra de quando começou a ler?”. Tal indagação, no entanto, não se referia aos processos de pura alfabetização ou letramento: “Quando você começou a ler o mundo ao seu redor? Quando um objeto ganhou determinada forma?”. O texto, inebriado de certo ethos adolescente, questiona ainda em que momentos decidimos nos vestir de determinada maneira ou quando começamos a entender a importância de emoções evocadas pelo timbre de determinada canção, que cala fundo e evoca memórias?

No artigo Hang on to Yourself, o crítico estadunidense Dan Fox dá pistas de uma função alternativa para a cultura pop no subtítulo de seu texto: David Bowie as art school. Nas suas especulações, Fox continua a imaginar que tal função, que poderia ter sido cumprida por um amigo, por um professor ou pelo irmão mais velho, que lhe ensinou, quando adolescente, como farejar novas ideias. Ou então, como exemplifica o autor, tal função pode ter sido cumprida por uma nota enigmática impressa na contracapa de um álbum de David Bowie. Numa interpretação pessoal, especulo que o autor esteja se lembrando de certo sentimento inaugural de identificação e pertencimento que sentimos ao ouvir a rebeldia alheia: uma ideia de exorbitância, de não caber no mundo. Se tal sentimento de desadequação é comum às adolescências, não se trata de exagero imaginar que elas se revelam por mais tempo nas biografias de pessoas que não se adequam à cisheteronormatividade e aos paradigmas do patriarcado.

I Am Not The Man You Think I Am, título escolhido por Douglas de Souza para sua mostra na galeria Cavalo, bebe da nutritiva fonte do pop — da indústria cultural de massa ao underground e suas subculturas — para citar uma determinada canção do grupo The Smiths: Pretty Girls Make Graves. Na expressão idiomática da língua inglesa que dá título à música e que remonta ao século XIX, somos alertados dos possíveis perigos que residem no belo. Ela é geralmente interpretada como uma observação irônica sobre como a beleza pode ser uma maldição. Na exposição, no entanto, não somos chamados pelo título da canção apenas — pelo perigo da beleza —, mas por um trecho que nos lembra da falência de ideias pré-concebidas. Somos alertados pelo artista que as imagens que se revelam à primeira mirada merecem de nós, espectadores, uma demora, quiçá uma dupla leitura. Em outras ocasiões, o trabalho do artista já foi descrito e interpretado à luz de uma perspectiva queer — com um feliz recurso poético, o texto trazia a ideia de um “verniz bicha” presente nas obras de Douglas de Souza. Para todos os interessados em decodificar por quais desventuras vemos tais objetos representados nas telas, será preciso debruçarmo-nos sobre seus símbolos e signos.

Se lidas, tais informações jogam justamente com uma ideia de engano: o cavalo, o cisne, o veado e o galo. Não se tratam de animais que vemos representados nas telas, mas imagens enquanto ideias, códigos culturais. Entre bibelôs e insígnias da indústria automobilística, sobram objetos de fetiche. Do alto das estantes, guardados com zelo, ou na ponta da lataria de nossas máquinas de velocidade, tais imagens expõem seus poderes simbólicos — e desconfio que é do lidar com esse arcabouço de imagens que surge o desejo do artista em exercitar a sua representação. As imagens revelam-se sedutoras, mas não só: repletas de brilho, além de serem a oportunidade para o exercício técnico de representação da luz que se revela na superfície de um objeto, também é a oportunidade de mostrar, na superfície desses veadinhos, garanhões, cocks e cisnes de pescoços fálicos com gestos graciosos, todas as possibilidades de mundo refletidas. “O principal fato do século XX é o conceito de possibilidade ilimitada.” J. G Ballard, autor dessa frase, escreveu, nos anos 1970, uma obra paradigmática, Crash!, romance que pretendia trazer carros numa simbiose pornográfica aos corpos humanos. “As opções multiplicam-se à nossa volta, vivemos num mundo quase infantil onde qualquer procura, qualquer possibilidade, seja de estilos de vida, viagens, papéis sexuais e identidades, pode ser satisfeita instantaneamente.”

Douglas de Souza mescla, no seu imaginário, uma estética da cultura de massa com cores efervescentes, quentes, pulsantes, exuberantes, sedutoras com cinzas metálicos e refletivos, cromados brilhosos que, por vezes, contrastam com tons ligados culturalmente à doçura, aos estereótipos de um feminino domesticado por tons pastel, que fogem às tonalidades vibrantes, encantados por uma esfera da infantilização. É em tal jogo de justaposições e contrastes que os Raging Stallions do pornô encontram os laços de fita do barroco; que o cisne de Leda é representado sobre a casca protetora de um objeto como o capacete de motociclista; que a superfície de proteção torna-se suporte para o adorno, o artifício, a bichice; que o animal torna-se ponta de lança, signo de potência, estereótipo de masculinidade, medida de força. No vocabulário estético de Douglas de Souza, os bibelôs e as insígnias de escuderia parecem ser profanados igualmente, submetidos à categoria de bric-à-brac de uma sociedade encharcada no desejo de consumir e construir identificações, duplos e pertencimentos. O pintor parece utilizar, com certa ironia, sua capacidade técnica de reproduzir imagens do mundo, como se ousasse construir com tintas de encantamento realidades mais ásperas. Se é bem verdade que tal metafórico verniz bicha está sobre as imagens que pinta, é preciso que atentemos para o fato de que ele não faz isso apenas no entorno de imagens de um pretenso vocabulário queer — ele toma para si, para suas tintas e seu pincel, a possibilidade de retomar motivos da pintura tradicional. Entre a natureza morta e o still life, sustenta-se a tentativa sempre falha — e, justamente por isso, subversiva — de estagnar o tempo das coisas e fazê-las imagem. Como diz o título deste texto, briefly gorgeous.

* Texto originalmente publicado para a exposição do artista na galeria Cavalo.

** Título em livre apropriação do romance homônimo de Ocean Vuong.

#49SonhoAmarello Visita

Amarello Visita: Bate-bolas

Fotos de Gleeson Paulino

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Marissol Mwaba é uma artista brasileira de origem congolesa. Cantora, compositora, multi-instrumentista e estudante de astrofísica, tem livro lançado e vem trilhando uma jornada intergaláctica.

Você estudou astrofísica na Universidade Federal de Sergipe e depois ganhou uma bolsa para estudar física na Sorbonne, em Paris. Paralelamente a isso, estudava no observatório da capital francesa. Tem até um artigo publicado na revista Astronomy & Astrophysics. Como foi isso?

Mandei e-mail pra uma professora, ela me chamou pra conversar, e falei que queria trabalhar com a parte de galáxia, que eu gostei muito dela e tal. E ela já conhecia o Brasil. Aí ela falou assim: “no período que você pode estagiar, eu vou estar de férias, então só vou ter uma semana pra te explicar como fazer, e é um trabalho muito complicado, você provavelmente não vai conseguir terminar, porque é um volume enorme de coisas, eu não sei até que ponto serve você fazer esse estágio”. Eu falei: “mesmo assim, eu quero”. Aí eu fui lá pra fazer a catalogação de galáxias. Ela estava estudando um aglomerado de galáxias chamado Aglomerado de Ofiúco. Ele é interessante, porque é muito grande e muito velho. Então, saber sobre ele significa saber como as galáxias interagem. Só que tem um problema: ele fica num lugar que a gente, observando aqui da Terra, tem dificuldade de ver. Estou tentando simplificar.

Tudo bem, o que eu não entender, te falo.

A Via Láctea tem muitas estrelas, então alguns lugares pra onde a gente olha, tudo aquilo que está aqui vai fazer um ruído nessa imagem. É como tentar ver o pôr do sol em São Paulo com um monte de prédio na frente. Esse aglomerado está numa posição que é muito difícil de ver. Então o que ela estava fazendo junto com outros pesquisadores? Estavam tentando resolver essa questão da visibilidade, só que por mais “prédios” que a gente conseguisse eliminar com a tecnologia, ainda assim precisava de alguém pra pegar galáxia por galáxia e fazer uma limpeza dessa imagem e entender também se aquilo era realmente uma galáxia ou se aquilo era uma estrela da Via Láctea. Eu cataloguei mais de duas mil e quinhentas galáxias. Ela ficou chocada. E eu ainda terminei antes dos dois meses.

E ela achando que você nem ia dar conta, não é?

M — Ela achou que eu não ia nem chegar na metade. Aí ela falou assim: “olha, eu vou ter que te colocar como coautora do artigo, porque o catálogo é seu”. E assim esse artigo saiu na revista Astronomy & Astrophysics.

Que experiência incrível!

Agora, voltando à vida pessoal, pra poder ter essa perspectiva de fazer o curso no observatório de novo, e dessa vez conseguir me formar, e isso coincidir com a minha formação na física, aí eu vou ter um diploma na astronomia e um diploma na física… Enfim, ter um outro lugar de construção um pouco mais firmado, porque é muito difícil trabalhar com música. E eu sinto que o trabalho na arte é muito mais sobre como você para de depender da arte do que sobre você viver de arte, entende? Eu tenho muito essa sensação. Eu fico analisando carreiras, e todas as carreiras longevas e bem-sucedidas, no sentido de felicidade, estabilidade, prática do artista, qualidade de vida… Essas carreiras são sempre carreiras que não têm a dependência contínua do que o artista está fazendo na arte, tem outras fontes que se criam a partir daquele lugar. Porque senão a gente não consegue, não dá, não tem como manter uma coisa assim, que é passageiro. A cultura se transforma. Quantas pessoas eram relevantes em algum momento e agora não são mais? E isso acontece em todas as escalas. O legado fica, a vida continua, a cena se transforma. E se a gente quer continuar tendo condições de deixar o nosso legado, continuar criando e tendo felicidade em fazer isso, a gente precisa ter a renda vindo de um lugar que nos possibilite ter alegria de viver, porque senão a gente não vai ter.

Onde e como acontece a infância da Marisol? 

A infância… Nossa, lembro de muita coisa. Eu lembro de ter uma imaginação muito fértil, viver praticamente um mundo dentro da minha cabeça. De ser musical desde pequena, porque a primeira música que eu fiz, eu tinha seis anos. Desde então, compositora. Eu aprendi a andar, a falar e a cantar, e a criar, veio junto com as coisas básicas que eu aprendi. Quando perguntavam o que eu ia ser quando crescer, eu não falava cantora, mas isso era uma coisa que parecia que fazia parte de mim. Também sempre muito móvel, sempre me mudei bastante, então a infância da Marissol aconteceu em todo lugar.

Você morou em muitos lugares.

É, em muitos lugares, então eu estava sempre me deparando com uma nova realidade e, ao mesmo tempo, também sempre me despedindo de alguma realidade, amigos e tudo. Nisso, eu tive que encontrar um lar dentro de mim já muito cedo. E acho que foi assim que eu aprendi a guardar as coisas na escrita. A preciosidade de guardar os momentos na escrita começa muito nova pra mim, desde pequenininha. Eu lembro que eu tinha um caderninho onde eu ficava rabiscando, como se eu estivesse escrevendo muitas coisas. Depois foram se tornando cadernos onde eu realmente escrevia as coisas da minha vida. E acho que tem a ver com isso, com encontrar refúgio na minha companhia, porque eu tenho muitos irmãos, mas eu sou caçula, então todo mundo foi crescendo e indo embora, e eu fiquei em casa. De repente, eu não tinha mais meus irmãos ali. Na memória de infância, às vezes eu vejo mais os meus irmãos do que os meus pais, porque eles eram muito presentes, e, na nossa cultura, o irmão mais velho tem esse lugar de cuidado e de orientação do irmão mais novo, e até de autoridade sobre o irmão mais novo. Eu nunca morei mais de cinco anos numa cidade, então é isso, sempre muita itinerância. As músicas sempre tiveram um poder muito grande sobre mim. Em muitos momentos, eu considero que a minha vida foi preservada pela música. E como pessoa que cria, eu sempre sonhei um dia ter a minha música disponível pra felicidade e bem-estar ou acolhimento de alguém, da mesma forma que eu tinha tantas músicas disponíveis pra minha felicidade, pro meu bem-estar, pra um abraço. Então esse é um grande sonho. Assim, poder pegar na mão de quem eu nem conheço. Acho que é isso. A minha mãe sempre falava assim: “se veio uma música, para tudo e faz a música”. Ela me deixava faltar aula, deixava me atrasar.

Seu primeiro disco foi lançado em 2015?

Foi, lancei em 2015. Eu tenho muita sorte. Sabe, essa coisa de ser uma pessoa preta, e no Brasil ainda, só que ainda africana, e brasileira, ainda mulher… A fila de coisas que me botam pra trás é bem grande.

É imensa.

Não sou herdeira de nada, não tenho um tio chato pra onde ir. Se estou no Brasil, é nós ali, meus pais e meus irmãos. Então o legado da gente, e nosso amparo, vem muito do presente. Eu tive a sorte de ter dois irmãos mais velhos também na música, e isso me catapultou de um jeito que as pessoas brancas têm por outras vias, pela via do dinheiro, pela via dos contatos, pela via da própria abertura que já tem. Aí teve coisas que eu não precisei passar, porque meus irmãos passaram. Pra fazer a primeira apresentação, as primeiras experiências artísticas foram vivenciadas muito junto com meus irmãos. A preparação para o primeiro álbum foi um período que eu estava muito atribulada com a universidade. Estava em projeto na astrofísica e estava prestes a sair pro intercâmbio, então eu nem tinha condições. E eu era cantora no coro, bolsista no coro de música erudita da Universidade Federal de Sergipe. Tinha acabado de passar por um processo e estava com um problema vocal, e, ao mesmo tempo que estava com problema vocal, eu não podia sair, porque eu precisava da bolsa. Eu tinha sangramento vocal em todos os ensaios. E eu gravei assim. O sabor de muitas faixas do Luz-A-zul é de sangue. A gravação desse álbum foi um milagre da voz. E a partir desse problema que eu comecei mesmo a fazer aula de canto pra canto erudito, comecei a fazer tratamento com um grupo de fonoaudiólogos da universidade, consegui esse tratamento gratuito, mas foi bem desafiador. O desafio que eu tive com esse álbum foi de conseguir cantar e poder manejar com os afazeres que eu tinha pra intercâmbio e na universidade. E como foi importante poder ter ali o François [Muleka] cuidando de tudo. O trabalho do álbum foi o primeiro mais profundo que eu fiz com Alice Assal, que é diretora de arte, e que trabalha comigo até hoje. Ela traz uma coisa interessante, que é a tradução da história da minha música e trajetória através da imagem.

Interessante mesmo, porque você consegue ter uma cartografia da própria jornada.

Total, bem isso mesmo. Ver essa história sendo contada assim é como se eu tivesse registro de muita coisa da minha trajetória. Bom, o Luz-A-zul foi gravado desse jeito, então o meu compromisso era manejar as coisas e conseguir gravar, porque já tinha o Fran cuidando de tudo. Aí eu vim pra França ainda gravando o álbum, uma das faixas eu tive que gravar aqui, e fiz o lançamento aqui também. Depois, quando voltei pro Brasil, fiz um show de lançamento em Floripa. Mas é isso, primeiro álbum é aquela coisa, são músicas que você escolheu de um monte de músicas da vida inteira. Foi bem difícil escolher quais eram as músicas, uma até entrou de última hora, porque eu fiz na semana. Falei: “nossa, quero que ela entre”, aí gravei, e como eu componho muito, quando eu lancei esse álbum, já estava com outro pronto. Eu só fiz o show de lançamento. Depois eu nunca mais fiz esse show.

E a escola de música Mwaba Canto e Expressão, quando é criada?

A escola nasceu em Floripa, no ano de 2018, da necessidade de sobrevivência. Acho que as coisas que eu amo, elas vão entrando na minha vida e fazendo parte de todas as coisas juntas. Astrofísica faz parte da minha música, eu não consigo ver minha trajetória na música sem a minha trajetória na astrofísica. E vice-versa também, não ia achar a astrofísica tão bonita e ter saco pra toda aquela matemática se não fosse a música. Depois, futuramente, comecei a achar bonito também o foco em matemática. Acho que a minha poesia me permite ter esse olhar poético pra ciência, ao mesmo tempo que a ciência me permite ter um olhar físico, um olhar existencial na música também. A dança também entra nesse lugar. Eu faço dança do ventre desde 2013. É uma coisa que me deu sempre prazer. Quando voltei pro Brasil, eu não tinha mais como fazer dança do ventre. Eu não tinha mais como fazer muita coisa, estava sem dinheiro, estava doente. Aí eu conheci a Lídia Pereira, que é uma grande amiga, e ela viu como eu estava. Ela falou “cara, vem dançar” e me chamou pra fazer aula com ela. Então eu fazia aula, ela me carregava pra todas as aulas que ela dava, às vezes eu até ficava na casa dela, dormia na casa dela, ia pra cima e pra baixo, e ela foi a minha primeira professora negra e uma das poucas pessoas negras da dança do ventre. Hoje em dia, a gente vê até mais, mas antes não tinha referência negra nenhuma. Era muito foda ver ela dançando, porque, na dança do ventre, tem muito da moda que dita ali também. Na época do liso, era aquela coisa, joga o cabelo, cabelo liso. Então ter ela ali foi incrível. E ela me adotou mesmo, e nisso a gente também fez uma amizade muito bonita. Hoje ela é tipo uma irmã pra mim, e também trabalha comigo na produção. Aí ela um dia falou pra mim: “por que você não dá aula de canto?” Eu falei: “nossa, será que eu posso dar aula de canto? Não sou capaz de dar aula de canto”. Ficava me sentindo assim, “não tenho capacidade de dar aula de canto”. Aí ela falou: “olha, eu comecei a dar aula de dança dando aula. Eu também não achava que ia conseguir, mas, quando eu comecei a dar aula, vi que conseguia”. Ela botou uma sementinha na minha cabeça a partir da dança. Aí veio pro Brasil uma cantora estadunidense chamada Jessica Cohen, e a gente fez amizade. Ela é muito legal, e ela teve estudo formal de música. Isso também me travava. A gente conversou. Ela ficou uns dias na minha casa, então a gente pode se conhecer bem mais e tal, até que, no final, ela falou isso, que eu tinha total capacidade pra dar aula de canto e que eu podia estudar e fazer isso. O fato dela ter falado me fez acreditar. Então eu comecei a estudar, e um tempo depois eu tomei coragem e divulguei as aulas. Eu pensei: seja o que Deus quiser. Aí comecei a dar aula. E foi muito bonito poder me conectar com outros corações artistas, em outros momentos, em outras intenções com a música, em outras realidades, e nisso fui identificando uma missão também nesse lugar de partilha. Então, aos poucos, foi se estruturando mais esse formato de escola em torno da ideia mesmo de ser um lugar onde a gente estuda a partir do que é ser um artista independente. Eu continuei estudando cada vez mais, hoje já tenho várias certificações em pedagogia vocal, pra poder atender meus estudantes. Fui estudar teoria musical, fui estudar coisas que eu precisava, da parte mais formal da música, pra ter cada vez mais capacidade de atender. Inclusive, comecei a atender também profissionais da música, que estavam com carreiras estruturadas. Então dar aula me puxa bastante pra parte do estudo, da formação, do aprimoramento. Mas dar aula também é uma coisa que me alimenta no lugar da inspiração. Porque sentir o frescor que tem a música e a arte no coração dos estudantes alimenta algo dentro de mim. É muito mais do que ficar convivendo com um monte de profissionais.

Recentemente você teve um lançamento muito especial. Conta um pouco como foi a produção de Frase única.

Sim. Essa obra é um milagre. É uma música que eu já cantava há muito tempo, uma música minha, que eu compus há bastante tempo, mas em 2023, participei das atividades da diversidade, foi a Maratona da Diversidade, e teve várias falas, palestras e mesas. E aí a professora Letícia Carolina fez uma fala.

Isso foi em São Paulo?

Foi em São Paulo. Ela é professora, doutora, negra, trans, enfim. Ela escreveu um livro e é ativista da diversidade. Eu estava passando por um momento de muitas dores, muitas questões, e ela falando sobre a sua conquista do doutorado. Na hora que ela foi falando, eu fui anotando no bloco de notas. Ela diz assim: “precisamos transmutar a dor pra ir além, mas o que me trouxe até aqui não foi a dor, foi o sonho, precisamos de inspiração pra sonhar”. Eu fiquei refletindo, e vejo também o tanto que o sonho já me moveu. Essa reflexão me fez ter certeza de que eu queria lançar Frase única, eu queria fazer uma versão bem simples, tipo voz e piano. Aí o Zé Manoel, que eu conheci, já ouvia falar muito dele, mas quando eu conheci fiquei muito encantada pela pessoa, e depois eu vi ele cantando e tocando em Salvador. E eu fiquei assim, tipo… Ele toca com uma sensibilidade muito grande, e eu sou muito admiradora das pessoas que se exibem sem perder a sensibilidade. Enfim. Uma vez, do nada, eu ouvi a voz do Chico [César] cantando o trecho “se encontrar, jamais deixarei”. Eu pensei: “poxa, nunca tive coragem de chamar o Chico pra nada”. Escuto ele desde muito pequena, desde os meus sete, oito anos, e aquela história toda, eu sempre falo que não sabia que ele era brasileiro, a gente ouvia pra caramba sem saber, e eu ficava lá, toda encantada

Como o Chico tem uma importância, como ele atravessa gerações com sua autenticidade e sensibilidade.

As palavras dele… Acho que é isso, ele é muito lúdico, as palavras que ele vai inventando e falando, e abre um portalzão de permissões. Quando eu tinha uns 14 anos eu fui pela primeira vez em um show dele, em Jequié, “meu Deus do céu, eu vi ao vivo Chico César!”. E aí, anos depois, ele me chamou pra gravar as vozes, junto com François, no álbum dele, O amor é um ato revolucionário. E aí já foi a realização de um grande sonho ver o Chico no estúdio. Ele me hospedou, ele apadrinhou a minha ida pra São Paulo. Eu fiquei muitas vezes na casa dele, muitas vezes ele viajava e deixava a chave comigo, e eu podia ficar lá, ficava à vontade. Mas claro que eu nunca ia ter coragem de pedir pra ele cantar uma coisa comigo, porque é reverência. E quando me veio a voz dele cantando, na intuição, eu pensei: preciso falar. Aí eu mandei a mensagem pra ele, mandei a música e ele topou. A gente teve muitas conversas. E eu sei que ele não faz nada que ele não queira, não faz só porque conhece essa pessoa, ele faz se ele está a fim de fazer. Então, pra mim, sabendo desse background também, foi muito importante. Nessa coisa de eu sempre ter um caderno, agora também o bloco de notas, no dia que ele respondeu falando que topava, eu escrevi no meu bloco de notas: “7 de junho de 2023. No dia de hoje, Chico César aceitou gravar uma composição minha comigo. Um milhão de exclamações. Estou radiante. Às 21h35h”. E ele falou que a música era belíssima, agradeceu por eu ter pensado nele. Cara, que pessoa. Nossa, fico emocionada só de falar. Aí eu convidei o Zé Manoel pra gravar com a gente o piano desse encontro, fechando o trio de possibilidades.

Trinca de ases.

É, trinca de ases.

#49SonhoSociedade

O fim do fim da História

1.

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#49SonhoSociedade

De negro banzo a negros sonhos

Sonho meu, sonho meu
Vai buscar quem mora longe
Sonho meu
Vai mostrar esta saudade
Sonho meu
Com a sua liberdade
Sonho meu
No meu céu a estrela-guia se perdeu
A madrugada fria só me traz melancolia
Sonho meu

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#49SonhoSociedade

A difícil — e maravilhosa — tarefa de sonhar o Brasil

Podemos falar abertamente? A sociedade brasileira está rasgada por dentro e por fora. Temos dificuldade de vislumbrar um futuro conjunto. Não almejamos um futuro compartilhado. O coletivo deixou de ser âmbito de diálogo, de convivência, de aspirações comuns. Tornou-se um problema, um dilema, um enigma. Os outros

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Na efervescência do Carnaval do Rio de Janeiro, surge uma figura marcante: os bate-bolas, também conhecidos como clóvis, pierrots ou clowns. Originários dos subúrbios ou das periferias cariocas, principalmente nas Zonas Norte, Oeste e Baixada Fluminense, esses foliões mascarados carregam consigo uma rica tradição, que se entrelaça com a história da própria festa.

Acredita-se que suas raízes remontam aos colonizadores portugueses e à Folia de Reis, mas o nome “clóvis” teria surgido no início do século XX, inspirado na palavra inglesa “clown”, que significa “palhaço”. Uma interpretação popular teria transformado o termo em um apelido para os foliões fantasiados.

Vestidos com fantasias vibrantes e máscaras que mesclam o cômico com o macabro, os bate-bolas se organizam em turmas, dedicando-se durante todo o ano à criação de seus trajes e à organização de eventos carnavalescos. Fogos de artifício, festas e churrascos animam a comunidade, ao som de hinos, marchinhas e funks próprios de cada grupo.

A diversidade marca a presença dos bate-bolas. Seus estilos variam, desde o clássico “bola e bandeira” até o criativo “evolution’, passando por “leque e sombrinha”, “bicho e sombrinha”, “pirulito” e “de capa”. As fantasias também apresentam diferenças regionais: na Zona Oeste, predominam os modelos “bujão”, com mais tecido, enquanto na Zona Norte a criatividade impera.

Os nomes das turmas refletem essa multiplicidade, carregando sentimentos, atitudes, personagens fictícios ou até mesmo o barulho e a desordem que acompanham a folia. Humildade, Emoção, Explosão, Alegria, Bom Gosto, Tirania e Fascinação são alguns exemplos. Na Zona Oeste, nomes de personagens como Mario, Urtigão e Kuka se destacam, enquanto turmas de “bola e bandeira” homenageiam a agitação com títulos como Tropa Embrazada, Zorra Total e Barulho.

Mais do que simples foliões, os bate-bolas representam a cultura popular carioca em sua essência. Sua tradição, preservada ao longo de décadas, foi reconhecida em 2012, quando os grupos foram declarados Patrimônio Cultural Carioca. Hoje, os bate-bolas continuam a encantar e desafiar estereótipos, colorindo o Carnaval com a alegria, a irreverência e a vibração única do subúrbio carioca.

Convidamos Mayara Assis, pesquisadora e brincante da cultura bate-bola, para um breve papo-vivência:

Muitos trabalhos que discutem ou apresentam a cultura bate-bola o fazem por um viés estético visual. Porém, seu trabalho extravasa essa fronteira e leva o bate-bola para uma dimensão do corpo. Que corpo é esse? 

Esse corpo é do medo ou respeito, aquele que coloca em dúvida os discursos da moralidade. E esse corpo, que está na dimensão da cultura dos bate-bolas, também, mas está em outros lugares, e é aí que a gente vai chegar. Porque, na minha perspectiva, eu não pretendo somente estar dentro, inserindo a minha pesquisa na cultura dos bate-bolas, se é um lugar pelo qual eu passo para ir de encontro. É ali que eu digo: existe esse corpo estanque, ele se reproduz aqui também. Que é esse corpo que, ao passar pela rua, ao entrar numa sala, parece sempre estar prestes a arruinar com tudo, com tudo que foi feito, com tudo que foi construído? Esse corpo que é estranho, esse corpo que, quando chega, já anunciou certo desconforto no espaço.

O meio bate-bola acaba sendo um espaço com muito protagonismo masculino. Como você vê o papel e a importância das mulheres nesses espaços? 

Mesmo não sendo a minha questão principal de debates, o protagonismo na expressão de gênero masculino nas turmas de bate-bola, vou falar sobre isso e trazer pra questão que eu não compro essa briga. Eu acredito que tem muito protagonismo feminino, da expressão de gênero feminino, na turma de bate-bola. Eu acho que o ponto que é importante de ser falado, quando a gente questiona e traz esse questionamento necessário sobre esse lugar, um espaço ocupado ou com a presença do protagonismo  masculino ao feminino, é que as nossas relações estão em crise, e essa crise precisa ser estampada. A principal crise que precisa ser estampada é que sempre, quando a gente conta a história da cultura popular brasileira, a gente diminui a importância do trabalho das mulheres, e principalmente das mulheres negras dentro das culturas. Eu comecei a ter interesse na cultura das turmas de bate-bola por conta de costureiras, e essas costureiras se sentem as primeiras pessoas que dão continuidade à turma de bate-bolas. São fazedoras de bate-bola, fazedoras de casaca, imprensa, fazedoras de máscara. Quem faz a indumentária, quem está com as mãos no trabalho, se sente totalmente responsável pela continuidade da cultura. E isso você vê de memória e de presença mesmo em cada cultura que é mantida por um grupo tradicional, seja no perímetro urbano ou até mesmo no perímetro rural. Eu vi que isso se replica, e que a importância feminina é subtraída quando a gente fala, às vezes, da nossa própria cultura. Existem turmas inteiras de bate-bolas só de mulheres,e também existem turmas em que, majoritariamente, o grupo que sai fantasiado é um grupo de homens, mas o carnaval não se encerra nesse grupo, é toda uma comunidade em torno disso, tem famílias dos bate-bolas. Gera renda também, circula a renda entre os pequenos produtores desses elementos que compõem a turma, e muitos desses fazedores são fazedoras, na verdade. Muitos desses trabalhadores são mulheres.

Então as mulheres são essenciais nessa cultura, certo?

Não que o papel das mulheres esteja encerrado, que a importância das mulheres nessas culturas dos bate-bolas ou até na cultura brasileira esteja encerrado ao espaço de organização, confecção, produção dos conteúdos, dos elementos. O papel das mulheres é de responsável pela continuidade do divertimento. E isso eu vejo em toda a cultura brasileira. Na cultura dos bate-bolas, elas já vêm encontrando espaços pra que elas mesmas possam também dizer desde o princípio o que elas querem que visualmente seja entregue, e esse é, vamos dizer, um outro caminho que vem sendo redesenhado pelas mulheres mais novas juntamente com mulheres mais antigas, que já frequentam turmas de bate-bola de outras datas e que têm feito turmas femininas e promovido ainda mais a voz das mulheres nesse contexto, no contexto em que elas também dispõem, vamos dizer assim, do mesmo desejo de manifestar o seu interesse pela liberdade, pelo prazer e pelo divertimento que é você confeccionar desde o princípio uma roupa e uma turma, toda uma organização de uma turma de bate-bola. Isso é algo que eu vejo agora. Na verdade, eu acho que esse é um protagonismo que eu vejo surgindo, emergindo mais forte agora, mas não acho que não existisse.

O carnaval muitas vezes é um momento em podemos experimentar outras subjetividades e formas de existir. E assim, também, sonhar. Você acha que nas favelas, nos subúrbios e nas periferias (espaços onde costumamos ver mais a cultura bate-bola), ser bate-bola é realizar um sonho?

Pra responder essa pergunta, eu vou começar dizendo que, se a gente tirar o bate-bola da cultura estética, de você ter poder e comprar, adquirir, obter, sei lá, comprar um tênis, comprar uma roupa, se a gente tirar ele desse lugar e pensar pela perspectiva da formação de uma turma, da formação de um núcleo que se comunica com outro núcleo, e com outro, e que são famílias juntas e que têm as suas denominações, que se reconhecem com ou sem os seus elementos em diversos cotidianos que não são somente o carnaval, isso por si só funciona como uma realização coletiva de um sonho, de um sonho de estar e fazer parte de uma comunidade, de ser aceito em um lugar. Isso é muito quem são também essas pessoas do bate-bola. Quem são eles é muito isso também, sentir-se parte de uma coisa, e cada um ali é fundamental, todo mundo bota a mão pra trabalhar na confecção das coisas, na realização, na concretização do sonho. Estar numa coletividade dessa forma, em que você se entrega desse jeito pra além dos mecanismos funcionais da estrutura global do mercado, de como o mercado funciona, ali dentro se constrói uma outra forma política, e essa forma política é o ideal coletivo, mas também é a realização de um sonho, de estar e fazer parte de uma comunidade. Eu já vi acontecer, em saídas de turmas de bate-bola, por exemplo, da pessoa responsável ter confeccionado umas roupas que poderiam equivaler pra crianças, e aí as crianças, que não participaram de nenhum dos outros movimentos que as pessoas mais velhas participaram desde o início do ano, naquele dia, do carnaval, estavam ali desde cedo em cima das pessoas da turma, querendo saber. Aquelas crianças ali ganham um bate-bola e saem. Essa sensação, essa memória da infância, essa relação com a cultura também é a realização de um sonho coletivo, de um sonho coletivo que se encontra dentro das periferias urbanas e da forma como a cultura pode ter continuidade nesses espaços das favelas e dos subúrbios, que é através da criança, estimulando o próximo, o mais jovem, o mais novo. E esse estímulo também é uma forma de realizar um sonho. Não sei se necessariamente todos que estão ali estão sendo coletivamente com essas questões subjetivas que eu estou trazendo, mas é o que a gente vê acontecer. Muitos ali só chegam com o único pensamento de construir. Quem é líder dentro da turma, quem é liderança, vai pensar o carnaval desde o princípio e querer que ele aconteça da forma como foi planejado. Tem gente que vai entrar que o sonho é só sair de bate-bola. E essas pessoas vão sair, porque é a realização de um sonho também. Mas não é só o sonho de comprar um bate-bola, de comprar um tênis, é o sonho de fazer parte de uma grande coisa. Eu sinto muito, às vezes, vindo dos corpos com os quais a gente está se direcionando, com os quais a gente está se comunicando, que são esses corpos que parecem estar andando por aí como se estivessem prestes a arruinar tudo. São muitas essas pessoas, muitas dessas pessoas procuram essas culturas, as culturas que impõem medo ou respeito, a cultura do funk, a cultura do bate-bola que, pra mim, estão muito atravessadas, e muito atravessadas às culturas negras, cujas origens são africanas. Eu falo isso porque isso me lembra o sentimento do quilombo, que, já diria Abdias Nascimento, é o sentimento de uma comunhão existencial negra. Ainda que nem todos ali sejam negros, essa cultura vibra nesse mesmo tambor, ela tem essa mesma vibração.

#49SonhoCultura

Sonhos não envelhecem

Tive um sonho na madrugada de 31 de março de 2022. Eu andava pela casa um tanto ansiosa, procurando minha bolsa. Quando a achei, abri a carteira e, dentro dela, não encontrei minha identidade. Acordei assustada, e logo senti o sorriso aliviado da compreensão, já que, a

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Obra de Yasmin Guimarães, publicada na Amarello Sonho.

Foi no restaurante Sublime que encontrei meu destino pela primeira vez.

Aconteceu numa tarde de outono bem típica de Florianópolis, uma dessas tardes opacas em que a excitação quente do verão dá lugar a uma morna aura fantasmagórica. Todo mundo sabe que as verdadeiras profecias só podem acontecer na época outonal, e foi nesse espírito que, por volta das 15 horas, as duas mulheres atravessaram a porta de bambu e sentaram-se à mesa 11. 

Era nossa melhor mesa: um canto de dois lugares à esquerda da estátua fluorescente do Buda, sob a luminária de vitrais coloridos. Assim que penduraram as bolsas em uma das cadeiras, deram-se as mãos e fecharam os olhos por cinco minutos antes de abrir o maço de cartas sobre um lenço violeta. A lâmpada espalhava cacos de luz nos rostos sem que se dessem conta; o restaurante agora era um templo secreto, só delas. 

Lindas, foi o pensamento que me ocorreu, Duas amigas se encontrando numa quarta-feira para descobrir o futuro. O cabelo preto da mais nova vinha preso num coque. A mais velha, grisalha, tinha modos aristocráticos e um broche de penas e pérolas que parecia uma galinha despenteada.

Ninguém que as visse no fim daquela tarde poderia adivinhar-lhes os poderes. As bruxas hoje em dia são discretas. Só notei que eram diferentes dos outros clientes por causa do olhar, um jeito de quem vê por dentro das pessoas. Fora isso, eram normais em tudo, até no modo de vestir — saias compridas cobertas por blusas de lã em tons de terra. Marrom, vermelho, laranja, ocre. 

Observei-as de longe, esperando o momento certo para me apresentar. Elas só tinham olhos para a mesa. A jovem de coque estendeu o baralho à frente, a amiga cortou três, quatro, cinco, seis, sete vezes. De volta ao maço, as cartas começaram a aparecer lentamente, uma a uma, viradas pelos dois pares de mãos na superfície do pano roxo. Como se o jogo fosse de ambas, como se estivessem lendo um futuro compartilhado. 

Ou de outra pessoa. 

A Torre, O Enforcado, O Louco —– de relance, reconheci o desenho dos arcanos maiores em cartas de morte e vida. A Torre é mudança brusca, O Enforcado pede desapego, O Louco liberta potencial desgovernado. O caminho de alguém estava mudando para sempre, sem volta.

Seria demais interrompê-las para apresentar os pratos do dia antes da cozinha fechar? Fingi casualidade e dirigi-me à mesa com um par de menus:

— E hoje, vão querer o quê?

Com olhos que perfuram o espírito e uma voz imperturbável, pediram chá preto indiano —– black chai, por favor — e duas fatias de bolo de chocolate.

Falavam num tom meio cordial, meio distante; não me deram mais atenção do que a etiqueta recomenda. Confesso que as achei um pouco frias. Registrei o pedido, levei-lhes tudo na bandeja e, por um tempo 

— só por um tempo —, 

o turno transcorreu

normalmente. 



O restaurante Sublime costuma esvaziar depois do almoço. Quando os clientes terminam a sobremesa e voltam ao trabalho, as mesas são ocupadas por outro tipo de clientela. As pizzas e as saladas desaparecem, substituídas por sorvetes e cafés. Os vasos de plantas e as estátuas do Buda nos corredores ganham mais vida sem o trânsito dos advogados e funcionários públicos que vêm atrás de comida vegetariana.

Das duas às sete, somos três pessoas cuidando dos clientes: eu, meu outro colega garçom de natureza irritadiça e Balarã, o menino nepalês que às vezes esqueço que existe. Balarã não gosta de se envolver nas pequenezas do cotidiano no restaurante. É um jovem de grande sabedoria; enquanto lava a interminável pilha de louça do Sublime, contempla em silêncio o sentido profundo da vida.

A tarde é o turno da doçura. Se fosse uma cor, seria lilás. Tardes lilás. Enquanto os escritórios se enchem de clientes e funcionários, as mães vêm ao Sublime comer bolo com seus bebês. Buscam a paz de algum lugar que não seja o 

lar. A tarde é o turno das escritoras que gastam horas mastigando palavras e tomando café com leite, e é também o período dos que trabalham online, computadores e fones de ouvido ligados.

À tarde, o tempo se estende feito um leque aberto, deixando ver os detalhes que o movimento do almoço esconde. O ar fica mole. Turistas estrangeiros chegam da praia e afundam a colher numa mousse de chocolate lavada em café americano —– sempre o café americano dos alemães —, deixam gorjetas gorduchas e voltam para seus apartamentos com a leveza de uma torta perfeita, sem reparos.

Quer dizer, no verão. No outono, tudo muda: os turistas são poucos, e o Sublime se transforma em convite para o invisível. As estátuas de Buda e as plantas dos vasos conspiram no silêncio dos corredores,: é hora. Entre março e junho, sob o disfarce lilás das tardes outonais de Floripa, no restaurante Sublime tudo pode 

acontecer.



As duas mulheres com o tarô eram aquele tipo de cliente que pede um café e nunca mais vai embora. A tarde, que ia virando noite, corria como sempre para os outros, mas a verdade é que o tempo tinha parado na mesa 11. Três horas depois, as xícaras de chá estavam ainda pela metade. 

O black chai abandonado. O restaurante enchendo, a mesa ocupada. A 11. A do maior Buda, recanto da luminária colorida. Nossa melhor mesa. 

— Gostaram da sobremesa?

Fui recolhendo tudo sem esperar resposta. Empilhei canecas, pratos e garfos sujos na bandeja e cruzei a porta basculante que dá para a área de serviço. Uma montanha de pratos e tigelas do almoço esperava a vez de entrar na lava-louça enquanto Balaram de costas para mim lavava as panelas com tanta concentração que não se deu conta da minha presença. 

Está ouvindo uma partida de críquete nos fones de ouvido de novo, certeza. 

Lancei os garfos sujos no balde de talheres usados, raspei os farelos de bolo no lixo e, quando estava prestes a jogar fora o primeiro saquinho usado de chá, a mensagem apareceu. Ali mesmo

na frente da louça suja

ele se anunciou. 

Soube sem hesitação que se tratava do meu destino. 

Meu destino vinha escrito na etiqueta do saquinho de black chai que uma das bruxas tinha deixado pela metade. Dizia:

Believe something higher.



Quem é que pode afirmar com certeza o preciso lugar no qual o destino nos espera?

Quem tem autoridade para dizer que uma mensagem é profética, e outra não?

Posso dizer hoje, com toda convicção, que o meu destino foi desvelado numa xícara de black chai. A profecia escrita em letras brancas me subiu à cabeça em calafrios. Vinha casual, disfarçada de mensagem positiva ou dica do dia que, no mais das vezes, só presta para repetir a desesperança do senso comum. Mas a verdade é que nunca me enganou, a mensagem. Sabia que tinha sido escrita para mim, especialmente, para aquele dia, para sempre. 

A gente sabe quando chega a nossa vez. 

Desde quando havia something higher? Fiz-me a pergunta, mas era uma pergunta que não cabia dentro de si. O que vinha escrito no papel de chá não era hipótese. O escrito na xícara de chá era uma afirmação

Believe something higher 

um mantra

Believe something higher

uma ordem.



O garçom que dividia o turno da tarde comigo entrou na área de serviço com uma pilha imensa de copos sujos:

— Tudo bem? Tá com cara de quem viu espírito, baby.

E saiu. Pelo vão da porta que abria e fechava, ouvi uma criança chorando. Ouvi um latido de cachorro e a música de fundo, um mantra que não lembro ter ouvido antes.

Tentei negar o que naquela altura já era inevitável. Tentei negar porque encontrar o destino é ser apresentado ao novo sem a garantia de que, ao aceitá-lo, poderemos manter as conveniências do presente. 

Aceitar o destino é aceitar ganhar e aceitar perder. 

Hesitei. Não deve ser nada, é só uma mensagem estúpida. Tratei de continuar com as tarefas. Ainda havia a segunda xícara para lavar, afinal de contas, e uma meia dúzia de mesas para servir. A tarde ia virando noite, e os clientes da janta chegavam. Levantei o braço para atirar a caneca na pia, e foi só quando ela estava no alto, pronta para entrar debaixo da torneira, que encontrei a outra mensagem. A mensagem, que estava ali, no saquinho da segunda xícara de black chai inacabada, dizia também

Believe something higher.

As cartas do tarô viravam na minha direção, o jogo era meu.




Era mesmo a confirmação. 

As canecas azul-escuras de um profundo, misterioso abismo.

As mulheres com roupas cor de terra numa tarde lilás. 

O filtro de água me olhou da estante

triste

já sabia da minha 

partida. 

Às vezes somos os últimos a saber do nosso destino

anunciado secretamente em borras de café

na trilha sonora dos restaurantes

na pelagem do gato

no fim de um amor

ou de uma amizade

no perdedor de uma partida de críquete. 

Por quanto tempo ficaremos ignorantes do nosso destino verdadeiro? 

Naquele dia, entendi que o destino tinha sempre me esperado.

Falava pelos objetos e seres, procurando tradução.

Naquele dia, por uma razão que ainda não compreendo

(por uma razão que jamais compreenderei)

a mensagem na xícara de chá. 

Na área de serviço, intoxicada pelo cheiro do black chai que as duas tinham deixado pela metade, ao som das panelas sujas que encontravam o detergente cristalino nas mãos do colega que adora críquete, firmei meu acordo com o Destino. Tomei o resto de chá de cada uma das xícaras 

aceito

arranquei os papeizinhos

— os dois —–

coloquei-os no bolso da calça

Experience something higher

e deixei a área de serviço. A porta basculante ficou balançando com a força da minha 

passagem.

Andei pelo restaurante em passos rápidos, na direção da saída.

Deu para ouvir as mulheres chamando

— Você pode trazer a conta e a maquininha do cartão?

Mas não virei para trás. Ainda vestida com o uniforme e o avental,
cruzei a porta 
decidida
something higher
alcancei a varanda
não voltar 
segui para a rua
continuei
caminhando.

Falar de sonhos é algo central para quem acredita em dias melhores; o sonho normalmente tem marcas de utopia, uma realidade que nunca chega, mas que temos sede e fome de ver se materializar em nossas vidas. Algumas perguntas, entretanto, permeiam a minha mente, como jovem negro que vive em uma nação que foi escravista durante 388 anos e hoje assassina a juventude negra a cada 23 minutos: é possível sonhar enquanto se sofre dores inexprimíveis? Será que um povo que historicamente teve seu direito à dignidade roubado sistematicamente consegue ter sonhos de liberdade e esperança? Talvez o sonho, nesse caso, se torne uma fuga, uma maneira de não aceitar a realidade, e o mais poderoso: uma forma de reafirmar quem realmente somos, apesar de alguns se levantarem achando que são nossos senhores, donos das nossas vidas ou de quem somos. Sonhar é um instrumento possível para enfrentar a realidade: enquanto o racismo diz que não somos humanos, os sonhos que nascem do povo negro ecoam na história, dando ao mundo exemplos radicais de uma humanidade negra que insiste na construção de uma realidade de vida.

Martin Luther King talvez seja a voz mais conhecida quando pensamos em sonhar. Em seu profundo discurso conhecido como I Have a Dream (Eu tenho um sonho), o pastor batista, nas escadarias de Washington, na maior marcha da história do povo afro-americano estadunidense, começa afirmando: “o Negro ainda não é livre”. Antes de pensar em sonhar, King conta o motivo de precisarmos romper com o real. Quase como uma marcha, ele vai construindo a sua fala histórica em direção ao alvorecer, mas antes faz questão de falar de uma grande e longa noite que o povo negro estava passando, quando diz que “cem anos depois, a vida do Negro ainda é tristemente inválida pelas algemas da segregação e as cadeias de discriminação”. Pensando a realidade norte-americana dos anos 60 e conectando com o atual contexto do Brasil do século XXI, podemos afirmar que a vida do negro brasileiro ainda é tristemente exterminada pelos caveirões da morte, que a dor que King sentia e as forças que tentavam interditar o alvorecer negro de um mundo mais justo para os condenados da terra são as mesmas que estão há séculos no mundo ocidental.

A América deu para o povo negro um cheque sem fundo, um cheque que voltou marcado com “fundos insuficientes”. Mas nós nos recusamos a acreditar que o banco da justiça é falível. (…) Assim, nós viemos trocar este cheque, um cheque que nos dará o direito de reclamar as riquezas de liberdade e a segurança da justiça.” (Martin Luther King, 1963)

Diante da longa noite que o povo negro ainda vivencia, enquanto leio o discurso de King, fico pensando, quase que em uma conversa direta com o próprio líder do movimento dos direitos civis: “será que ainda é possível sonhar, pastor? Eles continuam nos matando, nos roubando, nos separando. Nossas crianças são fuziladas, nossos homens são encarcerados, nossos jovens são assassinados e nossas mulheres morrem de doenças crônicas diante do abandono social e do desemprego. A terra continua sendo deles, o Congresso tem os mesmos donos de sempre e quem manda no nosso sistema de justiça tem cor. Martin, nós estamos em um beco sem saída, rendidos, desarmados, as leis realmente avançaram, os nossos direitos fundamentais até existem no papel, mas eles não param, parecem máquinas que precisam colocar esse sistema para funcionar, e o preço é o nosso sangue. Esse cheque sem fundo e esse saldo insuficiente permanecem como marca das Américas, não somente do Norte, mas se estende por todo o continente, como uma praga que não para de crescer”.

Este texto, assim como o discurso de King, é sobre sonhos, mas, com tanta dor e desesperança, quando estes nascem? Quando nós começamos a sonhar? Queria me arriscar dizendo que, segundo o pensamento de Luther King, os sonhos começam na recusa. Na mesma hora em que recusamos o que foi imposto para nós como verdade absoluta e acreditamos na liberdade e na justiça como valores que são nossos, também temos direito de acessar. Temos o direito de ser integralmente livres e plenamente saciados com a justiça, e por isso começamos a exigir mudança! O sonho negro, neste caso, começa na teimosia, na insistência de sabermos quem de fato somos, de não nos deixarmos definir por aqueles que tentam fabricar pesadelos com a nossa realidade, que tentam eternizar a afirmação de que “o Negro ainda não é livre”. Por isso o velho hino spiritual Oh Freedom, cantado desde os tempos de escravidão pelas igrejas negras, vai dizer:

Oh, liberdade, oh, liberdade, oh, liberdade sobre mim. E antes de me tornar um escravo, serei enterrado em meu túmulo, e irei para casa, para meu Senhor, e serei livre.”

O grito de liberdade que ecoava no sonho de Luther King não nasce de um incômodo simples e de algo momentâneo. Esse sonho é coletivo e navega por gerações. Os negros sempre escolheram cantar sobre liberdade, preferiram o céu às algemas, queriam ir para casa, voltar para o seu lar; o sonho era o cessar das dores, era a plena liberdade ou qualquer realidade em que a prisão, a violência ou a supremacia não tivesse lugar. Para sonhar, é preciso gritar, bradar alto, marchar e, no caso do contexto negro, encarar a morte face a face e falar. Como disse King, “Nós nos recusamos”. Os sonhos surgem da recusa das injustiças, da luta contra os pesadelos, da consciência de quem somos realmente. Sonhar é um exercício que começa dentro de nós, conhecendo quem somos, de onde viemos, quem lutou por nossas vidas, e Luther King sabia muito bem quem ele era. Por isso, o sonho dele se parece muito com o nosso, por isso a utopia que King expressava naquele púlpito, diante de mais de duzentas mil pessoas, ainda se conecta com a realidade das pessoas negras afrodescendentes do mundo inteiro.

Agora é o tempo para subir do vale das trevas da segregação ao caminho iluminado pelo sol da justiça racial. Agora é o tempo para erguer nossa nação das areias movediças da injustiça racial para a pedra sólida da fraternidade. Agora é o tempo para fazer da justiça uma realidade para todos os filhos de Deus. Seria fatal para a nação negligenciar a urgência desse momento. Este verão sufocante do legítimo descontentamento dos Negros não passará até termos um renovador outono de liberdade e igualdade. Este ano de 1963 não é um fim, mas um começo.” (Martin Luther King, 1963)

A urgência manifestada no discurso I Have a Dream atravessa o povo negro na sua mais íntima existência, pois o racismo faz os nossos sonhos serem urgentes. Afinal, viver, comer e ter uma casa, um emprego e condições iguais dentro do mercado de trabalho, as crianças negras serem protegidas e tratadas como crianças, ter educação e saúde de qualidade e ser considerado gente não deveria ser um sonho. Por esse motivo, a fome tem pressa, os que estão sob a mira do fuzil da polícia não podem mais esperar. O sonho que King nos apresenta tem o seu próprio tempo e sempre será o “agora”, só deixará de ser urgente quando a injustiça racial não for mais uma realidade. Afinal, como ele diz nesse discurso, “nós nunca estaremos satisfeitos enquanto o Negro for vítima dos horrores indizíveis da brutalidade policial (…) e nós não estaremos satisfeitos até que a justiça e a retidão rolem abaixo como águas de uma poderosa correnteza”. O começo desse sonho só é possível com o fim do racismo, por isso o sonho de King e das pessoas negras, na verdade, não é apocalíptico, não é sobre o fim dos tempos, mas sobre o início de uma nova realidade. O povo negro não sonha com um mundo melhor, ele sonha com um novo mundo, com novas maneiras de olhar e afirmar a humanidade em toda a sua diversidade. Diante de uma realidade construída e fundamentada no racismo, o discurso de King dá início a uma peregrinação, quase um chamado nos convocando para caminhar para uma nova realidade.

​​”Eu tenho um sonho de que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. Eu tenho um sonho hoje! “(…)” Nesse justo dia, no Alabama, meninos negros e meninas negras poderão unir as mãos com meninos brancos e meninas brancas como irmãs e irmãos.(Martin Luther King, 1963)

É preciso continuar dizendo: nós temos um sonho. O sonho de King era a derrubada do racismo, dos que tentavam definir o povo negro, dizer o seu destino, onde e como poderiam andar, comer e sentar, quais lugares poderiam ocupar ou nos quais poderiam viver. É bom dizer aos brancos que leem esse discurso que o sonho de King não era retirar a importância de quem nós somos ou o orgulho negro em prol de uma paz neutra e uma falsa equidade, mas ele sonhava que, sendo nós orgulhosamente negros em um mundo dominado pelo racismo branco, nossos direitos como seres humanos fossem garantidos. Assim, as leis segregacionistas e os muros que nos separam até hoje iriam cair por terra.

Obra de Yasmin Guimarães, publicada na Amarello Sonho.

(É manhã cedinho, será preciso cavoucar na terra de dentro.

Como responder ao convite para escrever sobre sonhos e infâncias? Nos atropelos do hoje, abre-se tempo e espaço para permanecer. E, como a vida tem me acariciado com pedidos assim, escolho aceitar.

É preciso envolver-se de si, respirar para a voz desaguar no papel. Banho quente, leite quentinho feito no escuro, somente com a chama do fogo aceso na cozinha. Foi escutando a fervura, com o calor subindo no rosto, que os sinais sutis vieram. O formigamento no peito. O leite já está fervilhando, o bebê pode despertar. Um movimento involuntário, sensível, que deságua no agora. A escrita é processo, e, quando há fome em dizer, tem momentos que chega até a vazar. O que deseja ser papel é revelador do corpo, como também são os sonhos. Seria o sutil nos atravessando?

Ligo o computador. O corpo emudece, soam-se alarmes.)

Durante meu tempo de infância, tinha certa repulsa às escritas. Eram de fora para fora, descoladas de mim, autoritárias, pasteurizadas por perguntas e respostas que valiam nota. Em suas sentenças (quase de morte) de certo e errado, perdiam significâncias, esvaziavam-se de seus sopros, de seus caminhos de vir a ser, dessensibilizando meu corpo de fala.

Acordar a escrita leva tempo. E é no amanhecer do dia, no despertar que ela se tece. Silencio e escuto.

Chego na sala de aula com uma caixinha de fósforo miudinha nas mãos. Num movimento preciso, balanço de um lado para o outro para que as crianças, ao escutar o tilintar, aos pouquinhos e, no seu tempo, se acheguem e aterrem em si.

Mas, em tempos em que a exaustão é o destino, somos pegos de surpresa pelas alças dos sovacos, colocados ao chão com pernas cruzadas. A professora solicita: “Começou a aula, é hora de sentar”. “Eu vou dizer onde cada um vai ficar”. “Lucas aqui, Tomás do outro lado. Vocês não conseguem sentar perto”.

Baque. Atropelamento. Intromissão. Sobra pressa quando educar deixa de ser uma questão de sensibilidade.

Essa cena é um sintoma da aridez, uma mostra do adoecimento que tomou as organizações sociais, que insistem em dizer que não há outra forma de viver o hoje.

Michelle Prazeres nos relembra: “As regras da vida nas plataformas se espraiaram para toda a nossa existência”. O excesso de estímulos, ofertas, tarefas, entretenimento que trazem não é preenchimento, é turvamento. O cuidado com as crianças foi tomado pelos ideais de eficiência, excelência de atendimento, excesso de prontidão. O “tão pronto a ajudar”, muitas vezes, nos embotam. Sobra controle. Sobra artificialidade. A contenção, a regulação de fora pra dentro nubla a expressão das infâncias, o vital. Será que tudo isso não tem distanciado as crianças de seus sonhos?

Como se sonha com pressa? Como se cria na era da distração? Como se sente quando todo sentir é perigoso?

Perde-se o olhar para o instante, para o inusitado. Anestesiam-se os movimentos pueris, os sentidos. O olho no olho que comunica se dissipa.

A expressão “não há tempo a perder” já nos doutrinou. Encaixotaram o tempo das crianças na gavetinha das funcionalidades, da produtividade máxima.

O pequeno fragmento de instante em que todo corpo se volta para onde o coração aponta se esvai. O que será que continha aquela pequena caixinha? Será que algum olhar encarteirado ainda procura pelo tilintar?

A minha memória deixa a sala de aula, caminha pela praia, uma cena me aventa. Pouso. Vejo uma criança mexendo nas pedras e em um buraco cavado ali no chão, ao lado de um canteiro verde. Segundo Walter Benjamin, “onde as crianças brincam, existe um tesouro enterrado”.

Ao tirar com as mãos um pouco de terra e colocar uma pedra, em um movimento de pôr, tirar, se misturar, chega seu pai e lhe diz:. “Filho, aí não pode, você vai se machucar”. Escuto seus gritos de quem foi arrancado de seu chão pelas alças do sovaco, arrancado de seu existir. Ouço o choro distante acender meus ouvidos, ecoando um pedaço da minha menina. “Ali certamente estava o mundo inteirinho, as sutilezas e as preciosidades do agora.”

O brincar é que fia o tempo presente das crianças, nessa mistura do pensar sentindo e do sentir pensando. A criança, ao cavar, encontra e é encontrada pelo brincar miúdo, um fazer que dialoga com o inesperado e o subversivo. Alargam-se os tempos, abrem-se buracos, espaços de imensidão para os estados de infância.

Enquanto acontece, a brincadeira se faz, e certamente a natureza é o maior disparador dos brincantes. Permanecer ali é transformar, ir além é desver, transver, romper com as próprias mãos os ciclos de mesmice, explorar a nós mesmos. Pausa-se o usufruir, comunga-se.

É a comunhão das naturezas: um pouquinho de mim, um tantinho de nós, uma conversa com o mundo. Esse brincar que comunga permanece no corpo mesmo quando já vai longe a infância. Sonhamos.

A natureza da infância nos leva a sentir, a conceber outros modos de viver. Estejamos atentos. E é apenas através de atos criativos que a vida se sustenta, frutifica, ganha sentidos. São as crianças que avivam nossos continentes do pensamento, da linguagem, do sensível, não como um fim, mas como experimentação. O eterno começo de tudo.

E, acordados, encontramos a folha no meio-fio sendo levada pela água corrediça da chuva, uma nuvem de vaga-lume no enlace do agora com o infindável. Alcançamos enfim a dimensão poética do cotidiano.

Já dizia Mia Couto: sonho é uma porta que dá acesso à poesia. No enredamento dos afetos, das importâncias, dos silêncio é que o sonho vai e vem, balança.

A entrega, o corpo como confluente, o vagar sem propósito — a criança se constitui desses movimentos. O à toa, a troco de nada, os buracos encontrados na terra precisam ser redescobertos, revelados, experimentados. É o tilintar que desperta o corpo atravessado pelas experiências que adentramos no imaginário, no simbólico, que alcançamos uma consistência própria. Pegando emprestado de Mario Quintana: sonhar é acordar-se para dentro.

Criançar, brincar e sonhar são três palavras de uma organicidade só, e é preciso enraizar-se nelas.

(Me preparo para enviar o texto, já é hora de lavar a caneca. Te devolvo agora o convite: como temos cuidado dos chãos das infâncias? Cabe o sonhar? E quão fértil está a sua terra dos sonhos? Afinal, são por eles que se chega às nascentes.)

#49SonhoLiteratura

O gato da insônia e a saudade dos sonhos

Para meu professor
Wagner Cafagni Borja,
com gratidão

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#49SonhoSociedade

Quando um sonho vira obsessão

Em 2009, Edwin Rist, então um jovem de 22 anos, subiu no parapeito de uma das janelas do museu de Tring, uma extensão do Museu de História Natural de Londres. Carregava consigo uma mala vazia, um cortador de vidro e uma lanterna. Ao tentar subir na janela,

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#49SonhoEditorial

Sonho — Amarello 49

Com capa de Gleeson Paulino, registrada durante a festa de bate-bolas, no Rio de Janeiro, a Revista Amarello lança a edição Sonho.

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Como uma pessoa nascida nos anos 80, cresci escutando que o Brasil era o país do futuro.

Depois de quarenta anos, oito presidentes, dois impeachments, um sem-fim de escândalos, injustiças, impunidades e uma pandemia traumática, esse sonho ruiu. Não existe mais. E acredito que isso seja bom.

A perda da esperança nos coloca em um lugar de ação. É uma saída forçada da inércia tropical — algo que talvez tenha nos faltado nas últimas décadas.

Diante da tragédia moral e institucional que vivemos, gosto de me apegar à delicada imagem da inocência de uma criança, que continua acreditando em seu sonho mesmo depois de acordada.

É com essa delicadeza que tento olhar para o mundo ao meu redor, apesar da impermeabilidade causada pelos algoritmos digitais. Com lealdade aos que gosto, com um olhar carinhoso para os animais e para a natureza, sendo fiel à minha essência e acreditando nesta revista que você tem em mãos, há quinze anos. Assim, me jogo no abismo de sonhar um país mais igualitário entre raças, gêneros e classes. Um país que eu gostaria de viver e nunca vivi. Um país melhor, brasileiro como tem que ser, e não “um país do futuro”.

Chegou a hora de pararmos de sonhar, dormindo individualmente, e vivermos o sonho acordados coletivamente.

Tomás Biagi Carvalho

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Composição em vermelho, de Anna Maria Maiolino (1983). A artista ítalo-brasileira é uma das homenageadas da 60a Bienal de Veneza (Divulgação)

A mobilidade urbana é uma ferramenta de inclusão social imprescindível. Oferecer acesso facilitado e acessível a diferentes regiões e serviços é desempenhar um papel fundamental na garantia dos direitos de mobilidade e oportunidade para todos os cidadãos, independentemente de sua condição socioeconômica. Como prova de que a mobilidade urbana sempre chegará em quaisquer futuros com um tanque de importância cheio, ela segue sendo extremamente relevante à sociedade contemporânea, ganhando novas camadas de relevância na medida em que a sociedade avança de maneira desembestada. Em um mundo cada vez mais interconectado e marcado por desafios — tais quais a urbanização acelerada, a poluição e o congestionamento excessivo —, transporte público e companhia surgem como uma solução eficaz para promover a sustentabilidade, a equidade e a qualidade de vida nas cidades. 

O trânsito em São Paulo impacta a vida dos seus habitantes.

Nesse contexto, a necessidade de um sistema de transporte público eficiente e abrangente é mais premente do que nunca. 

Das possibilidades exploradas atualmente, parece inevitável pensar na implementação de novas políticas, como a famigerada Tarifa Zero, que só se nacionalizou de fato por aqui com as chamadas Jornadas de Junho de 2013. Essa abordagem, com a qual o transporte público seria gratuito para a população, busca enfrentar desafios como a congestão de tráfego, a poluição do ar e a desigualdade no acesso ao transporte. No panorama brasileiro, as dificuldades para a implementação da Tarifa Zero são acentuadas, principalmente em cidades de grande porte como São Paulo, palco principal das manifestações do Movimento Passe Livre ocorridas há uma década. As cidades brasileiras enfrentam barreiras estruturais, como a falta de investimento adequado em transporte público, a deficiência na infraestrutura e a falta de integração eficiente entre os modos de transporte. Além disso, a dependência do automóvel particular e a resistência política à mudança também são obstáculos significativos.

Um dos principais argumentos contrários ao transporte público gratuito é o financiamento. A gratuidade do transporte público demandaria um substancial investimento público, que poderia ser encarado como um ônus para os cofres municipais. Há preocupações de que a falta de receita proveniente das tarifas possa levar a uma deterioração dos serviços e a uma sobrecarga financeira para as autoridades responsáveis pelo transporte público. Outra dificuldade é conseguir atender o esperado aumento de demanda, o que exige investimento não apenas no aumento de frota, mas em infraestrutura urbana — incluindo faixas exclusivas, eliminação de vagas de estacionamento em vias onde passam ônibus, criação de sistemas de integração e transferência.

Tarifa Zero é uma proposta que ganhou destaque no Brasil nas décadas de 1980 e 1990, e um dos nomes associados a ela é o da política Luiza Erundina, prefeita da cidade de São Paulo entre 1989 e 1992 e uma defensora ardente do transporte público gratuito. Durante seu mandato, que aconteceu com o Partido dos Trabalhadores, foram realizados estudos e debates sobre a viabilidade da Tarifa Zero em São Paulo, o que popularizou a questão e fez com que a ideia fosse vista como uma possibilidade pelas pessoas. Antes, pouco se pensava sobre soluções como essas, descartadas de partida por serem tidas como inviáveis. A proposta foi amplamente discutida e despertou tanto apoio entusiasmado quanto críticas acaloradas. No entanto, toda ideia que desafia forças maiores sofre forte resistência e, devido a questões financeiras e políticas — e, não para a surpresa de ninguém, até pressão midiática —, a Tarifa Zero não foi implementada integralmente na cidade durante o mandato de Erundina. 

Apesar disso, como a boa iniciativa que é, o debate sobre a Tarifa Zero continuou a ecoar no cenário político brasileiro. Espera-se, inclusive, que tenha forte impacto nas eleições municipais deste ano. 

Luiza Erundina, com seu apoio à Tarifa Zero e outras iniciativas relacionadas à mobilidade urbana, deixou um legado de discussão e conscientização sobre a importância do transporte público acessível e de qualidade. Sua contribuição ajudou a colocar a questão em pauta, estimulando a busca por soluções inovadoras para os desafios da mobilidade urbana. 

E ela não está sozinha nessa. Há tanto políticos quanto pesquisadores que fazem coro à Erundina.

Enrique Peñalosa é um político colombiano conhecido por sua veia urbanista. Foi prefeito de Bogotá entre 1998 e 2001, e novamente entre 2016 e 2019. Peñalosa defende fortemente a isenção de tarifas como uma medida para garantir a equidade social e promover cidades mais inclusivas e sustentáveis. Durante seus mandatos, ele implementou políticas para tornar o transporte público acessível a todos os cidadãos.

“Uma cidade avançada não é aquela em que até os pobres usam carros, mas sim aquela em que até os ricos usam transporte público.”
Peñalosa na Ted Talk Why buses represent democracy in action (2013)

Bogotá tem uma população de 7,181 milhões de pessoas (2018). Getty Images

Susan Shaheen é uma pesquisadora estadunidense especializada em mobilidade compartilhada e inovação no transporte. Ela argumenta que o passe livre pode ser uma estratégia eficaz para aumentar a utilização do transporte público, especialmente quando combinada com outras medidas, como o compartilhamento de veículos. Aprofundando-se no assunto, ela também chama a atenção para os cuidados que devemos tomar na automatização de processos, já que muitas vezes eles reproduzem imperfeições humanas.

“Precisamos pensar cuidadosamente sobre o que queremos dizer com equidade. (…) Se entrarmos em um futuro automatizado, onde temos aprendizado de máquina e inteligência artificial aprendendo com o motorista, preconceitos raciais podem ser incorporados aos algoritmos.”
Shaheen em entrevista para Iomob, em 2018

Judith Dellheim, que já esteve no Brasil algumas vezes em fóruns sobre mobilidade urbana, é uma pesquisadora alemã da Fundação Rosa Luxemburgo que aborda a questão da Tarifa Zero como uma forma de promover a justiça social e a sustentabilidade. Ela tem acompanhado as propostas de políticas de passe livre na Alemanha e estudado a dependência de seu país em relação à indústria automotiva.

“Na sociedade atual, com muita frequência, as cidades são planejadas de acordo com as necessidades dos proprietários de automóveis. E os poderes públicos – altamente endividados – investem anualmente muito mais por habitante em transporte individual motorizado do que em transporte público local.”
Delheim, no texto Tarifa Zero, a experiência europeia (2019)

No panorama global, aliás, a utilização do transporte público varia entre os países. Em algumas nações, como Alemanha, Suíça e Holanda, o transporte público é amplamente utilizado e bem integrado, com altos níveis de qualidade e eficiência. Em alguns casos, os sistemas de transporte público são parcialmente subsidiados pelo governo, o que reduz os custos para os usuários. No entanto, não existe uma abordagem única em relação à gratuidade do transporte público. Cada país adota diferentes modelos de financiamento e cobrança de tarifas, que vão de acordo com a viabilidade política, financeira e cultural daquela nação.

Na capital da Estônia, Tallinn, uma medida interessante foi implementada em 2013: os residentes da cidade podem usar o transporte público, incluindo ônibus, bondes e trens, mediante o pagamento de uma taxa de registro anual. Já a França, conhecida pela forte presença do Estado na vida prática dos seus cidadãos, tem o caso de Dunkirk: o transporte público na cidade, incluindo ônibus e trens regionais, tornou-se gratuito para todos os passageiros. Em um outro tipo de abordagem, a cidade de Bonn, na Alemanha, oferece um modelo híbrido de transporte público gratuito. Os estudantes e os passageiros com mais de 65 anos podem utilizar o transporte público gratuitamente, enquanto outros passageiros pagam uma tarifa reduzida. Essas abordagens têm como objetivo incentivar a utilização do transporte público e promover a sustentabilidade.

Um dos exemplos que mais chama a atenção, porém, é o de Estocolmo, capital da Suécia, que adotou uma abordagem diferente para tornar o transporte público mais acessível. A cidade introduziu um sistema de tarifas progressivas, em que o preço da passagem é calculado com base na renda dos passageiros. Dessa forma, aqueles com menor renda pagam menos ou até mesmo têm acesso gratuito ao transporte público.

O futuro da mobilidade urbana envolve a exploração de novas políticas, e cada caso deve ser pensado e planejado de maneira específica. Isso inclui a adoção ou não de novidades e tendências que estão moldando o futuro do transporte.

Veículos elétricos que produzem energia limpa são um exemplo: com a transição para veículos elétricos ganhando impulso em todo o mundo, as montadoras estão investindo pesadamente no desenvolvimento de carros elétricos e a infraestrutura de carregamento está sendo expandida. A mobilidade compartilhada é uma outra possibilidade: os serviços de compartilhamento de veículos, como carros, bicicletas e patinetes, estão se tornando cada vez mais populares. As pessoas estão optando por compartilhar veículos em vez de possuí-los individualmente, o que ajuda a reduzir o número de carros nas ruas e a diminuir a poluição. Além disso, estão surgindo plataformas que integram diferentes modos de transporte para oferecer soluções de mobilidade mais completas.

Mas, acima de tudo, a inteligência artificial é quem mais deve pesar nessas decisões e discussões. A tecnologia de veículos autônomos está progredindo rapidamente, e empresas de tecnologia e montadoras estão investindo nela para uso compartilhado de táxis autônomos e ônibus sem motorista. Essa tecnologia tem o potencial de melhorar a eficiência e a segurança do transporte, além de reduzir o congestionamento nas estradas. Da mesma maneira, a inteligência artificial está sendo aplicada ao gerenciamento de tráfego e ao planejamento urbano para otimizar o fluxo de veículos e melhorar a eficiência do transporte. Algoritmos avançados podem ajudar a prever padrões de tráfego, otimizar rotas de ônibus e sincronizar semáforos para reduzir o congestionamento e melhorar a fluidez do tráfego. 

Por essas e outras, as cidades estão investindo em infraestrutura conectada para melhorar a mobilidade urbana. Sensores e dispositivos inteligentes estão sendo usados para coletar dados em tempo real sobre o tráfego, qualidade do ar e uso de transporte público. Esses dados são usados para tomar decisões informadas sobre o planejamento urbano e melhorar a eficiência dos sistemas de transporte. À medida que a tecnologia avança e as demandas das cidades evoluem, é provável que novas inovações surjam, buscando criar sistemas de transporte mais sustentáveis, eficientes e acessíveis. 

Tomando os cuidados preconizados por Susan Shaheen, e sempre tendo a ética como fio condutor, a inteligência artificial pode levar a caminhos eficazes e mais abrangentes. 

No tecido intrincado das ruas urbanas, onde se cruzam sonhos, destinos e histórias, encontra-se a essência do direito de ir e vir do cidadão. Como cidade, tem-se o dever de tornar tangível essa aspiração, pavimentando caminhos que transcendam a mera mobilidade física. Nesse emaranhado de linhas, surge uma sinfonia de vidas em movimento, dançando em harmonia com o pulsar da cidade. 

Quando reconhecemos que a liberdade de deslocamento é mais do que uma necessidade prática, mas sim a própria poesia das nossas existências, somente então estaremos plenamente vivendo a verdadeira essência de uma mobilidade urbana inclusiva. Faz lembrar da frase da celebrada e saudosa Toni Morrison: “Eu sonho um sonho que me sonha de volta para mim.”

É possível. Mas é preciso fazer com que assim seja.